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Arca de não é, de Bento Baloi

Por: Martins JC-Mapera

lazifand@gmail.com

 

O simbolismo da arca, e o da navegação em geral, comporta vários aspectos que estão, no seu conjunto, interligados. O mais conhecido é o da Arca de Noé a navegar sobre as águas do dilúvio e transportando todos os elementos necessários à restauração cíclica (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, 2010).

A última vez que vi o Bento Baloi, presencialmente, foi na casa do artista, na cidade da Beira, quando apresentou o livro Recados da alma, no dia 2 de Agosto de 2017. A sua escrita e o seu estilo; as imagens dos seus recados parecem sinais de um tempo discernível na hermenêutica vétero-testamentária dos contos diluvianos de Genesis (6 a 9).

Este livro surge com características místicas inescrutavelmente lírico-escatológicas. É à luz da liricização dos acontecimentos que o narrador declara o seu afecto para com as vítimas do ciclone e das enxurradas: “homenagem às centenas de homens, mulheres e crianças que sucumbiram” (P. 11), em reivindicação da esperança e de um futuro colorido por sorrisos e abraços: “enquanto o sol raiar, o sorriso ainda é possível” (P. 11). Ainda que esse futuro seja platónico, parece evidente a força e a coragem das personagens perante essa luta contra as forças da natureza.

A crónica que abre o livro (“Jail house”) é antecedida por uma ilustração terrivelmente interessante do ponto de vista do significado efabulatório. Enquanto, por um lado, avulta a ruína inundada pela enxurrada, representando claramente a imagem de desolação, por outro, aparece a imagem do cão com “sinais de cinza” líquida, claramente discernível ao contemplar o espelho que a água faz com as sobras das árvores e dos edifícios submersos, parece estar a dialogar com o reflexo da ruína do seu próprio habitat. Esta leitura faz-nos concordar com Krir, citado por Jean Chevalier & Alain Greebrant, quando procura construir a imagem do cachorro. O simbolismo do cão reside na sua vocação de emitir mensagens que “[levam] para o céu as preces dos homens” (Krir apud Chevalier & Greerbrant, 2010, p. 153).

Parece haver um certo saudosismo materialista que nos lembra os tempos da civilização colonial, principalmente, ao descrever-se a força do vento e das águas, que entraram e saíram pelas várias fissuras do edifício: as grades rangeram, o tecto abanou, mas a estrutura permaneceu firme. Na óptica do narrador, esse facto aconteceu, porque “o colono fez (…) um bom trabalho” (cf. p. 19). Embora pareça anedótica, esta visão chama à atenção para a necessidade de erguer edifícios arquitectonicamente invulneráveis, num tempo ciclicamente marcado pelas hecatombes naturais.

A efabulação episódica do drama levou as personagens a recorrerem a alternativas mágico-tradicionais, sobretudo quando se narra a história do ladrão pilha-galinhas e mulherengo, que somente a polícia o salvou da morte. Há, neste croni-conto, uma contradição pragmática. Mas o paradoxo representa uma consciência no contexto de uma realidade em que as personagens sobrevivem à base de solidariedade recíproca.

A crónica intitulada “Nuvem de espuma” anuncia a aproximação do dilúvio: “A água chega com os mochos. Os pássaros da morte movem-se pelos ares sussurrando segredinhos apocalípticos aos ventos frios da madrugada” (P. 27). Este cenário foi visível, quando as águas se espraiaram pelo Rio Búzi, transbordando as suas argilosas margens, invadindo as povoações, pondo em risco vidas e engolindo casas, campos agrícolas, empreendimentos sociais, económicos e culturais: “O Búzi nega deixar-se comprimir por um par de margens já flácidas. Borbulha por aqui e por ali, galgando o interior de impotentes paredes da argila” (P. 27). Na verdade, a manifestação escatológica do ciclone e das enxurradas teve a sua incidência na povoação de Búzi, avaliando pelo número de mortes humanas. Mais de seiscentas pessoas perecidas.

Em 2001, foi publicada, em São Paulo, História do medo no Ocidente (1300-1800), em livro historiográfico, de todo o nível, magnífico. O autor do livro chama-se Jean Delumeau. Ao narrar a história do caos da civilização ocidental do século XIV ao século XVIII, o autor mostra que “nada é mais difícil de analisar do que o medo” (Delumeau, 2001, p. 22). Ao ler a obra de Bento Baloi, ficamos todos impotentes e a dificuldade aumenta mais ainda quando se trata de passar do indivíduo ao colectivo. Uma leitura colectiva da história do IDAI lembra-nos, de facto, o drama que horrorizou o mundo, mobilizando solidariedade das nações políticas, das nações religiosas e também das nações sócio-culturais de todo o planeta, por causa do caos meteorítico jamais antes conhecido.

Na Antiguidade greco-latina, o caos era a personificação do vazio primordial, anterior à criação, no tempo em que a ordem ainda não tinha sido imposta ao mundo (Grid apud Chevalier & Gheerbrant, 2010, p. 156). Convoco este conhecimento para relacionar Arca de não é com deambulismo grotesco das personagens da obra de Baloi, que, no geral, metaforizam o vazio desolador que as pessoas viveram duranta a ocorrência das cheias de 2019. Veja-se a passagem seguinte da crónica “Nuvem de espuma”: “O meio de subsistência é aqui que não se obtém. Em baixo é o caos. É o mar” (P. 29). Tanto há um vazio simbólico de esperança, como dos meios de sobrevivência, até do chão onde as pessoas possam pisar, andar, trabalhar e conviver. Há, cada vez mais, fome de coisas aparentemente simples. O prefaciador da obra, José dos Remédios, lembrou-se da música dos Queen para caracterizar o vazio greco-platónico causado pela falta de alguém para amar. A água separou famílias e sociedades; separou etnias e povos.

O estrago provocado pela chuva e pelo ciclone é, na minha opinião, sintetizado na terceira crónica do livro: “Zé das abelhas”. Vejamos o extracto seguinte que mostra o recurso de sobrevivência e as circunstâncias da morte das pessoas:

Ao quarto dia, o estado do tempo não dá sinais de tréguas. A chuva continua a cair e o homem continua sitiado no murmuché. São dias passados a baloiçar de um lado para o outro, em busca de equilíbrio e lutando pela vida. A fome fá-lo fraquejar. O risco de tombar e seguir o destino da água é uma realidade. O murmuché é a fortaleza das formigas. É aqui que elas buscam segurança, calor, conforto e espaço para procriar. A muralha está a ser corroída por baixo. A segurança e o conforto destes insectos são substituídos pela água que invade, paulatinamente, os espaços do seu mundo.

As formigas fazem o óbvio. Fogem do submundo do murmuché e sobem à superfície. Encontram um outro corpo estranho no topo do seu castelo: Zé das Abelhas. Frágil, cansado e esfomeado.

As formigas não são suas amigas. Zé é amigo de abelhas. As formigas não cantam, não dançam e nem voam. Também querem sobreviver e disputam o diminuto espaço com Zé das Abelhas. Elas partem para o ataque. Invadem o seu corpo. Quer repeli-las, mas falta-lhe força e energia. Os seus gestos são tão inofensivos que não impedem que os insectos percorram, em várias filas indianas, todas as avenidas do seu corpo. Primeiro são as pernas, depois a barriga, as costas, os braços e o pescoço. A primeira formiga ia atingir a cabeça, quando o castelo de areia, que é o murmuché, se desmoronou e, paulatinamente, se dissolveu na água.

Há quem diga que o corpo de Zé das Abelhas foi visto a navegar de bruços, totalmente coberto de enormes formigas negras, em direcção à foz do Púnguè (pp. 35-36).

É curioso que, em situações calamitosas, ocorram sempre episódios de nascimento de crianças em circunstâncias incomuns. Em 2000, nasceu a Rosita, em Gaza, concebida como mito de renascimento biológico e a continuidade da vida na terra. O livro de Baloi lembra-nos esse episódio, de uma criança nascida encima de uma árvore. A personagem Hanidjo é transportada por uma carroça de tração animal para ir ao hospital para o serviço do parto. É uma realidade que denuncia a precaridade da vida, a pobreza generalizada. Agravada por falta de “apoio médico” (p. 47), essa realidade chama à atenção a todos.

Apesar de tudo, no sofrimento há também espaço para alimentar sonhos e devaneios psicológicos. O texto “A menina que queria ser psicóloga” (pp. 101-105) tem uma intenção semântico-pragmática que contempla vários domínios de educação, como, por exemplo, a relação problemática entre a vida e as condições subjectivas da realidade, a necessidade de formação/educação científica, e, de forma lateral, os contornos sócio-económicos e ético-culturais a que as personagens cronistas se encontram envolvidas. Nisso tudo, o papel da família e da escola torna-se importante para a construção de uma geração que ajude a compreender os contornos do futuro. Vejamos o pensamento futurista de uma menina de 9 anos, ao tentar responder a uma pergunta que é comummente feita a crianças é desenvolvimento intelectual: “Eu, quando crescer, quero ser psicóloga […] Quero ajudar as pessoas a não se suicidarem”. Em poucas palavras, temos a referência à educação moral e, em defluência directa desse facto, a inscrição textual de conteúdos temáticos importantes: a importância ética e moralística que permite as pessoas compreenderem o valor da vida e dos fenómenos que a caracterizam; a educação formal e a necessidade de formação em áreas de natureza social.

É inteiramente pertinente o facto de o terceiro parágrafo da crónica referir os nomes originais e socialmente diminuidores, como “Urombo”, “Tsanguirai”, “Bininho”. Entre escritores moçambicanos que têm trabalhado temas desoladores como este, salienta-se o romancista Mia Couto que, no romance Terra sonâmbula, valoriza, com despreocupada lucidez, o estatuto social da personagem Kindzu que desencadeia uma série de episódios oníricos, ainda em terra idade, como, por exemplo, os conselhos que, em circunstâncias difíceis, foi dando ao velho Tuahir, face ao recrudescimento da guerra dos 16 anos em Moçambique.

As imagens que introduzem o texto que dá título ao livro ilustram com rara petulância a intencionalidade da escrita, assim como a sua eleição para o espaço que ocupa na colectânea.

O simbolismo da arca, e o da navegação em geral, comporta vários aspectos que estão, no seu conjunto, interligados. O mais conhecido é o da Arca de Noé a navegar sobre as águas do dilúvio e transportando todos os elementos necessários à restauração cíclica (Chevalier & Gheebrant, 2010, p. 80).

O simbolismo da Arca da Aliança dos Hebreus está mais próximo do que parece do anterior. Os Hebreus colocavam-na na parte mais retirada do tabernáculo; ela continha as duas tábuas da lei, a vara de Arão e um vaso cheio de iguaria que alimentara o povo no deserto. A arca era a garantia da protecção divina, e os Hebraus levavam-na nas suas expedições militares, Quando foi transferida, com grande pompa, para o palácio de David, os bois que puxavam o carro fizeram inclinar a arca; o homem que tocou nela para assegurar caiu logo morto no chão. Não se toca impunemente no sagrado, no divino, da tradição (Segundo livro de Samuel, 6).

Como vimos, Arca de não é configura uma falsa metáfora da Arca de Noé. Mas a criatividade linguístico-pragmática e a imaginação crítica, com que se intitulou a obra, têm uma relação artística muito forte no plano da literatura com as narrativas bíblicas. Em Arca de não é, temos referência ao dilúvio e, por consequência, à intertextualidade noética da filosofia bíblica, porque o recurso a uma expressão cuja deriva prosódica se assemelha à Arca de Noé, remete-nos directamente para a inscrição vétero-testamentária. Essa ideia torna-se mais forte, quando, no meio de tanto sofrimento, as personagens reconhecem a existência de Deus, como acontece na passagem seguinte: “Não é a minha perícia de navegador de ocasião que evita que a canoa se vire. É, sim, a força de Deus” (p. 111).

Importa, finalmente, referir que este livro é constituído por pequenos fragmentos contísticos, produzindo, no geral, as crónicas do quotidiano que vão hoje a público pela mão da Editora Índico.

Beira, 8 de Abril de 2021

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