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Zé das Abelhas

Zé das Abelhas é admirado na comunidade pela astúcia com que lida com os milhares de abelhas que povoam e esvoaçam sobre as suas colmeias, produzindo o mel mais doce da localidade. Ele passa os dias debaixo do sol mexendo e remexendo os favos, recorrendo a uma vara ou, se necessário, usando a técnica do fumo, e transpirando o aroma dos seus insectos.

O doce mel vem, de quando em vez, acompanhado de ferroadas. E já apanhou algumas. Ossos do ofício. Mas a aldeia toda era capaz de jurar a pés juntos que o apicultor é tão amigo das abelhas a tal ponto que não lhe fazem mal nenhum.  Há quem até diga que ele conhece o zumbido de cada uma das suas abelhas e até canta e dança a sua musicalidade.

Zé construiu inúmeras colmeias de madeira, na base de uma colina longe do centro da aldeia. Diz-se, também, que não é boa ideia ter uma colmeia junto de adegas de cabanga, porque estas atraem as abelhas e podem prejudicar a qualidade do mel. As colmeias estão assim, numa zona sossegada, perto de uma fonte de água, o Púnguè.

Não é que o rio se evadiu do leito na calada da noite! Galgou espaços e, em coligação com os ventos ciclónicos, derrubou palhotas, destruiu lares e raptou vidas para a sua corrente demoníaca.

Antes do sol nascer, Zé, que passou a noite vigiando a água que invadiu a sua casinha feita de bloco queimado, deixa a mulher e os dois filhos em lugar seguro: o cimo de uma árvore. Enfrenta a tempestade para saber das suas abelhas.

«Fica aqui connosco!», suplica a esposa, «não vais fazer nada para salvar as tuas abelhas!»

As palavras da mulher não encontram eco no coração apertado do Zeca. O mel é a fonte da vida. Sem mel não há comida em casa, nem há escola para as crianças. Mas mais do que fonte de sustento, as abelhas viraram paixão e afecto. São aos milhares, mas por cada uma que tomba, o coração de Zé destroça-se. É imperioso mitigar-se o desastre.

A caminhada é dura. Os níveis de água são elevados. Rapidamente saltam da cintura para o peito. As colmeias estão precisamente junto do rio. É do rio que todos se afastam o máximo que podem. Mas Zé quer salvar as suas abelhas de coração. 

O movimento do apicultor na água é empurrado para uma esperança que vai perdendo gás. A força de vontade aos poucos vai sucumbindo ao panorama que os lacrimejantes olhos de Zé contemplam. Começa a custar-lhe acreditar que as colmeias, de construção artesanal, tenham resistido a tanta destruição. Mas a esperança é a última que morre.

As faces de Zé das Abelhas estão ensopadas por um misto de chapiscos da chuva, que teima em não parar, e do suor resultante da excitação emocional e do enorme esforço físico que faz para seguir em frente. Nunca imaginou que algum dia fosse capaz de transpirar mergulhado na água.

Ele alcança a base da pequena colina. A sua vista pestaneja, de forma incessante, como se a sombra do amanhã descansasse nas bermas da sua vida. Os seus receios viraram realidade. As colmeias foram varridas da face da terra e substituídas por um mar sem fim. E as abelhas? Não sobra nenhuma para amostra.

«Será que as minhas abelhas lindas foram levadas pelos ventos?», questiona-se. Em si busca uma resposta para se autoconsolar: «não! Elas têm asas. Só podem ter voado. Mas voaram para onde? Voaram para a desgraça?», não tem resposta. Outro pensamento enche-lhe de pânico: «ou será que se afogaram?», nova incógnita atormenta-lhe os pensamentos, e com ela mais uma pergunta para lhe inquietar a alma: «mas afinal de contas as abelhas sabem ou não sabem nadar?», equação sem solução.

Olha em redor. Apenas vislumbra água e mais água. Apenas água. O que fazer? Há que regressar para casa. Mergulhado num manto que descomanda as suas emoções, mal se apercebe que a água lhe chega agora ao pescoço. Tenta dar o primeiro passo no sentido de regresso. Sente um chão movediço que resvala para o vazio. Está a ficar sem pé. Não sabe nadar. Se insistir, afoga-se. Assusta-se com tão macabro pensamento.

A apreensão não lhe tira o discernimento necessário para dar o passo atrás. Nada de enfrentar a água. Galga a colina e resguarda-se na sua parte mais alta. Tem de esperar que a água baixe, para voltar para casa e saber da mulher e filhos que deixou pendurados numa árvore.

À medida que o dia se clareia, a chuva aumenta de intensidade e o nível deste mar só sabe subir. Zé das Abelhas está encurralado na colina, que é o ponto mais alto da aldeia. Não tem mais para onde recuar. Sobra-lhe um murmuché empoleirado em forma de um chapéu no topo da colina. É aqui que o homem se refugia.

O apicultor está sitiado só, com frio, fome e sem as suas abelhas. A aldeia desapareceu. As copas das árvores transformaram-se em pequenos pedaços de verde que pontificam a espaços por entre a corrente.

E a sua família? Ele abraça-se a si próprio. Entrega o seu corpo à chuva. Os seus olhos contemplam o infinito da água e chora. Lágrimas de dor. Lágrimas de desespero. Lágrimas de incerteza na razão de uma vida que deixou de ter chão.

Sua alma segreda-lhe que da mesma forma que não chegou a tempo de salvar as abelhas, pode não voltar a colocar os olhos sobre os seus. O choro é agora copioso. Tão alto, tão alto, que ecoa no vento e na chuva, mas não conquista os tímpanos do mundo. Perde-se no som da água.

Ao quarto dia, o estado do tempo não dá sinais de tréguas. A chuva continua a cair e o homem continua sitiado no murmuché. São dias passados a baloiçar de um lado para o outro, em busca de equilíbrio e lutando pela vida. A fome faz-lhe fraquejar. O risco de tombar e seguir o destino da água é uma realidade.

O murmuché é a fortaleza das formigas. É aqui que elas buscam segurança, calor, conforto e espaço para procriar. A muralha está a ser corroída por baixo. A segurança e o conforto destes insectos é substituída pela água que invade, paulatinamente, os espaços do seu mundo.

As formigas fazem o óbvio. Fogem do submundo do murmuché e sobem à superfície. Encontram um outro corpo estranho no topo do seu castelo: Zé das Abelhas. Frágil, cansado e esfomeado.

As formigas não são suas amigas. Zé é amigo de abelhas. As formigas não cantam, não dançam e nem voam. Também querem sobreviver e disputam o diminuto espaço com Zé das Abelhas. Elas partem para o ataque. Invadem o seu corpo. Quer repeli-las, mas falta-lhe força e energia. Os seus gestos são tão inofensivos que não impedem que os insectos percorram, em várias filas indianas, todas as avenidas do seu corpo. Primeiro foram as pernas, depois a barriga, as costas, os braços e o pescoço. A primeira formiga ia atingir a cabeça, quando o castelo de areia, que é o murmuché, desmorona-se e, paulatinamente, dissolve-se na água.

Há quem diga que o corpo de Zé das Abelhas foi visto a navegar de bruços, totalmente coberto de enormes formigas negras, em direcção à foz do Púngué.     

 

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