“Dom Quixote da Mancha”, de Miguel de Cervantes, escrito no século XVII, é tido como o romance fundador da literatura europeia. O livro que o leitor tem em mãos não é fundador da literatura moçambicana, nem mesmo da ciência política moçambicana. É um livro sem esse peso histórico, mas que corre o sério risco de, um dia, ter que assumir peso idêntico. Ele percorre os meandros da ciência política, da ética, da religião, da ciência económica, da teoria de gestão e do realismo mágico do nosso quotidiano para inaugurar um género literário. Trata-se dum género que faz um assalto sistemático e erudito à complacência e desmonta de forma implacável os alicerces duma narrativa que vê Moçambique onde ele não está e, provavelmente, nunca estará, sobretudo se ele não se emancipar desses alicerces que fundamentam essa narrativa e servem como correntes à imaginação e inteligência dos moçambicanos.
É um género desconcertante. A mão que empunha a pena através da qual o livro ganha substância e existência, é a mão duma mente erudita tímida que pela modéstia com que expõe o seu pensamento profundo até parece ter vergonha de ser o veículo de verdades que ninguém quer ver, ouvir ou mesmo contemplar. Os temas são complexos, a sua fundamentação revela um autor lido, mas a mensagem, a sua mensagem central, parece clara como as águas das Cataratas de Namaacha quando ainda não tinham desistido do País como parece ser o caso agora. É a mensagem que nos diz que Moçambique não é o que pensamos ser e, por isso, o seu futuro não vai ser necessariamente a realização do sonho que confundimos com a sua idealização. Moçambique, insiste a mensagem deste livro, é o que está enterrado nos argumentos dos livros que lemos sem entender. É o que se precipitou pelas fendas duma estrutura económica e política mundial que se insinua como a negação de si própria. É, como escreve o autor, a confusão entre legalidade e justiça, estradas e desenvolvimento, que faz do que nos tem sido dito como sendo o caminho para a prosperidade o caminho para a perdição. Para Moçambique ser, os moçambicanos precisariam de desenvolver e cultivar o hábito de ler contra a corrente, justamente o exercício a que se entrega o autor nestas linhas que misturam o sentido do ridículo que dá a verve à escrita de Mia Couto, a redacção obsessiva e sem fôlego de Ungulani ba ka Khosa e o encantamento que faz a escrita de Paulina Chiziane.
“Dom Quixote da Mancha”, o romance, foi festejado na Europa após a famosa Revolução Francesa como a manifestação literária da improvável, mas não impossível situação em que uma pessoa está do lado da razão numa sociedade equivocada. Em cada linha que compõe esta reflexão fascinante sobre vários aspectos da nossa sociedade, o autor deste livro vai tecendo argumentos que tornam essa ideia cada vez mais plausível. O alicerce é a tese central do livro que se insinua como uma sentença: Moçambique não existe. Os recursos intelectuais e políticos de que dispomos para pensar Moçambique constituem-se como uma negação desse exercício e, por isso, o que urge fazer, é repensar os próprios termos que tornariam o pensamento possível. Não é que esse Moçambique realmente não exista. Existe numa versão específica, a versão cantada pelos Ghorwane naquela sua composição que mostra um mundo virado de avesso, o mundo em que ladrão persegue polícia, doente foge do hospital, deficiente físico recusa muletas, etc. Persistir na ideia de desenvolvimento evocada por este Moçambique é cultivar o quixotesco no lugar de despertar do estupor conceitual que nos entorpece.
Os maus hábitos de pensamento que nos devolvem um Moçambique pronto-a-vestir são uma espécie de prisão. Só quem procura refúgio na liberdade do pensamento crítico é que logra a liberdade. É preciso estar confinado para evitar a prisão gigantesca que é o mundo ilusório da verdade simples, o mundo feito dos bons e dos maus cujo reconhecimento se faz facilmente porque a intuição ética não se constitui na nossa vivência, mas sim numa narrativa normativa que nos faz reféns felizes da promessa dum mundo melhor. A crítica a isto faz o conteúdo deste novo género literário. É uma leitura contra a corrente e, por isso, crítica. O género procura recuperar o que nunca existiu, ou se existiu, apenas como fantasma de si próprio assombrando o nosso futuro.
O autor diz, de forma mordaz, que vamos precisar de nos sentarmos para aguardarmos serenamente pela chegada desse futuro melhor. Quem tem a perspicácia de dizer isto deve estar sentado num lugar muito privilegiado. Aos seus olhos a sociedade deve ser uma espécie de panóptico, opaca para quem está de fora e totalmente incrustável para quem está lá dentro. Nunca fez tanto sentido sair da sociedade para melhor a ver. Nunca fez tanto sentido prestar atenção ao ridículo para entender o sério. Nunca fez tanto sentido ser quixotesco para aferir a gravidade de viver num País onde o juízo fácil transforma a razão fátua no modelo privilegiado de abordagem do destino de milhões de pessoas.
Este é um livro para os fortes de espírito, para aqueles com o dom da introspecção, para os que protegeram a sua mente dos desvarios da razão indolente. É um livro para aqueles que não querem sucumbir ao canto das musas do discurso de desenvolvimento que se reproduz no sacrifício de indivíduos no altar onde razões estruturais deviam estar a arder. É preciso lembrar, e ter sempre presente, que Miguel de Cervantes escreveu o prólogo do livro que inaugura a literatura europeia numa cela. Se tivesse sido moçambicano, o seu romance teria sido chamado “O Senhor (B’ava) Quixote da Machava” para inaugurar a leitura do grotesco que faz a nossa existência.
Basileia, 4 de Outubro de 2020.
*Prefácio do livro Chova xitaduma (crenças, paradigmas e doutrinas mutáveis), de Paulo Zucula. O livro estará nas livrarias na próxima semana.