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Carta aberta ao Presidente da República

Esta é a segunda vez que escrevo uma carta para si e espero que encontre algum tempo para a ler. Sei que o senhor tem muito que fazer e pensar. Muitos problemas por resolver. A guerra no centro e norte, a problemática de coronavírus, só para citar alguns exemplos.

Ainda na semana passada, o senhor decretou novas medidas de prevenção contra o coronavírus. Recuamos para os tempos em que quase tudo estava fechado. Cinemas, salas de teatro, piscinas públicas, ginásios, praias, discotecas, barracas da venda de bebidas alcoólicas e bares. Parte da economia está parada.

É que as pessoas são muito desobedientes, senhor presidente. Gostam de ser policiados. O pior de tudo é que não confiam em nada. Conhecem tão bem as limitações do nosso sistema nacioanl de saúde, quase a atingir o colapso. Camas para doentes com covid-19 quase a esgotar. No sector privado já está.

O senhor é um homem cheio de boas intenções. No final do ano, brindou os moçambicanos com aquela sua decisão de reabrir barracas e bares. Aquela foi a máxima. Foi como que largar um passarinha. Abrir, de repente, os calabouços e dizer aos reclusos para fugirem sem olhar para atrás. É o que vimos. Barracas assaltadas de gente a beber e a expor-se ao risco de contrair o coronavírus.

Não acha que o momento foi impróprio para tamanha decisão? Bom, vamos esquecer. É que coincidiu com o final do ano caracterizado por altas temperaturas, com a euforia à mistura e o regresso em massa dos nossos compatriotas da África do Sul, um dos paises mais afectados pela covid-19 em África. Pessoas que entraram no país sem teste que comprova que estão livres da doença.

Excelência, concorda comigo quando digo que a medida tem a sua cota-parte nesta grande escalada de contaminações no país, em particular na cidade de Maputo? Não estou longe da verdade, não acha?

Senhor presidente, gostei das medidas que anunciou, mas, como sabe, elas em sí não vão resolver nada. O comportamento humano será determinante. Algumas até deviam ficar de vez. Por exemplo, por regra, os bottles stores não estão autorizados a vender bebidas geladas, nem que os seus clientes bebam no local. Mas o que vemos é o transformar destes em autênticos bares, à luz do dia, e a registarem enchentes. Onde andou a inspecção, este tempo todo, para corrigir este atropelo?

Outra coisa, senhor presidente, é que na região Austral de África não se vende bebiba alcoólica aos domingos. Os bottle stores não abrem. Quem quer tomar uma bebida tem que ir a um restaurante ou bar. Nós somos os únicos, senhor presidente, em que tudo fica ao bel-prazer dos donos dos bottle stores. Para começar, abrem todos os dias e fecham a hora que quiserem, num claro vazio do poder.

Acredite, senhor presidente, que somos também os únicos em que se permite beber na via pública. Circular com garrafas de cerveja ou de outro tipo de bebida na mão. Isso é impensável na África do Sul e noutros países da região.

Talvez por isso que os sul-africanos não nos respeitam. Quando chegam aqui, fazem e desfazem a seu bel-prazer e, inclusivamente, lançam o lixo pela janela do seu carro em andamento porque sabem que nada lhes vai acontecer. No seu país não fariam isso nem por bricadeira. Triste não é? Pois é.
Excelência, agora, sim, os polícias acordaram. Andam às dezenas nas ruas da cidade de Maputo, e não só, a fiscalizar o cumprimento das medidas anunciadas. Sabe que eles são chamados de “Mahindras”? Já não são cinzentinhos.

Alguns deles estão a fazer boladas. Pensam mais no seu bolso do que propriamente no que se deve fazer. Admitem o inadmissível. Deixam passar atropelos à lei em troca de dinheiro. Coisas de Moçambique!

Há outra coisa que me preocupa senhor presidente. Ouvi bem o que o senhor disse. Li e reli as 21 medidas que anunciou. Não há nada que diga que os polícias têm que apreender produtos, nomeadamente bebidas alcoólicas de infractores.

Quer me parecer que há algum excesso de zelo. É que os “Mahindras”, desejosos em mostrar serviço aos seus chefes, “prendem” bebidas, no lugar dos prevaricadores. Tudo ao contrário. Ficam, assim, processos-crimes por instruir e enviar ao tribunal para a sua responsabilização. Já agora digam lá para onde é que levam as bebidas “presas”?

Caro presidente, desculpa pelo alongar da carta. Quando me emociono, não paro de escrever. Mas só mais umas coisinhas. O senhor disse que no meio da semana, os restaurantes passavam a fechar as 20:00 horas. Tudo bem.

Mas sabe que na última sexta-feira, dia da entrada em vigor das 21 medidas contra a covid-19, restaurantes da Julius Nyerere continuavam com clientes até às 20:30? Violaram o decreto do Conselho de Ministros logo no início. E ao que parece os “Mahindras” não andam por lá, pois estão ocupados em vasculhar os subúrbios. A história dos filhos e os enteados.

É verdade, o senhor completou, na semana passada, um ano, o primeiro neste seu segundo mandato. Aproveito, desde já, felicitá-lo por isso. Quase todo o mundo está a coleccionar os seus feitos, num ano em que o coronavírus quase paralisou a economia do país, baixando as perspectivas de crescimento para os níveis muito reduzidas.

Uns dizem que o senhor fez chegar água potável à sua aldeia ou comunidade. Para os outros, é a energia. Há os que destacam o seu papel no processo de busca da paz que dominou o seu primeiro mandato. Enfim, há um esforço no sentido de juntar peças para sustentar a tese de que o seu desempenho foi positivo.
Buscam realizações numa situação em que parte significativa das empresas, unidades hoteleiras e outros sectores fecharam as portas, despediram centenas de trabalhadores e algumas delas até hoje não retomaram as suas actividades devido ao coronavírus, cujo número dos infectados está a subir dia-pós-dia e de uma forma assustadora.

É um exercício que decorre ante a guerra em Cabo Delgado que ofusca quase tudo e começa a baralhar as contas e a obrigar às petrolíferas envolvidas nos projectos de exploração de gás natural do Rovuma a mudar de planos.

Uns, adiaram, até agora, o anúncio do investimento definitivo. Outros, como a Total, estão a reduzir os seus efectivos de pessoal no terreno com a ameaça de ataque por parte dos terroristas e os ataques da Junta Militar de Mariano Nhongo que continua a mata cidadãos indefesos, destroi e saqueia bens públicos e privados.
Mesmo para terminar esta minha carta, gostaria de saber se há alguma novidade no diálogo com Mariano Nhongo? Parece-me que o senhor se zangou com ele ao lhe dar um ultimato, sábado passado, para entregar-se às autoridades antes que seja tarde.

Confesso que fiquei surpreendido com o ultimato. É que nas vésperas do final do ano, o homem anunciou uma trégua e disponibilizou-se a iniciar, na segunda-feira da semana seguinte, um ciclo de diálogo com o governo para os mesmos objectivos. De lá a esta parte, não se disse mais nada. Será que chegou a haver contactos com ele? O que terá acontecido ou falhado? Cadê o diálogo?

Bem vistas as coisas até parece que o senhor está a lhe fazer pagar pela mesma moeda já que quando foi a sua vez a decretar a trégua, ele virou-lhe as costas e no dia segunte atacou algumas viaturas.

Mas, senhor Presidente, se me permite gostaria de lhe dizer que mesmo assim devia ter aceite o diálogo com ele. Sabe porque? Muito simples. É que o líder da auto-proclamada Junta Militar não tem nada a perder. Tarde ou cedo será desmobilizado, desarmado e reintegrado na sociedade.
O mesmo já não acontece com o seu governo a quem cabe a responsabilidade de proteger ou garantir a segurança ao cidadão. Sucede quer as pessoas estão a ser sistematicamente mortas e os bens, públicos e privados, saqueados ou destruidos. Ainda não notou que os ataques de Nhongo e companhia estão a afectar a economia. O seu programa de governação. Cria um desgaste da imagem do país.

Bom, termino por aqui desejando-lhe sucessos neste novo ano. Sucessos na governação. Sucessos no meio familiar e na busca de apoios para acabar com o terrorismo em Cabo Delgado. Não é motivo de vergonha que Moçambique seja alvo de terroristas. Não estamos a inventar a roda neste assunto.
Não sei por que razão, mas demoramos muito a reconhecer que são eles, os terroristas, que nos atacam. Agora temos que dizer a todos o que se passa no terreno, incluindo a nós também moçambicanos. Com os parceiros, temos que ser claros sobre o que queremos para que possam pedir autorização aos seus parlamentos para nos ajudar.

Senhor presidente, o senhor foi felicitado, semana passada, quando nomeou e empossou o General Eugénio Mussa para o cargo de Chefe de Estado Maior-General das Forças de Defesa de Moçambique. Dizem que o senhor acertou em cheio, que ele é bom no comando.

Acredito que como ele deve haver mais generais que dirigiram ou participaram nas anteriores guerras e que têm muita experiência ou conhecimento sobre a forma de ser e estar numa guerra, incluindo os que pertenceram à guerrilha da Renamo, hoje membros do exército moçambicano. Eles podem ser úteis na definição de estratégias militares e não só. Não acha senhor presidente? Bom, até mais.

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