O filho do falecido vovô Madala chamava-se Hussene Valgi. Andava desesperado porque estava num beco sem saída com a quantidade e a gravidade dos problemas que viera encontrar em Lourenço Marques, e dos que deixara atrás. Primeiro foi a grande surpresa pelas circunstâncias da morte do pai. Este acabara como um animal de rua, enterrado numa cova, misturado o seu cadáver com o duma rapariga que, estava visto, o seduzira e levara-o a praticar aquela imoralidade. E como poderia dar-lhe um enterro decente, conforme recomendavam as normas da religião muçulmana que era a dele, se as ossadas de ambos estavam misturadas naquele caixão? Se regressasse a Porto Amélia quem iria cuidar da campa no Cemitério de Lhanguene? Seria uma cruelidade deixá-lo ao abandono, a apodrecer esquecido e desprezado por todos nesta terra estranha. Contudo, se se deixa estar por aqui como iria resolver as pendências que deixara lá na terra, onde os tios estavam prontos a abocanhar as propriedades cheias coqueiros e os barcos que a família possuía? Tinha, e este era de todos o problema mais grave, o seu lar no bairro de Paquitequete onde a esposa, a dona Mariana, e os dois filhos menores viviam. Abandoná-los era a última coisa que iria fazer.
Consultou o senhor Bhai e deste recolheu conselhos dum homem adulto, ponderado e que também vivera os seus dramas.
“ Olha, Hussene, aguenta aqui por algum tempo para a tua cabeça refrescar. Depois vais tomar a decisão que achares acertada. Correr não é chegar. Se quiseres podes ficar lá atrás na despensa da loja e ajudar as costureiras ali na varanda a bainhar roupas. Assim vais aprender a fazer alguma coisa até arranjares um melhor emprego”, disse o Bhai ao jovem Valgi. Aquela era uma oferta a que não poderia voltar as costas. O espírito do pai estava a protegê-lo. Para quê recusar esta prenda generosa, feita com tanta espontaneidade?
Assim, sentou-se ao lado das modistas a embainhar saias, a colocar “estampas” nas calças rotas de operários, a coser rendas nas capulanas mukume ni vemba. Com elas tagarelava e contava coisas lá do norte distante. Delas aprendeu as primeiras palavras do dialecto ronga. Claro que primeiro ensinaram-lhe obscenidades e pediam para ele as repetir em voz alta. E riam-se a bandeiras despregadas, todas contorcidas de gargalhadas com a inocência dele. Em cortesia e alto sentido de humor saíra ao pai; tal e qual!
Ao fim de três meses depois da sua chegada achou que poderia assentar na cidade, alugar uma casa e mandar vir a família para se lhe juntar. Seria o começo duma nova vida. Aceitou o desafio e deitou as mãos à obra.
A aproximação da quadra festiva trouxera outra animação em todos os bairros da cidade. Nos terminais, desde os “Transportes Oliveira” aos “Transportes do Sul do Save” do Sá, do “Teresa Lino & Filhos” ao “Manuel Antunes”, passageiros era o que menos faltava. Os autocarros circulavam para os seus destinos com as lotações esgotadas. Era gente que se dirigia ao campo, aos seus lugares de origem, ou eram os que daí provinham para visitar os parentes residentes na cidade.
Multidões acotovelavam-se nos formigueiros das lojas do Xipamanine. Fregueses entravam e saíam das mesmas desde o amanhecer ao anoitecer. Regressavam às ruas ajoujados de sacos e cestos de compras. Era necessáro levar alguma recordação para os que não puderam deslocar-se à cidade, para exibir prendas e roupas domingueiras para os dias das festas. Sem falar nas extravagâncias consentidas pelo décimo-terceiro vencimento.
Foi desta época em que nas lojas do Bhai e da Dona Cacilda, baluartes de vendas de capulanas na Rua do Zixaxa, as mulheres se empurravam para adquirir os últimos lançamentos no mercado daquela especialidade. E uma daquelas era uma denominada Aurora.
“ Estou aqui convosco já faz um tempo, mas nunca vi uma capulana a ser procurada desta maneira”, disse o Valgi às colegas, que mal conseguiam um minuto de folga no embainhamento de roupas.
“ O quê?, Nem parece que vives nesta terra!”, disse a mãe Dorothy, uma das mais antigas costureiras da loja. “Então não sabes da história da irmã Aurora?”.
Valgi confessou a sua ignorância sobre a tal história que culminava com o aumento do negócio de capulanas ali na zona, ou qual seria a relação entre os dois eventos.
“ Então escuta, porque só assim é que ficas a saber”, disse a Dorothy.
“ Conheces o posto de Saúde da Munhuana? Fica ali na avenida Caldas Xavier, perto da Igreja com o mesmo nome. A Aurora era uma moça que veio não se sabe donde e foi internada no Convento da Missão da Santa Ana da Munhuana para fazer o curso de freira. Como se faz com todas as reparigas que ali ingressam, ensinam-lhes profissões comoa a da enfermagem ou do magistério. A Aaurora foi destacada para trabalhar no posto de saúde, ao lado doutras enfermeiras já formadas e experientes.
Era ela que dava vacinas aos bebés, purgantes às crianças mais velhas e tratava as nossas feridas. Era admirável ver a atenção e o carinho com que essa rapariga lidava cos pacientes. Tinha sempre na boca uma palavra de encorajamento, um sorriso que nos aliviava dos nossos sofrimentos: uma santa! Havia até quem dizia que ela era uma enviada de Deus para nos mostrar o caminho da humildade, paciência e de generosidade para com os nossos semelhantes. Posso dizer que não há em nenhum bairro aqui da cidade que não conheça ou tenha sido paciente da irmã Aurora.
“ Hoje em dia há pouca gente assim. Só malandragem! Pergunta a mim que te vou contar muitas histórias dos meus tios lá em Porto Amélia”, interrompeu o Valgi, a recordar-se das atribulações causas pelos parentes lá na terra natal.
“Pois então, e como todas as pessoas cheias de bondade não duram muito tempo, aconteceu o que foi aquele escândalo que foi a morte dela”.
“Alguma doença ou quê?”
“ Se fosse doença era ainda o menos. Ela foi assassinada”.
“ Como e porquê?”, admirou-se o Valgi, com a testa enrugada. Como podia isso suceder a alguém que dedicara a sua juventude a cuidar do próximo, e merecer o fim que a colega referia?
“ Numa noite dessas, a irmã Aurora vinha do Instituto Víctor Ribeiro onde frequentava um curso de dactilografia. Até nem era muito longe do Lar onde vivia com outras noviças. Nessa noite resolveu fazer um corta-mato pela “Padaria Saipal”, ao lado do cemitério de São Francisco Xavier. Nem se sabe a que horas aquilo aconteceu, mas o que se diz é que foi surpreendida por um grupo de malaítha que a carregou e puxou para aquelas matas que se encontram atrás do cemitério. Aí os bandidos fizeram e desfizeram dela. Violaram e mataram-na, coitada!”
“ Por Allah, que brutalidade!”, Valgi não se conteve de exclamar.
“ Isso não foi nada. A irmã Aurora andou desaparecida durante três dias. No convento não tinham a mínima ideia donde ela teria ido depois das aulas. Algumas pessoas afirmaram tê-la visto nas proximidades da Saipal, mas depois disso perderam-lhe o rasto. Outros juravam categoricamente que “ah!, essas raparigas são sempre assim: com o sofrimento lá no Lar resolveu fugir e neste momento já anda muito longe daqui. E dá para jurar que fugiu com um homem…”, enfim, maledicências de gente má porque a Aurora era incapaz disso. Via-se e toda a gente sabia que a moça era bem comportada, senão não teria ficado tanto tempo com as irmãzinhas”.
“ Aí já estás meter água, ó Dorothy”, cortou a tia Mariazinha, outra das costureiras, uma linguaruda que só Deus é que sabe onde é que maledicência dela irá chegar. “Repara que a Aurora era uma rapariga como as outras. Já foste menina e sabes o que passámos quando tínhamos a idade dela. Dezanove anos de idade não é brincadeira nenhuma para uma moça. Também tens filhas, tens que compreeder isso. Acho que às tantas ela sentiu as mesmas necessidades que qualquer uma de nós aqui. Isso dos sacrifícios de que falam os padres e as freiras é masé papaia podre. Quando o corpo pede a mente cede e, vai daí, é só veres as miúdas grávidas. Não é qualquer mulher que aguenta aquilo”.
“ Não questiono isso, estou a falar duma pessoa que todas conhecemos e respeitamos pelo exemplo que sempre deu, a nós e às nossas filhas”, redarguiu a Dorothy.
“ Vou-vos contar o caso duma moça que…”, ia contrapor a Mariazinha para dar mais ênfase ao seu argumento. Assim, à margem, devo declarar que as costureiras do Bhai costumavam, como é uso e costume nas conversas entre senhoras, falar ao mesmo tempo e entenderem-se; ao contrário dos homens em que numa conversa cada um fala por sua vez mas não se entendem.
“ Hei, espera aí comadre, deixa lá aqui a mãe Dorothy acabar a história da Aurora”, cortou o Valgi, a tentar arbitrar a discussão, por desconhecimento daquela regra.
“ Como vinha dizendo, o desaparecimento da Aurora pôs metade da cidade em alvoroço. Já ninguém sabia o que fazer ou onde procurar. A notícia foi anunciada na Hora Nativa, até veio no jornal e pedia-se a quem soubesse do paradeiro dela para informar a Polícia ou lá na Missão. Tudo em vão!”.
“ Se calhar mataram e enterraram”, aventou o Valgi.
“ Isso seria o menos. Aqueles bandidos, não satisfeitos com o que fizeram, rasgaram-lhe a barriga e o peito e tiraram de lá o fígado e o coração. Dá para imaginar?”.
“ Ná, não dá, nem para imaginar, nem para acreditar!”.
“ Pois acredita porque é verdade. Foi assim mesmo. Extrairam-lhe esses órgãos como usualmente fazem esses malaithas, esses magaizas vindos da África do Sul. Levaram essas partes com eles a fim de fazerem remédios. Mas uma morte não se esconde. Às tantas começou-se a sentir um cheiro esquisito e nauseabundo vindo dali das moitas, das traseiras do cemitério de São Francico Xavier, que era onde a tinham violado e assassinado. Também havia um grande movimento de cães que iam lá devorar os restos do cadáver dela”.
“ Morrer e acabar comida por cães, é mesmo demais! Ela não merecia isso, depois do tanto que fez pelas comunidades. Não há direito!”, Valgi de novo, a condenar e a lamentar um fim tão trágico quanto injusto. “É o que eu sempre disse: os bons morrem cedo, os maus duram quase uma eternidade, Deus me perdoe!”.
“Quando os padres e as populações souberam do escândalo o choro foi geral, todo o subúrbio ficou de luto. Ninguém falava doutra coisa, nem ninguém acreditava quanta malvadez poderia haver no espírito dalgumas pessoas. A Aurora tivera a bênção de Deus, fora escolhida para vir viver no nosso meio e dar-nos as lições que o Evangelho ensina. E morreu cricuficada por praticar o Bem. Ela é a única santa que aqui existiu e viverá para sempre nos nossos corações”, disse a mãe Dorothy. ”Se os padres a propuseram para ser santificada, para nós os pobres ela é já uma santa. Demos o nome de Aurora a esta capulana bonita que estamos aqui a bainhar. É a nossa homenagem àquela que acima de todos se manifestou como profeta que veio para nos iluminar com exemplos de simplicidade, de generosidade e de amor ao próximo.
“ Que história!”, exclamou Valgi com um suspiro. “Mãe Mariazinha, conta lá então a estória da tal moça”.
“ Qual moça?”, admirou-se a Mariazinha a erguer a cabeça.
A resposta foi um coro de gargalhadas.
“ Só a Mariazinha!…”, disse o Valgi a menear a cabeça, divertido com a falta de memória da colega.
*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.