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Da conversa entre cavaleiros no labirinto do Chamanculo

“Você está com cara de ontem, amigo. Que bicho o mordeu?”, perguntou um dos cavaleiros ao companheiro. Ambos formavam uma equipa de trabalho fazia seis meses e conheciam-se o melhor que seria possível. Partilharavam das aventuras nocturnas dos patrulhamentos e entre eles começara a nascer uma confiança mútua reforçada pela convivência quase diária. O interpelado sempre fora um indivíduo muito prolixo, sempre pronto a contar uma história, das muitas que testemunhava e recriava, para tornar a missão da noite mais leve e suportável. Nessa noite, porém, cavalgava sem a energia dos outros dias, fechado em si, um macambúzio a balançar sobre os lombos do muar. Melhor fizera se se tivesse deixado estar em casa, em vez de estar a maçar o colega com os seus silêncios.

“A vida muitas vezes prega-nos tamanhas surpresas que é quase impossível acreditar que estejamos acordados”, disse aquele num suspiro.

“ Desabafa, homem, tira isso cá para fora da caixa”, encorajou o primeiro.

Eram ambos homens na idade dos quarenta, escaldados da vida e muitos sonhos nas cabeças. Cada qual tinha a sua própria história singular e conturbada como o são as histórias de muitos cidadãos metropolitanos, emigrantes nesta s terras misteriosas de Africa. Haviam chegado ao encontro de sonhos que se recusavam a materializar-se. Perseguiam miragens de vidas estáveis e prometedoras doutros esplendores, porque foi isso o que lhes haviam dito lá nas terras de origem.

Contornavam a esquina da cantina do Mário quando o triste cavaleiro começou a narração da história assombrosa que o deprimia. E esta foi a seguinte:

“…Como já lhe contei, estou cá em Lourenço Marques há meia dúzia de anos. Suor sangue e lágrimas é que foram estes anos, digo-lhe aqui com o coração sentido.”

“ A quem o diz, meu amigo! A quem o diz! Também passei pelas brasas”, recordou o outro.

“ Pois o destino quis que conhecesse uma senhora que me pareceu muito recatada, pelo seu aspecto e pela postura. Aquilo sucedeu numa cerimónia de um baptizado do filho dum conterrâneo lá de Braga, o Brás das Foices, que é capataz da Construtora Integral, não sei se você o conhece”.

O outro limitou-se a um silêncio de sondagem pela memória. Rendeu-se e acabou por reconheceu que não conhecia nenhum Brás das Foices.

“ Fui lá para a casa onde ele vivia com a mulher, e vive até agora. Foi uma patuscada à moda da terra. Bebemos e comemos que nem em dia de boda. No meio da festa apercebi-me que uma cachopa mista-achinesada não tirava os olhos da minha pessoa. Não é para me gabar pela minha figura, mas a atenção dela despertou a minha. E claro, correspondi à mesma. Conversámos sobre as corriqueirices do costume e fiquei a saber que era professora na Escola Primária da Missão de São José. Ali deram-lhe uma alcunha que era a sua identificação pela raça e pelo estado civil: menina Maria-Muchina”.

“ Bonito nome, sim senhor. Esta gente nada têm a dever a nós os metropolitanos. Por dá cá aquela palha estão a dar nomes e alcunhas a toda a gente. A colonização chegou a esse ponto”.

“Tivemos vários encontros, tudo dava a entender que o noivado e o nosso casamento seriam os passos mais acertados. Casar não chegámos a casar por vários motivos, mas passámos a viver maritalmente. E digo-lhe com toda a sinceridade, eu amava aquela mulher”.

“ Esse foi o seu mal, amigo”, interveio o outro. Pelos vistos tinha razões de sobra para este seu particular posicionamento em relação a assuntos que envolvessem amor.

“ Mal ou não, a decisão ficou pendente. Inevitavelmente, tivemos um filho. A vida corria com as rotinas habituais, um dia mais alegre do que outro, eu no trabalho da construção e mais tarde neste, sempre sobre lombos de cavalos, em missões de patrulhamentos, durante noites, ao frio, à chuva. Um tipo a matar-se para dar algum conforto à família para depois sofrer os revezes que sofri”.

“Isso acontece a todos, ou pelo menos a muitos. Um tipo a malhar na parede que nem mouro, a desenrascar pela vida, mas eis que às tantas tudo dá um pinote de revés e vais parar à banda, sem perceberes como te atiraram ao chão”, resmungou o outro.

“ Foi assim mesmo. Às tantas, a mulher diz-me de caras que pretende sair de casa. Porquê, perguntei. A resposta dela foi que nem devia perguntar isso, mas sim tratar de arranjar um emprego que nos desse mais “folgadura”, que devia deixar de beber e bater-lhe sem motivos. É claro que uma vez e outra eu chegava-lhe o pêlo à pele e ela ia trabalhar com alguns inchaços na cara, coisa de pouca monta, sabe como é; bater mas não para magoar, apenas para deixar a lição de respeito e de obediência sempre viva. Lá na minha terra é assim”.

“ Qual é a mulher que não gosta de apanhar do marido? Ah, aquilo que me conta é o mesmo que pedir por outra sova, que o diga a minha Miquelina. Aquilo é assim mesmo: faz o que mando e bico calado, vou para onde me apetecer, com quem me apetecer e quando me apetecer. Essas modernices são boas nos filmes; em casa do Lopes não funcionam, nem nunca vão funcionar!”, disse outro, que afinal de contas respondia pelo nome que acabara de mencionar.

“ Pensei que a cisma de me abandonar lhe saísse apenas da língua. Qual quê? Cada dia que passava as nossas relações iam de mal a pior. E, por fim, numa noite em que estava numa festa com uns amigos ela abandonou o lar. Quando regressei a casa encontrei-a vazia. Levou a s mobílias e tudo quanto era utilidade”.

“ Se calhar foi melhor assim. Ela encontrou o remédio para os males que andava a praticar sem você saber”.

“Foi isso mesmo. Ao longo daquele tempo eu não desconfiava que nada daquilo pudesse suceder. Até que, por fim, caiu o embuço. Sabe o que aconteceu depois que ela saiu da minha casa? Pois então fique a saber: foi viver com um sujeito que se diz ser sacristão do padre ali da capela. E quando ela resolveu abandonar o lar estava grávida. Não passaram cinco meses depois disso e ela pariu. E pariu um preto!”.

O agente Lopes freou o cavalo, num gesto instintivo de surpresa. Este relinchou longamente a fazer coro ao espanto do cavaleiro.

“ Você acha que sou preto ou que sou branco?”, era uma pergunta dirigida a ninguém, porque ninguém era capaz de responder à mesma com precisão. Era mais do que óbvio que a Muchina traíra o companheiro e acabara por ter uma criança com o ajudante do pároco da missão de São José, o sacristão Bartolomeu, um negro retinto, nado e crescido nas matas cerradas de Ka-Ngovene, no posto administrativo de Boane.

“ Agora a pergunta que lhe faço é esta: porque razão você está ainda assim tão abalado, se isso sucedeu há mais de quatro anos, como disse?”

“ Porque lembrei-me da história que este tipo acaba de contar”, disse a referir-se ao Valgi.

“ Qual parte da história? Este pássaro contou muitas, a ver se se livra aqui das mordeduras da corda”.

“ A de que vem da casa duma amiga”, esclareceu o cavaleiro de Braga.

“ E se for verdade?”, perguntou o Lopes, sem achar nenhum nexo entre a história do prisioneiro e os problemas conjugais do colega.

“ A razão é que penso que enquanto eu estava nos patrulhamentos, como estamos aqui agora fazê-lo, o filho-da-puta do sacristão estava em minha casa, na minha cama a esfregar-se com a minha mulher. Foi na minha cama que fizeram aquele filho, foi na minha casa onde se divertiam à custa da minha cegueira e da minha ingenuidade. Nem sei como nunca desconfiei de nada, nem nunca ninguém me disse o que se passava”.

“ Marido enganado é sempre o último a saber e essas coisas não se contam nem ao melhor amigo”, aforismo que sempre deu razão a quem a tem; a sentença final do agente Lopes, cavaleiro galopando sobre os lombos escorregadios da vida. Tinha também as suas histórias para revelar; porém, as necessidades do patrulhamento exigiam outras urgências e mais atenção.

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