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Na pena de um pássaro

Este céu nem parece o mesmo que deixei no dia em que, acocorado numa barcaça, parti com a minha crença no amanhã submersa em águas turvas. Águas que me roubaram sonhos. Águas que me tiraram a espinha dorsal da vida. Águas que suprimiram toda a razão do meu ser. Só Deus sabe para onde estas águas da morte terão levado a minha família: esposa e filhos.

Hoje estou aqui. Debaixo de sol quente e céu azul. Contemplo um horizonte distante e sem obstáculos de permeio. As águas voltaram ao leito e, aparentemente inocentes, deixaram-se comprimir pelas margens do rio. As marcas de lodo seco no chão e o livre raio de alcance da minha vista testemunham o desastre: a minha aldeia foi arrasada.

O que as águas assassinas nunca souberam é que podiam sim destroçar a aldeia, mas nunca riscá-la do mapa. A minha aldeia não é apenas feita de palhotas, campos de cultivo e gado. É também feita de homens e mulheres de fibra. E estamos de volta.

Saímos daqui içados numa pinça de salvação e a pingar gotas de amargura nas asas de um tempo sem dó. Aguentámos a dura vida colectiva no branco das tendas de acolhimento. Hoje voltámos. Estamos dispostos a recomeçar tudo.

Palmilhar a minha terra firme através destes atalhos da vida não me silencia os sentimentos. Fecho os olhos, abro os braços e canto o cheiro da brisa fresca da minha terra. A brisa do meu chão. Foi aqui que nasci, cresci e fiz a família que a água levou. Este é um reencontro comigo próprio. Um raio frio fulmina-me a alma.

Deixo o coração da aldeia e caminho em direcção ao que sobra da minha casa. Sei que não serei recebido pelo riso magnetizante das minhas filhas que, correndo, se precipitariam para ver qual delas me abraçaria primeiro. Sei que não reencontrarei o calor da mulher que a vida inteira me deu amor e me fez acreditar que o sorriso habita os areais da vida. Tudo a água levou. As minhas lágrimas substituem os meus sonhos. O amanhã eclipsou-se.

Acende-se um ténue esgar de espanto quando descubro que o bloco queimado com que construí a minha casa resistiu à força destruidora da água. As chapas de cobertura seguiram os destinos dos ventos, mas a estrutura, sem porta nem janelas, continua intacta. Uma boa base para recomeçar.

Pequenas dunas, com um manto de matope seco, pontificam a espaços, um pouco por todo o quintal. Desde que as águas voltaram ao rio nunca mais ninguém colocou aqui os pés. Cada passo que dou decalca marcas do esbranquiçado original da areia. 

O silêncio penetra-me pelos tímpanos e anicha-se num enorme vazio que me enche a alma. Os meus passos não são firmes. São titubeantes. São a personificação de uma carga emocional interna que quase que me faz levitar. Deixo-me levar. Sigo o destino.

Vários riscos pretos e horizontais serpenteiam toda a largura da casa deixando claro as marcas de onde a água foi descansando enquanto vazava de volta ao leito. Chego à entrada. Estremeço. É de emoção. Galgo uma pequena escada que me separa da porta e entro. A minha vista tacteia o nada de uma casa construída com suor e lágrimas. Passo a vista de relance num pavimento com uma lama seca de cerca de meio metro de altura. Um pequeno entulho, igualmente coberto de lodo seco, desenha um estranho polígono preso a um dos cantos.

Respiro fundo e ganho fôlego para pôr as mãos ao trabalho. Não tenho pá nem enxada para remover matope seco. Mas alguma coisa tenho de fazer. No quintal procuro restos de ramos secos que fazem de enxada e pá e volto ao interior para começar a minha fascina. Priorizo o pequeno entulho. É o ponto que me parece mais crítico. Com o pau remexo. Não sei o que é, mas é algo duro. Remexo com um pouco mais de força, tentando tirar a camada preta de lodo. A minha respiração fica suspensa com a visão. Não grito, mas dou um pulo para trás. Os meus olhos arregalam-se. Volto a estremecer. Agora é de susto!

Um esqueleto – na verdade são dois esqueletos – jazem calcinados pelo matope no interior da minha casa. Uma mulher e uma criança. A criança estava no colo da mãe quando ambas foram colhidas pelo último suspiro. Ainda são visíveis os restos da roupa que trajavam e da capulana com que a mulher amarrava o filho nas costas. Da própria carne e do cheiro nada sobra. Foi tudo levado pelas águas.

Esta mulher e esta criança não são e nem podem ser os meus. A minha gente tentou, em vão, contornar a morte bem longe daqui. Estes esqueletos são de pessoas que me são estranhas. Mais do que trucidar a minha família, as águas transformaram o interior da minha casa num cemitério. Será isto uma maldição, ou a voz oca do espírito do mal?  

Impossível continuar com a minha limpeza. Volto à rua e grito! Grito forte! Não é de socorro que busco. Procuro pela pena de um pássaro, voando bem alto, para pousar a minha voz. Choro para que a vida me escute.

 

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