Hoje eu prometi para mim mesma que me ias ouvir. O tempo engoliu tantos dias e eu continuo presa ao mesmo instante. Envergonho-me de tudo isto, ainda não reaprendi a viver. Às vezes fico lúcida e abro os olhos. Este estado nunca deixou de me visitar. Sim, eu aceito e depois me arrependo. Não sei o que quero dizer, é muito lixo amontoado no mesmo chão. Talvez não tenha passado muito tempo, mas de certeza já te calaste o suficiente. Diz-me alguma coisa. A cada minuto fecho os olhos na esperança de que venhas me buscar. Estou acordada, mas deixei de viver desde aquele segundo.
Quando vens me buscar?
Ontem ou hoje veio um médico ver-me. Acham que para além de viúva fiquei louca, mas só eu sei o que é isto. E tu continuas a esconder-te por detrás dessa cortina de silêncio. Nós que sempre brincámos que iriamos no mesmo dia. Não tinhas o direito, vês em que estado me deixaste? Não tinhas o direito. Quando me preparava para te dizer isto me prometi que não ia chorar, mas tens de entender que isto custa. Não consigo superar e começo a pensar que nunca quis. A vida deixou de fazer sentido desde que foste. Mudaram-me de quarto como se adiantasse alguma coisa. O que me faz lembrar de ti e daquela manhã nunca conseguirão mudar. Os meus olhos, as minhas mãos, a minha memória, o meu corpo. Tudo continua me empurrando para o mesmo precipício, faço aquele caminho tortuoso sempre que abro os olhos.
Bem sabes que não consigo suportar a ideia de andares por aí aos namoricos com as defuntas. Sim, prometemo-nos que até que a morte nos separasse. Mas tu não morreste, dormiste. Certo que não acordaste mais, mas não morreste.
Não te rias de mim, que isso me dói.
Tu vês a forma como me tratam? Sou a viúva! Vestem-me de preto e tratam-me como se eu também tivesse deixado de existir. A verdade é que morri contigo, apenas não chegou a hora de adormecer. Sempre olhei para viuvez como algo da velhice. Mas aqui estou, jovem e submersa neste poço escuro. A saudade me guilhotina a alma a cada segundo. Não me digas para calar que ainda não acabei. Não sei o que quero dizer, mas escuta-me que é tudo o que podes fazer. Não poder mais ter as nossas conversas, do verbo e da carne, dói-me mais que tudo o que te venho dizendo. Dormiste e de lá para cá não deixei de esperar que acordasses.
Quando vens me buscar?
Já tentaste te colocar no meu lugar? Isto não é algo que se ensaie, meu bem! Ainda lembro de tudo. Senti a luz do sol a invadir o nosso quarto e fingi que ainda era noite. Mas no mesmo instante decidi abrir os olhos. Era domingo, lembras? Beijei-te a bochecha e desejei-te bom dia enquanto saía da cama às pressas para a casa de banho. Ouviste aquela voz? Era eu a gritar para que te levantasses porque tínhamos pouco menos de duas horas para nos prepararmos antes de irmos à igreja.
Ainda consigo sentir a água quente a percorrer o meu corpo durante o banho. Preferia os teus braços a me enrolarem o corpo depois do banho que aquela toalha branca. Tu continuavas na nossa cama, deitado como um anjo. Ouviste aquela voz? Saiu da minha boca e disse para que te mexesses que havia coisas mais importantes que dormir.
Quando vens me buscar?
Não consigo superar isto. Vês essa mulher a chorar? Sou eu desesperada a te sacudir o corpo ao perceber que não acordas. Não morreste, dormiste e não acordaste mais. Desculpa, mas eu não sou forte como tu. Não depois da forma como aquilo aconteceu. Dormimos e não acordaste mais. Diz-me como eu explico isso para mim mesma sem enlouquecer. Diz-me como fechar os olhos e não esperar que venhas me buscar. Aquele dia amanheceu e o meu coração não aqueceu mais.