Antes, felicitar o autor, por mais esta obra. Gostaria de dividir a minha apresentação em 4 tópicos, sem necessariamente fechar outras possibilidades interpretativas que ela oferece. Afinal, a função de um apresentador é de despertar o interesse dos outros leitores e não de inviabilizá-lo como muitas vezes acontece. Espero, muito honestamente, que este não seja o caso.
O primeiro tópico: para que serve uma biografia ou, neste caso concreto, uma autobiografia?
O segundo tópico é sobre a autoria: quem é o autor desta obra? Musumbuluku Nhuvu? Narciso Matos? Ou Cisito? (Devido à sua profunda e incontornável interligação, alguns dos aspectos que afloro nesta apresentação incluem também elementos retirados da obra anterior Ndangu Wa Txindi na Musumbuluku (2022));
O terceiro tópico incide sobre algumas daquelas que considero as grandes questões levantadas por Mishu;
Finalmente, o quarto tópico: a quem esta narrativa é dirigida?
1) Para que serve uma biografia ou, neste caso concreto, uma autobiografia?
A biografia, à partida, é um espaço de ambiguidade, em termos de género e de pertença: é ou não literatura? Apesar de ser uma narrativa, até que ponto pode ser assumida como ficção? Nos casos em que temos biografias ficcionalizadas, hoje fala-se muito em autoficção, e onde a imaginação do autor prevalece, fica, aparentemente, tudo mais fácil. Por outro lado, toda a biografia, ou autobiografia, levanta, de uma ou de outra forma, suspeição: devemos assumir como verdade tudo o que ali nos é revelado? Onde reside, afinal, a especificidade deste género? E o que o faz oscilar entre o fascínio, por um lado, e a desconfiança, por outro, que provoca em diferentes pessoas?
Freud não hesitou, por exemplo, em afirmar que “Para ser biógrafo é preciso enredar-se em mentiras, dissimulações, hipocrisias”, (carta a Arnold Zweig, em 1936). Por sua vez, o renomado escritor norte-americano, George Orwell, autor das emblemáticas obras-primas, Animal Farm (O Triunfo dos Porcos) e 1984, observou, um dia, referindo-se à autobiografia, que “só se pode confiar nela quando revela algo vergonhoso”. Não tendo, pelo menos na minha leitura, achado nada de indecoroso em Mishu de Musumbuluku, podemos, ou não, confiar nesta autobiografia, seguindo o entendimento provocador de Orwell?
Uma das razões que justifica esta suspeição, diria mesmo retracção, em relação aos escritos biográficos, mais concretamente à autobiografia, é o facto de esta, em particular, ter como principal suporte a memória do autor, portanto, a sua própria subjectividade. E o grande mérito de Mishu reside, para mim, na forma inteligente como o autor (questão que irei abordar adiante), não só ter recorrido ao pseudónimo, melhor, ao seu nome tradicional – como sabemos estes nomes foram negados pelo sistema colonial -, mas também ter evitado, ao longo da obra, cair no fácil apelo à emoção. Além do mais, foi também extremamente cauteloso na revelação de qualquer forma de intimidade, facto que é sublinhado pelas precauções tomadas no distanciamento calculado do narrador em relação ao protagonista, no fundo, ele próprio. E, de imediato, nos interrogamos: qual o efeito sobre o leitor desta afectividade controlada, deste intimismo mitigado?
E, regresso, à questão de fundo: afinal, para que serve uma autobiografia? Muitas são as respostas possíveis:
a) preservação de uma determinada memória individual e colectiva;
b) função pedagógica: deixar uma lição de vida a partir da história contada;
c) necessidade de legitimação de um passado ou de um percurso;
d) reivindicação de um legado pessoal, familiar, sociocultural, histórico;
e) partilha, de forma despretensiosa, de uma história que lavra dentro de cada um de nós e que nos pede para sair;
f) preocupações apologéticas, em relação a um ideal ou a si próprio (casos cada mais comuns de puro pedantismo ou auto-exibicionismo);
g) partilha de inquietações existenciais: afinal, quem sou eu e de onde venho?
h) uma função desmistificadora: um dos grandes exemplos é Conversations with myself (2010), um texto intimista de Nelson Mandela, em que ele próprio confessa que escreveu aquelas memórias para mostrar que era um ser humano como qualquer outro, e não um santo, como muitos o tentavam apresentar.
2) Quem é o autor desta obra?
Já nos referimos ao facto de, em Mishu, estarmos diante de um caso desafiador em termos de autoria. O autor empírico (o de carne e osso que está aqui connosco e que todos conhecemos como Narciso Matos) recorre ao seu alter ego (neste caso, que é mais do que um pseudónimo), seu nome tradicional, que assume, nesta obra, um triplo papel: primeiro, o de autor textual, portanto, que dá o nome à autoria da obra, bem expressa na capa; segundo, o de narrador: quantas vezes ao longo do texto se refere a si próprio como o narrador; e finalmente, o de protagonista. Protagonista que, nas primeiras páginas, é apenas tratado por “menino”, até que, na entrevista para iniciar as aulas no ensino oficial, na escola pública, em pleno período colonial, ao lhe ser perguntado o nome, o menino responde, sendo obrigado a repetir perante a perplexidade dos professores: Musumbukuku Nhuvu.
Como sabemos, vivemos tempos extremamente conturbados e desconcertantes, em que assistimos, um pouco por todo o lado, ao desfile interminável de egos inflamados (há quem fale na hipertrofia do ego), tal é a desmesurada exposição do nome e da própria imagem, numa compulsiva e despudorada demonstração de soberba e de pretensa autoconsagração. Contrariando esta tendência, ocorrem-me duas experiências bem contemporâneas: uma, a de Banksy, artista de rua e o mais famoso grafitista britânico; outra, a da escritora italiana Elena Ferrante, autora de A Amiga Genial, recentemente considerado, pelo New York Times, o melhor romance do século XXI. Ninguém sabe quem eles são efectivamente, isto é, qual a verdadeira identidade de Banksy e de Ferrante. A ideia do pseudónimo, aqui, como cobertura do nome e da real identidade dos autores, adquire com estes dois casos, uma dimensão verdadeiramente edificante e transcendente.
Entretanto, no caso particular de Musumbuluku Nhuvu, a questão adquire outra complexidade, pois estamos assumidamente diante de uma busca, de uma aparente tentativa de recuperação de uma identidade transviada, ou roubada. Numa altura em que tanto se fala de reparações dos danos coloniais, Musumbuluku, através do nome que assume e deste exercício memorialista, mais não faz, e de forma honesta, modesta e simbólica, do que procurar reaver o que lhe foi negado. Daí outra hipótese de título: Musumbuluku Nhuvu: em busca da identidade usurpada.
3) Algumas das grandes questões levantadas por esta obra
Já vimos que uma das principais questões levantadas por Mishu e a obra que a antecede passa pela questão da autoria, que se prende com o problema moderno do sujeito. Ou não deveríamos dizer, o problema do sujeito moderno. Afinal, quem somos nós, enquanto sujeitos produtos da colonização? Na p. 11, encontramos esta passagem elucidativa:
Os filhos e filhas de moçambicanos aderiam a esta acção civilizadora. Viam que os seus filhos, feitos catequistas enfermeiros nas missões, ou intérpretes nas administrações coloniais ascendiam, de facto, a um estatuto mais elevado. Calçavam sapatos, vestiam fatos e usavam chapéus ocidentalizados, diziam-se afastados das crenças e costumes (embora os praticassem no segredo por todos conhecido), construíam casas melhoradas, plantavam árvores de fruta, construíam moageiras e furos de água, enfim, assemelhavam-se, passo a passo, mais aos colonizadores do que aos seus. A sua vida melhorava. Eram a prova viva de que a educação e a fé (do colonizador) eram a escada da vida.
Esta é uma discussão incandescente num campo de estudos, hoje em voga, mas de uma riqueza teórica inquestionável: os post-colonial studies, onde se procura, entre outros aspectos, perceber os sujeitos problemáticos, complexos e contraditórios emergentes da longa noite colonial, enquanto produtos de dois ou mais mundos. A propósito, o tunisino Albert Memmi escreveria um dia: um homem a cavalo sobre duas culturas, raramente estará bem montado.
Associada à questão do sujeito, temos a da própria memória: privada e colectiva, em contraponto às inquietantes e cada vez mais frequentes manifestações de amnésia, de descaso com o passado ou, mesmo da sua manipulação, de que o nosso tempo é tão fértil. Destacando-se, cada vez mais, como uma sociedade do esquecimento, percebe-se porque é tão precário e tão volátil o quadro de referências que nos guia, e de um modo ostensivamente imoral. São muitas as evidências de que está a ser promovida no país, há já vários anos, de forma deliberada e sistemática, uma cultura do esquecimento. Para todos os efeitos, a memória é a suprema ordenadora das nossas consciências, sejam elas privadas, sejam elas colectivas. Daí que o “dever de memória” como o antropólogo francês, Marc Augé, um dia definiu, nunca se tornou tão imperativo como agora, num contexto em que a amnésia colectiva e uma espécie de demissão em relação a essa mesma memória se tornaram tão pronunciados.
Muito a propósito, socorro-me de um provérbio africano que reza: Trate bem a terra. Ela não lhe foi doada por seus pais. Ela foi-lhe emprestada pelos seus filhos. E a pergunta que assoma: afinal, que terra, dada a forma como todos dias pontapeamos a memória, vamos, pois, devolver aos nossos filhos? Não resisto, aqui, a invocar o que se passou no Chile, em que milhares de pessoas foram encarceradas, torturadas e mortas, e para que perdurasse na memória de todos a trágica experiência da ditadura de Pinochet, decidiram colocar uma faixa no Estádio Nacional, em Santiago, que se mantém até hoje e onde se lê: um povo sem memória é um povo sem futuro.
Parece inegável que a memória é, eventualmente, o tema transversal, das duas obras de Musumbuluku (Ndangu Wa Txindi Na Musumbuluku e Mishu), sem que se percam de vista os seus fundamentos: as distantes origens familiares, a infância, as vivências (urbanas e suburbanas; o campo é residual), os choques culturais, a questão linguística, os processos assimilatórios, a arquitectura das alianças das famílias do sul de Moçambique, sobretudo, nos subúrbios e arredores de Lourenço Marques. Neste particular, pode ser um exercício interessante cruzar as duas obras com outras obras, como, por exemplo, Memórias (1989) de Raul Bernardo Honwana; Zedequias Manganhela, (org. Teresa Cruz e Silva); Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade (2018), de Nely Nyaka; A Cadeira de Caniço, Daniel Gabriel Tembe, Geração da Transição, de Iolanda Macamo (2023), entre outras.
Alinhada com a questão do sujeito e da memória, temos igualmente, o próprio título, Mishu, que quer dizer manhã, alvorada, em ronga, que nos remete para a ideia do despertar, neste caso, de uma consciência colectiva, sobretudo entre os jovens assimilados, que o pós-25 de Abril iria provocar (pp. 87, 88):
As campanhas de alfabetização e educação de adultos nos bairros suburbanos de Lourenço Marques revelaram a Musumbuluku e a muitos outros jovens universitários e estudantes de escolas secundárias […] a face nua da exclusão e das carências económicas e sociais criadas pelo colonialismo. Fê-los ver, de perto, com olhos novos e em primeira mão…Viram a pobreza e o abandono em que viviam milhares de crianças….Viram os índices elevadíssimos de analfabetismo nos subúrbios….Viram a quase ausência de postos e de cuidados de saúde primários….Viram as casas de caniço cobertas de zinco, e os seus maus serviços sanitários e incerto abastecimento de água…
Esta é uma passagem que nos prova que o colonialismo, com todos os seus mecanismos ao serviço da conquista e da submissão, tinha conseguido normalizar o que não deveria ser normalizável, ao conduzir os próprios africanos, sobretudo os jovens, a um estado de alienação e cegueira estrutural em relação à precariedade do seu próprio quotidiano e da realidade circundante, como se se tratasse da ordem natural das coisas. Temos, a propósito, que prestar atenção à incidência na visão, traduzida na repetição do pretérito do verbo ver: viram.
Daí, esta ideia de despertar, talvez mesmo de renascimento, que a revolução iria perseguir. Por outro lado, podemos, a partir daqui, registar o importante facto de como as biografias, mesmo privilegiando o percurso de um indivíduo, ou de uma família, nos permitem retratos amplos de uma época, com parte significativa das suas dinâmicas sociais, políticas, económicas e culturais.
Quem são os destinatários desta narrativa, isto é, o leitor ideal de Mishu?
Tendo em conta o que atrás dissemos, em relação àquelas que consideramos as questões-charneira desta autobiografia (autoria, memória, despertar da consciência colectiva), podemos afirmar que são vários os possíveis destinatários desta obra:
Contemporâneos do autor/narrador/protagonista: como se a obra nos dissesse: não vamos esquecer o tempo que passou. Como muitos de nós estamos lembrados, esta era uma das canções preferidas do Presidente Samora Machel. Hoje, percebemos não só porque insistia tanto com esta canção, como também a quem ele a direccionava;
Os jovens de hoje e os de amanhã: afinal, eles sabem de onde vieram? Alguém lhes tem explicado isso? Existe um passado histórico, antropológico e social que nos continua a interpelar e que está ancorado, por mais que o neguemos, nos nossos destinos individuais e colectivos. Repito: Um povo sem memória é um povo sem futuro. Para que isso faça algum sentido, tentemos socorrer-nos de experiências de países um pouco por esse mundo fora, como, por outro lado, e a título privado, tentar conduzir uma viatura sem nenhum espelho retrovisor. É muito provável que cheguemos ao nosso destino incólumes, mas o exercício será simplesmente devastador. Para nós e para os outros.
Termino saudando, uma vez mais o autor, este doublé de Narciso e Musumbuluku, que mostra, nesta segunda obra, um assinalável salto qualitativo, ao mesmo tempo auspicioso, e como promessa não declarada de que a próxima obra poderá ser a confirmação de uma veia que o próprio deveria desconhecer.
Maputo, 6 de Agosto de 2024