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O aperto

Senti que não cabia nas calças. Sinal óbvio de ter minguando. Ou será que as calças alargaram?, perguntei-me, procurando disfarçar a frustração de sequer preencher as próprias calças, o que é grave para a reputação de um homem.

O cinto, nem ao último furo conseguia resolver o problema. Com um gesto irritado, desengatei a fivela e puxei-o como que a despromove-lo da função. Com a folga das calças, deslizou pelo cos, sem esforço. Enrolou-se na minha mão, como uma serpente envergonhada.

As calças, irrequietas, recusavam-se a manter-se no lugar. Sem o cinto soltaram-se. Escorregaram pelas pernas como moluscos embriagados. Percebi que me queriam dizer, na língua têxtil dos vestuários, que o cinto não é apenas um adorno para a cintura. Tem a missão insubstituível de segurar a dignidade de um homem: as calças! Mas o meu nem ao último furo mostrava-se competente.

Desanimado, arrastei os pés até a esquina do sapateiro, para me inventar no cinto, um buraco, que me permitisse ajustá-lo a minha medida. Era uma missão deprimente, mandar fazer aqueles buracos tão próximos da fivela. Um homem tem de acrescentar buracos é na parte exterior do cinto, longe da fivela, sinal de cintura alargada, barriga próspera.

O sapateiro estava sentado num jardim de sapatos velhos. O corpo sacudia-se ao ritmo com que engraxava o sapato de um fulano sentado à sua frente. Olhou, de soslaio, para a minha sombra, quando me sentiu aproximar. Esperou, sem parar de engraxar, até ver os meus pés surgirem no seu campo de visão. Arrastou a voz e atirou-me um “bom dia”, sem levantar a cabeça, reforçando-me a convicção de que o sapateiro reconhece as pessoas pelos sapatos.

– Não usaste cinto? – eu trazia o cinto enrolado na mão e segurava as calças, fazendo de suspensórios as próprias mãos.

– Como sabes que não usei cinto se nem olhaste para mim?

– Vê-se pela forma como a bainha toca os sapatos. Está toda a gente assim –  voltou a olhar para os meus sapatos quando disse "assim" – São os dias de hoje. Até essa forma de pisar sem entusiasmo, arrastar os pés como se o sapato fosse um casco inútil… são preocupações isso.

Deu, com a escova de engraxar, dois toques no sapato engraxado, sinal para que o fulano trocasse de pé. 

– Percebe-se a pessoa pela forma como pisa. Repara de que lado sofre a sola. O teu sofre na popa. O sapato fica inclinado, até parece barco da Ematum.

Riu-se. Os solavancos da gargalhada interromperam-lhe a engraxa. Contagiou o riso ao fulano engraxado. Dei por mim também a rir-me, algo que não me lembrava de fazer, nos últimos tempos.

O fulano rebuscou moedas no fundo do bolso. Vieram a custo ainda assim não chegava. Encabulou-se. Fizeram contas imperceptíveis e somaram com saldo de outros dias. Foi-se embora.

– É  assim mesmo – disse o sapateiro, encolhendo os ombros – em tempos difíceis temos de ser compreensivos. Não há dinheiro. E os que têm não engraxam sapatos. Compram novos.

Estendeu o braço. Entreguei-lhe o cinto. Apreciou a fivela. Acariciou o material. Contou os buracos. Abanou um "não" com a cabeça. 

– É o quê?

– Não dá.

– Não dá o quê? 

– Para acrescentar furos. Bom cinto mas já não dá. 

Devolveu-me o cinto. Fiquei especado, a olhar para o sapateiro,  para o cinto, para o nada. Pegou num sapato com a sola a descolar-se. Pôs-se a estudá-lo com muita ciência. Vendo-me assim, respondeu à minha pergunta silenciosa:

– Repara quantos buracos são. Não são doze?

Contei. Eram. 

– Pois, o primeiro é Janeiro. O segundo é Fevereiro. Março, Abril, Maio… até Dezembro. Depois de Dezembro não há nada. Não pode haver mais furos. Não há décimo terceiro mês. Pior este ano que, dizem, nem vai haver décimo terceiro salário.

– Agora vou andar assim com as calças a caírem?

– Toda a gente está assim – Levantou a cabeça, olhou para mim nos olhos, pela primeira – Não és o único. 

Recolhi o meu cinto inútil. Segurei as calças para não caírem. As mãos tinha de aprender a ser suspensórios. Despedi-me sem entusiamo. Senti um aperto indescritível. Fui-me embora com as calças na mão

 

 

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