O homem Um abriu a braguilha. Soltou a arma do crime. Arregaçou o capuz do prepúcio. Descontraiu os músculos da bexiga, em permissão aos líquidos rebeldes, e deu aquele suspiro profundo, de alívio. Um veículo atravessou a rua de tráfego morto àquela hora. Fiapos de luz dos faróis indiscretos reluziram no arco da urina que regava a árvore. Percebeu os salpicos sobre os sapatos e sobre as calças. Ajustou o ângulo e a pressão do jacto. Sacudiu. Recolheu.
O homem Dois, encostado à minibus escura da cor da noite, sem tirar o palito da boca, deu um trago intenso no que restava do cigarro e atirou a beata para o chão. O palito rodou na boca, de um canto para outro, em sinal de nervosismo. Dentro da minibus, o Três, o Quatro, o Cinco, o Seis, o Sete, o Oito, o Nove e o Dez embaciavam os vidros com a respiração ansiosa.
O homem Um limpou nas calças os respingos de urina que tinha nos dedos. Afastou meio rosto da sombra e espreitou, ao jeito dos clássicos policiais, para o outro lado da rua, para a porta do edifício antigo, donde se deveria dar a aparição de Fátima e então, agirem. Olhou para o Dois, depois para o pulso sem relógio e de novo para o Dois. Estava na hora de se posicionarem.
O homem Dois dobrou os dedos e deu dois toques no vidro da minibus. A porta de correr abriu-se, o homem Três saiu, lento, sem convicção nos movimentos. Ouviu as instruções mas não se mexeu.
O homem Três estava de braços cruzados, tronco curvado, pose de reivindicação. Abanava a cabeça para os lados. Às vezes soltava os braços, atirava as mãos em gestos de protesto e acariciava o indicador no polegar em sinal de dinheiro. O Dois ergueu o indicador e apontou, ameaçador. O Três manteve-se cabisbaixo mas firme. Sacudia a cabeça para os lados.
O homem Quatro saiu do carro, em reforço. Especou-se atrás do Três, enrolou os braços sobre o peito, afastou as pernas como uma árvore de raízes largas que se recusa ao derrube, e torceu o focinho. O homem Cinco não saiu do carro. Pendurava a cabeça para fora do veículo, repisava os argumentos dos outros e voltava para a toca.
O homem Seis escancarou a porta de correr para que os de dentro do carro fossem também plateia e dessem mais voz ao protesto. O Dois, acuado, fingiu iniciar um discurso e calou-se. Deixou o discurso pendente. Tirou do bolso um maço de cigarros. Pendurou um na boca. Demorou com os fósforos, ganhava tempo. De cigarro aceso, encenou estar entretido com os tragos de fumo. Disse “calma", com a palma da mão, fechou os olhos quando sentiu a fuligem da nicotina queimar-lhe as vias. Falou algo que parecia um puzzle de frases remendadas. À distância, o Um percebeu-o pronunciar palavras como “crise”… “não há dinheiro… os bosses estão a ir presos, … já não podem movimentar muito taco…
Perdia-se tempo. O homem Um ia intervir, mas era tarde. Naquele instante ouviu vozes do outro lado da rua. Uma porta rangeu e a luz, vaporosa, inundou a noite. Uma senhora saía à rua. A luz batia-lhe as costas e fazia-lhe uma aura majestosa. Era Fátima! Enquanto discutiam dava-se a aparição de Fátima.
“Senhores!”, Gritou para os supostos pastorinhos. “O alvo, senhores, o alvo está ali”. Ninguém o ouviu, entretidos nas reivindicações.
O veículo de Fátima dobrou a esquina. O homem abriu todas as comportas do desprezo na garganta, soltou todo o escarro e cuspiu, enquanto murmurava, frustrado:
“Por isso este país não avança. Por isso o crime não desenvolve”.