É claro que o império do Zimbabwe (1220-1450), que contemplava o vasto território que vai desde o Índico até ao país que hoje herdou este nome, foi um dos mais bem-sucedidos impérios endógenos da África, com imensos reinos vassalos, Estados-satélites, que desempenhavam a função de, como hoje em dia funcionam as províncias, entrepostos tributários que enriqueciam a capital: o Zimbabwe, o amuralhado de pedras onde ficava a corte e todas as artimanhas que o poder exige.
O que demonstra a existência de uma divisão social do trabalho fortemente desenvolvida, o que, como efeito, origina dois grupos de actores sociais: os que trabalham na produção directa dos meios de subsistência e os que se dedicam as tarefas de prestígio, sendo que estes últimos vivem do esforço dos primeiros.
Apesar deste sistema de reinos tributários, o império do Zimbabwe teve vários e longos ciclos de governação dirigidos por diferentes mambos, os mwenumutapas, soberanos dos Mutopas, cuja ascensão ao poder destes nunca era de forma pacífica, isto é, sempre houve disputas entre os estados-satélites para a ascensão ao poder de qualquer monarca, e só a força era necessário para manter e controlar este poder absoluto, como em qualquer governo da actualidade. Todavia, no império de Zimbabwe estas lutas, de e pelo poder, foram, como reza a história, a condição sine qua non para a decadência do império.
Bom, como devem imaginar, não será a história, no sentido académico, o interesse primário desta lavra, mas a história como lenha para a fogueira chamada ficção, o que origina os chamados romances-históricos, onde a memória estabelecida pelo homem através da escrita do seu próprio passado é usada como matéria-prima para novas narrativas. Este género alberga um campo teórico bastante discutido, e nisso várias são as ilações. Em sumula, a historiografia, enquanto campo científico que estuda os factos no tempo, ocupa um lugar subjectivo no presente, portanto é um género fechado e encerrado como o mundo que representou, enquanto o romance-histórico é objectivo, encontra-se em processo de construção e reconstrução permanente, sendo capaz de dar conta da multiplicidade e complexidade do presente, e sem perder os faróis do futuro. Daí que, a denominação romance-histórico não é determinada por qualquer traço interno, mas é um dado externo, peculiar e sem relevância para a realização estética, o que obriga mestria e sagacidade dos autores que neles se lançam para que não caiam no espaço comum, e isso pode-se dizer que a “Saga d’Ouro”, do escritor e dramaturgo moçambicano, Aurélio Furdela, é o exemplo, não foi por acaso que a sua distinção com o prémio INCM/Eugénio Lisboa, um galardão destinado a distinguir as mais destacadas obras escritas em língua portuguesa, no género de prosa, sendo que para a edição 2018 reconheceu a obra de Aurélio Furdela.
Vamos ao que interessa: Porque debater as vicissitudes do poder dos mwenemutapas hoje?, ou melhor, que importância tem este romance na vida actual dos moçambicanos e de Moçambique?, a resposta a essa questão é actual e futurista, e funciona como um acre-doce que se dissolve na língua, por um lado adocicando o nosso imaginário colectivo, enquanto leitores, e por outro lado azeda a nossa consciência colectiva, enquanto moçambicanos.
Nesta distinguida obra, Aurélio Furdela desmascara os egos que inflamam a nossa vida, desvendando a ganância pelo poder na África actual. Neste livro há viárias aspectos que me fascinam, todavia para esta humilde opinião de um leitor desprovido de qualquer instrumento de medição, seja literário, histórico ou mesmo político, irei destacar apenas três que são:
1) A técnica da narrativa, neste ponto fascina-me bastante a forma e a estilística, a maneira como Furdela traz-nos a história, é uma narrativa que nos embala, nos coloca nas asas das mais belas águias da imaginação e que elas nos transportam para o tempo, este tempo-histórico onde vivemos a história como se nós, os próprios leitores, contribuíssemos para reconstruí-la, ou melhor, é como se nós fossemos os personagens dessa mesma história. A partir deste livro, sentimos até o cheiro das pedras que compunham o Zimbabwe e o medo das supersticiosas assombrações de Rumbidzai, o grande feiticeiro, a quem teria sido convidado pelo soberano para conter os inimigos da corte, ou melhor, eternizar-se o mambo no poder.
Ao ler este livro ficamos com a verosímil impressão, mas nunca com a certeza de estar a ler um manual de história, pese embora o facto de aprendermos e apreendermos imensas configurações dessa historiografia que muito nos importa conhecer. Esta é uma narrativa complexamente envolvente e empolgante que nos lembra outro mestre do romance-histórico, Ungulani Ba Ka Khosa em Ualalapi.
Outro aspecto relativo a narrativa é a beleza e coerência dos diálogos, aqui arrisco-me mesmo a dizer que Aurélio Furdela é, ou pode vir a ser, o escritor que mais domina a mestria de construir diálogos na literatura moçambicana, talvez seja pela sua passagem, e também fixação, pelo teatro.
2) A ironia e o sarcasmo com que o autor caracteriza os personagens, sobretudo o protagonista, GatsiLucere, historicamente conhecido como o traidor, aquele que, pela ganância desmedida e covardia crassa, teria permitido a entrada e fixação de comerciantes portugueses no império e que estes, a partir desta brecha, exploram e saqueiam as minas de ouro, colocando todos, desde homens, mulheres e até crianças, na mineração, em detrimento da agricultura e pastorícia, actividades principais do império, o que gerou revoltas populares, sobretudo dos mwenemushas[1] de Quiteve e Manica, contra o mambo.
Furdela neste livro consegue transpor para o papel a mais covarde imagem de um soberano, um monarca prepotente, como diz Ubiratã Sousa (in prefácio) “GatsiRucere é tão-somente um anti-chefe parasitário, que assume um poder sem poder e é incapaz de qualquer grande feito.” Esta imagem de prepotência, arrogância, de um líder desvinculado de sua própria liderança, capaz de prostituir-se, a si e ao reino a qualquer um ou seja lá quem for em troca de “mais-valias” ou mais dias no trono, é-nos bem fresca e actualizada enquanto moçambicanos e, muito semelhante a dos soberanos que pululam pelo mundo afora, com mais incidência nessa tão má desgovernada África.
E é esta relação, da história do reino do Zimbabwe com actualidade moçambicana, onde reside a importância de os moçambicanos do séc. XXI conhecerem as sagas para as quais se chega ao trono, e é este (3) o último ponto, uma vez que ao se ler este livro ficamos com aquela dúbia sensação de estarmos a repetir a história, arrancando deste tão importante ramo do conhecimento humano, a sua nobre função de conhecer o passado para melhor perspectivar o futuro, tudo para que ela não se repita.
Este livro, por um lado, chama-nos a razão para essa incoerência histórica que cometemos, todos nós, porque todos temos algo a dizer para que não sejamos repetidores de nós mesmos, enquanto protagonistas do nosso destino. Por outro lado, a obra mostra-nos uma verdade que optamos em ignorar, que apenas as revoluções, as insurreições armadas são único caminho para mudar ou desmontar qualquer ditadura, e que o sangue que se verte em revoluções é sacrifício, fermento útil para as mudanças que se pretendem, sejam elas em reinos ou democracias pequenas ou grandes, consagradas ou não. Sem querer ser demasiado peremptório, todavia este livro mostra-nos que, volvidos todos estes séculos (do longínquo império do Zimbabwe a actual África), os nossos líderes não conseguiram e não conseguem se desfazer do poder de forma pacífica, e tudo indica que estes não conseguirão desenvolver uma consciência democrática, enquanto os vemos todos os dias empenhas na procura de um Rumbidzai, um feiticeiro, a qualquer preço, que exorcize opositores, e se possível toda a oposição dos seus regimes, e todos aqueles com ideais e ideias diferentes para que eles reinem eternamente. “Mas eternamente não, patrão”, como diria Craveirinha.
Mesmo a desejar uma boa leitura, terminaria citando Cleber Sadoll Costa, brasileiro afeiçoado pela literatura moçambicana que, comentando sobre esta “saga” adianta: Num livro que deixa espaço para ambiguidades e metamorfoses, o autor surrealiza com destreza, e enquadrá-lo em qualquer categoria confortável seria como impor limites ao já escrito e ao que há de ser lido – percebido. Em “Saga d’ Ouro”, a malícia é dosada, a ironia é apimentada. Um livro pronto para ser lido mais de uma vez…
[1] Pequenos chefes de aldeais