XIPIKIRI
– Ntlha!!!
Maússe dobrou a língua em sinal de desprezo. Levantou-se sem pedir permissão. Abandonou a reunião como se saísse duma discussão informal num bar qualquer. O chefe engasgou o discurso. Engoliu o espanto de queixo caído. O rosto, habituado a vassalagens, derreteu a expressão. Os tentáculos desfaleceram, sem reacção, sobre o tampo da mesa. O silêncio estendeu-se pela sala como um elástico tenso, em quase ruptura. Para cortar o silêncio, o microfone acusou interferência e assobiou como uma faca sonora.
– É o quê, Maússe? – Perguntou Fenias, colega e companheiro, em tom e volume de não desrespeitar a solenidade da reunião, chamando-o à razão, quando Maússe passava por ele, disparado para a porta, como um touro enfurecido pelo salário magro.
Maússe respondeu com um gesto curto, grosso e claro: atirou a mão e os dedos para trás, por cima do ombro, num óbvio futseka!, que é como se manda lixar, por estas bandas. A imprensa registou, mas iriam obviamente “desregistar”. Não ficaria bem um futseka ao chefe aparecer na TV.
Mais tarde, porque o principal sintoma da fúria de um funcionário raso é uma estiagem interminável nas goelas, Fenias iria procurar pelo amigo no local mais óbvio: o quiosque da Dona Marta, onde a possibilidade de fiado compensava a qualidade da cerveja.
– O que te deu, irmão? – Perguntou Fenias, dando um gole do copo do colega.
– Estou cansado.
– Do salário baixo? Do cargo anão? Do gigante custo de vida? Estamos todos cansados, mas já nos habituamos. Nós, funcionários públicos, estamos talhados para aguentar.
Fenias falava com palmadas no ombro do amigo. Entornou a garrafa para o copo do Maússe, com o copo na posição certa para não fazer muita espuma.
– Há gente a viver bem, a afundar o país, nós aqui sem salário e mandam-nos desfilar para o 1 de Maio… desfilar sem salário. Poxa! Estou cansado de mentiras – deu um gole infinito
– Mas a mentira sempre existiu, irmão. Este país cresceu sobre a lógica de mentiras. Por isso cresceu. Temos de manter a coerência. A fundação e os pilares deste nosso país têm a robustez da mentira.
– É isso que não concordo: viver por cima de mentiras. Aumentam o salário mas não recebemos o tal salário.
– A verdade, no meio de muita mentira, é falsa e chega a ser imoral. Se diante desta mentira toda em que vivemos, andares a proferir verdades, não vais conseguir viver entre nós.
– Não vou!, eu não vou ao desfile de 1 de Maio.
Maússe encharcou a goela com mais um trago. Fenias não o deixou pousar o copo na mesa. O copo passou da mão trêmula de um para a do outro. Partilhavam o copo como têm partilhado as dores de bolso.
– Esquece isso irmão. Queres ser expulso e perder a reforma?
Deu um gole fundo, profundo, abissal. Ia encher o copo mas a garrafa estava vazia, apenas pingou, ironicamente, um cuspo de espuma. Estalou os dedos a pedir outra.
– Desfilar no dia do trabalhador sem salário – suspirou –, preferia desfilar no dia das mentiras. Trocassem o 1 de Maio pelo 1 de Abril!
O amigo riu-se. Calaram-se. Ficaram ali sentados a olhar para o fundo sem sentido do copo vazio. Maússe levantou o braço e com um gesto cancelou a cerveja pedida. Estava intragável.