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Chimamanda

Quando pergunto, aqui em Moçambique, aos que me são próximos e que são leitores contumazes, se já leram Chimamanda Ngozi Adichie, quase invariavelmente dizem-me que não. Há uma literatura pujante no nosso continente que nos passa ao largo. Somos cada vez mais uma ilha isolada. Pouco sabemos do que se faz lá fora. Conhecer os outros tem muitos aspectos positivos: obriga-nos a estar em perspectiva. O exacerbado narcisismo nacional, muitas vezes, ou quase sempre, leva-nos a ter de nós uma imagem que nos parece sempre benevolente. Mal conhecemos o que fazem os nossos confrades aqui do lado, seria muito pedir que estivéssemos a par do que acontece longe do nosso hemisfério.

Esta notabilíssima escritora nigeriana é um dos nomes cimeiros dessa escrita vibrante. Nasceu na Nigéria, em 1977, foi estudar para os Estados Unidos aos dezanove anos, e vive entre a América e a Nigéria. Escreve esplendorosamente sobre estes dois mundos, sendo que a América que ela descreve é a América demandada de certa forma pelos nigerianos, com os seus sonhos e fracassos, a quimera do El dourado. Também descreve, ou escreve, sobre uma África profunda e soberba, África que não está nos jornais, os dramas da guerra civil, a corrupção, as anomias sociais da Nigéria, as sociedades, as tradições, o confronto com a modernidade, as relações.

Chimamanda Ngozi Adichie é sobretudo uma brilhante contadora de histórias, ela conta muito da nossa miséria, das tristes e feias histórias do nosso quotidiano, do nosso destino individual e colectivo, mas também dos nossos sonhos. Creio que será uma das vozes que melhor interpelam o nosso continente. Para além da ficção, ela viaja e fala pelo mundo afora. É uma feminista aguerrida. Uma conferência sua sobre feminismo deu origem a uma publicação: Sejamos Todos Feministas. É uma voz activíssima, não só na Nigéria, na América e nos palcos do mundo. Beyoncé tem uma música na qual aparece um trecho desse texto sobre o feminismo lido pela Chimamanda.

Chimamanda representa também um corte com uma literatura africana marcada pelo passado colonial em África. O boom, por assim dizer, dos notáveis africanos, como Chinua Achebe, como Ngugi Wa Thiong´o, como Sembène Ousmane, como Wole Soyinka, que nos falavam de uma outra paisagem africana. Lembro-me de ler, nos primórdios dos anos 80, Os Intérpretes, do nigeriano Wole Soyinka, que viria a ser o primeiro africano negro a ganhar o Nobel da literatura, em 1986. Lembro-me de ler O Harmatão, de Sembène Ousmane, escritor e realizador senegalês. Ou Um Homem Popular, do nigeriano Chinua Achebe, que talvez tivesse merecido o Nobel, sendo um dos romancistas, contistas, ensaístas e poetas africanos que verdadeiramente marcou o século XX. Achebe morreu em 2013. Há um livro – Chinua Achebe: Tributes and Reflections – no qual grandes nomes da literatura africana prestam homenagem a Chinua, entre eles Wole Soyinka, Chimamanda  Ngozi Adichie  ou o queniano Ngugi Wa Thiong´o. Thing`o, aliás, é um dos nomes na lista dos favoritos do Nobel há anos. O autor de Um Grão de Trigo ou Pétalas de Sangue foi cotado em 2010 quando ganhou o peruano Vargas Llosa. Recentemente voltou a falar-se dele para a máxima láurea literária.

Recordo, nostalgicamente, que lia, naqueles anos, o egípcio Naguib Mahfouz, que ganhou o segundo Nobel para África, dois anos depois de Soyinka. Da África do Sul, antes do J.M. Coetzee (outro Nobel), lia André Brink, Breyten Breytenbach, Alan Paton (Cry, Beloved Country). Lia Alex La Guma, País de Pedra ou Tempo da Morte Cruel. Mais tarde, li e conheci pessoalmente, Nadine Gordimer (outra Nobel). Li, exultantemente, J.M. Coetzee. Bastava ter escrito Desgraça para entrar no panteão dos grandes da literatura mundial. Coetzee é um grande escritor.

Dambuzo Marechera, que morreu prematuramente, aos 35 anos, em 1987, foi escassamente traduzido entre nós, pelo menos recordo-me de ler um conto magnífico seu na “Gazeta”. Escreveu The House of Hunger, conhecido como o seu título mais notável. Conheci em Harare o escritor Chenjerai Hove, que seria o nome mais expressivo depois de Marechera, no Zimbabwe. Recordo-me do seu Bones. Morreu em Julho de 2016, na Noruega. Hoje, NoViolet Bulawayo é uma das vozes mais importantes do Zimbabwe. Da nova geração de escritores zimbabweanos vejo referido, nas antologias do Caine Prize, o nome de Tendai Huchu, Isabella Matambanadzo, Barbara Mhangami-Ruwende, Violet Masilo, entre outros. Uma edição da Granta (The Granta Book of the African Short Story) antologiava, em 2011, textos do moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, do zimbabwiano Dambuzo Marechera, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, da senegalesa Fatou Diome, do zimbabwiano Brian Chikwava, da tunisina Rachida el-Charni, da serra-leonese Aminatta Forna, da marroquina Laila Lalami, da sul-africana Zoe Wicombi, ou do queniano Binyavanga Wainaina. Muitos deles, ou quase todos, premiados com o Caine Prize. O Caine é um prémio que tem revelado muitos bons contistas africanos de língua inglesa.

Recordo-me (retorno assim aos anos 80) também do Remember Ruben do camoronês Mongo Beti e do seu compatriota Ferdinand Oyono, autor de O Velho Preto e a Medalha. Ou Camara Laye, da Guiné. Ou Mariama Bâ do Senegal. Do Mali, a voz de Amadou Hampâte Bâ. O poeta Senghor do Senegal. Lia estes escritores e muitos mais. Refiro-me aqui aos escritores que escreviam originalmente em línguas diversas da portuguesa. Falo da África que escrevia em inglês, francês ou árabe, a África que se exprimia nas suas línguas, ainda que distante, por vezes, e que desaguava aqui. Hoje não são mesmos os afluentes dessa escrita. Outras são as vozes. De Angola, ou Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, ou ainda Guiné-Bissau havia um livre curso que nos permitia ler os seus autores emblemáticos: de Luandino Vieira a Manuel Rui ou Pepetela, ou ainda Sousa Jamba (angolanos); de Baltazar Lopes a Arménio Vieira ou Germano Almeida (cabo-verdianos); de Francisco José Tenreiro a Alda do Espírito Santo ou Conceição Lima (santomenses); de Hélder Proença a Abdullai Silla ou Odete Semedo (guineenses).

Chimamanda Ngozi Adichie é herdeira desta imensa e, provavelmente, desconhecida literatura. Hoje não a vejo referida por aí. Presumo que já não se leiam, entre nós, escritores africanos. Estamos de costas voltadas para o que o nosso continente produz, quer por barreira da língua, quer por outro tipo de fronteiras. Há muito que a literatura no plano geral deixou de ser importante. Não há páginas literárias nos jornais, desapareceu o pouco jornalismo cultural ou o arremedo disso, os dias e os jornais são afadigados com outro tipo de notícias.

Terminei de ler, há dias, esse romance soberbo intitulado Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie. Empolgante história de amor de dois jovens nigerianos (Ifemelu e Obinze), que se apaixonam na adolescência, num país sombrio, mergulhado numa ditadura, onde sonham emigrar. Ela, Ifemelu, consegue ir estudar para os Estados Unidos, onde chegará a ser uma blogger de culto; ele, Obinze, não consegue realizar o sonho americano: irá para Londres onde viverá, até ser deportado, como imigrante ilegal. Mais tarde, numa Nigéria ulterior, Obinze transfigurar-se-á num riquíssimo homem de negócios. A essa nova Nigéria, efervescente, Ifemelu regressará anos mais depois para se defrontar com a memória e reinventar o futuro. A história é caleidoscópica e atravessa a América e a Nigéria, interpela a condição humana, põe em questão a questão da identidade (passe-se a redundância!), da nacionalidade, da raça, da alteridade, do amor, da solidão e da sorte. Este soberbo romance – Americanah – foi aplaudido pela crítica literária e por importantes publicações americanas ou inglesas, como o The New York Times, New York Magazine, The Washington Post, The Guardian ou The Telegraph. O livro é ambicioso, ingente, belo, pungente. Uma escrita luminosa. Uma técnica impecável sob o ponto de vista narrativo. Domínio absoluto da narrativa. Escrita com verve.

Lida e celebrada, saudada e premiada, Chimamanda Ngozi Adichie é hoje uma estrela. Aparece até em importantes revistas de moda. Tem 40 anos e uma obra consistente. Tem traduzidos, para a língua portuguesa, os seus romances A Cor do Hibisco, Meio Sol Amarelo, e o livro de contos A Coisa à volta do teu pescoço. Esta colectânea de contos é surpreendente. O conto que dá o título ao livro é absolutamente comovente. Também fala dessa relação quimérica entre a Nigéria e os Estados Unidos. Tem histórias belíssimas. Também está traduzida a sua conferência sobre feminismo: Sejamos Todos Feministas. Ela é polémica e aguerrida, culta e inteligente. Escreve esplendorosamente. Leiam-na, descubram uma nova escritora, uma nova literatura que se faz em África. Ela é uma das autoras de culto. Uma grande voz. Uma grande autora. Uma grande escritora. Não só o é entre as fronteiras do nosso continente. É uma escritora de renome mundial. Temos o defeito de nos fecharmos no nosso casulo. Sofremos da síndroma do espelho. Não lemos o que vem de fora e nada sabemos o que se escreve lá fora. Devíamos evitar a tentação de narciso. Há escritores notáveis lá fora. Há coisas extraordinárias a acontecer. Há livros belíssimos a serem publicados. Americanah é um deles. Chimamanda Ngozi Adichie talvez  seja a mais notável escritora da nova geração de autores em toda África.

 

 

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