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Métricas e versos para encantar a noite

Ferramentas para desmontar a noite de Japone Arijuane é o segundo livro do autor, após a publicação de Dentro da Pedra ou a metamorfose do silêncio em 2014.

O poeta insere-se na linha dos artífices da palavra, que estabelecem uma relação quase oficinal entre a mão e a escrita, onde a inicial simbologia da pedra revela o papel de um sísifo que tenta transformar o silêncio em palavra, na árdua tarefa de resistência face ao mundo e à escrita. A dualidade energética entre mão e matéria cria a força da metáfora e a dinâmica contida do acto de esculpir o silêncio.

A imaginação material revela uma psicologia do “contra”, que toma a dureza como forma intangível de resistência. Por isso a dimensão táctil que se estabelece entre o sujeito e o mundo, a mão e a escrita, cria a energia quase operária que produz o verso. E de certa maneira é o que lemos no título deste novo livro com o uso do verbo “desmontar” e do nome “ferramentas”. Trata-se de um labor similar ao de um mecânico, mas que exerce a sua oficina sobre matéria imaterial, a noite. Constatamos então que começa de imediato com o título o inusitado propósito, paradóxico, que a arte da escrita executa, colocando a dimensão imaterial (a noite) a ser imaginada como matéria desmontável. Estamos perante um tipo de metáfora que se vai revelar como um dos processos mais enérgicos na escrita deste livro do poeta Japone Arijuane, o uso da hipálage.  

A hipálage é uma figura de linguagem que se caracteriza pelo desajustamento entre a função lógica das palavras, quanto à semântica e por vezes à sintaxe, de forma a criar uma transposição de sentidos. A hipálage é no caso da poesia de Japone um expediente retórico, uma qualidade de associação metafórica, que faz a passagem da abstracção para o domínio do concreto, ou vice-versa, usando complementarmente vários outros instrumentos como a personificação, a animização, a sinestesias. Não deixa de ser verdade que a riqueza é concretizável visto que se revela através do múltiplo e do diverso, ao passo que a miséria é a escassez, a ausência objectal, o lugar propício para a abstracção. Estabelece-se, assim, uma inadequação entre as palavras e o que elas designam e entre as palavras e as coisas, ou sua ausência. Este procedimento é usado na poesia moçambicana em especial na poesia de José Craveirinha, criando violentos efeitos de contraste, com que ele sempre denunciou a injustiça colonial e pós-colonial, e que tornam a língua num instrumento de plasticidade quase animada e orgânica.

Embora o discurso poético de Arijuane se articule nas diferentes partes do livro com citações introdutórias de diferentes poetas, como veremos, o recurso subliminar citacional, ou formal do verso, na sua organização metafórica, é sem dúvida devedor da poética craveirínhica, de que ele se torna um exemplar e inovador herdeiro. Com efeito, a poesia de Japone faz do exercício da hipálage um elemento fundamental para marcar os tremendos contrastes humanos, sociais, económicos, ideológicos, existentes no mundo actual moçambicano.

A inadequação entre o mundo imaginado, sonhado e a realidade, como se de mundos paralelos se tratasse, é de tal modo violento que apenas o confronto entre a metaforização da materialidade da abstracção pode dar conta dela. Citemos apenas alguns exemplos: “metalurgia sóbria das almas ébrias” (5); “onde se deita a noite a mil decibéis “(5); “o mastigar angústias” (6); “eu sou trote inverso da noite às panelas ébrias de sonhos para cada país que invento” (12); “urge amassar gritos para acordar o pão” (15); “tudo é pureza e o maxakene altivo no vácuo do pão/à cesariana imagem da tarde intrínseca dentro das mães “(16); “Por dentro de tudo isto está içada a fuligem da náusea” (21); “a inacabável loucura/manufacturada na hora do noticiário” (23); “o silêncio se instalou nos tímpanos do futuro” (26); “no bolso a fórmula para extinguir a oxidação da noite” (32); “Por vezes sinto que meu coração é um país em guerra” (38); “o ser é uma poltrona de veludo onde nunca estive” (39);  “basta a kalash exibida a meia haste” (43).

É esta uma importante dimensão de trabalho da linguagem, que se intensifica neste segundo livro do autor, com imagens inesperadas, um livro muito apurado na sua matéria verbal, com a organicidade difícil de um corpo único. O título escolhido por Japone recorda-nos outro, de um poeta também de Quelimane, Armando Artur, No Coração da Noite (2007), para o qual este livro remete, mesmo que não intencionalmente, como forma de diálogo:

 

 a velha noite tece o fim de todos os sonhos/a felicidade rasga-se para sorriso dos deuses/onde a erva ilumina a liberdade incendiada/os vultos têm destreza para encantar feras/e a resina tinge o coração das coisas engasgadas no escuro/é por isso que estamos todos/misericordiosamente no imaginário do pão/o supersticioso pão nas entranhas da noite. (8)

 

Ferramentas para Desmontar a Noite inicia-se com uma epígrafe de Rui Knopfli que orquestra a obra em pano de fundo: “Amanhã seremos outros. Por ora /nada somos senão o imperfeito/limbo da legenda que seremos.” Esta escolha citacional é, pensamos, reveladora de uma outra herança formal que a escrita de Japone reivindica de forma exposta, e que orienta os propósitos temáticos do livro, a temporalidade entre um passado e presente imperfeitos e a esperança de um futuro revolucionado. A noite, metáfora expandida de distopia que o livro vai longamente expôr, num processo de metáfora em cadeia, corporifica em múltiplas imagens o desencanto das utopias sonhadas às zero horas de Junho, não cumpridas:

 

Então mergulho a pupila no futuro que me foge/ reluzente, a faca de vários gumes verte a agonia dos meus pulsos /a verter converte-se em dor a esperança /entre cinzas e escórias a imaginação do futuro cidadão (21).

 

Com sessenta e quatro poemas este livro constitui-se como uma proposta de escrita poética de resistência, contra o mundo e a palavra que o institui, em que cada poema é uma parte de um tema maior, centrado em torno da Noite. Da Noite de Junho. Há uma espécie de prólogo, ou intróito, o ABC para pôr as mãos na massa, constituído por três poemas, que arquitectam os trilhos da escrita das três partes que se seguem.

Na primeira parte, Ferramentas para desmontar a noite, com dezanove poemas, o sujeito descreve esse estado de quase sonambulismo da noite:

 

 Vejo que todos somos sonâmbulos nas bermas da vida/ em procissão exibimos a loucura /de gengivas cerradas o ronronar ao peito / há uma fábrica de angústias a esgotar o tempo/a cidade é um sanatório imune a sonhos (23).

      

Fala-nos da necessidade da revolução, através do desdobramento do sujeito em figuração colectiva: “Eu sou milhares cavando com os olhos a insurreição/de cabeças ondulando nos porquês milenares” (22). Esta secção é acompanhada de uma citação de Eduardo White: “Moram aqui as raízes do afecto”. Japone reivindica do autor do País de Mim, as ferramentas do amor e do sonho, em tempos submersos na indiferença: “já nem me lembro do amor e quem sou eu sem o amor…?/O amor daquelas zero horas/urge plantar novos junhos na herança dessa noite.” (21), o amor contra o cifrão, o medo, a fome:

 

adorno de onça a acobertar a muralha do medo/algibeira onde cabem todos os sonhos da tarde/pássaros d’ouro na geometrização da distante aurora/onde rostos censurados à boca do cifrão pululam (21).

 

A segunda parte, O Bailado da Ausência Própria, inicia-se com uma citação de Herberto Hélder, “Beijar os teus olhos será morrer pela esperança”, sendo composta por vinte e dois poemas, que se desdobram em variações sobre uma reflexão da noção de sujeito que se multiplica, subtrai e ausenta, num jogo de títulos provocatório como por exemplo: “oficina para não ser, a memória do que nunca fui, divindade de mim”…Aqui se começa a resgatar a felicidade da infância, e do amor, em simultâneo ao reconhecimento de alguma plenitude e realização na física encantada do corpo que resgata sonho telúrico, em reinvenção da esperança:

 

teu corpo no húmus da vida/uma vida nua nas vestes da aurora/no bolso a fórmula para extinguir a oxidação da noite/voltarei com punhos serrados de esperança/dançar as vénias da luz encostadas ao futuro (32).

    

Finalmente a terceira parte do livro Fermento das Angústias, composta por vinte poemas e antecedida de uma citação de Heliodoro Baptista, “saberás que o amor é tudo e o tudo nunca foi cognoscível. Como o nada”, discute a possibilidade do amor e do futuro no quadro desse paradoxal choque entre a noite e o amor, entre desconhecido e desconhecível:

 

Ao menos amemos essa noite que não cessa/na curva densa da esperança fuzilada/os resquícios lacónicos dessa visão ofuscada/mais nipa menos tudo eis a equação (66).

Nesta secção final do livro de Japone Arijuane se desmontam poeticamente também, entre outros tópicos, algumas das divisões culturais e políticas conflituais que dramatizam o país entre norte e sul:

 

Hoje vamos escalar o norte das nossas angústias/contornar a muralha da sulização que prolonga a noite/precisamos contornar as dores da rua/abrir outra garrafa para um novo quotidiano/vamos embriagar o medo encarnado que nos sepulta/ escuta a noite longínqua, vasta e fulminante/música aos ventos nortenhos a fogo (70)

Julgo que o leitor vai apreciar, como eu muito apreciei, a nudez com que o poeta inventa a farda do amor, o incêndio que planta na noite para a exorcizar, e a insurrecta voz com que os poemas revolucionam o silêncio.

                                                                                                 

 

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