…através deste decreto designa-se Dirdapkov para o cargo de Vice-rei e, por deferência, são-lhe incumbidas as tarefas de Rei.
Estas foram as últimas linhas do decreto que mesmo sem tencioná-lo silenciara as más-línguas que já se faziam ecoar no reino de Iemicecénia quando os boatos de uma iminente sucessão eclodiram.
Bem nas imediações da floresta boreal enquanto a União Soviética vivia os seus mais memoriais dias de glórias, aninhara-se um reino ao qual os documentos históricos pouco se referiram por não se ter tonificado em conversas que ao belicismo dizem respeito nem à produção agrícola que eram os labores mais vangloriados naquelas latitudes. Dele apenas encontram-se dois parágrafos que os historiadores dedicaram ao labor comercial que se engendrara naquela época em todo o Hemisfério Norte. E, haja justiça, mesmo que não tenha sido o único reino a se dedicar nessas matérias, Imececénia merecera os parcos parágrafos da história daquela região por se ter evidenciado no trato com o comércio. Dizem as lendas cartográficas que a sua exclusão na configuração dos mapas mundiais não fora propositada mas fora obra de um insólito infortúnio que ocorrera por cima da escrivaninha de Ptolomeu (pai da cartografia) quando um rato roera parte dos seus desenhos bem na área em que se representava o vasto reino de Iemececénia. Vencido pelos ditames da idade nada condescendentes com a argúcia intelectual, Ptolomeu não conseguiu deter o famigerado rato, daí a unanimidade das lendas em concluir que, em termos cartográficos, Imececénia localiza-se no buraco do rato.
Pronto! Deixemos as divagações típicas de narradores para quem o tempo e a ansiedade dos leitores são fontes entretenimento e voltemos à investidura de Dirdapkov.
Naquela manhã as ruas pareciam tapetes feitos de folhas secas que cobriam todas as vias de acesso ao palácio real onde iria decorrer a cerimónia. Era outono. Os presentes já se haviam antecipado para ocupar os lugares mais cimeiros dos quais iriam satisfazer as suas dúvidas. Saciar as suas espectativas. Confirmar os seus prognósticos.
«Julgo que Dirdapkov será elevado ao cargo de Rei, é o mais indicado» diziam vozes doutros reinos que se informavam sobre Iemececénia como se do seu reino de tratasse. «Ah, não! Dirdapkov parece novo para os zelos diários de um reino daquela magnitude, suponho que com a crise que se vive noutros reinos o conselho de anciãos irá chamar a si as responsabilidades do reinado e Dirdapkov continuará exercendo as suas tarefas na condição de vice-rei» assim opinavam vozes de distantes reinos que pouco ou nada sabiam sobre o reino nem conheciam o Dirdapkov em actividades do reinado senão em vagos encontros dos cavalheiros após uma batalha vencida ou no fim de uma actividade de caça que era prosseguida por rios de vinho que se escoriam pela goela adentro e faziam dos estômagos dos cavalheiros uma espécie de foz de um rio farto.
Fosse por um ou outro caminho, a unanimidade entre os presentes só se escancarava numa só certeza: após nove anos de reinado, Matenin Azarikov tornar-se-ia num antecessor de qualquer que fosse o novo rei.
Não que se possa dizer que Azarikov não esperava que aquela fatídica manhã chegasse mas também não fazia ouvidos de mercador aos murmúrios maldizentes, que nunca se calam mesmo em momentos típicos de absoluto silêncio, para as quais a durabilidade do seu reinado era uma espécie de um quiz no qual a eternidade era a pontuação máxima e única provável.
Dirdapkov e Azarikov não eram estranhos e mesmo naquele momento de tamanha tensão a estranheza não lhes embateu o peito nem a alma: juntos laboravam haviam anos. Aguardando a chegada do conselho de anciãos, abriram o verbo sobre lugares-comuns numa conversa muito horizontal que não se lhes cabia ao relacionamento vertical que tinham até àquele instante e se rompeu com a leitura do decreto.
Sobre o curioso decreto, o conselho de anciãos deteve-se por cerca de dezasseis semanas, vinte e quatro reuniões das quais surgiram quarenta e oito esboços do documento que iria definir o novo e, diga-se, inédito figurino da liderança do reino. Nas prolongadas reuniões, o nó de estrangulamento em nada se aproximava à continuidade de Azarikov no reinado. A sua cessação era já uma sentença, à qual ele próprio se antecedera. Discutia-se sim a colocação de uma outra figura no cargo de rei e a substituição de Dirdapkov caso este ascendesse. A sua ascensão não colhia consensos no conselho devido à sua multiplicidade de tarefas naquela região, o que predizia contínuas ausências nos cuidados do reinado, argumento que era imediatamente escamoteado por outras vozes que se socorriam, com razão, do perfil de Azarikov, que era mesmo esse, para justificar a sua visão. Outras mais ortodoxas apontavam a juventude de Dirdapkov como sendo o calcanhar de Aquiles do seu perfil para aquele cargo, o que gerou uma inesperada, escaldante e duradoura discussão que dividiu os anciãos em ortodoxos e vanguardistas. Os primeiros já se haviam esgotado nos argumentos mas os últimos vincavam o despautério que tais posições denotavam porque (1) viam na idade algo muito além dos números, (2) a maturidade de Dirdapkov para os zelos do reinado podia até suplantar a de outros cujos números etários roçavam os cinquenta, (3) davam exemplos de outros reinos mais vanguardistas bem a leste de Iemececénia que tinham indivíduos na aura da juventude exercendo o reinado com algum zelo exemplar.
Passadas dezasseis semanas, vinte e quatro reuniões das quais surgiram quarenta e oito esboços do decreto, os argumentos das alas não se harmonizavam. Eis que naquela manhã publicou-se o curioso decreto cujo excerto epigrafa estas breves notas.