Muito se tem falado e escrito sobre a importância da “alimentação saudável” como precondição para o exercício e usufruto da condição humana. Na maioria dos casos, as análises fixam-se sobre os nutrientes e o seu papel fisiológico. Porém, esta perspectiva incorre no risco de ser restrictiva, deixando de lado as dimensões sociais, culturais e espirituais da alimentação.
Cientes dessa lacuna, as abordagens mais recentes têm procurado explorar outras vertentes, particularmente as relacionadas com o “Direito Humano à Alimentação Adequada”. Embora muito timidamente, o reconhecimento da existência desse direito elementar ajuda a equacionar o papel da alimentação na dignificação da condição humana e, consequentemente, na garantia de uma sustentabilidade social, baseada na redução das discrepâncias no acesso aos alimentos.
É preciso ter em conta que, numa sociedade cada vez mais consumista, a coexistência entre a opulência e a miséria gera focos de tensão que podem colocar em risco a harmonia e a integridade das pessoas, famílias, países e sistemas.
Nesta abordagem que se pretende mais abrangente, para além dos aspectos meramente nutritivos, destacam-se alguns aspectos socioculturais como a cadeia de valor de alimentos, os sistemas de valor inerentes, as preferências alimentares e a perspectiva sociofamiliar.
Cadeias de valor e qualidade de vida
Cada vez mais, a cadeia de valor dos alimentos se expande, ganhando mais etapas e tornando-se mais complexa: utilização de maquinarias, sistemas de irrigação, agroquímicos, tecnologias de conservação, acondicionamento, processamento, distribuição e venda.
Esse alargamento está em grande medida associado à urbanização. Nessa perspectiva, enquadra-se nos esforços naturais de busca de eficiência, qualidade, conveniência e preço.
Embora alguns estudos recentes demonstrem essa tendência natural e evidenciem algumas vantagens desse processo, particularmente na geração de postos de trabalho e no combate ao desperdício, há sectores que questionam alguns dos seus procedimentos e resultados.
Alguns dos casos mais gritantes estão relacionados com a utilização massiva e indiscriminada de alimentos geneticamente modificados, adoçantes, corantes e conservantes. Também se questionam a sustentabilidade ambiental de algumas prácticas, os maus tratos aos animais e plantas, e os atropelos aos princípios do emprego decente.
Estas realidades suscitam, naturalmente, questões sobre os sistemas de valores e acabam por ser focos de tensão social, ambiental, económica e política.
As cadeias de valor do sector agroalimentar são mais complexas e dinâmicas no meio urbano, particularmente nos países mais desenvolvidos, onde o mercado gera possibilidades e oportunidades na produção, processamento, distribuição e acesso. Já no meio rural, a ausência de infraestruturas, energia e tecnologias de processamento afecta a gestão de tempo e esforço. Por exemplo, em África e na América Latina, as mulheres são forçadas a dedicar entre 60 a 80% do seu tempo útil à confecção das refeições, exercendo trabalhos duros (como moer, pilar, lavar, cortar, descascar, transportar, cozinhar, servir, etc.), desafiando a sua dignidade, condicionando a sua integração noutras actividades socializantes, e pondo em causa certos princípios da emancipação da mulher.
A disponibilidade, acesso, estabilidade e utilização de alimentos, através da produção, conservação, processamento e distribuição, têm um impacto na qualidade de vida, saúde pública, biodiversidade, ambiente e bem-estar das pessoas. A nível do consumidor, afecta particularmente a satisfação ou saciedade, obesidade, flatulência, carências nutricionais, intoxicações, etc.
O conceito de obesidade, por exemplo, tem revelado uma evolução interessante. No passado era considerada sinónimo de saúde, bem-estar e riqueza. Recentemente é apontada como um dos mais medonhos vilões do bem-estar e autoestima. As cerca de 600 milhões de pessoas obesas que habitam o planeta são hoje consideradas doentes pela Organização Mundial de Saúde. Há ainda cerca de um milhão e 600 mil pessoas padecendo de sobrepeso, as quais enfrentam dificuldades no bem-estar, autoestima, busca de parceiros, emprego e inserção social.
O sal e o açúcar, antes considerados estímulos naturais do “prazer” alimentar, hoje fazem parte dos aditivos alimentares mais controlados e evitados. Por seu turno, a fibra, muito presente em alimentos considerados mais rústicos e pouco apetecíveis, hoje é procurada enquanto componente essencial de uma dieta equilibrada.
Sistemas de valor e preferências
A dimensão sociocultural da alimentação também inclui os sistemas de valor. A nível da produção, por exemplo, surgem novas sugestões para uma agricultura mais inteligente face ao clima (permacultura, agricultura biológica, etc). Na busca de um mundo mais justo, multiplicam-se os apelos para combater o oligopólio industrial, a conversão dos alimentos em meras “commodities”, a sua utilização em prácticas de especulação financeira e busca desenfreada pelo lucro. Cresce também a necessidade de adoptar novos paradigmas e prácticas como preservar, reciclar, reaproveitar, reutilizar, valorizar etc.
Nas abordagens mais recentes, os alimentos transcendem a sua função nutritiva. Quando, por exemplo, fazem parte da equação para uma melhor imagem corporal, quando são dados como presentes e portadores de afectos. Quando os seus sabores, odores, cores, formas e texturas são veículos de rituais e valores como cultura, religião, partilha, recordações, tradições, crenças, preconceitos e tabus. Nessa dinâmica, muitos nichos e marcas nascem: dietas de emagrecimento, “bio”, “glúten-free”, “dairy-free”, “vegan”, “no GMO”, “fair trade”, hallal, etc.
A perspectiva familiar
A alimentação é um factor agregador e integrador dos membros da família. Cada um tem um papel especifico na produção, colecta, aquisição, confecção e distribuição dos alimentos. Só isso permite uma extensa partilha de afectos.
As refeições representam uma instituição familiar privilegiada que determina os hábitos alimentares, e os transmite de geração em geração.
Há estudos que demonstram que as pessoas que se alimentam em família estão geralmente melhor nutridas do que as pessoas que se alimentam individualmente. No primeiro caso, há uma “democratização” do ritual, permitindo uma utilização mais equitativa e partilhada, enquanto que no segundo caso, os mais fortes tendem a sobrepor-se aos restantes.
Os aromas da velha cozinha da avó, a textura e delicadeza dos alimentos preparados à mão, as gargalhadas das refeições colectivas (particularmente no Natal, Eid e demais celebrações), guardam mensagens indecifráveis de aconchego.