Não se sabe ao certo de que avaria humana foi-se desenterrar a desmedida tolice, a coragem para a tão ridícula ridicularização de um bairro tão normal como qualquer outro. Com tanto com que o povo tem para se ocupar, perde-se tempo cavando diferenças que, ao fim do dia, são feridas do mesmo corpo. Nkobe não fica nesse lugar distante que, aparentemente, não cabe no mapa de Moçambique. Nkobe roça o nariz de todos, o coração de todos. Navega no sangue do drama diário de qualquer moçambicano de gema.
Não é preciso tirar os sapatos, dobrar as calças e sair de qualquer que seja a cidade para contemplar o caos. Dêem a volta aos prédios dos centros urbanos e, antes que lhes pareça tudo lindo, por conta das bacias parabólicas penduradas aqui e ali, por causa da pintura e das grades envernizadas de uma ou de outra flat, por força de aparelhos de ar condicionado montados numa ou noutra parede, mergulhem de cabeça erguida pela escuridão das escadas, pela obsolência dos elevadores e pela barracalização dos terraços. Isso é apenas prelúdio.
Vamos, agora, para a área de serviços, aquele submundo em que se lava a roupa e para onde se despejam vertiginosamente as águas de qualquer andar. E porque em alguns prédios inoperante está o sistema de canalização, os moleques descem com bidões cá para baixo, onde se luta pelo precioso líquido. Quando empregados não houver, descem as filhas e os filhos da senhora, resmungando de orelha a orelha, com medo de entortar a coluna ou de partir as unhas. Nesse espaço comum, já há muito que rebentou o sistema de esgotos que o colono deixou: o lixo faz a festa aos olhos do luxo. Arregaço as mangas do coração e despejo com a bacia do teclado esta outra realidade: aqui não pára o bate-boca. Ora porque uns pilam matapa no quinto andar, ora porque outros tocam música alta no sétimo… Ora porque uns fazem fumaça no terceiro andar, ora porque um maluco, como se acusam, mal estacionou a viatura no rés-do-chão. Que confusão!
O mais palhaço desse circo todo é o nkobemaníaco que sequer tecto próprio tem para morar. E fica a rir-se de quem ousou adquirir um espaço, longe da saia da mãe, e construiu o seu sonho, não importam os detalhes da obra nem da comunidade. Antes vale mergulhar nas águas indo para a casa própria a continuar um eterno bebé de mãe, com mulher ou filhos na casa alheia. É mais honrosa a pobreza material própria que um emprestado luxo em nome da civilização. Ou, por acaso, tem a cidade metros quadrados parar albergar a todos?
No país real, o drama social é o refrão que ecoa de lés a lés e faz a gente perder as cordas vocais. Nossa voz muda esbarra nas paredes do extremo vermelho e da magna escolinha da 24 de Julho, sem direito de, sequer, tocar na sombra dos móveis. Inútil é tentar estereotipar os lugares e as pessoas, que nada mais são do que vítimas das políticas do Estado, ou da ausência destas, que dizem respeito aos serviços básicos. Somos, no fundo, pontas da mesma cobra, sem veneno; asas da mesma águia, sem bico; barbatanas da mesma sardinha, caçadas por impiedosos tubarões do mar da vida.
Em suma, não há zona de marandzas, bairro de molwenes, área de bandidos, reduto de feiticeiros, banda dos atrasados. Há um Moçambique real que clama por melhores condições: de saneamento do meio, de vias de acesso, de transporte, de abastecimento de água, luz eléctrica, etc. Ao apontarmos o dedo para Nkobe, há quatro dedos que se viram contra nós, fazendo-nos lembrar que nenhum sujo se pode rir do mal lavado.
Joaquim Oliveira