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“As Máscaras da Verdade” de Almeida Cumbane é um ensaio sobre a justiça social no universo diegético[1]

I

Março de 2020. É nesta altura em que entro em contacto com este livro. Para vocês é intitulado “as máscaras da verdade”. Para mim “o injusto testamento” embora não tivesse gostado deste título na altura. Agora que o autor o trocou por outro, passei a gostar dele. É verdade. Convenhamos: há daquelas coisas de que passamos a gostar pura e simplesmente porque nos parecem exclusivas. Vem daí, talvez, o encanto das mulheres pela roupa de fardo. Dizem elas: aquelas peças são fashion. Únicas. Sem versões. Nem sósias que se recusam a tirar uma foto, tal como aconteceu com o outro de quem se suspeita que nos tenha burlado.

Mesmo por causa desse afecto que tenho com o título anterior, vou, em seguida, rectificar a capa. Bem no espaço em que o designer redigiu, de forma manhosa, “as máscaras da verdade” ou “as más caras da verdade”, no meu exemplar virá “o injusto testamento”. Em seguida vou tirar uma foto e publicar nas minhas redes sociais para provar que, de facto, o livro é meu. Não estranhem: são coisas da terra! Somos mesmo assim. Até o Rick Ross já sabe. Moz anima, não é?

Já agora, é momento de cada um dar o seu título ao livro. Eu já tenho o meu. Mas voltaremos a tratar disso quando tiverem comprado o livro. Asseguro-vos. Terá sido a vossa melhor aquisição neste Outubro. Estamos em dia de paz e o preço também é pacífico.

II

Dizia, no início, que entrei em contacto com este livro em Março de 2020. Quando Almeida Cumbane sugere-me que venha fazer a apresentação do mesmo no dia em que se celebra a assinatura do acordo geral de paz, vi nisso uma oportunidade para, também, sugerir um acordo de paz entre duas figuras importantes no meio literário: o escritor e o crítico literário.

Vem esta ideia a propósito de uma falsa percepção de estas serem figuras que devam, necessariamente, estar em conflito. Não é verdade. Do mesmo modo que a nossa paz surge e vai se construindo num processo negocial, a geração de harmonia entre estas duas figuras não tem como existir sem que haja uma negociação de crenças, perspectivas ou horizontes.

Digo isto por uma razão muito simples: quando recebi o manuscrito pelo e-mail, li-o com toda calma necessária e fiz um comentário que continha alguns pontos dos quais, para esta conversa, convém trazer dois. O resto são coisas de bros! A malta resolveu nuns papos por aí.

Primeira nota:

O enredo é bastante rico, parabéns! Remeteu-me aos clássicos do policial. O biográfico, o love story, o filosófico e o policial fizeram uma boa mescla. Ainda sobre esta mescla a que me referi no ponto anterior, creio que o título dado à obra não chegue a fazer o real jus ao que se vive na obra no seu todo. Enfim, essa é uma opção estilística e pessoal sobre a qual apenas posso expressar a minha opinião sem perspetivar anuência nem concordância da sua parte. Mas, querendo, é uma reflexão que sugiro que faça.

 

Segunda nota:

Comentei acima sobre a caracterização temporal em dois momentos, no sentido de alertá-lo relativamente às práticas sociais e os objectos que menciona mas tal reflexão só tem razão de ser porque há práticas mencionadas no texto que parecem bastante antigas e que não parece que seja verosímil que as mesmas ocorram nos últimos tempos que, pelo que me parece estamos na aura dos anos 2000 (conclusão feita pela menção da ponte sobre o rio Limpopo que une os distritos de Guijá e Chokwè, pela alusão do Toyota Allion, enfim essas peculiaridades). Em todo caso, é um “papo” que ainda podemos ter.

 

 

Realmente (e na altura) chegamos a ter este papo que durou quase uma hora e houve um acordo de paz. Embora hoje tenha dito que gostava do título anterior por outras razões alheias ao livro, reitero que o mesmo andava (e ainda andaria) à margem do enredo. Até aí, tudo bem. Contudo, quanto à segunda nota, a prática referida no texto é o nkelekele que, segundo o autor, é uma cerimónia tradicional para combater pragas. A mesma é feita por mulheres anciãs da povoação que recolhem amostras da praga e caminham despidas em direcção ao rio para que as águas levem as pragas a outras aldeias. Ocorre, todavia, que o crítico julgou que esta prática fosse antiga e, em algum momento, entrava em choque com alguns aspectos mencionados no texto, o que transtornava a caracterização temporal. Coube ao escritor esclarecer que tal prática ainda predomina em algumas regiões do distrito de Guijá, e assim foi dissipada a nuvem que colocava em cheque uma das categorias da narrativa.

Portanto, como podemos entender, este cenário que trago vem demonstrar que o exercício da escrita passa por este processo de negociação de paz entre quem imagina e escreve e quem estuda o objecto da imaginação do outro. Há, para este efeito, uma necessidade de haver muita humildade em aceitar as sugestões do outro e, obviamente, alguma verticalidade para esclarecer possíveis equívocos da outra parte.

III

A leitura que hoje faço deste “as máscaras da verdade” é tão simples quanto esta: é um romance bom e envolvente. Um page-turner, de facto! É quase inevitável ler as acções de Lucas (personagem do romance) sem pensar na emblemática personagem de vários romances de Dan Brown: o Professor Robert Langdon. Tem cada um o seu perfil mas a inteligência é o que os assemelha.

Num tecido em que transcorrem várias histórias, “as máscaras da verdade” modaliza a vida Lucas. Um jovem muito inteligente nascido em Jana, uma localidade da Província de Inhambane. Conclui os estudos mas a sua condição financeira não permite que siga para a universidade. Inscreve-se no curso de formação de polícias em Matalane. É afecto no Comando Distrital de Homoíne, em Inhambane. Lá inicia a sua vida laboral e se prepara para ter uma vida a dois com a Rosa, sua namorada desde a infância. Um amor puro e provinciano. Tempos depois recebe uma bolsa para estudar ciências policiais em Pyongyang, na Correia do Norte. Lá se forma com distinção. E, pela natureza do trabalho que devia passar a realizar em Moçambique, é orquestrado um falso acidente no qual se alega que se tornara cego. Esta é a versão que prevalece para a sociedade, seus familiares, sua esposa, menos para os seus dois superiores hierárquicos no SISE, instituição para a qual passa a colaborar em sigilo. Em virtude desta condição (a de cegueira) aprende a ler e a escrever em braile. Tudo é orquestrado de tal maneira que ele passa a trabalhar infiltrado no Project Lab, uma empresa sob investigação pelo SISE devido às suas práticas bastante sigilosas que, na opinião dos peritos do SISE, perigava o estado. Para permitir que trabalhe a tempo inteiro nessa missão, é obrigado a se divorciar da então esposa, Rosa (com quem já tinha uma filha), e se juntar a Chudy, filha do proprietário do Project Lab. Para proteger os seus interesses conjugais e laborais, orquestra também uma morte para a sua esposa e filha através de um acidente de viação que fora maquinado de tal forma que nem os peritos contratados pelo Project Lab conseguem detectar a farsa.

Para saber como é que a história termina, só adquirindo o livro. Em todo caso, o que cabe referir neste momento é que toda trama do romance gira em torno desta empresa cujo proprietário (Moreira/o Projectista) é admirador de John Rawls e de vários teóricos da Justiça Social. Moreira acredita que nesta teoria esteja a chave para a redução de assimetrias entre ricos e pobres, daí a sua preferência em contratar, para a sua empresa, ex-presidiários que, até certo ponto, tenham sido vítimas do sistema vigente na sociedade ou indivíduos com uma história de vida que revela que poderiam ter tido sorte melhor se na sociedade houvesse algum senso de solidariedade.

Ora, “qual amador que se torna na coisa amada”, para usar as palavras de Camões, “as máscaras da verdade” de Almeida Cumbane ensaiam, em forma de romance, esta ideia de John Rawls não em forma de teorização como bem o fazem os ensaios académicos. Há, sim, uma rebusca desta teoria de Rowls na própria função das personagens deste romance, se quisermos usar a terminologia de Vladimir Propp no seu “Morfologia do Conto Maravilhoso”, com o cuidado de não se fixar apenas em Lucas que, nesta forma de ler a narrativa, seria o herói e, como tal, única base de análise. Quase todas as personagens do livro, desde o pai da Rosa em Jana, que rejeitara o Lucas como genro por se ter tornado cego; o Cadinho que se tornara criminoso por mero acidente em defesa da mãe ante a violência do pai; a mãe de Cadinho que fora dada por louca por não ter suportado as consequências da injustiça que minam o sistema judiciário e a sociedade como um todo; o Malache, um polícia de trânsito que fora encarcerado pelo mesmo sistema que o formou como corrupto acérrimo; a Chudy que fora vítima da personalidade materialista da mãe até ao Moreira, um senhor visionário que almeja reeducar os seus filhos através da simulação de raptos e construir uma sociedade melhor.

Portanto, reiteramos esta ideia de “as máscaras da verdade” ser uma obra que no universo ficcional materializa a justiça social de Rowls tal como nos evidencia o epílogo,

Anos depois, Moreira vence o trauma e namora a dona Tina. Este namoro de idosos é adoçado por uma ocasião especial. Sentado no banco da frente, o par de namorados assiste efusivamente ao casamento de Chudy. Ela falhou o Lucas, mas finalmente consegue fechar o lugar de Gerito por um homem determinado a amá-la. É também uma grande festa para o Project Lab, porque o noivo é Cadinho, e para padrinho escolheram a família Malache. Do último banco, ligeiramente atrasados, Lucas e Rosa assistem à cerimónia emocionados por ver Chudy nesta página da sua vida.

Em linhas gerais, este jeito de construir a narrativa em que as personagens experimentam alguma redenção independentemente das suas acções no universo diegético vem reiterar o que dissemos na leitura que fizemos do romance “Ilusão à primeira vista” cujo texto fora publicado no jornal O País e no blog RectasLetras, em 2020, em que referíamos que a regeneração de André (personagem daquele romance) do ponto de vista social revela-nos uma ruptura com uma dimensão escatológica da ficção moçambicana, devidamente analisada pelo Professor Francisco Noa no seu “A Escrita Infinita”, abrindo-se assim um espaço para um quê de herança dos contos de fada em que os enredos, na sua maioria, se encerram com o famoso “…e todos foram felizes para sempre”. O que de uma forma ou de outra, revela que o narrador aplica o princípio de justiça social de Rowls no universo diegético através da redenção das personagens, independentemente das acções que tiverem tido ao longo da narrativa.

Dito isto, cabe-me apenas dizer que se o livro não fosse a materialização da liberdade no seu grau mais elevado, eu diria que “as máscaras da verdade” é de leitura obrigatória. É obra!

[1] Texto de apresentação do livro as máscaras da verdade da autoria de Almeida Cumbane, chancela pela editora Fundza, no dia 04 de Outubro na Casa Distrital de Cultura de Guijá.

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