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Nampula: a cidade como um ponto de partida*

A cidade deixou de ser tão amável, amável no sentido de objecto de amor.

É mais difícil gostar das nossas cidades porque elas estão como estão. Estão doentes…

Mia Couto.

 

Boa tarde a todos.

Começo esta minha intervenção felicitando a Universidade Pedagógica de Maputo, através da professora Aissa Mithá Issak, pela promoção da arte literária sempre que possível. O país tem várias universidades e institutos superiores, mas são poucas as instituições comprometidas com a divulgação dos livros e dos autores.

Felicito, igualmente, à Judite Chipenembe, pela belíssima apresentação do livro que fez. Penso que a sua abordagem ajuda-nos a ampliar horizontes na forma como podemos ler o livro e na maneira como podemos pensar à volta do processo criativo dos autores dos textos. Sinceramente, eu até poderia não dizer mais nada sobre esta antologia, que todos nós regressaríamos a casa satisfeitos e realizados pelo que ouvimos. Parabéns, Judite!

Por fim, e não menos importante, um abraço muito especial ao meu amigo Jessemusse Cacinda, que, para além de ter coordenado esta edição da antologia, também assina o texto “Pedopsiquiatria”. No princípio do ano passado, o Jessemusse convidou-me para dirigir uma oficina de escrita criativa a que dei o título “A cidade e as escritas: Nampula, um lugar de partida”. Foi um exercício extremamente interessante, que me lembrou a minha eterna paixão: dar aulas. Igualmente, o evento foi um excelente momento de partilha de ideias. Como nos encontrávamos num período de “confinamento”, ao longo de cinco ou seis semanas, a oficina foi toda virtual. A minha abordagem começou de “A problemática da literatura (entre a abrangência e o particular)” até a apresentação de algumas ideias ao que considerei “Propostas para o derradeiro momento do conto”. Foi realmente incrível essa experiência com autores como Hermínia Francisco, Belchior Eduardo, Tony Amurane ou Eunice Moreira, que infelizmente não faz parte desta primeira edição da antologia. A partilha de percepções literárias foi tão excepcional que hoje nos encontramos aqui na Biblioteca da UP Maputo para lançar esta obra. Felicito-te por isso, Jessemusse.

À parte as felicitações, bem, a minha relação com Nampula é muito fantasiosa. Infelizmente, e até tenho vergonha de dizer isto em público, eu não conheço Nampula. Entretanto, tenho um fascínio enorme pelo espaço urbano e rural da província e, sobretudo, pela Ilha de Moçambique. Além disso, há 12 anos, quando ainda almejava tornar-me poeta ou escritor, inventei um pseudónimo, que é Mirette Muzi. Ambos os termos significam remédios. No primeiro caso, Mirette vem do emakhuwa e Muzi provém do rhonga, minha etnia.

Ainda há 12 anos, muito longe de imaginar que um dia iria apresentar um livro sobre Nampula, meti-me em aulas de emakhuwa, na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Lá aprendi termos como “salaama”, “munrowa vayi” ou “koshukuro”. Então, cá estar para poder partilhar convosco as minhas leituras sobre a antologia da Ethale Publishing constitui, de facto, um grande privilégio.

Ora, há dias, tive a oportunidade de conversar com o escritor Juvenal Bucuane, na AEMO, a propósito do seu mais recente título, sobre a Charrua. Recupero a memória dessa conversa porque a escrita da geração a que Bucuane faz parte, no sentido contrário, diz-nos muito sobre Nampula: antologia de His-es-tórias de uma cidade vibrante. Ou seja, enquanto em autores como Ungulani ba ka Khosa, Aldino Muianga ou Marcelo Panguana temos esse movimento do campo para a cidade, com tudo o que essa trajectória encerra em termos de paisagem do espaço, da tradição e da cultura, nos textos desta antologia temos um outro fenómeno. Aqui a cidade não é um ponto de chegada, como para aqueles autores, mas de partida. A cidade, em Nampula, é uma janela aberta para o país inteiro e, consequentemente, para Índico.

Ler esta colectânea de histórias significa uma maneira categórica de conhecer a terceira maior cidade do país. Para quem não conhece Nampula, como eu, tem a possibilidade de percorrer, através da escrita, ruas, avenidas, espaços físicos, sociais e até mesmo psicológicos. Cada autor, do seu jeito e activando determinadas técnicas narrativas, conduz-nos a esse vibrante espaço que é Nampula, onde se cruzam poetas de outros tempos e os prosadores de agora.

Se concordam comigo, a ficção é um mecanismo potente na construção e consolidação da imagem real. Ao escreverem sobre o espaço urbano, mais ou menos ao estilo Avenida Névsky, de Nicolai Gógol, os nossos autores redefinem a sua condição de cidadãos na mesma proporção que reinventam esses universos feitos de cor, sons e imagens.

Na nota do coordenador, Jessemusse Cacinda refere que Nampula é uma cidade marcante para todo aquele que a visita. Ao ouvir a Judite referir-se às ruas que conseguiu rever depois de ler o livro, até senti alguma inveja. Mas não conhecer, neste meu caso, pode ser uma vantagem no sentido de que crio ilusões e perspectivas inevitáveis. Ainda na sua nota, o nosso coordenador e editor refere que “Este livro é, por um lado, uma celebração escrita de uma cidade que merece entrar para o roteiro da literatura moçambicana”. Eu diria ainda mais. Esta antologia coloca Nampula no mapa literário moçambicano, digamos assim, do mesmo modo que Ana Mafalda Leite procede em relação a Tete, em Outras fronteiras (poesia). Por exemplo, quem lê a história “Como se o futuro tivesse conserto: o inverno duma vénia”, compreende que o narrador de Baptista Américo assume uma relação acesa com o espaço a que pertence: “Não me desgrudo da cisma de rever a cidade que me conhece a meninice e a mocidade, rever o miolo que rumina a memória” (p. 13).

Essa cisma do narrador contribui para que, através do seu campo visual, se apreenda o que pode simbolizar, parcialmente, a Cidade de Nampula. Há aí uma acentuada reciprocidade entre a personagem e o espaço. Afinal, um faz o outro e as duas categorias diegéticas tornam-se um só no nível global da história, na qual temos tempo sem relógios, estradas sem chapas, espera sem ansiedade, mas também saúde sem higiene.

O narrador de “Como se o futuro tivesse conserto: o inverno duma vénia” é uma personagem activa da sensibilidade, que nos permite captar cheiros, irritações causadas por congestionamentos e esses excessos que até se podem resumir em preservativos no cemitério.

O espaço urbano é, nesta antologia, sinónimo do conflito entre a ordem e a razão, a decência e a devassidão, a autoridade e a contrariedade. Um exemplo desta aplicação é a história de Belchior Eduardo, “O cágado que levou prisão”. Além dos inevitáveis cheiros que nas nossas cidades e vilas têm cor, esse texto, inclusive, é uma reunião de temperamentos, atitudes, movimentos e violência. Portanto, não temos aqui um mar cor de rosa, aliás, a cidade pode-se resumir no que se aproxima ao nome de uma excelente banda de rock: guns & roses. Ou seja, é um lugar da expectativa e da perdição, do amor e ódio, do afecto e da crueldade. Mas que lugar, neste momento em crise, não é assim?

Nampula: antologia de His-es-tórias de uma cidade vibrante é um livro onde se discute a moral e o ético. Os protagonistas são tendencialmente o canal privilegiado dessa construção. Talvez porque, em geral, essas personagens são seres imperfeitos num contexto social turvo. No já referido texto “Pedopsiquiatria”, Jessemusse Cacinda dá voz a uma personagem que deveria ser feliz na sua relação amorosa. Porque a felicidade poder ser algo distante, ela questiona-se num monólogo: “O que é um marido, se não um aventureiro” (p. 22). E mais à frente sentencia: “Os homens são mesmo fracos e mimados. Basta negar-lhes o sexo que os destróis” (p. 23).

No discurso de uma personagem feminina estabelecem-se certas fronteiras: entre o sexo e o desejo, a paz e o caos. Por isso o autor textual autoriza a narração de episódios sobre moçambicanos que, impedidos de ficar na sua querida Província de Cabo Delgado, têm de partir numa difícil viagem. Nesse ponto de vista, sim, Nampula é um lugar de chegada. No entanto, na maioria dos casos, parte-se do espaço físico e social daquela cidade para, necessariamente, se pensar as ruas, as infra-estruturas ou as comunidades como pertenças colectivas.

A Cidade de Nampula, nesta antologia, também é um espaço de afirmação identitária, onde as mulheres podem dizer NÃO com o mesmo rigor que muitas vezes se lhes exige que digam sim. Além do texto “Pedopsiquiatria”, “O moço da Rua das Flores”, que sugere uma rua concreta de Nampula, é um claro exemplo disso. Como não admira em Arsénia Ressique Amade, nesse texto a autora investe no erotismo, na sensualidade, na liberdade e na afirmação sexual feminina. Aqui a mulher é o verbo ser, estar e querer, porque não há apenas uma forma de a definir. Na verdade, ela é pela indefinição, além dos arquétipos, longe da padronização imediata. Nesse aspecto, a protagonista de “O moço da Rua das Flores” aproxima-se a essa personagem makhuwa que em Niketche, de Paulina Chiziane, dá sabias lições sobre o que se pode considerar plenitude da mulher, com plenos direitos que a humanidade a limita.

Com Arsénia Ressique Amade viajávamos pela vida noctuna de Nampula, pelo sentido do sexo (animalesco ou selvagem?) e pelas armadilhas prováveis do verbo poder.

Numa entrevista concedida a LEITE et al (2012), Mia Couto afirma, a certa altura, “só escrevemos sobre aquilo que amamos”. Concordando ou não com o escritor, essa frase aplica-se muito bem em relação aos autores desta antologia. Mas o que realmente me chama atenção nessa mesma entrevista é o seguinte: “A cidade deixou de ser tão amável, amável no sentido de objecto de amor. É mais difícil gostar das nossas cidades porque elas estão como estão. Estão doentes…”.

Bem, não é por me chamar Remédios que terei a pretensão de trazer alguma receita clínica para curar as nossas cidades. Trago essa citação porque, de facto, as nossas cidades confrontam-se com tantos problemas que fazem com que a esperança no futuro pareça coisa sombria. Se conseguirmos visualizar o futuro em função dos conflitos e dos constrangimentos do presente (alguns apontados pela Judite, até numa perspectiva sociológica), através da ficção, podemos inventar narrativas para influenciar o bem-estar, o sossego e a tranquilidade. No fundo, eu penso neste Nampula: antologia de His-es-tórias de uma cidade vibrante como tudo isso: um ponto de partida para pensarmos naquele lugar concreto, mas também para visualizarmos que tipos de cidades estamos a destruir ao longo do território nacional.

Enfim, temos aqui um conjunto de autores que merecem ser lidos, por nós e pelos habitantes dessas cidades que serão a nossa continuidade, quando partirmos.

 

*Intervenção na cerimónia de lançamento do livro Nampula: antologia de His-es-tórias de uma cidade vibrante, coordenado por Jessemusse Cacinda, realizada na Biblioteca da Universidade Pedagógica de Maputo, no dia 30 de Junho de 2022. Aqui, escrito de cor.

Nota: Judite Chipenembe foi uma das apresentadoras da antologia.

 

 

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