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ARTIGOS DE OPINIÃO

Estou a ler um excelente livro de José Paulo da Fonseca Pinto Lobo. Mistura vários géneros, desde crónicas, reflexões, notas biográficas até mesmo análise política. É uma interessante viagem aos primeiros anos da independência, um convite aos bastidores de gente que serviu este país longe dos holofotes com a sua entrega à causa da construção duma nação.

Um dia esta história terá de ser contada com todo o pormenor para que o exemplo desses heróis não celebrados sirva de referência para os mais novos. São os símbolos duma geração que se entregou ao serviço público tendo como orientação a integridade, o brio profissional e, naturalmente, uma entrega genuína a um projecto político (por mais que a gente não concorde com ele). É a geração de técnicos antes da famosa geração 8 de Março, gente que construiu o Estado com a sua abnegação.

Recomendo o livro sobretudo aos mais novos para terem uma ideia do que já foi possível em Moçambique. A distância que separa a Frelimo de então – com todas as reservas em relação ao projecto político – e a de hoje são gritantes. Queria rir quando li esse post dum jovem que declara ter medo da Frelimo por causa daquilo que a vê fazer. Mas não consegui. Como estou a ler este livro aqui apenas senti um aperto no coração. O membro da Frelimo que não sente o mesmo ao ler isso não deve ter jamais compreendido o sentido da sua militância.

Na página 60, José Paulo da Fonseca Pinto Lobo cita um psicólogo austro-húngaro, Viktor Frankl, fundador da logoterapia, que insistia muito na necessidade de encarar a vida como uma afirmação: “A vida significa, em última instância, assumir a responsabilidade de encontrar a resposta adequada aos seus problemas e ultrapassar os desafios que constantemente apresenta a cada indivíduo. Esses desafios e, portanto, o sentido da vida, variam de pessoa para pessoa e de momento para momento”. José Paulo Pinto Lobo inspira-se nessas linhas para escrever: “Penso então que é o dever dos educadores dar as ferramentas necessárias para que as crianças possam fazer escolhas, assumir responsabilidades e encontrar as suas respostas e o direito destas de errarem para que possam construir o seu próprio caminho”. E remata: “Temos de dar asas para voar e raízes para onde voltar”.

Se alguém ainda precisava duma boa definição do que significa governar hoje em dia, sobretudo em Moçambique, aí está ela. Numa altura em que quem governa – ou dele está próximo – pensa que governar é simplesmente exercer o poder sobre as pessoas, o que sobressai nesta definição é a ideia da atrofia e asfixia de quem é governado. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, sobretudo as que morrem de amores por regimes autoritários, a democracia não é um simples conjunto de procedimentos (eleições, constituição “democrática”, “separação” de poderes, etc.). Democracia é um processo, isto é um trabalho constante na criação de condições para que se voe e se saiba onde voltar.

A nossa dificuldade em apreciar isto vem da nossa incapacidade de nos livrarmos do espírito autoritário que se apossou de nós durante a história. A essência do autoritarismo está na ideia segundo a qual um país se definiria com base numa única vontade. A luta pela independência nutriu essa convicção, principalmente com a necessidade de dar coerência à ideia duma luta “nacional”. Foi lá onde se enraizou a convicção de que tudo o que não corresponde a esta vontade única constitui uma ameaça a ser eliminada. Foi esta convicção que, mais do que o Apartheid, Bandidos Armados e o Imperialismo ocidental, inviabilizou o projecto “revolucionário”, pois fomentou a intolerância ao mesmo que nutriu a ideia duma verdade acima de tudo.

O autoritarismo é por definição hostil ao pluralismo. Quando um partido absolutamente dominante vislumbra o perigo dum “golpe de estado” apenas porque há manifestações de insatisfação com a sua governação o que isso documenta é justamente a hostilidade ao pluralismo que se traduz no medo de se perder o poder a favor de gente que não representa a vontade única porque essa é prerrogativa de apenas um partido. A ideia de que Moçambique, interpretando livremente a citação de Viktor Frankl, possa ser a manifestação da variação individual do sentido da vida, apresenta-se como um perigo à prerrogativa de poder, razão pela qual a repressão constitui a única forma de fazer política.

Não cabe, na mente autoritária, a ideia de que o descontentamento popular possa ser genuíno e que, por isso, não basta procurar inimigos invisíveis, infiltrados ou golpistas. A resposta tem que ser política e deve consistir em saber porque há descontentamento e que condições devem ser criadas para que ele não se transforme em radicalização. Cabo Delgado acena silenciosamente. Não cabe, na mente autoritária, a ideia de que onde aparentemente as ideias se esgotaram seja legítimo que se ensaiem outras. Portanto, aproveitamento político é algo positivo, pois indica a possibilidade de se ensaiarem outras ideias já que o pluralismo é a essência duma ordem política democrática.

Tudo isto é difícil de entender porque as referências da nossa elite política são autoritárias. O que os EUA de Trump, a Turquia de Erdogan, o Brasil de Bolsonaro, a Rússia de Putin, a Índia de Mody, a Hungria de Órban, etc., etc. têm em comum é justamente a ideia da vontade única e hostilidade ao pluralismo. É assim, também, como a nossa elite política pensa, razão pela qual ela se sente mais à vontade na companhia deste tipo de regimes. O autoritarismo é o caminho certo para o totalitarismo (a China de Xi Jinping), algo que acontece já no interior do partido no poder onde todos estão sujeitos ao controlo total dessa vontade única representada pelo chefe infalível. 100% de votos para o líder e mesmo assim há infiltrados que querem destruir o partido…

Vai ser difícil termos asas para voar e raízes para onde voltar quando temos uma elite que não vê o mérito de criar condições para que os moçambicanos façam escolhas, assumam responsabilidades, encontrem as suas respostas e, acima de tudo, usufruam do direito de errarem para que possam construir o seu próprio caminho. Estava a parafrasear José Paulo Pinto Lobo.

Uma elite política com espírito autoritário esgrime a democracia contra o seu próprio povo fazendo exactamente a mesma coisa ao seu povo que o inimigo externo, o “Ocidente”, faz contra o resto do mundo. Um dos nossos maiores problemas em Moçambique é a nossa elite política.

 

O Poeta Luís Carlos Patraquim nasceu, em Maputo, a 26 de Março de 1953. Cresceu na periferia da cidade. O pai – a família era oriunda de Lagos, no Algarve, em Portugal – foi funcionário dos Caminhos de Ferro e trabalharia, como mecânico de aviões, na DETA, que era a Divisão de Exploração dos Transportes Aéreos dos CFM: “E o teu silêncio, o teu silêncio, onde / Florescem, sangrentas, as acácias da Rua de Lidemburgo / E Lagos estremece em azul e punge” – escreverá numa pungente evocação ao pai: “Pela tarde onde caminho, / E a pedra se inscreve no sol que neva”. A mãe era uma leitora omnívora. Dos franceses Balzac ou Victor Hugo, passando pelo russo Fiódor Dostoiévski, aos portugueses Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco ou Antero de Quental serão os autores mais frequentados.  Aos seis anos já lia. A escrita, a inquietude e a rebeldia tomam-no muito novo. Escreve sonetos à Antero e à Camões. Com 16 anos colaborava numa página juvenil no “Notícias”. No liceu integrou um grupo que tentou fazer um jornal – “Progresso”. Do malogro desse projecto até à “Voz de Moçambique” é um salto. Ali estavam alguns dos intelectuais considerados progressistas naquele tempo. Contacta com Eugénio Lisboa, Rui Knopfli, Homero Branco. O contacto com José Craveirinha é decisivo. Começa a conhecer outros nomes importantes. Um deles, Fonseca Amaral, que, na época, estava em Portugal.

O afã do jornalismo, que lhe surge precocemente, será também a expressão da sua “liberdade livre” (como queria Rimbaud), que não se isenta da sua intuição poética. Reconhecerá, anos mais tarde, influências indesmentíveis de José Craveirinha e Rui Knopfli nas suas primícias literárias: a realidade e a arte da palavra. Aliás, a sua poesia, não muito tempo depois, será uma simbiose poética, uma espécie de osmose. Fonseca Amaral é outra referência importante. A língua portuguesa, sabe-se, tem uma importante tradição poética. Patraquim beberá sobretudo de Herberto Helder e António Ramos Rosa (ambos portugueses). Carlos Drummond de Andrade será também essencial. Uma referência irrefutável.

O exercício de rebeldia levou-o a um exílio voluntário na Suécia em 1973. A ideia era integrar a frente libertária. Contacta o movimento, escreve uma carta solicitando adesão à FRELIMO. Entretanto chega o 25 de Abril e em finais de Janeiro de 1975 retorna a Moçambique. Integra “A Tribuna”, então dirigida por Rui Knopfli. São companheiros de redacção: Mia Couto, Julius Kazembe e Ricardo Santos. Com Mia e Kazembe experimentam a crónica literária, a crónica sobre o quotidiano. Integra, depois, o núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique). Mais tarde, desembarca no Instituto Nacional do Cinema e participa da aventura lírica do “Kuxa Kanema”. Torna-se roteirista. Vivia-se o alvoroço da construção do “homem novo”. O cinema que se intenta no arroubo dos heróis ilustra a época. As contradições são visíveis. Mesmo as que se omitem. O Poeta experencia um tempo aziago.

Quando, em 1980, publica Monção”, na mítica colecção Autores Moçambicanos, do INLD (Instituto Nacional do Livro e Disco), Luís Carlos Patraquim afirma-se, indubitavelmente, como uma poderosa novíssima voz da poesia moçambicana. A literatura era então dominada por uma perspectiva acirradamente ideológica. Havia, na nossa poesia, um dominante tom exaltadamente engajado ou comprometido – a chamada poesia de combate. O livro e a poesia de Luís Carlos Patraquim são um escancarado momento de disrupção. Fonseca Amaral e Machado da Graça estão no INLD. Para quem sabe das circunstâncias que então vivíamos poderá até estranhar a inclusão desta obra e a sua publicação. Ela serviria, afinal, para demonstrar que o regime era democrático, que aceitava publicar livros que não coincidiam com a retórica dominante. Nada que impedisse que os prosélitos da revolução o atacassem ferozmente. Viam naquela proposta uma poesia que não ia ao encontro do povo. Acusaram-no de hermético, questionaram para quem escrevia, como escrevia e por que escrevia.

 Em Março de 2020, Luís Carlos Patraquim publicou uma antologia intitulada “Morada Nómada”, que reúne a maior parte da sua obra poética deste o seu livro primeiro. O volume, organizado por Zetho Gonçalves, inclui livros editados entre 1980 e 2020 e um volume inédito “Kilimanjaro”. Da sua vasta lavra poética avultam: Monção” (1980), “A Inadiável Viagem(1985), “Vinte e tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora” (1992), “Mariscando Luas (com Ana Mafalda Leite e Roberto Chichorro, 1992) “Lidemburgo Blues” (1997), “O Osso Côncavo e outros poemas (2005), “Pneuma (2008), “Matéria Concentrada (Antologia poética, 2011), “O Escuro Anterior (2013), “O Cão na Margem (2017), “Música Extensa (2017), “O Deus Restante (2017). Para além disso, é autor da novela “A Canção de Zefania Sforza (2010). Publicou, outrossim, as seguintes colectâneas de crónicas: “Enganações de Boca (2011), “Ímpia Scripta” (2011), “Manual para Incendiários” (2012) e “O Senhor Freud nunca veio a África” (2017). Escreveu “Mestiçagens do Olhar” (2007) sobre a pintura de Chichorro. No domínio do infanto-juvenil: “O Gala-Gala Cantor” (2014) e “O Coelho que Falava Latim” (2014).  Estas são as efemérides literárias de Luís Carlos Patraquim, que é também dramaturgo, guionista de cinema e jornalista.

A sua poesia é eclética e escora-se no conhecimento e na exegese da tradição poética que lhe é anterior, num diálogo com os poetas que lhe antecedem e com aqueles que ele elegeu como seus precursores. É, sem dúvida, uma poesia que se articula numa arrojada investida palimpséstica. Palimpsesto significa texto que existe sob outro texto. A escrita funda-se e refunda-se neste consecutivo exercício. A escrita de Luís Carlos Patraquim é inequivocamente palimpséstica. Há sempre um texto subjacente. O texto que ele sugere dialoga sempre com um que lhe é anterior.

Patraquim é um poeta de conhecimento, um poeta glosador de poetas, um poeta leitor de poemas. Um poeta de uma proeminente erudição. O seu léxico poético é depurado. Para muitos um poeta hermético, críptico, ininteligível, impenetrável. Quando se consegue adentrar no seu universo, porém, somos capazes de experimentar o assombro da técnica, da imagética nela emprestada, da beleza inesperada das suas metáforas. A poesia é sobretudo isso: a imagem, a alegoria, o tropo.

Luís Carlos Patraquim é um poeta que reflecte sobre o ofício e tem poemas que são a incessante busca e compreensão do idioma, da linguagem, da expressão, do código ou do sistema poético. Para além disso, a interlocução com os outros poetas, o que acontece nas epígrafes, nas citações, nas alusões ou nas dedicatórias, é também uma espécie de estabelecimento de dicção própria, de uma gramática própria, de uma voz própria.

Não caberia aqui falar de toda a sua vastíssima obra. Entre os seus livros, concita-me “A Inadiável Viagem,” que ele publica em 1985 – justamente quando o conheci e tive a láurea da sua amizade –  e que retoma os traços distintivos de uma linguagem poética instituída no livro precedente (“Monção”), e anuncia, por assim dizer, aquela que virá nas “Vinte e tal Novas Formulações de uma Elegia Carnívora”, a obra com que culmina a trilogia iniciática. Creio, aliás, situar-se, aqui, precisamente, a importância capital desta obra estelar, e residir aí, justamente, a minha predilecção por ela.

 Herberto Hélder, José Craveirinha, Carlos Drummond de Andrade, Paul Éluard, Fernando Pessoa (Ricardo Reis), Jorge de Sena, Jorge Guillén, Henri Michaux, Pablo Neruda acompanham-no nesse exercício palimpséstico. Para além dos textos citados destes autores, encontramos aqui um diálogo abundante e inteligível com poetas como Heliodoro Baptista, Rui Nogar, Sebastião Alba, Noémia de Sousa. Diria que em “A Inadiável Viagem” se amplia, sem logro, este exercício iniciado em “Monção e que prosseguirá nas subsequentes formulações poéticas.

Escreve Luís Carlos Patraquim no poema “Elegia de Sábado”: “em coro te exigimos o sábado/ nós que ferimos o pensamento da carne/ e a quem deslumbra o hierático inútil pranto/ dos mortos habitantes de nós/ repetida barra fixa até à lâmpada do desejo/ e somos o cansaço desta espera nos jornais de domingo/ ilegíveis ainda de alguma letra/ de nós o fôlego  obstinado da rua/ para que a descoberta da língua amanhã senhor/ nasça da fornicação do sábado”.

Aqui se pode intuir a desafeição em relação a uma realidade social dissemelhante do “tempo do canto / conquistado a sangue” exaltado, indiscutivelmente, na obra inaugural. Pouco depois de publicar este livro (“A Inadiável Viagem) escreveu dois poemas violentíssimos sobre o tempo que nele, de alguma forma, anunciara: um deles, sem título, sobre os mutilados de guerra e outro – a duríssima “Elegia Carnívora”. Os textos em causa iriam integrar o livro subsecutivo.

Patraquim: “e somos o cansaço desta espera nos jornais de domingo”. Aqui está a chave e a expressão inequívoca do desalento, do cansaço, da astenia. Este verso denuncia um poeta distante daquele que, num poema em homenagem a Craveirinha, a dado passo, escrevera: “chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia / de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando/ a natureza e o chão no parnaso das balas”. Alusão não só à “primavera de balas” (Craveirinha), mas uma manifesta sagração do tempo que então vivíamos.

Se em “Monção encontramos o lirismo amoroso, encontramos textos que aludem a um diálogo intertextual com outros poetas, numa linguagem que se distancia da voz colectiva e colectivizadora, sem, no entanto, se exonerar de apostrofar a realidade social – Patraquim é um poeta que assume uma intervenção social –, em “A Inadiável Viagem, temos isso e muito mais: temos o amor, o corpo celebrado da mulher (“a dicção do teu corpo”); temos a evocação da infância (que encontramos em Fonseca Amaral ou Noémia de Sousa – eis um dos eixos temáticos da poesia moçambicana: “Rua de Lidemburgo”: “da infância refaço esta clave nua/ a fisga de a sorver tão perto/ as goiabas rubras trazidas ao riso/ deste fermento que ora traduzo/ porque espero e no chão incorruptível/ a ternura dos dedos entreteçam o sono/ à sombra de um sinal que apeteça/ e outra vez na falésia da noite/ a metamorfose da água permaneça”); temos, sobretudo, uma realidade disfórica, o manifesto ocaso da revolução, o desalento ineludível. E nisso o título e o livro assumem uma biografia poética e uma trajectória pessoal irrefutável. Luís Carlos Patraquim partiria para Portugal no ano a seguir à publicação deste livro, onde vive ainda hoje.

Luís Carlos Patraquim: “À uma hora da madrugada somos deus/ aos látegos sobre os perfis das casas/ das frontes latejando voos de extenuados/ pássaros e batemos no poema. Abram/ Já não morremos nas mãos brincando/ do menino com dois anos de idade. / Assassinou-se, para não ser homem nem deus,/ nem perguntas de voos augurando/ metafísicas inúteis na ascensão de domingo/ à uma hora da madrugada.

Este poema é de uma grande violência lexical e imagética, um dos mais ásperos de toda a literatura moçambicana. Um poema que exprime, com contundência, os anos 80 e a derrocada do sonho moçambicano, assassinado como o menino de dois anos, num dos textos mais pungentes, lancinantes e comoventes da poesia moçambicana no século XX:

“Batemos. Abram os estádios magníficos/ de todos os orifícios. Cuspam-nos/ o fogo que mata.  Abram! / À uma hora da madrugada, meu deus. / Tão poucos a Sul, limpos e longe/ do país dos hiperbóreos. Tão já sem nada/ e um largo coração de ideias/ apodrecendo nas virilhas cortadas. / Ao perdido arfar de nós que nos perdemos, / matrissuicidas de deus na lixeira/ com mabandidos vídeos estilizando-nos/ em eléctricas úlceras de arco-íris, / nós voltamos. Dêem-nos os pulmões candongados/ em Tsalala, os polanulantes espantos/ depois das praças em comícios/ de núpcias sobre a gengiva dos dias”.

 É como se escrevesse nesta “Elegia Carnívora”, poema de uma mordacidade inaudita, o epitáfio de uma época, na qual a morte de Samora Machel, em 1986, tem um significado mais do que simbólico: o abismo por onde resvalaram todos os sonhos. A desesperança evidente, o desconsolo que vaticina a viagem. Uma espécie de presságio, pressentimento, profecia.

Corrobora nisso, nesse mau agoiro, o poema sobre os mutilados de guerra: “Sentam-se sob as acácias no asfalto roto/ os mutilados com cigarros de embalar. / Nenhum som os recorta/ e todos os sentidos foram amputados. / Nem para a tarde crescem frustrados. / Esperam. Que inconclusa forma/ os limita em fórmula de serração? / Que ameaça os delira? / Nenhuma flor/ explode, poeta, no coração? / Os mutilados sonharão? Suas pernas? / O desejo, fruto podre adubando. Outra mão? / Que triste palavra os baba / no cigarro morto! Vendem. / Nenhum incesto os estanca. / À revelia do sol, os mutilados/ montam banca.”

O Poeta escrevera: “agora vou com amendoins na língua ínsula” e ficaria com os pregões a reverberar na memória: “agora Amêjoé vestiu a rua dobrou a esquina”. Ficariam belos e comoventes poemas que se entretecem na sua biografia. Num poema dedicado a Gulamo Khan proclama: “Escrevo, não obstante, um país solar, / rouca a língua que soluça em sintagmas antigos”. “A memória é isto. / Mas já não elido”. Ou: “Depois das elegias o alcandorado grito / sobre o deserto chão do poema”. Provavelmente, a viagem será a grande metáfora da sua biografia. A sua viagem a Ítaca. Os seus mitos matriciais.

Há nesta poesia, eu me atreveria a dizer: neste poema em continuum (que é a sua obra toda) mitos recorrentes, ainda que se encontrem cartografados numa “sintaxe de sombras”. Um desses mitos, a Ilha de Moçambique. Muhípiti: “É onde todos somos inúteis”. Ilha de Próspero, Ilha de Caliban. Ilha de Alberto de Lacerda (“Ó Oriente surgido do mar / Ó minha Ilha de Moçambique / Perfume solto no oceano / Como se fosse em pleno ar”);  Ilha de Rui Knopfli (“Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente / que doloridas lembranças do tempo / em que, do alto do minarete, / Alah – o grande sacana! – sorria / aos tímidos versos bem comportados / que eu te fazia”); Ilha de Eduardo White (“Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconfortado”);  Ilha dos Poetas, Ilha de todos: “Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos / e marulham as vozes”. “Ilha, corpo, mulher. Ilha encantamento. Primeiro tema para cantar” – Luís Carlos Patraquim.

Poesia de outras viagens, poesia de todas as viagens. Em Lisboa encontramo-lo “mariscando luas” na casa do pintor onde “os amigos entram pela janela / de luz na tarde atlântica”, ou no café Martinho de Arcada, evocando um poeta amigo. Poesia aliás habitada de afectos e de poetas, de poetas mortos como Rui de Noronha, Reinaldo Ferreira, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Gabriel Makavi, Fonseca Amaral, Gulamo Khan, Leite de Vasconcelos, Grabato, Dias, Sebastião Alba, David Mestre, Guilherme Ismael. Afinal, conclama o Poeta: “Não tenho mais legitimidade do que a de todos os mortos”.

Ou como escreverá, muitos anos depois, em “O Deus Restante” (2017): “Aqui onde o Zambeze se afoga na estreita garganta / depois da sumptuosa queda de Deus”.  Este livro como “Musica Extensa”, do mesmo ano, são poemas únicos. Poemas em que acena constantemente ao Índico.  O Atlântico não lhe ilude o referencial: “O Índico é um mar interior”. Com as suas fúrias, alegorias e tragédias. Poeta atento ao seu país. Poeta, na sua “Morada Nómada”, que lhe colige a obra, continua afinal a mesma voz, a mesmíssima voz inicial: “rigorosamente viajo no tempo / e não sei / não sei se é canto ou ave / o que canto”, como principiara: “com palavras faço a voz”:

“é preciso inventar-te porque existes

enquanto os deuses adormecem nas páginas dos livros

e o real é a infinita medida do canto”

Hoje, ainda e sempre, é preciso sobretudo essa “insurrecta linguagem do mundo”, “é preciso a insurrecta solidão de alguns dias” e “é preciso tudo como haver morte e flores” porque, agora como sempre, “nascemos hoje demasiado e vivos”.

A poesia de Patraquim sempre soou estranha. Um timbre fora do contexto da poesia que era comum produzir-se e publicar. Vivíamos, é preciso sublinhar, os primórdios da independência e estávamos, muitos de nós, imbuídos daquele fervor messiânico e revolucionário. Poesia que será também um acto de rebeldia contra um universo concentracionário que se vivia.

A importância de Patraquim também advém daí, dessa rebeldia, que iria informar a minha geração. Por causa do seu estro, do seu talento, da sua exuberância poética, do esplendor da sua metáfora, da ideia de que a poesia é a metáfora, da sua oficina burilada, da sua extraordinária capacidade imagética, da explosão das suas vibrantes imagens, o reino das imagens, da sua voz de eleito. Da sua iconoclastia, eu diria, finalmente.

Nesse tempo, que aqui aludo melancolicamente, o Poeta exercia uma espécie de sacerdócio para a geração que iria despontar nos anos 80 e que desalinha, por completo, dos ditames da época. A “Gazeta de Artes e Letras”, que ele empreenderia, entre 1984 e 1986, a convite de Albino Magaia, na revista “Tempo”, foi o esteio necessário para a nossa contradita. Patraquim era uma espécie de Papa, nas nossas letras, à época. Para além do facto de não ser alheio à “Charrua” ou às tertúlias da Associação dos Escritores. Naqueles tempos fervorosos, hóspedes da Cindoca às sextas-feiras.

Era, paradoxalmente, um tempo exultante, reconheço-o a esta distância. Éramos felizes e, provavelmente, não sabíamos. Estávamos imersos no desencanto que começara, então, a cansar-nos, por culpa de um quotidiano ingeneroso. Era o tempo do monolitismo político, no qual empreendemos a discordância. Eu reputo esse dissídio, essa dissensão, esse confronto. (“Por isso senhor dá-nos a humilde loucura do sábado”).  Era a nossa matéria-prima e a marca distintiva da nossa geração. Mas nunca nos exonerámos do “amor da terra”, como queria o Poeta.

Releio a obra toda de Luís Carlos Patraquim e revejo nela a sua biografia. Volto aos seus poemas, torno às suas viagens, revisito os seus mitos, reencontro as suas elegias, as suas citações, os seus acenos, a sua sintaxe, a sua gramática, a sua constância, a sua erudição. A sua permanente viagem. A sua incessante busca da Ítaca. Retorno ao seu estro, ao seu exímio estro, aos seus deuses e epifanias. Como sempre é um empreendimento jubiloso.

Termino este cumprimento, no dia dos seus 70 anos, dizendo-lhe aquilo que T.S. Eliot, um dos seus poetas electivos, que ele apostrofa num dos seus mais belos e acerbos poemas (“Elegia Carnívora”), disse, num aceno florentino – Dante Alighieri concedera a Guido Cavalcanti –, de e a Ezra Pound: “Il miglior fabbro”, na dedicatória de “A Terra Devastada”. Não tenho dúvidas de que o Poeta Luís Carlos Patraquim é, hoje, entre nós, o melhor artífice.

 

Kampfumo, 26 de Março de 2023

Por: Venâncio Calisto

O ano de 2010, que foi o ano que marca a minha iniciação no mundo das artes e do teatro em particular, é para mim a época de maior efervescência cultural na cidade de Maputo. Se os anos noventa do século passado representam o auge da actividade teatral na capital do país, em termos de criações, públicos e internacionalização das companhias, 2010 pode ser considerado o ano do renascimento de uma nova geração de artistas e iniciativas teatrais.

Em 2010, eu andava na décima classe, na escola secundária Noroeste 2, havia perdido um ano por faltas excessivas na disciplina de Educação Física, é que desde pequeno eu não djimo o corpo, eu djimo a mente. Brincadeiras à parte. A segunda década do nosso milénio começou em grande. O recém-criado curso superior de teatro na ECA já começava a dar os primeiros frutos. Novos textos, novos autores e, sobretudo, novas técnicas de fazer teatro começaram a despontar por todo lado. As velhas companhias já se abriam para dialogar com os novos actores.

O festival amador de teatro de inverno estava na transição para o que é hoje, internacional e o mais regular. Foi justamente nesse período que eu, atraído pelas multidões de actores que desciam a cidade como um cortejo de carnaval, havia, no semblante de cada um deles, um convite expresso, uma conquista irrecusável. Quando dei por mim estava no palco do mapiko, a tremer de frio e adrenalina. Quem é o fantasma? Texto do meu mestre Nandjir foi o espectáculo mais marcante. Fazia de protagonista e morria no palco, como sempre sonhei. Dali em diante, já não havia volta a dar. Primeiro foram as oficinas de representação, encenação e produção teatral que o Girassol não se cansava de organizar. Depois, a necessidade de aprofundar a alegria de habitar um palco.

O velho Dabula foi peremptório: Vá já se inscrever ao curso de Teatro na ECA. Depois ajudou-me a pagar as matrículas e propinas. Acompanhou todo o meu percurso estudantil. No seu escritório, no Ntsindya, corrigia-me as provas e dava-me infinitos TPC. Mas tudo começou em 2010, o mítico ano do mundial nas terras africanas. Dançamos tanto Waka Waka.

Porque o teatro em Maputo era uma alegria… O Mutumbela parecia procurar se reinventar. Graça Silva e Jorge Vaz assumiram a responsabilidade. O inimigo do Povo, o Xapa 100 My Love, a Máquina Extraviada, Hamlet… Foram tantos espectáculos, tanto alimento… O Luarte, na vanguarda do teatro contemporâneo moçambicano chocava-nos com tanta beleza e criatividade, as encenações do Mambucho e do Eliot Alex, não esqueço-me do Niketche… Em 2010 nasceu a minha fome por arte, mas por nada nesse mundo tomaria a sopa de Lá na Morgue, Dadivo José que me perdoe.

Alcochete, 21 de Março de 2023

O antigo jogador da selecção nacional de basquetebol, Helmano Nhatitima, analisa o estágio actual e as dinâmicas da modalidade da bola ao cesto no país. Campeão pelo Desportivo Maputo, Costa do Sol e extinta Conseng, Nhatitima desvenda a fórmula para o sucesso do Ferroviário da Beira, conjunto que este ano vai disputar pela segunda vez consecutiva a Liga Africana de Basquetebol. Mais: tem dominado as provas internas, relegando, desta forma, para o segundo plano os tradicionais candidatos ao título sedeados na capital do país. A viverem de glórias do passado. Nhatitima entende que as províncias carecem de atletas seniores, moldura humana para praticar a modalidade. Para Nhantitima, a cidade de Maputo está num sono profundo.  Diz ainda que, depois da  “morte” do Desportivo Maputo e Maxaquene, o Ferroviário, porque estava bem financeiramente ou porque tinha pessoas que se importavam, vinha puxando a modalidade. O que já não acontece hoje por hoje!

 

1.-O Ferroviário da Beira não evoluiu da noite para o dia. Primeiro, foi organizando campeonatos nacionais de formação durante anos e, depois, foi organizando “nacionais” de seniores. O Ferroviário da Beira foi vendo como as equipas de Maputo se organizam, porém, nunca conseguia dar o salto. Por quê? Porque acreditava que iria ganhar só com jogadores e treinadores da Beira e isso nunca aconteceu. Quando o Ferroviário da Beira começa a contratar atletas e treinadores de Maputo e, depois de fora, outro galo começa a cantar. Hoje já quase não encontras atletas beirenses no plantel porque tornou-se uma equipa com pretensões africanas e já não pensa “provincianismo”.

 

2- Zambézia é um caso especial. Dá o “boom” depois de 2003, quando o campeonato nacional escalou Quelimane. Foi a partir daí que os miúdos locais treinaram tanto para atingirem o estatuto de estrelas que haviam estado lá ( ndr: isto ouvi da boca de Pio “Lingras” Matos, Augusto “Gordo” Matos” e  Igor Matavele).

 

3- Nampula já anda há muito tempo neste vai vem de “nacionais” e não evoluiu. Já devia ter dado o salto há muito tempo. Nampula tem tudo para ser a terceira província basquetebolística do país, mas nada. Felizmente, tem o Albino Dimene lá – presidente da Associação Provincial de Basquetebol- grande impulsionador. Mas também já perceberam que tem que colher experiência de outro sítio. Questiono: se Octávio Magoliço e Fernando “Nandinho” Manjate não estivessem na equipa do Ferroviário de Nampula, acham que iriam para algum sítio? Não. A qualidade da equipa subiu em mais de 50%. Em condições normais, Nampula ganha mas transpira para vencer as equipas de Cabo Delgado. Na “poule” de apuramento da zona norte para a Liga Moçambicana de Basquetebol, com reforço de Octávio Magoliço, ganhou por mais de 70 pontos.

 

  1. As províncias carecem de atletas seniores, moldura humana para praticar a modalidade. São os mesmos atletas que jogam e saem daqui para ali. Mas para evoluir, primeiro, é preciso derrubar as barreiras mentais e perceber que nós temos ainda muito a aprender, caminhar e perceber quais são os pontos a evoluir e lutar com eles. É normal chegar a uma equipa, pedir um ataque e dizerem que não tem. Jogam com corte e passe. Sério? Nos seniores isso? Correr nos corredores, ninguém conhece isso de corredores. Temos que correr muito, mas o mais importante é correr bem e organizados. Gosto da dinâmica em Cabo Delgado, onde estão preocupados com essa evolução ao chamar treinadores de fora. Mas o maior desafio ainda está no atleta, na mente. Desconstruir a ideia de que o craque é aquele que está com a bola, imitar o lançamento de Kevin Durant ou Kobe Brynt (astro da NBA falecido a 26 de Janeiro de Janeiro de 2020) sem que pratiques treinos individuais de lançamento.

5- Nenhum jogador que chegou à selecção nacional de basquetebol de 2005 até 2019 por aí atingiu este patamar sem quatro horas de treinos diários. Treino individual, a evolução do atleta não ocorre no treino colectivo, mas sim em treinos individuais (lançamento, salto e evolução física).

6- A cidade de Maputo está num momento mau, sem dúvidas. Depois da “morte” do Desportivo Maputo e Maxaquene, o Ferroviário, porque estava bem financeiramente ou porque tinha pessoas que se importavam, vinha puxando a modalidade. Hoje já não tens este clube “pai” que diz “vamos lá ou mexam-se lá”. O Costa do Sol tem, hoje, a melhor estrutura, mas não assume esse papel e enquanto não fizer isso vai chorar sempre em segundo (enquanto o Ferroviário de Maputo ganhou, tinha todo o poder sobre Associação de Basquetebol da Cidade Maputo). A Associação Provincial de Basquetebol de Sofala é o Ferroviário da Beira. A associação, que não tem meios, também está no seu cantinho: inerte e prostrada. Isto para não falar dos árbitros que, sem dinheiro, não apitam. Isto é culpa do nível de organização e da forma de trabalhar que Maputo atingiu e a fórmula está lá e é só aplicá-la. Acredito que a estrutura de jogos nas províncias é, de longe, mais leve que a de Maputo onde temos todos os escalões a se movimentarem com equipas A, B, etc. Contudo, não creio que os árbitros tenham que apitar de borla, até porque não são pai natal mas são parte do problema e, claramente, serão parte da solução.

Resumindo: Manica, Tete e Cabo Delgado tem vontade mas o caminho ainda é longo, e só vão evoluir com muito trabalho.

A expressão latina “ex nihilo, nihil fit” do filósofo naturalista Parménides que, em português, se traduz em “nada surge do nada” configura-se um imperioso pressuposto do Princípio da Razão Suficiente cunhado por Leibniz, mas reclamado por Spinoza. De forma sucinta, com base no livro de Baruch Spinoza “Principia philosophiae cartesianae” o Princípio da Razão Suficiente formula-se na ideia de que “nada existe do qual não se possa perguntar a causa ou a razão de existência”. Ou seja, para este filósofo holandês do séc. XVII, tudo o que existe no cosmos tem de ter uma causa e motivo para existir, e, ademais, mesmo aquilo que não existe demanda explicação de como e porquê não existir. Assim sendo, todo aquele que aceita este princípio filosófico deve assumir a responsabilidade de considerar o mundo como uma rede complexa de fenómenos concebíveis e explicáveis e, jamais, aceitar a existência de factos ou actos brutos, sem precedentes. A expressão de Leibinz “não há efeito, sem causa” formula melhor a ideia do princípio da razão suficiente e é uma assumpção de que a realidade é uma ocorrência de factos interligados entre si de forma necessária e não aleatória. Portanto, tudo que acontece é passível duma explicação, significando que houve uma razão e causa que levou a tal acontecimento. Deste modo, para Leibinz, os milagres e mistérios não constituem uma violação das leis da razão ou lógica, mas sim são mal entendidas pela fraca faculdade cognitiva do ser humano.

Posto de lado a fundamentação do princípio da razão suficiente, passemos ao exercício de correlação existente entre este princípio filosófico e a produção artística “xikona” do cantor moçambicano Xidiminguana. A canção “xikona” cujo álbum leva o mesmo nome retrata, de forma sucinta, uma separação conjugal cujos motivos são desconhecidos pelos terceiros, mas ainda assim há uma absoluta certeza de ter havido uma razão suficiente que levou um dos parceiros a romper a relação. Para uma fiel compreensão, passo a transcrever e traduzir livremente o refrão que constitui a essência da canção, deixando de lado as “apóstrofes”, partes em que o cantor faz censuras ao comportamento da sua mulher e ao do amante dela.

 

A canção segue da seguinte maneira:

Xikona, xikona mpela lexi anga xi vona lwehi wa papai/2X

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Loku wa nuna abaleka wansati nambi o’ xonga

Quando um homem abandona uma mulher, mesmo sendo bonita

Loku wa nuna abaleka wansati nambi a ni makwembe

Quando um homem abandona uma mulher, mesmo tendo bumbum

Kuza wa nuna atsukula wansati nambi a ni makwembe djani

Ao ponto de um homem desistir duma mulher mesmo tendo grande bumbum

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa papai/

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Animu hembele, xikona anga xi vona lwehi wa papai

Não estou a mentir, alguma coisa aquele senhor teria visto

Kuza wa nuna adlwigwa a wansati nambi o’dhô

Ao ponto de um homem deixar uma mulher, mesmo sendo sexy.

A wanuna atsukula wansati nambi a li bonita

Um homem desistir duma mulher, mesmo sendo bonita

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa papai/

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi a ganhi ngopfu

E a mulher desistiu dum homem mesmo sendo muito rico

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi ani mimova

E a mulher desistiu dum homem, mesmo tendo automóveis

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi ani swi bhomba

E a mulher desistiu dum homem mesmo dispondo de autocarros

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa senhora/2x

Alguma coisa aquela senhora teria visto

 

A partir deste refrão, descobre-se uma clara intenção de o cantor fazer-nos entender que, nas relações amorosas, não há separações absurdas, há sempre um princípio de razão suficiente. Todo o divórcio ou o fim do relacionamento é movido obviamente por alguma razão ou causa que se mostra suficiente – para não dizer convincente – aos olhos de quem se separa. Usando o critério de beleza supostamente aprovado pela sociedade como um factor atractivo para os homens se unir às mulheres, Xidiminguana introduz-nos um cenário onde, mesmo a mulher sendo linda e sexy, é abandonada pelo homem por uma razão que, apesar de ser desconhecida pelos terceiros, teria sido suficiente para romper a relação. O mesmo cenário verifica-se numa perspectiva de mulher para o homem em que, apesar de o homem ser proprietário de várias riquezas, ele chega a ser abandonado pela sua esposa por alguma razão.

Desta clássica canção de marrabenta, desprende-se-nos uma lição da vida: evitemos julgar ou condenar as separações conjugais. Isto porque, por trás das separações, há sempre uma razão suficiente que levou o casal àquele destino. No lugar de procedermos com o exercício de julgamento, torna-se sensato limitarmo-nos à aceitação de que houve, sim, uma razão suficiente para ambos se desligarem, tal como nos sugere a canção de Xidimimguana. Pautando pelo princípio da razão suficiente, tornamo-nos mais condescendentes a casos de divórcios e mais abertos para busca do devido esclarecimento, caso nos seja necessário. Na base do princípio da razão suficiente, colocamo-nos à disposição de conhecer a real causa dos factos e, por conseguinte, adoptamos uma atitude de escutar para compreender. E para compreender as razões de qualquer discussão conjugal é deveras imperioso saber escutar ambas as partes e discernir sobre as duas versões.

Uma nota não menos importante. A razão que leva um indivíduo a decidir por uma separação não tem de ser convincente para os terceiros, pois a sensibilidade dos homens para com os problemas nunca é a mesma. Há quem seja demasiado sensível à violência emocional em forma de um insulto ao ponto de considerar a sua relação abusiva, mas há quem consiga tolera-la, mas não admitir violência física ou adultério. Isto pode significar que, em discussões conjugais, a coisa mais importante que os terceiros possam lograr é a compreensão dos factos e não a razoabilidade das decisões. Aquele terceiro que pautar pela razoabilidade das decisões incorre no risco de ridicularizar ou superestimar uma parte em detrimento doutra. Ademais, é crucial que em reuniões familiares em busca de reconciliação dos casais, os terceiros tenham o cuidado de não tomar decisões finais pelo casal, mas que deixem ficar as suas sugestões sobre o destino do casal e, por fim, deem palavra aos parceiros para que tomem uma decisão final sobre o seu futuro. Quando não se respeitam as vontades do casal, ocorrem dois trágicos cenários que são uma reconciliação à força ou uma separação apoiada. A primeira alternativa leva a relação a um futuro sombrio marcado de mais abusos, violência e eventuais assassinatos. A segunda alternativa gera remorsos, ressentimentos e vitimizações. Reiterando o princípio da razão suficiente, por trás de qualquer separação ou divórcio há sempre uma razão ou causa determinantes. Assim sendo, a aceitação e a disposição dos terceiros para compreender os factos é a coisa primeira e mais sensata a se ter, ao invés de proceder-se com a culpabilidade, condenação ou vitimização duma das partes na relação.

 

Hélder Tsemba

tsembah@gmail.com

Tanto a miséria como a riqueza corrompem embora por causas diferentes.

A miséria pela necessidade, a riqueza pelo prazer.

In Tchova, tchova, de Eduardo Paixão

 

Os projectos teatrais em que Vítor Gonçalves se envolve são, geralmente, interessantíssimos. Ao nível do conceito, da produção ou do encadeamento de ideias, as iniciativas do artista tanto surpreendem quanto comovem.

Quando está a conceber um grande espectáculo, Vítor Gonçalves não se reduz a nenhuma austeridade. Pelo contrário, sempre encontra no poder da imaginação um elemento para quebrar barreiras, alcançando, por isso, níveis imprevisíveis da criatividade. Os mais atentos devem lembrar-se da ópera Mwango e Mwanga ou da peça Chovem amores na Rua do Matador; os mais atentos vão, certamente, lembrar-se d’A amarrada chuva de KaMutxukêti, peça teatral que estreou no dia 16 de Março, em palco todas as sextas-feiras, sábados e domingos, às 18 horas, no Cine Scala, em Maputo, até 20 de Maio.

Adaptada por Evaristo Abreu, do livro de Teodoro Waty, com efeito, A amarrada chuva de KaMutxukêti junta Vítor Gonçalves e Maria Atália na encenação. Coube aos dois artistas dar sentido ao texto e personificar angústias sociais que muitas vezes dividem os homens e as mulheres deste mundo ingrato.

Em primeiro lugar, A amarrada chuva de KaMutxukêti deslumbra-nos pelo cenário. Ao entrar no Scala, mesmo antes do espectáculo iniciar, ali ficamos perdidos em algum lugar ideal, mas sem pressa de voltar à realidade. No palco paira uma imagem de aldeia agreste, onde os códigos sociais confundem-se com a supremacia de certos poderes transcendentes. Desse ponto de vista, há ali um misticismo tipicamente africano, com ângulos de abordagem que, inclusivamente, conduzem a história por territórios sombrios, estranhos ou fantásticos. Com a excepção do que se vê, nada é bem como parece e isso ajuda na construção de um enredo complexo, mas inteligível o suficiente para manter o público agradado e atento a cada acontecimento.

A peça começa como se fosse um bailado, explorando essa percepção assertiva de que a dança acompanha os africanos em todos os momentos da sua vida: na alegria e na tristeza. A dança está em diferentes momentos da peça, com algum destaque para o xigubo, o tufo e o mapiko; a dança é emoção, vibração, o intervalo entre o verbo e a conjugação; é o fragmento da totalidade que torna possível explorar ainda mais o movimento das personagens principais, secundárias e figurantes. E com a dança, a interdisciplinaridade artística preenche KaMutxukêti de outros condimentos sonoros oportunos à leitura do espectáculo.

Ora, em geral, A amarrada chuva de KaMutxukêti é uma peça sobre a instabilidade social causada pela falta da precipitação. Sendo o reino de Baba Hosi (Dadivo José) dependente da chuva, sem esse evento natural o lugar da união transforma-se numa situação dúbia e perigosa. O reino, por falta da chuva, divide-se. Logo, a busca da água faz de algumas personagens egocêntricas e narcisistas. A busca da água torna-se um factor da desunião, bem a lembrar a novela rural Água, de João Paulo Borges Coelho, na qual a seca também corrompe os que deveriam amar mais, ao invés de destruir.

Para o rei Baba Hosi, o cenário da crise é uma situação difícil. Pois, em toda sua vida, nunca se tinha deparado com um problema tão grave e globalmente tão incompreendido quanto é a seca. Porém, perspicaz como é, Baba Hosi sabe que a chuva é a bênção e a seca a maldição para quem governa. Por isso mesmo, depois de ouvir gente próxima, decide enviar três emissários à procura da chuva. A missão de Ngovene (Horácio Guiamba), Mapswanganhe (Adelino Branquinho) e Simbia (Edu All Talents) é deveras espinhosa. Primeiro, porque não sabem bem ao certo por onde começar. Segundo, porque partem para lugares forasteiros, com poderes inimagináveis a intrometerem-se em ocasiões em que se encontram fisicamente débeis e moralmente desvalorizados. É a essa altura que a missão dos três mensageiros lembra-nos Manicusse, a personagem de “A árvore sagrada”, do livro Balada dos deuses, de Marcelo Panguana. Com uma diferença: enquanto naquele conto o protagonista não consegue chegar ao destino auspicioso, por não acreditar em si e nos seus antepassados, na peça encenada por Vítor Gonçalves e Maria Atália os três emissários vencem as adversidades e, consequentemente, encontram a solução nas terras distantes do norte. Uma vez mais, em contacto com o além.

Não obstante ser um lugar absolutamente fictício, em KaMutxukêti a chuva representa as maiores aspirações da sociedade moçambicana. A chuva é estabilidade, a esperança, o bem-estar e a preservação de um espaço colectivo e abrangente. Quando a chuva cai, a unidade é certa e os murmúrios populares ininteligíveis. Entretanto, quando escasseia, não só aparecem vozes a questionar a legitimidade do rei, igualmente, vêem-se na peça comportamentos degradantes e personagens a perderem o sentido da importância da partilha. Portanto, A amarrada chuva de KaMutxukêti diverte-nos e lembra-nos que o lugar da nação, quando a crise chega, deve ser proporcional à mesma condição na fartura. A nação é o bem para todos, partilhável, e não a metade das riquezas nacionais no bolso de um par de gente. A nação é o amor ao povo, o cuidado com os pobres e a resposta sensata aos protestos dos que sofrem ou tornam audíveis os sofrimentos dos outros, de facto, num contexto em que “tanto a miséria como a riqueza corrompem embora por causas diferentes. A miséria pela necessidade, a riqueza pelo prazer”.

Em algumas circunstâncias, A amarrada chuva de KaMutxukêti explora essa dimensão hilariante característica à comédia, em outras, não ignora a fatalidade da tragédia especial em Sófocles ou em William Shakespeare. Lá está, a morte faz parte do jogo e o reino de Baba Hosi apresenta-se à semelhança de um tabuleiro de xadrez em que um simples peão pode decidir o fim do seu próprio rei. Quer dizer, do ponto de vista da coerência, da lucidez, do raciocínio das personagens e da analogia, KaMutxukêti é um lugar onde se revelam os pilares que suportam qualquer país: o cidadão comum (se quiser, o povo) e a sua relação com os símbolos do poder e vice-versa. Se pensar o país através dessa relação muitas vezes vertical é árduo e complexo, através da adaptação de Evaristo Abreu é divertido e leve, pois as doses de humor estão equilibradas à gravidade do problema que agita o reino.

A amarrada chuva de KaMutxukêti tem hora e meia de duração, mas a dinâmica das cenas faz o tempo voar. Aliado a isso, impressiona o cruzamento de diferentes gerações de actores e a forma como tantas estrelas do teatro moçambicano são geridas no núcleo da história que se está a tecer. Por um lado, Josefina Massango, Adelino Branquinho e Lucrécia Paco. Por outro, Dadivo José, Horácio Guiamba, Violeta Mbilana e Fernando Macamo. Em outros contextos, dois desses actores já fazem um espectáulo teatral credível. Mas, em KaMutxukêti, Vítor Gonçalves e Maria Atália conseguiram respeitar a longevidade artística dos actores há muitos anos consagrados e a pujante ascensão dos actores que actualmente contribuem para vivacidade de um teatro moçambicano que apenas peca pela quantidade de espectáculos.

Outro aspecto a considerar e que merece atenção é a trilha sonora na responsabilidade de Lenna Bahule, o figurino e a cenografia de Sara Machado e a iluminação de Francisco Baloi. Esse trio faz d’A amarrada chuva de KaMutxukêti uma experiência capaz, de facto, de transportar o público para uma excelente viagem de ida e volta só ao preço de 300 meticais.

 

Os motores de KaMutxukêti

A qualidade estética de A amarrada chuva de KaMutxukêti, claro está, deve-se à totalidade dos elementos integrados. Talvez não seja uma peça para ver com a sogra, há ali umas cenas que podem chocar os mais conservadores; talvez aja alguns aspecos a melhorar, há ali umas duas actrizes com o ar demasiado adolescente para certas cenas sensuais. Em todo o caso, sempre se vêem actores que se notabilizaram de forma particular. Por exemplo:

Lucrécia Paco

Já não tem nada a provar a ninguém. Durante anos, foi a diva do Mutumbela Gogo e ajudou a tornar o Teatro Avenida um lugar sagrado. Por motivos pessoais, desapareceu dos palcos por algum tempo e encontrou na encenação a possibilidade de continuar a expressar-se. Mas em A amarrada chuva de KaMutxukêti, esta sexta-feira, Lucrécia Paco foi brutal. Como se estivesse no início da carreira e ainda precisasse de conquistar o seu lugar, a actriz imprimiu na sua personagem uma performance muito além da sua própria média de actuação. Lucrécia Paco voltou e, no regresso, trouxe aquela qualidade de outros tempos.

Na peça, Lucrécia Paco interpreta o papel de Mayothase, uma das três mulheres do rei Baba Hosi. É a rainha mais bela, mais vaidosa e menos preocupada com o sofrimento do povo. Para ela, basta a atenção de Baba Hosi e o bem-estar da família, mesmo que isso faça sofrer os mutxuketenses. Ao contrário da rainha mais velha, Maripodina (Josefina Massango), o papel de Mayothase é mais rigoroso porque exige reacções diferentes em cada circunstância. Num momento, Mayothase é uma ardilosa víbora. Noutro, é uma mulher dócil para o seu rei. Quer isto dizer que o papel exige pelo menos duas personalidades para a mesma personagem. Nos dois casos, Lucrécia Paco aparece no seu melhor, com detalhes nos gestos, no olhar, no riso, nos gritos e nos movimentos. Que saudade, Lucrécia!

 

Violeta Mbilana

Em KaMutxukêti, Violeta Mbilana interpreta o papel de Dalena, a outra mulher de Baba Hosi. Se Maripodina é a mais esclarecida e ponderada e Mayothase a mais expansiva, Dalena é o meio-termo entre as três rainhas. Ama o rei com vigor e deseja-o permanentemente. Ao rei é submissa, mas irrequieta às estravagâncias de Mayothase. Portanto, esse também é um papel com variações. Todavia, Violeta Mbilana, essa actriz que até pouco tempo era desconhecida, mostrou-se à altura de contracenar com Josefina Massango, Adelino Branquinho e Lucrécia Paco.

Em Chovem amores na Rua do Matador, Violeta Mbilana já se tinha apresentado em grande nível. Mas em A amarrada chuva de KaMutxukêti a actriz é imperial, representando uma geração de mulheres moçambicanas que no teatro sabem muito bem o que fazem. Numa palavra, Violeta Mbilana, essa mulher cheia de cor, foi natural. É uma actriz a sério, inquieta, com o teatro nas veias. A maneira como a sua personagem afronta as outras rainhas e submete-se ao rei no mesmo contexto é realmente convincente. Mbilana parece ter sido inventada para A amarrada chuva de KaMutxukêti e a actriz aproveita a oportunidade para se mostrar a um nível elevado. Violeta Mbilana, um nome a reter.

 

Fernando Macamo

Já o tínhamos visto em várias peças teatrais, mas nunca numa super produção. Como se soubesse disso, Fernando Macamo apropriou-se dos seus dois papéis, a de Sigaúque, conselheiro do rei, e a de um curandeiro. Nos dois casos, o actor é categórico e equilibrado. Parte das gargalhadas do público, devem-se às intervenções das duas personagens de Fernando Macamo. A escolha do actor para os dois papéis foi assertiva até do ponto de vista da gestão do número do elenco.

 

Horácio Guiamba

A capacidade interpretativa de Horácio Guiamba é qualquer coisa do outro mundo. É dos poucos actores da nova geração que consegue estar em grande nível em alguns papéis que só Adelino Branquinho interpreta melhor (Branquinho é o topo da pirâmide, mas o seu papel, à semelhança do papel de Josefina Massango, não o permite explodir em KaMutxukêti). Há gestos que nunca estariam num script, mas Horácio Guiamba consegue inventá-los e dá-los sentidos. E não é apenas isso, na pele de Ngovene, um dos emissários do rei que parte à procura da chuva, é a dicção, o semblante, a espontaneidade e a claridade interpretativa que comovem. Como Horácio Guiamba há muito poucos!

 

Dadivo José

O gajo que faz tanta coisa (música, teatro, aulas, Maxaquene e etc.), desta vez, apareceu feito um rei. É como no xadrez, muitas vezes, os reis não têm muita mobilidade. Dão um passo de cada vez. Mas as rainhas de Baba Hosi, sim, essas conseguem movimentar-se para todas as direcções sem que o rei consiga prever as consequências ulteriores. Ainda assim, Dadivo José encarna Baba Hosi com a devida majestade. Dadivo mantém o ar sisudo de um rei, a serenidade e a altivez. Pena que, como diria Maquiavel, os reis mais duradouros são os mais temidos do que amados.

 

No dia 21 de Fevereiro, no seu discurso de estado de nação, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou a suspensão da participação russa no Tratado bilateral com os EUA de Redução de Armas Estratégicas (START III). Pouco tardou para que os media ocidentais começassem a espalhar por todo o mundo mitos sobre alegadas ameaças de armas nucleares russos.

O tratado em questão, assinado com o então líder norte-americano Barack Obama, entrou em vigor a 5 de Fevereiro de 2011 e, na altura, tornou-se símbolo do “reinício” nas relações entre os dois países, abrindo a perspectiva do aprofundamento da parceria russo-norte-americana, laços económicos e rejeição de ameaças mútuas.

O Tratado estabeleceu um limite de 1550 para o número de ogivas nucleares preparadas para uso militar, e de 700 – para veículos de entrega (mísseis balísticos intercontinentais terrestres e marítimos, bem como bombardeiros estratégicos). Os outros Estados detentores de armas nucleares, porém, não foram incluídos: foi sugerido que eles aderissem mais tarde, conforme necessário.

Existia, aliás, uma nuance significativa. Os EUA têm vindo a desenvolver durante décadas a teoria de um ataque global não nuclear por armas convencionais (mísseis de cruzeiro de longo alcance lançados por via aérea), que poderia danificar ou destruir significativamente instalações críticas da infra-estrutura estatal russa. O cálculo foi bempensado: a então Doutrina nuclear nacional impediu a Rússia de ser a primeira a usar o arsenal nuclear e os próprios mísseis de cruzeiro ainda estavam a ser produzidos.

A teoria rapidamente se tornou prática, e as forças armadas dos EUA têm agora o chamado Comando de Ataque Global das Forças Aéreas (AFGSC), que em praticamente qualquer altura e num instante pode lançar quase mil mísseis de cruzeiro contra instalações críticas em qualquer território ao seu alcance. Contudo, ninguém se preocupou com isto até agora!

Para mitigar os riscos, a Rússia corrigiu a sua Doutrina, eliminando a cláusula de não utilização e deixando os “parceiros” saberem que um ataque de retaliação poderia ser nuclear. No entanto, isto não levou a grandes mudanças na política da Casa Branca – especialmente no que diz respeito à expansão da OTAN para leste.

Um factor sério de desestabilização da segurança é a presença de armas nucleares nos países da aliança da OTAN – tanto nacionais como americanos – posicionadas na Europa. O arsenal, representado por mísseis balísticos em submarinos movidos a energia nuclear, existe na Grã-Bretanha e em França. E há todos os motivos para acreditar que os códigos para a utilização destes mísseis passam pelas estruturas de comando da NATO e, para ser mais preciso, através do Pentágono. Só o Presidente dos Estados Unidos pode ordenar a utilização de armas nucleares. Trata-se de várias centenas de ogivas nucleares. Além disso, os EUA mantêm as suas bombas nucleares aéreas (cerca de 200 peças) no território da Bélgica, Itália, Holanda, Turquia, Alemanha e, de acordo com as estimativas, na Roménia. Os pilotos da aviação táctica destes Estados são treinados para utilizá-las, o que contradiz categoricamente as normas de não-proliferação de armas nucleares e prova o facto de os EUA violarem os princípios dos tratados.

Assim, passado pouco tempo depois da celebração do Tratado, confirmaram-se as preocupações russas que ninguém no Ocidente tinha levado a sério. Todos os acordos e risos com os políticos russos serviram como uma cortina de fumo para expandir as fronteiras do bloco militar OTAN fora da zona euro-atlântica, projectando os seus interesses militares a outras zonas do mundo. A recente criação do bloco militar AUKUS (Austrália, Reino Unido e EUA) com a ideia da construção conjunta de várias submarinas nucleares representa mais um desafio para a segurança regional e global.

O preâmbulo do Tratado afirma que a confiança e o respeito mútuos devem ser a base das relações entre os países signatários. No entanto, Washington minou tudo isto com as suas acções nas proximidades da Eurásia e chama agora abertamente a Rússia de inimiga, mostrando a sua relutância em trabalhar com Moscovo.

Nas actuais circunstâncias, não é possível manter um equilíbrio acordado, seguindo as disposições do Tratado. Ao mesmo tempo, Moscovo vê-se comprometido com os limites quantitativos do START. A Rússia não entende retirar-se do tratado, a decisão de o suspender pode ser invertida – mas para isso, Washington deve mostrar vontade política e fazer um esforço de boa-fé na desescalada geral. A Rússia não abandonou o controle de armas, mas foram os EUA junto com os seus satélites da OTAN que declararam uma guerra híbrida total contra a Rússia e está a apostar abertamente numa ilusória “derrota estratégica” dela.

À medida que o Ocidente continua a elevar a parada, cresce o perigo representado pelo potencial nuclear conjunto dos países da OTAN (EUA, Reino Unido e França) virado contra a Rússia, com consequências inevitáveis para o resto do mundo.

Um outro factor desestabilizador na agenda nuclear actual silenciado nos media ocidentais é o facto de os EUA ainda não terem ratificado o Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares (CTBT), impedindo assim a sua entrada em vigor. Ao mesmo tempo, é bem sabido que, uma vez que os americanos estão a desenvolver novos tipos de ogivas nucleares, Washington está a considerar seriamente a possibilidade de as testar.

Consequentemente, ninguém deve ter quaisquer ilusões perniciosas de que a paridade estratégica global poderia ser violada. É por isso que, tendo em conta a ameaça colocada pela Aliança do Atlântico Norte, o Presidente russo considerou necessário estar preparado para testar as armas nucleares russas. Não se trata de ser o primeiro a conduzi-los; contudo, se os EUA efectuarem tais testes, a Rússia responderá.

Os EUA utilizam descaradamente o conceito do seu excepcionalismo autoproclamado com tal chamadas “regras formuladas” que não têm nada a ver com o direito internacional universal da Carta das Nações Unidas. Como membro fundador da ONU, a Rússia vê o seu dever de evitar que algum estado obtenha vantagens unilaterais e levem assim o mundo inteiro à beira da catástrofe nuclear.

Não foi a Rússia quem primeiro levantou a possibilidade de renovar os testes nucleares. Não é culpa da Rússia que o CTBT ainda não tenha entrado em vigor. É inteiramente culpa de Washington e de vários outros Estados que não vêem necessidade de assinar ou ratificar o CTBT. Está fora de questão a retirada da Rússia do CTBT ou o reinício dos ensaios nucleares. A declaração do Presidente Putin é apenas um sinal de que se Washington ousar, não ficará sem resposta, os americanos não receberão vantagens unilaterais, abrindo assim uma “caixa de Pandora”.

No meio dos gritos sobre uma inventada ameaça nuclear russa, não seria de supérfluo lembrar que o único país na história que até o momento usou bombas atómicas (contra cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945) foram os EUA, enquanto não havia qualquer necessidade militar. Este acto de mera vontade unilateral levou a vida de várias centenas de milhares de civis e deixou um dano irreparável para o ambiente. Resta esperar que se lembrem disto aqueles que estão a fazer malabarismo com as hipóteses de uso possível das armas nucleares na presente situação internacional.

 

 

Por Alexander Súrikov,

Embaixador da Rússia em Moçambique

XICUEMBO

 

eu bebeu suruma

dos teus ólho Ana Maria

eu bebeu suruma

e ficou mesmo maluco

 

agora eu quere dormir quere comer

mas não pode mais dormir

mas não pode mais comer

 

suruma dos teus ólho Ana Maria

matou socego no meu coração

oh matou socego no meu coração

 

eu bebeu suruma oh suruma suruma

dos teus ólho Ana Maria

com meu todo vontade

com meu todo coração

 

e agora Ana Maria minhamor

eu não pode mais viver

eu não pode mais saber

que meu Ana Maria minha amor

é mulher de todo gente

é mulher de todo gente

todo gente todo gente

 

menos meu minha amor

 

Rui Nogar

 

 

O Poeta Rui Nogar, um dos mais insignes nomes da poesia moçambicana, pseudónimo de Francisco Rui Moniz Barreto, nascido em Maputo a 2 de Fevereiro de 1932, morreu, aos 61 anos, a 11 de Março de 1993, em Lisboa, passam hoje 30 anos. Quase sempre esquecido, como estão esquecidos uma data de nomes e figuras importantes da nossa cultura, esta é uma daquelas personagens literárias por quem cultivo, sem tréguas, uma admiração reverencial, o que proclamo aqui sem nenhum rebuço. A minha geração muito lhe deve. Para além da circunstância de ter sido o primeiro secretário geral da AEMO e de ali ter albergado uma geração intrépida de escritores da nova geração, como seria a nossa, ele foi um dos mais exemplares escritores moçambicanos.

Numa vetusta entrevista a Luís Bernardo Honwana, que realizei quando intentava a busca da memória literária e cultural do nosso país, fiz algumas perguntas veementes, que se justificavam pela minha entusiasmada e impetuosa juventude. Duas delas: “Considera que há grandes poetas hoje em Moçambique?” A resposta do celebrado autor de “Nós Matámos o Cão Tinhoso” foi indubitável: “Sim”. A minha questão ulterior: “Quem são os grandes poetas moçambicanos?” Luís Bernardo Honwana seria assertivo: “Não gosto de citar nomes, mas há nomes óbvios: Craveirinha, Noémia, Rui Nogar”. Estávamos em 1990.

Continuo a concordar com Luís Bernardo Honwana, ele próprio um nome estelar da nossa literatura. Tenho para mim que o Rui Nogar foi um extraordinário poeta. Leia-se o seu livro “Silêncio Escancarado”, leia-se o seu belíssimo poema “Nove Hora(que seria levado à cena pelo Mutumbela Gogo), leiam-se os seus poemas dispersos, entre os quais o aclamado “Xicuembo”, que encima esta prosa. Há ali uma sintaxe própria, há ali uma gramática pessoalíssima e há ali uma construção poética que denuncia, por assim dizer, um homem apaixonado pelos homens do seu tempo, um homem com causas, um homem com uma ética que faz da condição humana a matéria prima da sua poesia e da sua vida.

A vida difícil, o sofrido quotidiano, as desigualdades sociais e as iniquidades do sistema colonial, que ele abominava e contra as quais lutou acirrada e tenazmente sempre, fazem o lastro da sua escrita, da sua poesia, dos seus gestos, quase sempre arrojados, do seu grito visceral e da sua revolta enérgica. Cumpriu uma dura penitência na Cadeia da Machava, onde escreveu alguns dos seus mais emblemáticos poemas. Ali, também, denunciou o “silêncio”, que era, no fundo, a ausência de humanidade: “tratávamos o silêncio por tu / dormíamos na mesma cama / acordávamos do mesmo sono” – escreve em “Da fruição do silêncio”, um dos seus mais belos e pungentes poemas: “era o silêncio devorando o silêncio / era o silêncio copulando o silêncio / era o silêncio assassinando o silêncio”.

Ali “na líbida cegueira da avidez láctea” (note-se-lhe este verso extraordinário!), “um farrapo de música nos basta / para remendar / esta longa  longa solidão”. No mesmo lugar “do silêncio às palavras”: “a vigília obrigatória / dos que se obrigam a vigiar-nos” e onde “o rastilho da razão / e a pólvora da ciência / nas celas da ignorância // e o escorpião do medo”. Ali mesmo, naquele lugar, “estes pirilampos de esperança”.

Da “Mensagem da Machava” avultam estes versos: “tudo ganhou novos ângulos  novas luzes / é mais volátil   é mais livre   o voo das aves // (…) o amor é tão fácil como o sorriso das crianças / o amor é tão puro como o sémen das chamas /(…) e apesar das grades  dos cães-polícias / sinto-me cada vez mais perto de vós”. Ou do poema “Pavilhão 7 Cela 20”: “à noite as almofadas / são mais duras e desconexas / o colchão regurgita / famintas maçarocas / mordendo-nos o sono / e a crosta dos pensamentos” (…) “e mosquitos minuto a minuto / mergulhando céleres / suas adagas no cerne da nossa angústia / despertam-nos o cosmos da impaciência”. Ou ainda do poema “As palavras dantigamente”: “as palavras / e sobretudo o silício do silêncio / dilacerando-nos as fontes de inspiração”. Isto é de um grande poeta. Isto é extraordinário.

Rui Nogar foi sobretudo um audacioso nacionalista. Era um poeta engajado. Isto não lhe diminuía, informava o alto sentido moral da sua existência e da sua práxis. Não estava interessado na sua imortalidade literária. Tinha assumido um combate, um combate feroz e fazia disso o viático da sua jornada. Era um homem indignado – um inconformado. Conhecia a tremenda realidade social para além da “fronteira do asfalto” (Luandino Vieira dixit). Era mítica a sua incursão pelos labirintos dos subúrbios ditos laurentinos. Glosando Craveirinha: Nogar não ia visitar os subúrbios, o Nogar era de lá, aquele era o seu mundo. Era, também, por isso, arreigadamente moçambicano.

A sua poesia não é apenas uma poesia de denúncia. Não é apenas uma poesia de protesto. É também, ou sobretudo, uma poesia que inventa a moçambicanidade, uma poesia de afirmação, de afirmação nacionalista, uma poesia que institui uma pátria, a nossa pátria – pátria moçambicana, muitas vezes aviltada nos dias de hoje. Há quem lhe aponte um tom panfletário nos seus poemas, principalmente os mais afeitos à recitação. Isso não me inibe de lhe extrair belas imagens, soberbas metáforas, um universo vocabular que enuncia um grande exegeta. Um esteta comprometido com os homens e as causas do seu tempo. Um dos maiores intérpretes da moçambicanidade.

Rui Nogar foi também um grande declamador. Aliás, um mítico declamador, que ousava desafiar as autoridades coloniais, ou os seus biltres, nos saraus, dizendo, provocatoriamente, poemas que denunciavam a situação. Fê-lo diante de pides disfarçados, numa Associação Africana apinhada de gente, com o poema de Carlos Maria (“Balada dos homens da caça”) que tinha como estribilho: “Venham todos os homens da caça / Venham todos / Tragam as azagaias”. Fê-lo apontando para os pulhas que estavam na primeira fila.

Seria preso nessa madrugada. Outros que recolheram aos calaboiços: José Craveirinha, Cacilda Reis, Luís Polanah. O tristemente célebre Roquete, safardana de má memória, torcionário de serviço, seria assertivo ao interrogá-lo: “Por que é que você anda com pretos?”

Rui Nogar pertenceu à 4ª Região Político-Militar da FRELIMO e teve um papel importante na luta clandestina. Uma das casas onde se reuniam era a casa de Armando Pedro Muiuiane. Numa das rusgas da Pide, em 1964, foram todos presos. Adrião Rodrigues, Santa Rita e Almeida Santos advogam a favor dos presos nacionalistas. Rui Baltazar não pôde defendê-los. Estava identificado com um dos reclusos: Albino Maeche. Foi impedido de o fazer. Os presos são ilibados, mas não foi por muito tempo. O julgamento seria repetido. A sentença viria firme de Lisboa: prisão maior.

Craveirinha, Honwana, Malangatana são seus companheiros de prisão. O “Silêncio Escancarado” é, seguramente, um testamento literário que escrutina esses tempos ominosos. Craveirinha fá-lo-á em “Cela 1”. Existe, aliás, uma correspondência mítica entre Luís Bernardo Honwana e José Craveirinha na prisão. Malangatana pintará, dessa dura experiência, os seus duendes, os seus demónios e as suas figuras fantasmagóricas.

Nos tempos ulteriores à Independência, Rui Nogar desempenhará os cargos de Director Nacional de Cultura e Director do Museu da Revolução, será deputado da Assembleia da República. Poeta consagrado, a edição da sua obra ocorre em 1982, num contexto de liberdade, na célebre colecção Autores Moçambicanos, do INLD. Será o primeiro secretário-geral da AEMO. Não escapou, porém, aos esbirros da revolução. Irá para Nampula cumprir uma ignominiosa reeducação. Muitos intelectuais sofreram essas purgas, os chamados excessos no jargão da política. Foi o paradoxo, a contradição, a ironia. Não senti acrimónia no Rui apesar disso. Como não sentira no Albino Magaia, que esteve no chamado Gulag moçambicano.

Em 1990 também o entrevistei e ele disse-me o seguinte: “Não me interessa que seja ou não considerado poeta. O que me interessa é que eu seja considerado homem que se preocupa com os outros homens da sua época”. Vi e vejo nesta afirmação a sua estatura moral e ética, a sua grandeza e nobreza. Aliás, recordo-me de muitas discussões que tínhamos, das nossas discordâncias amigáveis, calorosas sem serem necessariamente acerbas, sobretudo porque nós os mais novos não nos incumbíamos dos ditames da revolução. Antes pelo contrário. Estávamos, muitas vezes, nos seus antípodas. Estávamos sublevados.

O Rui dizia-me, entre outras coisas: se tivesse que escolher entre escrever sobre a flor e a luta ele daria primazia à luta. Dizia-o com a sua proverbial candura e não cerceava o nosso espaço de liberdade criativa e de crítica. Antes pelo contrário. Tinha abertura para o contraditório e levava o ideário da liberdade até às últimas consequências. Homem livre, não obstruía a liberdade dos outros. Não se ofendia com a objecção dos mais jovens, convivia bem com a nossa contradita, que era por vezes ácida. Politicamente afirmado, ideologicamente marcado, socialista intransigente, amava sobretudo a liberdade. Esta era também uma ética, a sua ética.

Hoje é deslembrado. Ao longo dos anos tem sido aludido em versos de poetas amigos que vão de José Craveirinha a Luís Carlos Patraquim. Mas não o lemos.  “Ninguém liga peva aos poetas”, proclamava Eduardo White, um dos mais insurrectos da minha geração. Hoje muito menos. Tenho-me lembrado do Rui, amiúde. Por vezes, faço-lhe uma vênia na sua campa no Cemitério de Lhanguene e deixo-lhe uma rosa branca. Foi um amigo muito querido e tenho dele avultadas lembranças. No dia em que passam 30 anos sobre a data sua morte, quero aqui honrá-lo. Não cometo expectativas quanto à Pátria. Sei que nada farão para o homenagear. Assim são os nossos pressurosos intendentes, vivem solícita desmemória, são obstinados no esquecimento. Mas cabe a alguns de nós o ofício da memória. Aqui está um dos nossos grandes poetas. Um dos fundadores e esteios da nossa nacionalidade. Um homem probo, um excelente tribuno, um amigo e um camarada de ofício de saudosa memória.

 

RETRATO

 

mais do que poetas

hoje

somos sim guerrilheiros

com poemas emboscados

por entre a selva de sentimentos

em que nos vamos libertando

em cada palavra percutida

 

hoje

nós

em moçambique

 

1969

 

Rui Nogar

 

Kampfumo, 11 de Março de 2023

 

 

Há professores que marcam alunos e há alunos que marcam professores. Edson da Luz, isto é, Azagaia marcou-me. Olhando para trás recordo-me dele enquanto meu aluno da disciplina de Cultura Moçambicana, que leccionei numa Universidade em Maputo.

Era desafiada a preparar as matérias ao pormenor e com muita atenção à cada palavra que fosse dizer naquelas aulas, nas quais os temas eram variados. E recordo-me que, aquelas nas quais falavamos sobre cidadania, identidades, religião, desmantelamento de preconceito-superioridade cultural, estereótipos e sobre nacionalidades; eram as que mais questionavam Edson da Luz.

Discutimos amiúde que a “inferioridade” cultural e racial dos africanos tinha sido uma “intrujice”, para tornar possível a dominação colonial. Que tendo sido “África o berço da humanidade”, ainda havia muito o que explorar e perceber sobre o seu “atraso”, até porque, o progresso industrial ou a Revolução industrial não pode ser a única explicação para esse “atraso”. A tónica “conclusiva” sobre as nossas discussões era a de que, cientificamente, não existe uma forma para provar a superioridade ou a inferioridade cultural de seja que povo for, porque todos passam pelos mesmos estágios.

Edson, lia outros livros, para além dos recomendados nos planos de aulas, para perceber melhor aquelas matérias que tocam a questão da cidadania. Lia muito, também, sobre a escravatura. Disse-mo. Lembro-me de ele referir que um tio o influenciava em algumas leituras à respeito, emprestando-lhe livros. Chegamos a combinar um empréstimo desses livros, mas isso não aconteceu, porque nem eu nem ele sabemos onde foi que os tais livros foram parar. Cogitamos comprar alguns para os discutir, mas a pressa em que vivíamos, fez-nos deixar esse desejo no ar. Houve muitas leituras adiadas.

Olho para trás, com nostalgia, e questionando-me sobre o por quê de não termos mais horas de oficina com os nossos alunos e sobre o por quê de não podermos dar mais tempo, para além das aulas a escutá-los e a contribuir para o melhor da sua transformação – fora do período lectivo… Nunca temos tempo e vivemos a correr. Nos corredores, quando nos interpelam, estamos sempre apressados, respondemos às metades.

Olho para trás e me recordo que, terminava as minhas aulas sobre Cultura Moçambicana dizendo que aceitava tomar um café com os alunos que ainda tivessem alguma coisa para perguntar, mas poucos eram os alunos que iam ter ao café. Esquivavam-se ao debate de ideias. Além disso, também eles vivem a correr. Entretanto, tinha a alegria de, de vez em quando, por messenger do Facebook conversar com Edson da Luz sobre a sua escrita, a sua música e sobre a sua actuação enquanto activista social. Chegou a dizer-me que os temas daquela cadeira eram úteis para o seu processo criativo.

No início ele nem se assumia activista. Sentia-se cantor, apenas, rapper e dizia sempre que o alegrava saber que mesmo os que não gostavam de rap ouviam-no e davam-lhe alguma atenção. Para ele, isso era suficiente e a questão sobre o activismo eram outros quinhentos.

Edson era um aluno implicado, questionador, embora vivesse “na sua”. São assim os poetas. Muitas vezes parecem estar à leste do movimento das massas, mas estão com elas, na verdade. Edson era ruidoso no que perguntava, no que questionava e  no que cantava. Sabemo-lo todos.

O convite de Lurdes Macedo, para participarmos no livro organizado por Tirso Sitoi e Paula Guerra, deu-me muita alegria, embora eu estivesse relutante em participar. Encontrava-me num momento de actividade intensa na escrita, mas a força de Lurdes e de Eduardo Lichuge, um outro co-autor da matéria, são o que hoje constituirá bálsamo para a minha alma.  Com eles trabalhei numa pesquisa e escrevemos o texto intitulado: “Eu sou um cidadão, brada”. O Rap como forma de artivismo em Moçambique?, que teve a primazia de ser o primeiro capítulo do livro Reinventar o discurso e o palco: o rap, enttre saberes locais e olhares globais, como disse, organizado por Sitoe e Guerra, em 2019, num e-book, com edição da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal.

É um bálsamo com saber a pouco, porque a ausência desse moçambicano me diminiu bastante. Ficam menos fortes, também, as vozes de Emicida, de Gabriel Pensador, de Luaty Beirão, outros que, como ele erguem a voz dos acabrunhados. Edson da Luz era um ser de luz, um aluno que valeu a pena contribuir para a sua transformação científica. Como o referiu o Professor Boaventura de Sousa Santos, Azagaia disse coisas com a música, que as Ciências Sociais não saberiam dizê-lo com melhor propriedade do que ele o fez; ouça-se a sua música ABC do preconceito, para o conferir.

Que ele descanse!

 

 

Boa noite a todos.

Começo esta minha intervenção com uma confissão: nunca estive numa sessão pública como esta na companhia de um engenheiro. Então, quando há umas semanas o meu amigo Celso Muianga convidou-me a apresentar o livro Aqui há ópera?, de Álvaro Carmo Vaz, imediatamente, disse-lhe que não, que não estava à altura de cumprir esse papel de apresentador. Afinal, o que eu poderia dizer sobre o livro de um homem com tanta história, um engenheiro, um professor catedrático e com uma carreira de 50 anos na universidade? Reparem, só o tempo em que Álvaro Carmo Vaz dedicou-se à academia é bem superior à minha idade. Por isso recusei o convite sem hesitação. Mas o Celso, inabalável, insistiu dizendo que já estava tudo combinado com Carmo Vaz e que tinha de ser mesmo eu a apresentar a obra literária. E sendo um bom amigo, o Celso ainda acrescentou:

San José, não te preocupes com nada disso. A pior coisa que te pode acontecer durante a apresentação do livro é meteres água. Se isso acontecer, não te preocupes na mesma, porque água é a especialidade de Álvaro Carmo Vaz.

Bem, se vocês não sabiam, Álvaro Carmo Vaz é engenheiro civil de formação, tendo Hidrologia e Gestão de Recursos Hídricos como área de especialidade. E o Celso continuou com excelentes sugestões, como se pode notar:

O que tens de fazer é ver aí algumas notícias sobre as inundações em Boane e na periferia de Maputo. Se fizeres isso, logo estarás preparado para ler e apresentar o livro do engenheiro Vaz.

Vendo as coisas na perspectiva do Celso, de facto, tudo pareceu-me fácil. Até porque como eu trabalho numa redacção, acompanhar as notícias não seria propriamente algo novo. Então aceitei o convite de apresentar o livro de Álvaro Carmo Vaz, que, para o meu azar, não trata de inundações, de água ou algo do género. Mas, quando me apercebi disso, já era tarde para desfazer o compromisso. Por isso mesmo, cá estou na Fundação Fernando Leite Couto para vos apresentar uma história de amor entre Pedro e Guida, uma história de amor a uma ideia de território, a uma crença e à condição de ser moçambicano. Se alguma coisa correr mal, já sabem, a culpa é do Celso Muianga.

Ora, sendo Aqui há ópera? um conjunto de histórias com Pedro e Guida no centro dos eventos nucleares, na verdade, as duas personagens funcionam como pretexto para nos conduzir a uma viagem ao passado, recuperando-se, com isso, cerca de 60 anos de História referente ao espaço moçambicano. É uma viagem prazerosa, bem estruturada e, às vezes, vertiginosa, pois, nestas “histórias daqui e dali”, conforme assume o nosso autor, o que não faltam são temas graves, porém pertinentes sobre o projecto nação moçambicana.

Aqui há ópera? É um livro com histórias irmanadas. Só não temos aqui um romance porque o autor não quis. Diria, Álvaro Carmo Vaz até desestrutura essa noção dos géneros, talvez, para subverter as teorias literárias. Ao invés de romance, aqui traz narrativas que atravessam o período colonial, a transição para independência e os eventos subsequentes. Na profundidade e no alcance da ficção, os nossos narradores apresentam-nos discursos bem cuidados, convincentes e, lá está, a comprovar que Álvaro Carmo Vaz é um escritor há décadas, embora só nos últimos anos tenha começado a publicar em livro. O seu rigor narrativo, por exemplo, coloca este Aqui há ópera? ao nível e numa relação intertextual com tantos outros bons romances publicados em Moçambique e no estrangeiro. Estou a pensar num Tchova, Tchova, de Eduardo Paixão; Raízes do ódio ou As Raízes do ódio, de Guilherme de Melo; Ku Femba, de João Salva-Rey; Crónica da Rua 503.2 e Museu da Revolução, de João Paulo Borges Coelho; Tornado, de Teresa Noronha; ou A geração da utopia, do escritor angolano Pepetela.

À semelhança desses romances, Aqui há ópera? explora com êxito o registo paisagístico de uma época, de um lugar e de várias circunstâncias. Para os que viveram o período colonial e a seguir a independência nacional, com efeito, aqui encontrarão uma fronteira verdadeiramente ténue entre a realidade e a ficção. Sem soubermos que estas “histórias daqui e dali” são fictícias, somos capazes de julgar serem reais, pela originalidade e verosimilhança. Acrescido a isso, é bom de ler este livro de Carmo Vaz pelo tom engraçado convocado pelas personagens e pelo narrador. Quem tiver a primeira edição do livro, pode comprovar o que digo no primeiro parágrafo da página 21, numa passagem em que a velha Delfina não se farta de inventar argumentos sobre como gostaria de estar arrumada logo a seguir à morte:

A avó Delfina, que nem sequer era muito velha, tinha uma obsessão pelo que lhe aconteceria quando morresse, queria aparecer bem arranjada no caixão. Fartava-se de fazer recomendações à Aurora sobre o que ela devia fazer caso morresse à noite, durante o sono. As recomendações eram particularmente insistentes no que tocava ao vestido que lhe devia vestir, já muito preparado, como é que as mãos deviam ficar cruzadas em atitude piedosa e com o rosário nelas entrelaçado. Semana sim, semana não, lá estava a avó a repetir as instruções à Aurora, que se ria. Até que um dia, a Aurora fartou-se da conversa e respondeu:

– Mã Delfina, ouça. Para não ter de estar sempre a dizer essas coisas sem ter a certeza que não vou esquecer, é melhor fazer o seguinte: à noite, em vez de usar a sua camisa de dormir, use esse vestido, agarre no rosário e cruze as mãos. Assim, se morrer durante o sono, já está preparada como quer, só temos de a meter no caixão.

Durante uns tempos, a avó Delfina desistiu de dar instruções à Aurora.

Bem a calhar, esta passagem reflecte um dos registos narrativos de Álvaro Carmo Vaz: o tom engraçado, importante para tornar o campo da ficção algo igualmente animado. É assim… As personagens de Aqui há ópera? divertem-se e divertem-nos como se calculassem as nossas as reacções. Na seguinte passagem da página 107, num momento difícil do relacionamento, em que Pedro escolhe ficar em Moçambique para acompanhar e contribuir para a independência nacional do país, Guida prefere ir-se embora para Portugal. Quando lá chega, tem de explicar aos pais que as coisas não vão nada bem na relação com o namorado:

– O Pedro queria que eu fosse viver em Lourenço Marques, disse que Moçambique ia ser um país maravilhoso, que daqui a uns anos saíamos juntos para doutoramento. Mas ele está com a cabeça tão virada que, se a Frelimo achar que é melhor ele ir cultivar batatas num cu de Judas qualquer, ele deixa de dar aulas e a investigação na universidade, abana a cauda, todo contente, e vai plantar batatas.

Na escrita de Álvaro Carmo Vaz, o tom hilariante ajuda desmanchar alguma previsibilidade no acto de ler. O leitor, regulamente, nunca sabe de todo o que lhe espera. Pelo contrário, os ciclos do enredo tanto nos conduzem a uma direcção auspiciosa quanto nos podem meter em episódios dramáticos. Tudo é feito ao pormenor, com rigor técnico e discursivo como se exige a uma boa narrativa. Carmo Vaz sabe contar, de forma pausada, convincente e até didáctica. Há-de ser por essas qualidades discursivas que o escritor não deixa escapar nada relevante à fundamentação narrativa. Quando usa um verso, uma expressão invulgar, um título ou um substantivo particular sem possibilidade de ser esclarecido no texto, o nosso autor leva-nos à secção das notas, onde crescemos e aprendemos.

Álvaro Carmo Vaz é um mestre da descrição: do tempo, do espaço, enquanto categoria narrativa ou ponto de referência concreta, das circunstâncias sociopolíticas ou das personagens. Aliás, em Aqui há ópera? os narradores não introduzem uma nova personagem sem darem atenção à descrição. Vejamos, por exemplo, o segundo período da página 69:

Lena era vistosa, tinha o cabelo negro de azeviche, cortado curto à moda dos rapazes, corpo atraente, tinha a tez morena, daquele bronze dourado que algumas raparigas adquiriam após férias na praia e que nela era natural.

Conforme revela a passagem, a descrição da personagem faz parte do processo literário do autor de que muito depende uma narrativa envolvente e comovente. Em alguns casos, a narração também é interventiva e crítica. Afinal, contar também é pensar a realidade circundante. Logo, conhecendo o seu país como ninguém, Álvaro Carmo Vaz leva à sua ficção situações, para quem vive em Moçambique, infelizmente, normalizadas. A seguir, leio-vos uma passagem referente a um político burro, tão burro que, ao invés de quatro, tem oito patas. A personagem em causa foi confiada a uma função importante apenas por ser sobrinho de um antigo combatente de luta armada. O político burro chama-se Anacleto e não sabe tomar nenhuma decisão inteligente sozinho. Já o tio influente chama-se Jonas. Para os que gostam de política, podem abrir a página 237. Os que não gostam, podem abrir a página dois… três… sete.

Logo que terminou o curso, Jonas garantiu a sua colocação como administrador de distrito. E Anacleto começou a aperceber-se dos benefícios da sua posição: mandava, todos lhe faziam vénias e tinha um secretário que era quem, de facto, tratava da papelada e lhe dizia como resolver qualquer problema. Jonas tinha-lhe dito: Preocupa-te em organizar bem a visita de qualquer dirigente superior, cuida em fazer um bom discurso, com os elogios aos dirigentes máximos, tens de garantir que está tudo tranquilo nas localidades. Anacleto cumpria as instruções à risca, a vida corria-lhe bem, ia prosperando, adquirindo a barriga própria de um dirigente de sucesso.

Mas contra a burrice, há poucos argumentos. A certa altura da história, Anacleto comete uns disparates e é afastado do cargo. Nem mais, Anacleto serve de uma clara personificação de vários políticos moçambicanos da actualidade e revela um lado sombrio sobre o sentido político das escolhas que recaem em pessoas, de longe, incapazes de assumir certas funções. Por isso mesmo, quando Anacleto é demitido pelo governador da província, o leitor experimenta um certo alento, gozando a sensação de que a justiça tarda, mas nunca falha. Sol de pouca dura. No fim da história, o narrador goza com a nossa precipitação:

Como terminou a história do Anacleto, perguntam vocês? Pois não muito mal. Passados dois ou três anos, encontrámo-lo como vice-ministro de qualquer coisa. E, se querem a minha opinião, não foi nem melhor nem pior do que os vários que o antecederam ou os que vieram a seguir.

Este excerto sarcástico é fictício, mas serve absolutamente para pensarmos o país e questionarmos o perfil das pessoas que seleccionamos para nos dirigir.

Por fim, neste Aqui há ópera? destaco mais um registo que considero importantíssimo numa narrativa: excelentes diálogos. Quando lemos o livro, abraçamos a percepção de que o autor deve ter extraído os diálogos das personagens entre nós. São credíveis, regulares e consistentes. Independentemente do momento da narrativa, Álvaro Carmo Vaz consegue colocar as personagens a fazerem da ficção um momento de verdade. Vejam só esta belíssima passagem em que Guida aborrece-se com Pedro, já casados, por este ter inventado a ideia de escrever um livro de memórias sem a ter informado. Pior, ao invés dela, ainda prefere pedir ajuda ao filho deles, o Rodi. Guida reage assim à zanga:

– E achaste que o Rodi, aquele cabeça-no-ar, era mais capaz de te ajudar do que eu? Se é assim, não quero saber do teu livro para nada, fizeste segredo, então agora também não estou interessada.

Mas a curiosidade acabou por vencer. Devorou o livro entre uma sexta-feira à noite, que se prolongou pela madrugada adentro, e o fim da tarde de domingo. Quando terminou a leitura, fechou o livro e abraçou Pedro, disse-lhe:

– Por esta, perdoo-te. Gostei muito, emocionei-me ao ler algumas passagens.

Riu-se, deixando Pedro encantado.

– Escusavas de me pôr a chorar tantas vezes, podias ter tapado a verdade com o manto diáfano da fantasia, como o teu Eça. Mas trataste-me muito bem no livro, continuas míope, pões-me como se eu fosse a oitava maravilha do mundo.

– Escrevi-te como te vejo, só tenho estes olhos.

– Estás-me a dar graxa, Pedro. E o pior é que eu gosto.

Guida deu uma gargalhada e beijou-o.

Um parêntesis. Eu acho o Pedro um sedutor à moda antiga, daquele tempo em que as pessoas da nossa idade, quando gostavam de uma rapariga, escreviam cartas de amor e coisas assim. Não agora em que as relações iniciam quase de forma automática. Basta a miúda ceder o contacto do WhatsApp e pronto. Já está. Pedro é de outra escola e ensina, aos distraídos, como se trata uma mulher.

À parte o parêntesis, o excerto entre Pedro e Guida só confirma o grande escritor que Álvaro Carmo Vaz é. Este nosso escritor tem tanto de discreto quanto de talentoso. Deu-me imenso gozo lê-lo, pois os narradores conseguiram-me transportar do plano onde me encontrava, como ser existencial, para algum lugar, para alguma época e para alguma condição. Estas 367 páginas do livro valem o peso em ouro. Portanto, já a terminar, que esta intervenção vai longa, deixo-vos uma pergunta no ar: Aqui há ópera?

Obrigado pela atenção!

 

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro Aqui há ópera?, de Álvaro Carmo Vaz, no dia 28 de Fevereiro, na Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo.

 

O Ministério da Cultura e Turismo anunciou a realização do XI Festival Nacional da Cultura (FNC). Evento que tinha sido programado para o ano de 2020, na Província de Maputo, porém, devido ao agravamento da pandemia da Covid-19 e no cumprimento do Decreto presidencial nr 11/2020 de 30 de Março, que declara o estado de emergência por razões de calamidade pública em todo o país, o governo decidiu cancelar. Com o alívio das medidas, declaradas pelo decreto 4/2022 de 18 de Fevereiro, o histórico e mais importante evento cultural em Moçambique regressa sob o lema “Cultura a Força que Une a Nação Rumo ao Desenvolvimento”.

Este breve artigo pretende reflectir sobre o lugar ocupado pelo Festival Nacional Da Cultura no contínuo projecto de construção nacional e consolidação da unidade nacional. Adicionalmente, levanta reflexões no âmbito XI FNC, no contexto do actual paradigma cultural moçambicano.

Quando foi realizada a primeira edição do festival, 28/12/1980 – 4/01/1981, o então Festival de Música e Canção Tradicional (FNCMT), tinha um propósito aliado ao período pós-independência que o país vivia e cujo projecto de governação estava centrado na construção do “homem novo”. Neste contexto, o Festival constituía um “esforço do governo para a valorização da nossa própria identidade, da nossa personalidade moçambicana, e também para fazer com que as experiências individuais se tornem experiências coletivas, da comunidade; as experiências regionais, as manifestações culturais regionais se tornem manifestações culturais da nação moçambicana e, por isso mesmo, consolidar a unidade nacional” in Graça Machel (entrevista sobre I FNCMT).

A preocupação pela consolidação da unidade nacional sempre esteve presente no festival, seja por forma do discurso ou pelas mensagens evocadas durante as apresentações. Transformando cada edição numa oportunidade de exaltação da moçambicanidade.

Voltando ao contexto da realização da primeira edição, era evidente a sua centralidade na ideia de construção do “homem novo” como fundamento ideológico para a construção nacional. O homem novo foi imaginado como alguém que rejeitaria de forma consciente as heranças coloniais (especialmente o tribalismo e o obscurantismo) em prol da construção de uma nova sociedade, presumivelmente mais justa e o festival serviu como um dos momentos importante para capitalizar este pensamento nacionalista (Morais, 2022; Macagno 2009). Aliás, os procedimentos para a seleção dos grupos culturais para o festival tinham um viés nacionalista bastante forte, não permitindo nenhuma possibilidade de seleção de expressões/grupos culturais com ligações à cultura ocidental (colonial).

Sobre este assunto, a edição de 30 de Novembro de 1980 do Jornal Notícia explica que em alguns casos, bons artistas foram eliminados porque “apresentaram instrumentos não considerados tradicionais, mas que constituem parte dos mais populares, em algumas regiões do nosso País”. Tal foi o caso que aconteceu na província da Zambézia em que um tocador de acordeão foi afastado das competições provinciais” (Notícias, 30 de novembro de 1980, 1).

Analisando o contexto, podemos encontrar uma razoabilidade nestes critérios. Aliás, a cultura era uma das fórmulas encontradas pelo Governo para somar as diferentes expressões do povo que resultassem na construção da nação moçambicana. Acessar músicas e danças praticadas por diferentes grupos sociais do território permitia que o governo se comunicasse com pessoas de todo o país (Morais, 2022). Ainda assim, há críticos que consideram que a filosofia tradicionalista conjugada com a ideia de construção do homem novo e subsidiada com a célebre frase “Matar a tribo para construir a nação” contribuiu para a fragilidade da nossa cultura.

Não obstante, importa no actual paradigma abrir espaço, sem reserva, para as “novas produções culturais”, aquelas não tão tradicionalistas, mas resultantes da evolução social e tecnológica do País. Formas que podem ser facilmente visualizadas no seio da juventude. Ao incorporar essas novas formas de produção cultural evita-se, sistematicamente, o risco de construção de uma narrativa tradicionalista do Festival Nacional Da Cultura. Ora, a cultura não se faz apenas do tradicional e a construção da nação deve resultar do encontro entre o passado e o presente, da velha e da nova geração.

A XI edição do Festival Nacional Da Cultura surge num contexto de alargado debate sobre a moçambicanidade, a unidade nacional, a identidade e cultura moçambicana e o festival pode ser o grande palco de consolidação destes pressupostos, de demonstração daquilo que nos une como povo e de integração intergeracional. Elementos importantes para o desenvolvimento inclusivo e consolidação da identidade nacional. Aliás, é mais uma oportunidade para reiterar o valor que a cultura teve na luta de libertação nacional, no processo de construção nacional e hoje, enquanto um aliado da coesão social e de desenvolvimento económico.

Pedro da Silva Pinto pode ser definido de várias formas: cantor, compositor, artista multifacetado e etc. É uma voz universal, distinta, que faz da sua vocação uma experiência de viagem sem desejo de regresso. Quiçá por isso, na sua noite de “Cinzas”, título do concerto realizado sexta-feira, no Auditório do Franco-Moçambicano, em Maputo, primeiro, os processos criativos do autor embalaram e conduziram o público a um lugar qualquer, distante o suficiente para não se julgar haver vida além daquele centro cultural.

Bem acompanhado pelos seus amigos artistas, Muzila (voz, saxofone e flauta), Texito Langa (bateria), PIZZAWPINEAPPLES (guitarra e voz), Chris Born (piano) e João Graça (efeitos visuais), Pedro da Silva Pinto provou que uma residência artística de apenas 10 dias, árdua, no Franco, pode resultar num concerto memorável. Pausado. Terno. Imprevisível. A noite de “Cinzas” de Pedro da Silva Pinto foi sobretudo isso: imprevisível, pois, continuamente, desconstruiu ideias, estereótipos e perspectivas. Também por essa razão, os 45 minutos de música ao vivo soaram como uma ode à arte de calar, escutar e sonhar acordado com algumas doses inefáveis de introspecção.

No Auditório do Franco, “Cinzas” foi tudo menos um concerto vulgar. Com os temas interpretados absolutamente irmanados (ainda sem títulos), os artistas apresentaram ao público a música como um acontecimento emocional, despertando nas pessoas a melancolia de que elas paradoxalmente e/ou eventualmente precisam para serem felizes.

Não obstante a sintonia entre os artistas, o suspense sempre no ar a suportar a ideia de que viria mais alguma coisa além do que estava no palco, “Cinzas” foi um acto de fé, de esperança e de aproximação individual; um acto sobre a dor de sentir o que a música transporta nos seus acordes e nas suas possibilidades; um acto de amor ao masoquismo; um acto de tornar as coisas graciosas por via de propostas minimalistas. Ali encontramo-nos com os seres que nos habitam, com a paz e com o que a catarse deve e pode significar.

Longe da música pimba, Pedro da Silva Pinto apresentou no Franco um projecto ao vivo supostamente orgânico. Como se ensaiasse, cantou, tocou piano e viola baixo. Irrequieto. Desconstruindo, igualmente, aquela velha estrutura das bandas, em que o artista geralmente cumpre a mesma função em todo o espectáculo. Com Pedro da Silva Pinto não é assim que funciona. Nem com ele e tão-pouco com Muzila, que, no concerto, também cantou, tocou saxofone e flauta. Tudo a condizer num palco relativamente escuro, pois, assim, os efeitos visuais de João Graça puderam fazer sentido.

Ao estilo/ritmo do jazz, a noite de “Cinzas” de Pedro da Silva Pinto foi essencialmente um concerto para atiçar a arte de sentir com os outros o que move o coração.

 

“Suprima a prostituição, e os desejos sexuais ocasionarão

a instabilidade social” – Santo Agostinho

 

Nada mais agravoso que uma solução frágil para reincidência de crimes hediondos como homicídios contra mulheres e trabalhadoras de sexo que têm ocorrido na Sofala, sobretudo, Beira. A aplicação de medidas ordinárias como reforço de patrulhamento policial em zonas perigosas pouco ajuda a reforçar a segurança duma trabalhadora de sexo que testemunhou cerca de 20 casos de assassinato brutal das suas colegas. A ocorrência massiva destes crimes em pouco tempo visando a um determinado grupo social dá azo a várias interpretações tais como: há um grupo organizado que queira extinguir ou desincentivar a prática da prostituição, usando violência; há um grupo de sádicos que busca satisfazer os seus prazeres, vitimizando prostitutas; ou, talvez, as trabalhadoras de sexo devem estar num estranho ajuste de contas com uma facção criminosa. Estas hipóteses ganham a sua razão de ser, quando as autoridades não chegam a trazer uma explicação sustentável por trás destes assassinatos praticados com a mesma tática – estuprar, agredir e asfixia-las com as suas roupas interior.

Em todo o caso, a certeza é uma só: a protecção das trabalhadoras de sexo na Beira, Sofala, assim como em qualquer canto de Moçambique é deveras precária. Um estudo de 2016 realizado em Moçambique por Aids Fonds em parceria com Hands OFF! revela que 80% das trabalhadoras de sexo foram alvos de violência em 2016, seja ela física, sexual, económica ou emocional. E o mais agravante é que o perpetrador não é somente o cliente, mas também a polícia, o profissional de saúde, a comunidade e entre as próprias prostitutas. Por esta razão factual, o reforço do patrulhamento policial torna-se ineficaz na garantia da segurança e protecção dessas mulheres.

Ademais, o estudo indica que a maioria das trabalhadoras de sexo em Moçambique tem evitado recorrer à polícia em casos de violência, pois das vezes que o fizeram, as autoridades não têm levado a sério as suas queixas e, muitas vezes, culpam-nas pela violência de que foram alvo. Tanto a polícia como profissionais de saúde e a própria comunidade tratam-nas como seres desprezíveis. Em parte, este estigma resulta da ausência de legislação desta actividade. Ou seja, em Moçambique, a prostituição não é legal nem é tida como crime, excepto casos de exploração sexual e lenocínio. A ausência da legislação sobre este assunto, ao invés, de criar uma atmosfera social saudável, somente serve para agravar a condição dos direitos humanos das trabalhadoras de sexo, por uma razão muito simples, a falta de regulamentação de qualquer actividade social que seja sempre gera injustiças em forma de exploração, roubo ou violência.

Para este caso de prostituição, são vários casos de injustiça relatados no estudo de Hands OFF! em que um cliente, depois de ter mantido relações sexuais com a prostituta, recusa-se a pagar-lhe pelo serviço, dizendo que ela é uma puta sem direito nenhum no Estado, por isso, a sua queixa na polícia de nada valeria. Casos em que ora o cliente paga-lhe abaixo do que se havia combinado, ora chega a ameaça-la de morte, ou mesmo força-la a manter relações sexuais desprotegidas, correndo riscos de contrair HIV. Alguns clientes chegam a roubar-lhes todos os seus pertences, abandonando-as em lugares distantes. Fora da relação com os clientes, as trabalhadoras de sexo têm enfrentado descriminação nos hospitais, onde os profissionais de saúde movidos por crenças religiosas ou pessoais chegam a insulta-las ou recusar-se a atende-las. Doutro lado, elas, de vez em quando, têm sofrido a perseguição da polícia que alega comportamentos contra decência e moral pública. E, em troca da sua libertação, muitas são exigidas dinheiro ou prática de relações sexuais não pagas. Nisto, a questão que se coloca é, pelo facto de terem escolhido um caminho vergonhoso aos olhos da sociedade para ganhar a vida, será que elas merecem ser sujeitas à tanta violência e abusos?

A tendência da nossa sociedade conservadora é olhar para prostituição como um mal contemporâneo, resultado da globalização, descuidando, assim, totalmente da história sobre ela. Tampouco se leva em conta que a prostituição é um fenómeno que sempre acompanhou a evolução da humanidade, há mais de mil anos antes de Cristo. A sua relação com a sociedade civil sempre variou entre positivo e negativo, aceitação e desprezo, ao longo de diversas eras e civilizações. Por exemplo, na Grécia Antiga e Roma, a profissão das trabalhadoras de sexo não era tida como desonra, mas sim admirável, sendo regulamentada pelo Estado com deveres de pagamento de imposto. Já na idade de Média, houve fortes tentativas de reprensão de prostitutas movidas pela moral cristã, mas sem sucesso. Mesmo em civilizações árabes onde se condena veementemente a prostituição, ela existe ainda que sob o disfarce de residências designadas Harém. Isto quer dizer que a resistência deste fenómeno para erradicar-se do mundo está ligada intimamente ao instinto sexual dos homens. Enquanto o sexo fizer parte dum conjunto das necessidades secundárias do homem, o negócio de sexo sempre acompanhará a civilizações. E quando se tenta erradicar uma actividade que constitui necessidade do ser humano, o que acontece é que ela provavelmente encontre outros meios clandestinos de ser praticada. Consequentemente, toda a actividade que se exerce à margem da lei acaba produzindo perigos inerentes ao seu estado.

Para o caso de a prostituição ser considerada ilegal, os perigos que nascem são a exploração sexual, escravatura sexual, tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos, violência, doenças e descriminação social. Ou seja, onde a prostituição é considerada ilegal, mas a sua prática clandestina persiste, ocorrem frequentemente casos como violação, roubo e agressões, na medida em que as prostitutas não gozam de nenhuma protecção do Estado, tornando-se totalmente vulneráveis aos clientes que as procuram. Sem assistência jurídica, policial nem médica, as prostitutas poderão continuar a exercer as suas actividades, mas num ambiente de medo e de graves riscos. Então, quando o Estado moçambicano simplesmente descriminaliza a prostituição não significa que esteja a tomar medidas para combate-la ou favorece-la, simplesmente está assumir uma posição de neutralidade para com a actividade. Ou seja, o Estado está a sentenciar que não é crime, mas também não é uma actividade reconhecida como profissão, digna de deveres e direitos. Tal posicionamento abre espaço dentro do Estado para que entidades singulares ou colectivas, formais ou informais, aproveitem-se da ausência da legislação para criarem as suas próprias normais, tentando evitar, pelo menos, a prática de lenocínio considerado crime. E quando são os particulares a regular o exercício da prostituição, o mais provável é que a exploração sexual e violência marquem essa actividade, tal como tem acontecido em Moçambique.

Não obstante elas exercerem uma actividade vista como desonrosa em Moçambique, as prostitutas fazem parte da categoria de cidadãos deste país, sujeitas aos deveres e direitos enquanto cidadãs. E, por isso, um tratamento condigno que inclui a segurança da sua integridade física e mental é-lhes um direito que devem exigir ao Estado. Julgo que não cabe à sociedade o direito de julgar cada uma das trabalhadoras de sexo os motivos que a moveram até a essa indústria sexual. Segundo o estudo da Hands Off!, 100% das prostitutas abraçam essa activadade movidas pela necessidade de ganhar dinheiro para sustentar os seus filhos, apoiar os seus pais, pagar os estudos, melhorar a sua vida, ou sustentar os seus caprichos e vícios. Julgar a razoabilidade desses motivos afigura-se-me uma invasão das liberdades individuais, contando que algumas prostitutas de dia exercem outros trabalhos vistos como dignos pela sociedade, entretanto, a baixa remuneração chega, para algumas trabalhadoras de sexo, a não cobrir as despesas básicas. Ademais, é inconcebível a condenação do trabalho das prostitutas quando ele pauta pelo livre acordo com o cliente. Nenhuma das partes insiste a outra a buscar pelo prazer carnal. Todo o envolvimento é resultado duma negociação.

Discorrendo com brevidade sobre a importância da prostituição na sociedade, ocorre-me a ideia de que o trabalho delas estranhamente auxilia na estabilidade duma relação conjugal, servindo como descarga do prazer ainda que frívolo para o homem nos dias que a sua parceira, por questões biológicas, não pode praticar o acto sexual. Julgo que o risco duma relação instável entre cônjuges é maior quando o homem, no lugar duma prostituta, busca contrair uma relação com uma amante. Ou seja, diferente duma prostituta, cujo envolvimento sexual com o homem é estritamente comercial, uma amante normalmente envolve-se com o homem casado movida pelo afecto e, muitas vezes, pela esperança de formar uma família. Por isso, o amantismo envolve sérios riscos de instabilizar ou causar divórcio aos casados, podendo desencadear, dessa forma, instabilidade familiar e social. A demissexualidade é uma condição rara na espécie masculina.

Todavia, a procura dos homens tanto casados como solteiros pelos serviços de trabalhadoras de sexo envolve riscos de infecção de HIV/Sida. Porém, esses riscos são deveras baixos, porque o cliente, sabendo que se vai relacionar com uma prostituta que por natureza do trabalho dela faz sexo com várias pessoas, ganha cautela de usar métodos preventivos contra HIV como o uso de preservativo. Sabemos que o preservativo não garante infalivelmente a protecção, pois, em algum momento do acto sexual, pode romper-se, mas o risco é bem menor. Entretanto, essa não seria uma razão suficiente para banir-se esta actividade, pois nenhum método seria eficaz para extinguir o trabalho de sexo no seio duma sociedade. De forma clandestina e, no submundo, a prostituição continuaria a ser praticada, pois é uma actividade relativa ao instinto natural do homem. O sexo mostra-se uma necessidade para o ser humano ao nível de roupa, habitação, conforto, ou até mesmo da paz. E, praticada de maneira clandestina, a prostituição pode elevar maior número de riscos tanto para as trabalhadoras como para o cliente e a sociedade em geral, do que quando tornada legal, pois tudo que é feito às escondidas tende a ser desregrado.

Há mais benefícios do que males, quando o trabalho sexual é legalizado e regulamentado pelo Estado. As prostitutas passam a ganhar maior protecção policial e jurídica, na medida em que, em casos de injustiça sofrida, tanto a polícia como o magistrado já têm mecanismos legislativos para melhor entender, mediar diferendos e solucionar crimes. Na área de saúde, as trabalhadoras de sexo teriam mais acesso à assistência médica podendo, por força da lei, ser sujeitas a exames de saúde e obrigadas a tomar todas as medidas necessárias de prevenção contra HIV/Sida sob o risco de perder a sua carteira profissional e, consequentemente, serem proibidas de continuar a exercer tal actividade. Havendo tal controlo estatal sobre a saúde delas, penso que casos de contaminação de HIV reduziriam drasticamente nessa indústria. Regulamentando-se esta actividade, fechar-se-ia, não por completo, o mundo de exploração sexual, pois elas teriam uma base jurídica para reportar casos de prepotência e abuso do poder dos seus eventuais gestores. A legalização da prostituição poderia ser acompanhada da legalização dos bordéis – lugares que seriam determinantes para proibir-se o exercício de prostituição nas ruas das cidades e subúrbios e, por conseguinte, elevar-se-iam a decência e moral públicas. Passando a prostituição ao nível duma profissão, tornar-se-ia justo e necessário que as trabalhadoras de sexo fossem obrigadas a pagar impostos para maior segurança dos seus empregos e o desenvolvimento económico dum país.

Em resumo, tanto a sociedade como a classe de trabalhadoras de sexo saem em vantagem com a legalização da prostituição, pois os casos de HIV, indecência pública, violência física, sexual, emocional e económica, tornar-se-iam menores em comparação com o estado de ilegalidade ou indiferença para com esta actividade tão antiga quanto a prática do comércio. Ademais, o Estado passaria a ter maior vigilância sobre casos de exploração sexual e tráfico de seres humanos. É para sociedade um grande risco ter-se uma prostituta camuflada duma jovem solteira e decente, ao invés duma prostituta que se identifica como tal e assume publicamente o seu trabalho de venda de sexo. Com a primeira, os riscos de contrair DTS são maiores. Com a segunda, só há riscos elevados de DTS, se o cliente e ela consentem. Onde ninguém é enganado, mais seguro e consciente a pessoa se sente.

 

Hélder Tsemba

tsembah@gmail.com

Maputo, 11 de Fevereiro de 2023

“Escrevo em changana porque é uma língua muito rica, uma língua muito bela. Escrevo em changana porque acredito que o plurilinguismo nacional é uma realidade que não nos deve assustar com fantasmas de um tribalismo morribundo”.

                                  Bento Sitoe

 

Não sei se entre nós se atribui alguma importância a uma crónica literária sobre um livro escrito numa das nossas línguas nacionais, neste caso o changana, porque no universo dos leitores considerados atentos, poucos são os que dominam essa língua, subalternizada, como todas as línguas moçambicanas, ao longo dos tempos pela língua portuguesa desde o início do processo de colonização. Apesar deste constragimento aventuro-me a fazer alguns comentários sobre o livro Ndzuthini, da forja de Mabjeca Tingana, o que significa que vou escrever para um público consideravelmente constituido por leitores que desconhecem o changana, mas a crónica terá cumprido a sua missão, o de fazer com que ninguém deva ignorar esta obra  que explora com uma considerável criatividade os aspectos sociais que julga significativos.

Vou escrever não apenas sobre um livro de poemas, mas sobretudo sobre essa figura peculiar que é o Mabjeca. Tal como a sua poesia, ele não poderia ser diferente daquilo que o caracteriza: profundamente irreverente no seu modo de ser, totalmente despretensioso na sua maneira de trajar, definitivamente desencantado na sua leitura sobre as coisas que o rodeiam. Está perfeitamente claro, naquilo que fala, escreve e sugere, que Mabjeca Tingana nos quer abalar. É, se assim o quisermos definir, um perturbador, um provocador, um indiscutível exemplo de alguém que cresceu muito por dentro, e segundo tenho estado a observar nao se preocupa em perder tempo, cada vez mais escasso, em guerrilhas literárias que traduzem os conflitos que nos perseguem,  perdendo o tempo, como diria o saudoso escritor Baptista Bastos, “na volúpia do mesquinho na mesquinhez”.

Ndzuthini significa sombra, lugar de repouso e aconchego ou então esse  lugar de sossego e paz que desesperadamente almejamos nestes tempos em que grassam na nossa sociedade inúmeros conflitos. De modo que Ndzuthini pode ser o país que sonhamos, o homem novo que tentamos construir, a poesia que queremos escrever colocando as palavras certas capazes de modificar o mundo. Não sei se é um lugar onde o poeta Mabjeca Tingana já esteve ou que desejaria, um dia, colocar os seus pés. Se “o sonho comanda a vida” nada impede que o poeta deseje encontrar o almejado mundo novo, diferente desse outro que o seu livro denuncia. Recorro apressadamente a imagem que ilustra o livro: uma frágil cabana de caniço e madeira e zinco quase a tombar sobre si mesma; por que razão Mabjeca a escolheu para ilustrar o seu livro? Talvez para nos sugerir que o aconchego que passamos a vida a procurar também se pode encontrar naquele modesto lugar, nas coisas mais simples. Uma antítese da ostentação que domina as nossas vidas.

Mabjeca escreveu um livro que pelas suas caracteristicas linguísticas se tornou diferente de outros livros. A língua com que se construiram os poemas que nele constam fez com que houvesse esse rebuscar filosófico que sustenta as línguas bantu e torna os seus poemas interessantes. Exactamente por isso, feliz ou infelizmente, ele se influencia a si próprio, foge de um Eugénio de Andrade, um Sangare Okapi ou Armando Artur, torna-se a bússola da sua própria inspiração, a língua changana faz com que Mabjeca Tingana se reebusque permanentemente, que estabeleça as suas fronteiras e defina a largueza do seu voo poético. Não é por mero acaso que o poeta nos diz: “Penso em dar asas às linguas moçambicanas, as vinte e três línguas moçambicanas que temos. Para podermos estar independentes, temos de pensar nas nossas línguas como forma de educação, ao invés de investirmos nas línguas estrangeiras nesse sentido”. Tingana aposta, pois, na literatura como arma para o nosso desenvolvimento, retoma deste modo uma pretensão antiga que Francisco Noa desenvolve no seu incontornável livro Para Além do Túnel quando nos fala sobre “o conjunto de vantagens que o texto literário propicia na aquisição e no desenvolvimento, não só da competência linguística, mas também de outras competências na formação e nas interacções humanas”. A mensagem que Noa nos pretende transmitir é de que além da literatura representar um material autêntico e valioso, concorre para o enriquecimento cultural, envolvimento pessoal e desenvolvimento linguístico, que passa necessariamente pela capacidade de ler, escrever, ouvir e falar fluentemente. E é exactamente esse desiderato que Mabjeca Tingana persegue.

Escrever sobre Ndzhutini é tentar pensar sobre um livro que fala dos nossos tempos com uma frontalidade que pouco se encontra nos nossos escritos mais recentes, alguns deles se perdendo, na minha modesta opinião, em labirintos poéticos de difícil descodificação. Falando de Ndzhutini diria, com alguma convicção, que estamos perante um livro que manifesta um indisfarçável desencanto em relação aos males decorrentes na nossa sociedade. Aos olhos do poeta muitos valores que devem nortear a nossa maneira de estar se desmoronaram. Ou quase isso. Seja como for, Mabjeca Tingana tem a plena consciência que todos nós somos culpados e por conseguinte devemos assumir a responsabilidade de sermos cada vez melhores e nunca esquecer que a Pátria pertence a cada um de nós e não apenas aos “vanyankhadle lavayana”, como diria Tingana, referindo-se a alguns dentre os que gerem a coisa pública e que não se cansam de esvaziar os bolsos dos incautos aprofundando a desgraça colectiva. Por isso o poeta chora:

 

                         Hlohlotelani mfumu

                             Wuhumula akukoxa atimale matikweni

                             Hi vito ra ntsungu

                             Wufaka hi mavabzi, ni ndlala a Musambiki *

                              ………………………………………

*

                                Falem aos que nos governam

                                 Que deixem de fazer empréstimos

                                 Em nome do povo

                                 Que morre de doença e fome em Moçambique.

 

           Perdem os que não serão capazes de ler este livro no seu xi-txangana peculiar, cuja profundidade, sonoridade, riqueza  vocabular e suas expressões idiomáticas escapam a qualquer tradução. Diria, aliás, o estudioso Feliciano Chimbutane, da Universidade Eduardo Mondlane, no seu interessante artigo Desafios da tradução de textos literários das línguas Bantu para o Português, que “Fica claro que traduzir de uma língua para outra é sempre um desafio pois, entre outros aspectos, requer que o tradutor, por um lado, seja fiel ao sentido do texto original, e, por outro, transmita a mensagem veiculada nesse texto tendo em conta a forma e o contexto cultural apropriados na língua alvo”.  E adianta ainda Chimbutane que esse desafio torna-se mais exacerbado quando há uma considerável distância estrutural e cultural entre a língua fonte e a língua alvo. “Este é o caso da relação entre o changana e o português, pese embora a situação secular de contacto e miscigenação entre estas línguas.”

          Numa interessante conversa que Mabjeca Tingana manteve com o ensaista e jornalista José dos Remédios, quanto à necessidade de investir numa edição bilingue, por se entender que há coisas do changana que não se podem traduzir, o poeta Mabjeca mencionou que de facto pensou-se na possibilidade de fazer uma edição bilingue, mas ele afastou essa hipótese. Disse: “Sou investigador de línguas moçambicanas. Faço poesia em changana e traduzo do português para o changana. Então, para mim, não faria muito sentido uma edição bilingue, porque as pessoas iriam apostar em português e não no changana. Assim consigo me libertar melhor, porque eu, quando estou a dormir, não sonho em português, sonho em changana. Changana é uma forma de poder estender aquilo que pretendo, segundo a minha forma de pensar. Nunca escrevo nada em português. Tudo começa em changana e, depois, é traduzido para o português. Mesmo os poemas”. Neste livro Mabjeca Tingana manifesta a sua tristeza por se estar a falar muito pouco ou quase nada as línguas moçambicanas, e assiste-lhe toda a razão, porque uma língua que não se fala obviamente que não se escreve e o que não se escreve acaba morrendo. Poucos são ainda os que sobem nos palanques dos saberes para a promover, cantar e exaltar as línguas nacionais, e os que ainda sobem fazem-no quase de uma forma silenciosa, como se falar das línguas autóctones fosse um pecado, uma blasfémia. O poeta alerta-nos:

 

                             Vasungulile akuyimbelela.

                         Vata ni kuhiphamela marito hi Xiputukezi.

                             Ntumbuluku wa hina wujimiwile. **

                              .…………………………………………………..

                             **

                              Já começaram a cantar

                              Alimentam-nos com palavras em português

                              A nossa tradição está ao avesso.

                       

Falar sobre Ndzhutini é também fazer uma espécie de homenagem a todos aqueles que ao longo dos tempos usaram as línguas autoctones como forma de expressão. Referimo-nos a importantes nomes como os de Porto Manhiça, que desde os primórdios esteve incansável nos seus esforços para fazer vincar a escrita na língua ronga; do reverendo, poeta e declamador Gabriel Macavi, autor do livro “Mwambi wa Vubumabumari”, e um dos participantes na Assembleia Constitutiva da Associação dos Escritores Moçambicanos; do Professor Bento Sitoe, com uma vasta obra na área de Linguística Africana, ou de um Alfredo Chamusso, autor da obra Matsalwa ya Wusungukati  e que com noventa e sete anos de idade, tornou-se, provavelmente, o escritor mais velho de Moçambique. De modo que Ndzhutini e a saudável irreverência poética de Mabjeca Tingana, podem representar mais do que o surgimento de um livro, para chamar atenção a uma forma de escrita insuficientemente divulgada entre nós. Enquanto isso não acontecer as línguas nacionais não passarão duma simples teorização, de pretexto para se desencadear narrativas que continuarão a ser incapazes de dar resposta as exigências de uma situação de comunicação real, de uma necessidade real, como disse o estudioso Albino Chavale no seu artigo “ Texto literário no desenvolvimento da competência de comunicação”.

Um livro, qualquer que seja, deixa sempre expressa alguma mensagem, um recado, uma proposta, uma lição de moral. Um livro, seja qual for, é uma fonte de aprendizagem, é uma espécie de ponte que se atravessa para descobrir o outro lado da vida. O ensinamento maior que o livro Ndzhutini pretende nos transmitir traduz-se nesta feliz expressão de Mabjeca Tingana:

 

                                “Tiva hi kan’we, alirhandzu i ndzhuti.

                                 Aloko kunga na ndzhuti, aku na lirhandzu”,

 

ou seja, “ O amor é a sombra, onde não há sombra não existe amor”. O que significa, definitivamente, que onde não existe amor não pode haver harmonia e sem esta, não há Pátria que se construa ou que possa se sustentar. Sem nenhuma sombra, sem ndzhuti, não existe o lugar onde o poeta se possa sentar, sossegadamente, para escrever toda a poesia.

 

 

 

 

É uma daquelas narrativas cujos actores secundários assumem o protagonismo no lugar dos que realmente deveriam dar a vida à mesma. Deixaram a gota do seu suor em campo, elevaram a bandeira nacional no concerto das nações, ao mesmo tempo que fizeram ecoar o hino nacional.

É, sem dúvidas, um símbolo de patriotismo inalienável e cujos efeitos poderão ser multiplicadores para as futuras gerações. Pela primeira vez, os Mambas “ousaram” atingir os quartos-de-final de uma competição sob égide da Confederação Africana de Futebol (CAF), feito que deveria orgulhar todo o moçambicano do bem e com um coração limpo.

E como resultado dessa façanha, a Federação Moçambicana de Futebol (FMF) viu-se bafejada pela sorte, ao encaixar, nos seus cofres, 400 mil dólares norte-americanos, o equivalente a 25 milhões de Meticais, valor desembolsado pela CAF.

Em face disso, os jogadores, legítimos e verdadeiros obreiros desse feito inédito, exigiram o incremento do prémio de qualificação para os quartos-de-final de 40 mil para 150 mil Meticais. Ora, depois de muitas rondas de negociação, a FMF comprometeu-se a pagar 75 mil Meticais.

Não estando satisfeitos com essa medida, os jogadores chegaram a ameaçar não viajar à cidade de Constantine, local onde deveriam defrontar o Madagáscar. Os Mambas foram ao jogo contra a selecção malgaxe dissecados, visto que a sua preocupação não estava a ser correspondida.

Depois da partida contra o Madagáscar, em que o combinado nacional perdeu por 1-3, terminando a sua epopeica participação na 7ª edição do CHAN, prova destinada aos jogadores que militam nos campeonatos internos, o enredo ganhou outros contornos.

Na hora do regresso, os jogadores recusaram-se a sair do hotel, caso não se resolvesse a sua situação, facto que concorreu para que atrasassem o voo. Face à exigência, a Federação Moçambicana de Futebol, representada pelo vice-presidente para a Área de Administração e Finanças, Jorge Bambo, assinou um termo de compromisso no qual assumia que a FMF pagaria o valor exigido pelos jogadores em Maputo.

Os Mambas chegaram ao país cabisbaixos, com rostos que, em vez de denotarem um sentimento de missão cumprida, eram de preocupação. É que pouco ou nada sabiam sobre a resolução do seu problema em solo pátrio.

Contra todas as expectativas, a Federação Moçambicana de Futebol divulgou, na última sexta-feira, um comunicado no qual, dentre várias medidas, suspendeu cinco jogadores, no caso Isac, Telinho, Kito, Chico e Shaquille, tidos pelo organismo que superintende o futebol moçambicano como “agitadores”.

Ou seja, os cinco jogadores criaram, segundo o comunicado da FMF, um ambiente de crispação no seio da selecção nacional. O assistente de Chiquinho Conde, Eduardo Jumisse, também não escapou à suspensão, na medida em que a federação julga que o mesmo foi também um dos agitadores.

No referido comunicado a FMF diz que “os 23 atletas exteriorizaram um comportamento grosseiro, irresponsável e de chantagem, recusando-se inicialmente a ir a jogo nos quartos-de-final e, posteriormente, a deixar o hotel para iniciar a viagem de regresso a Maputo, no dia 01 de Fevereiro de 2023. Os atletas extravasaram os princípios éticos e de boa conduta desportiva em vigor na FMF, manchando os símbolos da Pátria Amada”.

Pois bem, a FMF teve tempo até de sobra para produzir um comunicado pejado de gongorismo, no lugar de encontrar uma solução para a resolução de diferendo com os jogadores. Não quero aqui discutir a legitimidade da exigência dos atletas ou dar razão aos mesmos, mas também não acho que a atitude da federação seja a mais acertada possível.

No seu estilo característico, a Federação Moçambicana de Futebol encontrou, num universo de 23 jogadores, cinco anti-heróis. Isac, Telinho, Kito, Chico e Shaquille são a rampa que a FMF encontrou para sair desse imbróglio de forma airosa, como, aliás, sempre o fez em situações similares.

Para já, os cincos jogadores vão carregar a cruz de todos os problemas do futebol moçambicano, tão-somente porque, em nome do grupo, deram a cara para reclamarem os seus direitos. Mais uma vez, abstenho-me de discutir a razoabilidade da atitude dos jogadores, pois só eles sentiram na pele o peso de vestir a camisola da selecção nacional e carregarem, nas suas costas, mais de 30 milhões de moçambicanos.

Dirão os arautos da moralidade que o que os jogadores fizeram no CHAN é seu dever, pelo que não merecem nenhum respeito, não somente em valores monetários, mas um pouco de dignidade.

É fácil, sim, para os analistas de teclado e sofá produzir uma opinião numa sala climatizada, crucificando os que, ao sol e à chuva, souberam honrar a camisola de uma nação, num país em que quem tem o poder de redigir comunicados eruditos é quem ganha a razão. Os “anti-heróis”, os quais não têm a possibilidade nem habilidades para produzir comunicados, serão sempre julgados pela história e, acima de tudo, continuarão a ser pessoas “grotescas e infames”, como a FMF os apelida no eloquente comunicado.

A mensagem é clara, os jogadores nunca passarão de autênticos marionetas de uma instituição que só dá valor a si própria. A FMF é a melhor instituição do mundo, quando se escreve num quadro invertido. A nossa inovadora federação nomeou uma “Comissão de Inquérito para, num período de três meses, averiguar os factos e as circunstâncias que ditaram a prática de indisciplina no seio da selecção nacional durante a disputa do campeonato africano”.

Que bonito! Ora, a experiência manda dizer que as comissões de inquérito neste país nunca produziram resultados palpáveis, senão informações difusas e escamoteadas. Neste caso, o resultado do referido inquérito não irá fugir do que a federação já concluiu, que os jogadores tiveram um comportamento grosseiro. Mais uma vez, a culpa vai morrer solteira. Porquê e para quê? Só a FMF sabe!

“Ínfimo gajo desajoelhado no que valho.

Olhado de esguelha pelos desiguais a mim.

Ladino na consciência de saber porquê.

Maningue longe da bíblia imagem de Deus.

 

Engravatado velho dândi antítese de santo.

Várias paixões puras aquém de um simples amor.

Quinquagenário magano de bicho-homem.

Até exímio futebolista quando quis.

 

Demo de muitas progenitoras de filhas graciosas.

Antipatizado por diversos maridos frustrados.

Irmão sincero dos mais fiéis amigos.

Concordando com o Basílio do Eça de Queirós.

 

Assim nesta minha artesanal peça de pau

em que escarafuncho elementar auto-efígie

– mesmo heterodoxo filo-marxista –

se não envergo bem talhado smoking

muito mesmo uso lustrosa libré.”

 

(José Craveirinha)

 

Este poema, intitulado “Auto-efígie”, que encerra uma auto-representação, remete-nos, no título, para a ideia de imagem, figura ou retrato. Comumente uma efígie é uma representação de uma pessoa numa moeda, numa pintura ou escultura. Há, no entanto, outras formas de efígies, como aquelas dos monumentos funerários na Idade Média. A despeito, o que me ateve na leitura deste texto é o acabado exemplo de tudo o que me tem suscitado o amiudado reencontro com a poesia de José Craveirinha. Disse-o algures e aqui reitero: muito do que é o melhor de Craveirinha está nos seus poemas menos conhecidos e naqueles onde não se exaltam os povos nem o destino dos oprimidos, mas nos textos onde fala de si próprio. Este texto, arraigadamente autobiográfico, é flagrante nisso.

José João Craveirinha nasceu a 28 de Maio de 1922 em Maputo e morreu em Joanesburgo a 6 de Fevereiro de 2003 – passam hoje 20 anos. É uma efeméride indeclinável e um pretexto para o ler e, sobretudo, alertar os incautos sobre a sua importância. O país anda demasiado entretido com a questiúncula política e distrai-se do que realmente importa. Referir esta infausta data também serve para incitar que o leiam. Sobretudo os neófitos.

O poema que preludia esta evocação denuncia o grande Craveirinha: o mestre da ironia. O vate sarcástico. Sardônico como poucos. Garboso na forma como se emula a si próprio. Não como constrói o seu auto-retrato, que aqui designa por “auto-efígie”. Mas como erige toda a sua obra poética. Para além de poeta, Craveirinha é um prosador primoroso. Contista e cronista. Também polemista. Jornalista de vulto. Como se tudo isto não bastasse: “Até exímio futebolista quando quis”.

É autor de versos que denunciam uma proficiência raríssima. As suas metáforas são inesperadas. As suas imagens inusuais. Leia-se este poema (“Auto-efígie”) e descobrir-se-á o que há de melhor no estro deste Poeta esplendente. A língua em Craveirinha resplandece, rutila, brilha, lustro que é prerrogativa de poucos. De pouquíssimos, digo.

Tenho convivido, assiduamente, com a sua manufactura poética. Para além do iterativo assombro que experimento, rememoro o amigo que me concedeu a láurea de partilhar a sua intimidade. Por isso, o verso “irmão sincero dos mais fiéis amigos” é-me, igualmente, caro. Senti isso do Zé. Sempre. Ao longo dos anos em que fui visita de casa ou companheiro de viagens e conversas e cumplicidades. Sobretudo quando o escutava. Quando partilhava a sua solidão e o seu desapontamento quotidiano.

Quem o conheceu saberá que ele não tinha um génio fácil. Não era apenas por ser “demo de muitas progenitoras de filhas graciosas” ou porque fosse “antipatizado por diversos maridos frustrados”. Ele próprio tinha os seus desafectos figadais. Era corrosivo quando abominava. Defendia intransigentemente quem amasse. Era mesmo um “irmão sincero dos mais fiéis amigos”. Aliás, num livro póstumo (“O Plebiscito”) há matéria bastante quanto aos seus desamores canónicos.

20 anos depois da sua morte não se pode dizer que ele esteja esquecido. Até porque, não raro, há iniciativas editoriais que intentam o contrário. 2022 foi ano do seu centenário. Pessoalmente não vi nada que merecesse o meu gáudio. Pareceu-me tudo exíguo, acanhado, escasso. Íntimo, particular. Gostaria de o ter visto distribuído, partilhado, universal. Como é a sua voz pujante e ecuménica.

A despeito, duvido que o leiamos como a sua importância reivindica. Creio até que o citamos profusamente, somos capazes de o festejar nas solenidades, de que a nossa gleba é particular e mediocremente jactante, mas não o lemos. Mal o conhecemos. Mal nos revemos na sua grandeza e generosidade.

Quem me conhece, sabe que não pratico, em relação à Pátria, expectativas desavisadas. Nem creio que os regozijos que se adivinhavam naqueles seus 100 anos nos instigassem para além do escasso júbilo privativo. Falta-nos o essencial: ler os nossos poetas. Poderíamos estar mais precatados. Não temos solicitude para a leitura, estudo ou reflexão. Como havemos de ler os nossos poetas? Restam-nos a enxúndia.

Leio-o sempre. E sempre que o alcance rejubilo. Retorno aos seus versos. É uma forma de o lembrar, de o celebrar. O esquecimento é a melhor folia da Pátria.

 

José Craveirinha:

 

“Amarrada

a tiras de trapos

minha geleira a prestações

é uma branca figura de retórica

no centro da cozinha.”

 

“Como único privilégio

os poetas usufruem a própria morte

para viverem ainda mais a sua pátria.”

 

“Não sei se existe Deus.

Mas se Deus existe

Ele está com toda a certeza

a comer comigo esta farinha

no mesmo prato.”

 

“E a vida

a injúrias engolidas em seco.”

 

“No febril conluio dos mútuos poros”

 

“e a gostar dos obséquios a soco inchando-nos o sorriso”

 

(Cela 1)

 

“no feitiço viril da insuperstição das catanas”

 

“e na capulana austral de um céu intangível”

 

“Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes”

 

“Eu tenho uma lírica poesia

nos cinquenta escudos do meu ordenado

que me dão quinze minutos de sinceridade

na cama da mulata que abortou

e pagou à parteira

com o relógio suíço do marinheiro inglês.”

 

“E eu sei poesia

quando levo comigo a pureza

da mulata Margarida

na sua décima quinta blenorragia.”

 

 “De cesarianas

do mar

vieram os pálidos navegantes

com espadas

com espingardas

com missangas

e com bíblias cá ficaram.”

 

(Xigubo)

 

“da rua em comissuras de saibro

plagia o azimute das mamanas”

 

“a cada milímetro do teu descaramento”

 

“no meu coração

em estado de sítio”

 

“Estamos sentados.

E nefelibatas bebemos coca-cola

nas públicas cadeiras da praça.”

 

“na madrugada dos meus olhos pardos”

 

“todos ávidos da evolução técnica mas impúbere

do teu ângulo azul-escuro de anjo na cama

namorados que levam de cada idílio contigo

a cosmopolita recordação das tuas gonorreias”

 

(Karingana ua Karingana)

 

Poderia citar, outrossim, “Tâmaras Azedas de Beirute”: “Toda a minha ternura vai inteira para Beirute”. Ou “Babalaze das Hienas”: “Na cabina do Toyota escavacado / espírito de madjone-jone Justino / fincado ao volante / acelera derradeiros / randes / na estrada / nacional / nº1”, “a gula das quizumbas / se baba nas beiças / das catanas, / dos machados”, “Eméritos felídeos à solta / cometem sumárias obstetrícias / variando cesarianas / à facada”, “pândega das metralhadoras”, “Daqueles sagrados palmares da Boror / água dos lanhos zambezianos / ensaguentam opíparos almoços das Donas / em pantuguélicras indisgestões / de chumbo”, “E das levianas rapsódias de bombas”. Poemas resolutos nestes dias ominosos.

 

Dois livros, apetecia-me dizer dois poemas, de uma virulência verbal, imagética e metafórica. Digo poemas porque a sua homogeneidade parece evidente e inquestionável e cada página acrescenta à composição de um mesmo poema imagens e metáforas. É como se estes poemas fossem um “continuum”. Isso acontece nestes dois livros. Como acontece em “Maria”.

Leio “Cela 1”: “Com um inofensivo alfinete mágico / nós os miseráveis sonhadores moçambicanos / de cerrados maxilares invocamos os desejos / e suspendemos os corações nas janelas / donde a lua e o sol quando entram / entram gradeados”. Leio, digo bem. Esta poesia não se relê. Lê-se sempre. Livro pungente. Livro de uma solidão habitada. Livro de um grande sobressalto poético. Livro de um “prestidigitador emérito”. Livro de amor. Livro indignado. Contra as “injúrias engolidas em seco”. Livro de um poeta irresignado: “Mas se é para me vender / vendo-me mas vendo-me muito caro. // Ao preço incondicional / de quanto me pode custar este poema”.

Poderia citar na íntegra o poema “Metamorfose”: “Nas noites / minha mão escultural / é um pensamento despido. // Em dois anos / meus dedos metamorfoses / de Sofia Loren e Claudia Cardinale / voluptuosamente só traíram / a minha ex-querida Ava Gardner / outro nome que não digo / e minha esposa Maria”.

Octavio Paz definiu, de forma sublime, a poesia: conhecimento, salvação, poder, abandono. Numa expressão feliz chamou-lhe “arte de falar de uma forma superior”. Ou, como muitas vezes é citado, como: “Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário”. A obra poética de José Craveirinha é a expressão cabal da definição de poesia que o grande Poeta mexicano inscreveu na pedra angular do tempo em “O Arco e a Lira”.

Num dos derradeiros poemas de “Karingana ua Karingana”, intitulado “Fraternidade das Palavras”, título e texto que me sugere uma aproximação ao Poeta americano Walt Whitman, José Craveirinha escreve:

 

“E eis que num espasmo

de harmonia como todas as coisas

palavras rongas e algarvias ganguissam

neste satanhoco papel

e recombinam em poema.”

 

Num ensaio intitulado “Algumas considerações em torno da poesia de José Craveirinha”, recolhido no volume inicial das suas sulfurosas “Crónicas dos Anos da Peste”, Eugénio Lisboa, conhecido pela sua viperina língua, quando se refere a este Poeta, tem uma expressão feliz: “uma voz virilmente indignada”. A sua poesia é sobretudo isso. A indignação visceral. Rui Nogar, outro grande Poeta moçambicano, dizia-nos sobre o seu companheiro: “Surge-nos então José Craveirinha e a sua poesia. Ambos radicados numa dolorosa experiência quotidiana”. Nogar sabia do que falava.

No aludido ensaio de Eugénio Lisboa este asseverava: “Há em Craveirinha – é mesmo esta uma sua característica nuclear – este gosto, este gozo sensual, esta posse, direi mesmo: esta alucinação, da palavra. Craveirinha morde a polpa das palavras, tacteia-as amorosamente, fá-las vibrar no poema, encoleriza-as…Craveirinha – por isso é poeta – faz amor com as palavras. Faz amor – é bem o termo: se ele nos choca, ainda bem – o objectivo é esse e não outro”.

A poesia do soberbo Poeta americano Whitman (“Folhas de Relva”) é um hino, um hino à vida, um hino ao amor, um hino à humanidade, um hino à fraternidade. Estes poemas de Craveirinha são sobretudo hinos. Belos hinos, digo. Cito estes versos de “SIA-VUMA”: “E deixem em nós gerar-se / irresistível a prole das sementes do beijo / consanguíneo do Grande Dia. SIA-VUMA!”

Este poema é um daqueles textos que fizeram a fortuna do Poeta. O livro “Xigubo” com poemas como “África”, “Hino à Minha Terra”, “Ode a uma carga perdida num barco incendiado chamado Save”, “Manifesto”, ou a colectânea “Karingana ua Karingana” com “Canto do nosso amor sem fronteira”, “Ode à Teresinha”, “Ao meu belo Pai Ex-emigrante”, “Dó Sustenido por Daíco”, “Hino de louvor a Valentina Tereskova”, “Carta para a Mãe dos meus Filhos”, entre outros, para além de “Sia-Vuma”, estão abundantemente carregados deste tipo de poemas, de grande fôlego, de arrebatamento, desse arroubo, que faz de Craveirinha, essa “voz do povo” e faz com que a sua poesia, como queria Paz, revele o mundo e crie um outro.

Mas também ele é, “língua dos escolhidos” e aqui radica sempre o meu reiterado esforço em mostrá-lo: este Craveirinha menos proclamado, que não o ouvimos nos pregões, nas proclamações ou aclamações, e que se revela nos aforismos, nos poemas menos conhecidos, nos versos líricos – de súbito, inopinadamente, abruptadamente, admiravelmente -, e que, quanto a mim, é o melhor Craveirinha. Aquele, outra vez recorrendo a Octavio Paz, que revela a “palavra do solitário”. Como no poema “Auto-efígie”, aliás. E daí ter usado o mesmo para encimar esta homenagem.

Contudo, por onde começar a ler a sua obra? Pela sua lírica, por vezes pungente? Pelos poemas de grande fôlego como “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”? Pela “voz do povo” ou “pela língua dos escolhidos”? Por onde se começa? Como faz um principiante? Começa por ler um poema como “História de Amor”?

 

“Maria de uma canção de amor

liberta minha solidão secular

a salvo-condutos de ósculos da tua boca

e enquanto minhas mãos procuram tua angústia

e cerras outra vez as pálpebras sombreadas de volúpia

ah, Maria, quantas vezes morremos?”

 

Quem escreve isto é um grande poeta: “e enquanto minhas mãos procuram tua angústia”. Isto é de uma beleza desarmante, de um grande conseguimento. Há muitos exemplos destes na poesia deste grande oficiante da língua.

 

 “Minha tão bela esposa Maria

Cinquentenária jovem isenta de frívolos aniversários.”

 

Isto é de uma extraordinária elegância. Aqui também está o grande Poeta Craveirinha. Do mesmo poema cito:

 

“Minha mais amada por mim dos que as frívolas

raparigas de provocantes fémures desnudos.”

 

Ou ainda:

 

“E com meus defeitos e suas qualidades

compúnhamos o mais incongruente invejado casal perfeito.”

 

Craveirinha – disse-o e repito – é um mestre da ironia, é um mestre da metáfora, é um mestre da imagem. A poesia é sobretudo isso. A imagem, a alegoria, o tropo. Este poema está repleto desse arsenal metafórico ou de imagens alegóricas que fazem dele um grande Poeta. Era importante que o lessem. Há para aí pressurosos versejadores que não leram os Mestres, que não se detiveram no Craveirinha. Seriam mais pudicos e menos ufanos. Poupavam-nos do seu priapismo cibernético pretensamente poético. Perdem muito. Perdem sobretudo o assombro de um verso, como este que encerra o poema “Maria. Salmo Inteiro”, que é um verdadeiro achado: “o mais mudo sotaque do último chão”.

Isto só é permitido aos escolhidos! Aos escolhidos pelos deuses! José Craveirinha é um desses pouquíssimos escolhidos e está na condição de um grande Poeta!

 

SIA-VUMA!

 

Cidade do Cabo, 6 de Fevereiro de 2023

 

Ao arrepio do regulamento de prova por si aprovado, e numa aceleração em contramão capaz de provocar estragos bem maiores que rinocerontes numa loja de porcelanas, a Federação Moçambicana de Basquetebol (FMB) ignorou as irregularidades cometidas pelo Desportivo de Tete ao utilizar sete reforços (da Liga de Chimoio) contra os dois da mesma associação permitidos pela agremiação na primeira jornada do Campeonato Nacional de juniores femininos, em Quelimane.

Acto contínuo, o comité técnico fez vista grossa ao “caso” do Sporting de Quelimane, que, na jornada inaugural, utilizou três atletas provenientes de outras associações provinciais, sendo duas do Desportivo Maputo e outra do Ferroviário da Beira. Tudo no afã de querer ganhar a qualquer custo.

Ou seja, no lugar de recorrer ao regulamento que prevê a aplicação de falta de comparência às equipas com má qualificação de atletas, o órgão reitor do basquetebol moçambicano, que devia ser o guardião da verdade desportiva, assobiou para o lado e deixou passar tamanho e grosseiro atropelo à verdade desportiva.

A mesma Federação Moçambicana de Basquetebol, e depois de a polémica vazar nas incendiárias e interventivas redes sociais, penalizou com derrotas a equipa masculina do Sporting de Quelimane por má qualificação de um atleta com idade acima do limite definido para disputar a prova. Isto, de resto, num caso de falsificação de idades que faz escola no desporto moçambicano. Perante, sem sombra de dúvidas, o olhar impávido das autoridades desportivas e não só. Imprime-se, às catadupas, bilhetes de identidade bem mesmo nas vésperas de provas.

Estamos, pois, perante um cenário de dualidade de critérios. E as questões que não querem calar, claro, são aqui convocadas: porque o comité técnico não teve a mesma mão dura para com o Desportivo de Tete e Sporting de Quelimane? Não gostam do jogo limpo? Advogam o cumprimento escrupuloso das regras por parte de uns e incumprimento por outros? Pura incompetência? Porque, se assim for, até podemos esquecer estes pontos e assim pensar: “perdoem pois não sabem o que fazem”.

E aqui, caros patrícios, a FMB não pode passar paninhos quentes ao emitir um lacónico comunicado no qual refere que a questão das penalizações passa a ter efeito a partir da segunda jornada da prova.

Quer dizer, este “nacional” de basquetebol de juniores masculinos e femininos, eivado de seriedade, tinha dois regulamentos de prova?

É papel e dever da FMB fazer respeitar os regulamentos e a verdade desportiva sob o risco de estas provas ficarem mais descredibilizadas do que já estão e perderem interesse por parte dos clubes. É só olhar para a tragicomédia que foram os “nacionais” de juvenis masculinos e femininos, em Xai-Xai. Quem vai investir, em momentos de orçamento magro, para disputar provas onde a verdade desportiva é uma miragem? O que estamos a transmitir ao empresariado quando apadrinhamos irregularidades?

Há, por outro lado, questões de fundo relacionadas com o que se pretende, de facto, com os campeonatos dos escalões de formação.

Em países mais sérios, objectivamente, estas provas afirmam-se como um espelho para potenciar e exponenciar novos valores, de mais a mais quando estamos num escalão de transição para os seniores. Como é que se pode garantir continuidade e consistência quando improvisamos, em duas semanas, uma equipa formada por atletas de outros pontos do país que somente vão jogar os “nacionais”? É este mesmo o caminho que queremos seguir para produzir atletas de referências? Porque não incentivar quem forma, de facto?

Não estamos a abrir espaço para cortar as pernas de um leque de atletas locais, muitas delas com potencial, que podiam estar a representar a sua província e/ou equipa? Não estamos a dizer, de forma indirecta, aos pais e encarregados de educação que o desporto é uma escola de batota? Que somente vence quem prevarica?

Mais do que olharmos para os 3500 Meticais que vale cada inscrição de atletas, devemos ter a consciência de que ninguém mete dinheiro.

Uma síntese amorosa e (in)suspeita

A narrativa a que Aldino Muianga nos tem habituado inscreve-se no que considero uma tendência estética do idealismo da literatura moçambicana. Se procurássemos um autor que sintetizasse esta tendência, encontraríamos em José Craveirinha, cujo centenário de nascimento celebramos este ano, o seu exemplo acabado. Trata-se de uma tendência que concebe a arte e o artista como entidades comprometidas com uma espécie de melhoramento da sociedade, o que exige do artista uma tomada de posição, que pode ser de natureza politico-ideológica ou cultural, quando não é a síntese de todas estas possibilidades.

A propósito de Aldino Muianga, gostaria de destacar a dimensão cultural e existencial deste idealismo, que faz do artista um incansável revolucionário, um renovador em busca de um bem que se resume na restauração do equilíbrio fundado nos valores da tradição moçambicana e, inclusive, de toda a humanidade. Trata-se, portanto, de um equilíbrio perdido, sobre o qual o autor escreve com foco no nosso presente irónico, ou seja, mirando o nosso desequilíbrio. E não me parece inegável que, para além de ser um facto, o desequilíbrio do nosso destino colectivo tem-se arrastado, insistentemente, despercebido. Ora, é para aqui que são chamados os escritores, para revelarem as enfermidades mortais da nossa época, como diria o poeta Pierre Emmanuel.

A Metamorfose e outros contos não escapa, com efeito, a esse desígnio restaurador. Há nesta obra, e nas outras do mesmo autor – bem como nas de outros narradores moçambicanos –, uma alteridade auto-reflexiva, isto é, um diálogo entre um eu de identidade suspeita, mas revelada nos caracteres das personagens e suas acções, que busca um outro, velado e supostamente perdido e a resgatar na idiossincrasia daquele eu. Esse outro a resgatar é, hoje, o outro da utopia, mas de uma utopia concreta, necessária, urgente. O narrador de Aldino configura-se, portanto, como entidade que, ao narrar histórias, revela-se ou como sujeito múltiplo de memórias, tensões e conflitos, guerras mesmo e pazes, ou constrói personagens com essa condição de entidades ambíguas e ambivalentes.

Em qualquer das hipóteses que acabamos de apresentar, uma análise discursiva à obra haveria de sugerir que, em última instância, quer o narrador, quer as personagens emanam de Aldino e seus conflitos e utopias. Não me vou alongar nesta questão, não é agora o momento. Mas faço a insinuação a pensar que o nosso passado colonial fez dos sujeitos moçambicanos e, por conseguinte, dos artistas que um dia dão à estampa, indivíduos irremediavelmente híbridos culturalmente. De resto, as nossas atitudes ou práticas sociais são, não raras vezes, um sim e um não ao mesmo tempo, geralmente um talvez. Somos uma sociedade de conveniências: para alguns «talvez devêssemos resgatar o melhor do nosso passado», para outros «talvez devêssemos contrui o nosso futuro» ateando fogo à memória, como diria o poeta Andes Chivangue. Enfim, somos mais ou menos assim. Seria justamente por isso que a arte, em Moçambique, poderia ser vista como produto da síntese, amorosa e (in)suspeita, de uma relação entre um sujeito que, no presente da História social, busca definir-se através do resgate de um ente que se encontra aprisionado num passado idealizado e projectado para o futuro. E razões para explicar isto não faltarão: o nosso passado de agressão pode ser uma delas. As guerras criaram sombras de quem somos, sombras que ficaram perdidas num imaginário que, de forma angustiada, os artistas da geração da nossa utopia procuram trazer à luz. Não causa espanto, portanto, que esta narrativa de resgate nos seja dada a conhecer de modo invertido, a partir do que Francisco Noa designa «desagregação do sentido de pertença a um determinado território.»[2]

A desagregação dos territórios

Esta desagregação dos territórios é, portanto, irónica na obra de Aldino, mesmo se considerarmos que a sua prosa é rica em descrições paisagísticas ou em personagens pitorescas, que procuram justamente ancorar o nosso imaginário colectivo. De facto, o espaço preferencial desta estética tem sido, na obra do autor, o subúrbio. Aqui pululam essas personagens modelares, que estruturam os ambientes ricos de tensões e conflitos vários, quantas vezes hilariantes. É, efectivamente, no ambiente suburbano que se inscrevem as narrativas de desagregação. Mas não só, Aldino inscreve essa gramática levando-nos a passear também entre o subúrbio e a cidade, entre o centro e a periferia. De uma forma geral, trata-se de uma estrutura narrativa em que, no início das histórias, o mundo é marcado pela estabilidade das relações, mas dá-se sempre a violação dessa estabilidade, de tal ordem que o desenlace constitua a desagregação da harmonia inicial. Aliás, esta é uma lógica cara aos autores da sua geração, como são os casos de Marcelo Panguana, Suleiman Cassamo e Ungulani Ba Ka Khosa. Nos seus enredos, há uma preocupação obsessiva com o arranjo estrutural do mundo, como diria o esteta Denis Huisman, a propósito da missão do artista.  É, portanto, uma narrativa irónica que nos obriga a repensar o passado e na sua valorização.

Não me parece, entretanto, que A Metamorfose e outros contos seja apenas a confirmação desta gramática, inscrita já na sua primeira obra, Xitala Mati, de 1987. Efectivamente, para além do já referido cenário preferencial das suas histórias ou da função moralizadora da literatura, que se percebe na estrutura dos enredos, gostaria de destacar duas categorias a que o autor recorre de forma apaixonada nestes contos: o tempo e as personagens. Considero particularmente interessante a opção de Aldino pelo tempo da noite e pela figura da mulher para a realização das metamorfoses.

A palavra metamorfose significa mudança de forma. Concordemos que as formas, dependendo do que elas produzem, podem ter estruturas físicas ou ideológicas, de modo que, para além de uma transformação da aparência física de personagens e lugares, possamos esperar uma transformação também ao nível da sua aparência moral. E é o que, de facto, acontece neste livro. São, estas, histórias de transformações. E os temas são vários, passados e actuais. Cito apenas alguns, muito sugestivos das transformações que se podem esperar: são os casos do insólito, do fantástico, da loucura, da infância, da segregação racial, do incesto, da Justiça e da exploração dos recursos minerais, estes dois últimos, como disse, capazes de nos recordarem eventos da actualidade moçambicana.

Dissemos que as metamorfoses acontecem geralmente de noite. Importa agora destacar, tal como referem os estudiosos dos símbolos, que a noite simboliza o inconsciente. Ao longo dos contos, a dimensão da inconsciência é representada por cenas de sonho e de uma ambiguidade ou entre-lugar da realidade e da fantasia, que o autor compõe estrategicamente para criar uma espécie de vertigem para todas as possibilidades. Daí que é à noite que se dão eventos insólitos, metamórficos, pincelados, em alguns casos, com imagens orgíacas e ritualísticas próprias do universo da ancestralidade, a que, geralmente, se vincula o espaço do campo. O teletransporte e viagem no tempo tornam-se eventos cuja origem, afinal, radica nos rituais tradicionais, antes dos físicos modernos a descobrirem. Toda esta atmosfera desafia e convida o leitor a regressar a um tempo e lugar míticos, mas o leitor vai resistir, pois entrará em confronto com uma lógica que não se adequa aos seus princípios cartesianos, onde não há lugar para sonhos reais. Achei, por isso, acertada a opção de Aldino em abrir o livro com o conto “A metamorfose”. É um conto que derruba o leitor, obrigando-o a entrar nos jogos que se seguem sem o temor do desconhecido ou do impossível. O convite à aceitação do desconhecido e até do obscuro ganha particular interesse nos contos em que o narrador é igualmente personagem da história. Seja como protagonista ou apenas personagem secundária, capaz de assegurar a veracidade dos eventos inadmissíveis ou incompreensíveis, o facto de o narrador testemunhar algo que vivenciou acentua o mistério e o enigma que envolvem as tramas, servindo, esta estratégia, para manter o leitor no curso dos acontecimentos. Mas referi, também, que a mulher era outro elemento determinante das transformações que geralmente ocorrem de noite.

As mulheres dos contos de Aldino Muianga recordam-nos as míticas mulheres «“anti-homens”, que procuram eliminar o macho ou reduzi-lo a estados inofensivos, se não subalternos»[3]. Estamos perante o complexo de castração que faz das mulheres as mais fortes, mesmo que sob o véu da fragilidade. É um véu que constrói a aparência de um ser fraco, relegado a um lugar subalterno. Se é também de noite que elas se revelam, nas metamorfoses que ocorrem, essa noite que é o tempo da inconsciência, então sugere a obra que a mulher é o lado inconsciente do mundo, e isto deve-se ao seu papel sedutor, disfarçado sob o véu da fragilidade. Assim se explica um tema caro à obra de Aldino como é o da prostituição, por exemplo. Aliás, os temas da prostituição e do adultério podem funcionar como ressonâncias do mito de pandora, no qual a mulher pode ser vista como a origem do bem e do mal do mundo. Neste livro, esse poder de sujeitar o homem é, por extensão, por assim dizer, o poder da mulher de ordenar o mundo através da acção do homem. Daí a confusão moral e mortal dos homens: de acreditarem que estão na vanguarda das decisões e acções que movem universo. Parece-me, enfim, que Aldino sugere que toda a acção é desencadeada pela mulher. De resto, por ela existem as histórias deste livro, não fosse esse o legado que nos fica d“A lição da avó”, a mulher que confiou a Aldino a arte de contar histórias, que aqui se resume no seguinte: saber ver, saber escutar e saber deixar o coração falar.

Obrigado por terem deixado o meu coração falar!

 

[1] Versão revista do texto de apresentação da segunda edição do livro A Metamorfose e Outros Contos, de Aldino Muianga, no dia 18 de Outubro de 2022, no espaço Boske.

[2] Noa, Francisco. A Letra, a Sombra e a Água: ensaios e dispersões. Maputo, Texto Editores, 2008, p.45.

[3] BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de Mitos Literários. 2.a Ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998, p.745.

Diluídos no escuro

os coqueiros, elegantes silhuetas

projectam-se contra o profundo

azul do céu

O macúti balança

sufocando o riso

num sussurro amigo

sob o peso da leve,

levíssima brisa do mar

Ao longe

filtrada pelo silêncio

a voz de Brenda Fassie

dando vida ao Galaxi, lembrança do John

Colados ao caniço

os homens eternizam

o culto da sura.

 

Fernando Manuel

 

Este poema, intitulado “Matsitsi”, de Fernando Manuel, tem indesmentíveis referenciais do lugar de origem: Maxixe, onde o autor nasceu a 20 de Janeiro de 1953, há precisamente 70 anos. Muitos vezes quando atravesso aquela paisagem cartografada poeticamente nestes versos, lembro-me deste seu belo texto, que povoa o meu imaginário há anos. Conhecido como jornalista – hoje em dia como cronista sobretudo – ele é, no entanto, um poeta de créditos indubitáveis e um dos mais interessantes contistas moçambicanos.

Para além da data e do lugar de nascimento, as parcas notas biográficas sobre Fernando Manuel dizem-nos que ele iniciou os estudos na Missão Sagrada Família e que os completou da escola Indígena da Munhuana. Eu estudei na escola primária do Bairro Indígena, aliás foi lá por onde comecei e esta coincidência é-me particularmente cara. Mais tarde, Fernando Manuel frequentaria os liceus António Enes e Salazar, que são hoje – para o nosso gáudio – Francisco Manyanga e Josina Machel.

Narram ainda as suas breves efemérides que antes de ingressar, em 1981, na carreira jornalística, haveria de ser monitor de educação física, músico, escriturário, professor de História no ensino secundário. A esta distância talvez eu possa especular: a sua entrada tardia no mundo do jornalismo permitiu-lhe fazê-lo com uma bagagem que lhe seria útil e o catapultaria, em poucos anos, para um dos lugares cimeiros entre os camaradas de ofício.

Quando entrei, aos 21 anos, para a redação da TEMPO, em 1988, Fernando Manuel era o jornalista mais importante daquela mítica revista. Chefiara a reportagem pouco antes. Era um dos gurus da publicação. Provavelmente, o Kok Nam fosse a sua figura mais emblemática, oriundo da tribo dos fundadores.  A TEMPO, é preciso dizê-lo, foi a tribuna de grandes nomes do nosso jornalismo. Miúdo ainda, quando eu frequentava a Maxaquene, passava diante do prédio quotidianamente a caminho da escola. Olhava para o edifício como quem olha para um santuário. Esperava ser um dia um dos seus membros. Quando lá cheguei, a redacção gabava o talento do Fernando Manuel. Já não estavam Alves Gomes, Arlindo Lopes, Augusto Casimiro, Hilário Matusse, Joaquim Salvador ou Mia Couto – isto para falar de nomes que me eram próximos. Estava ainda a Ofélia Tembe antes de atalhar pelos meandros da diplomacia.

O semanário tinha como director o grande jornalista Albino Magaia (Mia Couto fora antes director e no seu tempo tivera Magaia como chefe de redacção) e Luís David era o chefe de redacção. David era um chefe que lembrava as lendas que comandavam, com mão firme, os jornalistas e as redacções. Hoje os vocativos são outros. No meu tempo, um chefe de redacção era a figura mais temida. No caso, ele subscrevia o mito: devolvia os textos quando estes eram medíocres. Por outro lado, Albino Magaia tinha aquela adorável característica de ser assertivo com um sorriso que lhe ampliava os zigomas do rosto. Os dois faziam um belíssimo contraponto. Foi sob a batuta de ambos e tendo o Fernando Manuel e o Kok Nam como as grandes referências que vivi ali tempos jubilosos. O Kok contava histórias hilariantes dos tempos imemoriais da casa. Daria um belo filme a história desta revista e das gerações de jornalistas e histórias que a glorificaram.

Companheiros de redacção: Roberto Uaene, António Elias, Casimiro Sengo, Fernando Victorino, Celestino Jorge, Paulo Sérgio, entre outros. O Castigo Zita, que encontraria o infortúnio da morte numas férias em Harare, em Dezembro de 1988, aos 27 anos, era assíduo frequentador da mesma. Fazíamos uma pequena tertúlia literária no fundo da redacção. O Celestino participava com aquela sua elusiva presença. Fotógrafos: Kok Nam, Naíta Ussene, Alberto Muianga, Jaime Macamo e Jorge Tomé. Muitas destas personagens já não estão no reino dos vivos. O Eugénio Aldasse (outro que emigrou para o Paraíso) e o Sérgio Tique (brilhante caricaturista e que tinha a qualidade superlativa de zombar de todos e de tudo) faziam a maquetização. A saudosa Ana Cubasse era a nossa revisora e enchia aquelas acanhadas salas com a sua soberba e estridente presença. Foi outro tempo aquele, com outras personagens, que estão nos armoriais do nosso jornalismo.

Falo-vos de um tempo em que redigíamos notícias e reportagens em velhas máquinas manuais cujos sons ressoavam daquele sexto andar. Era o tempo das laudas e da composição a chumbo. Também era um tempo em que tudo parecia que estava a desmoronar, a desagregar-se. Tinha acontecido Mbuzine e o prenúncio do fim da I República. Os anos 80 foram extenuantes. Estávamos exaustos das crises cíclicas e do panorama em que tudo nos faltava. Começava a exercer-se sobre nós o cansaço, a desesperança, a descrença e o medo do futuro.

Para mim foram tempos paradoxais – exultantes e esgotantes. Foram dois anos igualmente fugazes, os mais belos anos da minha vida no jornalismo em Moçambique. Intensos e jubilosos. Pouco depois, quase todos saímos da TEMPO. Nos finais daquela década os jornalistas impuseram a liberdade e a democracia através de uma nova Lei de Imprensa. Nos primórdios dos anos 90 o debate e a nova Constituição permitiram que houvesse outros atalhos. A guerra e a paz, o multipartidarismo e a abertura que se experimentaram estiveram na base do início de um novo caminho para o jornalismo.   Entretanto, Albino Magaia foi substituído e o declínio da publicação tornou-se irrefutável. Fernando Manuel estaria no escol dos jornalistas que iriam ser os pioneiros do jornalismo privado.

Carlos Cardoso falou-me desse belo projeto: um grupo de jornalistas que resolvia desfazer-se das amarras que tinham no sector estatal e fundava uma cooperativa da qual sairiam as publicações independentes. Politicamente independentes. Kok, Naíta, entre outros, estarão nesse grupo. Creio que foi um acto de grande coragem. Foi quando fui estudar para fora do país. Não tenho dúvidas de que foi um tempo exultante para o nosso jornalismo, um tempo de mudanças, algumas delas radicais. Esse tempo e o papel dos jornalistas merece estudo e atenção.

Eu aprendi imenso na TEMPO e com aquela nobre gente. Ouvindo-os, contando histórias, muitas vezes tremendas histórias do nosso quotidiano, algumas que atravessavam as colunas da publicação que saía à sexta-feira e que as lia com um sofrido e indisfarçável prazer. A ideia da sociedade, da nossa sociedade, obtive-a ali. Preocupado com as cousas literárias, aprendi a amar o social através daqueles meus brilhantes colegas. Algumas das reportagens eram devastadoras. Lembro uma sobre o Ile que nunca me abandonou. Tínhamos experimentado como país um grau de miséria material e moral sem igual. A guerra no seu esplendor fazia de nós o exemplo (parece paradoxal usar este termo) entre os piores do mundo.

O Fernando Manuel não era apenas jornalista, era também escritor, um bom poeta e contista imaginativo. Não tenho duvidas de que era uma das melhores plumas do nosso jornalismo. A sua pena é de alto coturno e as suas prosas eram impecavelmente bem escritas. Valeria a pena, sobretudo os que debutam na profissão, frequentar os sepulcros e ler aquelas prosas exemplares.

Muita da sua saborosa prosa está reunida em dois dos seus livros de crónicas: “Chá das Sextas” e “Missa Pagã”. A crónica literária foi um género com cultores prestigiadíssimos entre nós. Cito alguns desta linhagem: Areosa Pena, Leite de Vasconcelos, Albino Magaia, Mia Couto e por aí em diante. É um género que, como se sabe, está na fronteira entre a literatura e o jornalismo. Fernando Manuel é tributário dessa nossa nobre tradição.

Felizmente temo-lo lido nas páginas do “Savana”. Para além disso, é autor de um livro de contos, “O Homem Sugerido” e redigiu alguns prefácios a obras de escritores da sua geração – do remoto “Xitala Mati”, do Aldino Muianga, em 1987, é caso paradigmático. Fernando Manuel tem uma língua afiada, por vezes mordaz, finamente mordaz, e é dono de um olhar subtilmente assertivo e subversivo. É um contador de histórias nato, quer sejam histórias que relevam das origens ou aquelas que se inscrevem nos labirintos e na mitologia dos subúrbios em que ele cresceu ou da sua cidade onde se afirmaria e que a viu mudar com todos os seus paradoxos, todas as suas misérias, toda a sua grandeza. Podemos até estar nos antípodas do que pensa, não temos que concordar, mas temos que conceder que estamos diante de uma escrita distinta. Respeito-o por isso. Aliás, demonizou-se entre nós a democrática e saudável divergência, a critica social, a consciência da diferença. Aquela sociedade plural e magnânima que intuíamos nos anos 90 está por cumprir, por assim dizer.

Quando há precisamente 30 anos, Fátima Mendonça e eu, organizamos uma antologia da nova poesia moçambicana, ele foi um dos nomes indubitáveis. Um dos poemas, quase um aforismo, intitulado “Sobre a felicidade” dizia estes três versos: “E pensar / que há gente / que me pensa feliz”. Não me ocorreu este poema quando li, há 5 anos, no semanário “Magazine”, uma entrevista sombria com o Fernando Manuel.

Era uma entrevista de um homem lúcido, acerbo e, fatalmente, desiludido. Dois anos antes ele ficara cego. Fazia uma análise cortante dos nossos dias e do nosso percurso. Não é incomum encontrar na tribo (na melhor acepção do termo) quem esteja desencantado. Sobretudo entre os que estão na profissão há décadas. Os tempos que vivemos, muitas vezes aziagos, tornaram proscritos muitos destes grandes profissionais. E para isso não é necessário exilá-los. Basta o descaso.

Não obstante, Fernando Manuel continua a publicar – para a nossa felicidade e digo isto compungido – as suas crónicas. Dita-as e quem as lê coteja a mesma escrita escorreita que ele nos habituou. Tinha antes lido uma entrevista na qual ele falava dessa experiência, dessa dura experiência da cegueira, mas neste depoimento senti não só essa dureza, mas uma profunda e lancinante tristeza.

Não queria terminar esta breve evocação com um travo amargo. Hoje é um dia de júbilo para o nosso jornalismo e para a nossa literatura. Quero celebrá-lo com parte dos seus melhores versos. Socorro-me, assim, em sua homenagem, destes outros versos, no caso do poema “Ma ensai”, igualmente belo, para encerrar este depoimento.

 

À noite

ouço Otis Redding

falando I´ve got dreams

de tardes de madeira e zinco

esfregando-se por entre o caniço

Tardes de corpos suados

Plásticos na apetência oculta

que fervilha debaixo da pele, to remembre

Anoitecer de salas fumegantes

de candeeiros a petróleo

luz   que se escoa

mergulhado aquele beco sem saída

numa escuridão fru fru

saia que já não esconde

o leve tremor da coxa

antes abrigada

E beijei o silêncio

dos lábios da Guida.

 

Fernando Manuel

 

Poeta, contista, cronista, uma das plumas mais esplendentes do nosso jornalismo e da nossa literatura, autor de algumas das mais belas páginas que, em épocas distintas, se redigiram na “Tempo” ou no “Savana”, comemora, neste dia 20 de Janeiro de 2023, 70 anos de vida. Aqui lhe deixo o meu humilde preito.

 

KaMpfumo, 20 de Janeiro de 2023

“Elegância devia ser o teu nome

ou mesmo graça e harmonia

ou ainda leveza, etérea leveza.”

Fernando Couto

 

 

Convivi inicialmente com o poeta Fernando Couto quando entrei para a Escola de Jornalismo em 1987, que ele dirigia, com a ajuda da mulher, Maria de Jesus, ambos de grata memória, pela excepcional e afetuosa forma como nos acolheram e nos trataram. Fernando era acanhado quanto aos afectos, Maria de Jesus era explosiva e arrebatadora na afeição. Muitos de nós éramos miúdos e encontrávamos neles um verdadeiro arrimo. Um ano depois, no rescaldo de uma vivência de 35 anos em Moçambique – onde vivera grande parte da sua vida, tivera filhos e escrevera livros –, ele despedia-se do país. Foi motivo para que eu realizasse uma longa e, talvez, uma das primeiras entrevistas literárias de que me lembro na minha vida.

No intervalo das aulas, muitas vezes, eu ia ao gabinete do Fernando e ficávamos horas a fio a conversar sobre o ofício da poesia. Sobre os poetas e o sobre o seu destino.  Quando em Maio de 1988 fui entrevistá-lo eu tinha lido quase tudo o que ele até então publicara e seguira algumas das suas sugestões de leitura. Fernando era um grande leitor de poesia.  Hoje, quando passam 10 anos sobre o seu desaparecimento, quero aqui evocá-lo.

Fernando Couto chegara à Beira em 1953 e fora na Beira, em 1959, que se estreara com o livro “Poemas junto à fronteira”. Nesse mesmo ano, Rui Knopfli publicara “O País dos Outros”, também livro de estreia. Couto haveria de editar à altura dessa memorável entrevista, sucessivamente: “Jangada do Inconformismo” (1962), “Amor Diurno” (1962), “Feições para um Retrato” (1971). Nas muitas conversas que tínhamos era frequente falarmos de Eugénio de Andrade, um poeta que povoou a minha juventude, e que era um dos poetas portugueses que ele mais admirava e o haviam influenciado.  Era dos seus autores electivos. Aliás, não esqueço nunca estes versos de Eugénio de Andrade – no dia 19 de Janeiro assinala-se o centenário de seu nascimento – que eram igualmente caros ao Fernando Couto: “Estou de passagem: / amo o efémero”.

Da lavra de poetas portugueses que o tinham entusiasmado poderia incluir Antero ou Pessoa. O Fernando era de uma grande erudição, embora não fizesse gala nisso, nem a exibisse. Paul Éluard era a grande influência dos poetas franceses que ele sofrera, a par de Louis Aragon ou Supervielle (Jules Supervielle, poeta francês nascido no Uruguai, que eu não ouvira falar até à data). Mas havia muitos, muitos poetas que ele admirava, que ele lia, que ele admirava e alguns tantos que ele traduzia. E ele os traduzia primorosamente.

Naqueles anos em que a revolução catapultava todos os entusiasmos e estava na origem de muitos equívocos – como definir funções iminentemente patriotas para a poesia – ele ensinou-me que esta (a poesia) deveria dar livre curso à experiência mais profunda do ser humano. E disse-me algo que até me deixou estupefacto: “os poetas são loucos”. A poesia para ele resultava desse ímpeto interior, dessa necessidade de dar voz ao mais profundo do ser humano, muitas vezes às cegas e de forma imperiosa, impetuosa posso eu acrescentar agora. A poesia era algo que vinha do mais arraigado do seu ser.

Disse-me o Fernando Couto e eu anotei: “Acredito, como Maomé, que os poetas são loucos, que fazem e escrevem loucuras e andam por caminhos ínvios como cegos”. Eu o interrogava e o ouvia com profunda admiração. Ele falava-me como se me segredasse o mundo. Por vezes, sussurrava.

Falámos longamente da Beira onde coordenou um suplemento literário do “Diário de Moçambique” e onde foi, com Nuno Bermudes, impulsionador das coleções Prosadores e Poetas de Moçambique, levadas a cabo no “Notícias da Beira”. Foi uma actividade importante. Os livros de poesia eram de uma grande beleza. Editou poetas como Glória de Sant´Anna (“Poemas do Tempo Agreste”) ou Rui Knopfli (“Máquina de Areia”). Pertenceu ao grupo que criou o Cine-Clube da Beira, participou da criação do auditório-galeria da cidade, onde se realizavam exposições, recitais, conferências, na emissora do Aeroclube tinha dois programas semanais, um deles com o nome de “Luar da Terra”, título que pilhara a André Breton.

Mas também quis saber da sua vida como tradutor. Ele chamava-lhe vício. Traduzira, entre outros livros, o mítico “Rubayyat”, do poeta Omar Khayyam (1048-1131), que o Luís Carlos Patraquim me dera a ler, em 1985. Disse-me Fernando Couto que amava e admirava este poeta persa que se rebelou contra o Islamismo, adoptando um hedonismo que poderia dever muito aos poetas e filósofos gregos, mas também aos poetas e filósofos árabes pré-islâmicos. Deleitara-se a traduzir aquela poesia que é um cântico de amor à vida, lúcido, desiludido, amoroso, sensual e delicado. E, todavia, há quem pretenderia tomar “Rubayyat” como expressão do amor divino, quando, a seu ver, era exactamente o amor carnal e a sensualidade que o poeta persa celebrava.

Naqueles anos tentávamos atalhar um caminho da poesia lírica, do amor, da sensualidade, que estava nos antípodas do que fora o excurso poético moçambicano desde os primórdios da independência até então. Claro que havia excepções – Luís Carlos Patraquim (“Monção”) ou Mia Couto (“Raiz de Orvalho”), a meu ver, são paradigmas dessa excepcionalidade –, mas o tom geral e os ditames eram esses. Ouvi-lo discorrer assim era uma espécie de lenitivo.  Senti que Fernando Couto, de algum modo, dava-me os argumentos que sustentavam a via que nós, com alguma rebeldia, intentávamos. A esta distância, isto parecerá uma frivolidade, mas à época, o lugar da poesia chamada de combate, ou engajada, ou mesmo revolucionária, o lugar dessa poesia digo, era inequivocamente decisiva. Sendo que nós, alguns de nós, víamos na poesia lírica ou intimista, o percurso que queríamos fazer e, assim, estávamos a libertar-nos de um anátema. Um pesado anátema.

Para mim, aquela conversa com o poeta Fernando Couto teve o condão de me animar, ainda mais, a prosseguir esse caminho. Aliás, Fernando Couto, que também coordenara, anos mais tarde, no “Notícias”, em Maputo, um outro suplemento literário, era um homem que prezava a exigência e a qualidade artística, por assim dizer, da expressão literária e não se deixava amarrar aos ditames da revolução. Era um exegeta. Nas páginas daquele diário ele publicou, entre outros, dois jovens promissores que morreram precocemente: Isaac Zita (1961-1983) e Brian Tio Ninguas (1961-1987).

Isaac Zita foi a primeira grande revelação na ficção no pós-independência. Morreu com apenas 22 anos quando frequentava a Faculdade de Educação. Nascido em 1961, publicou contos no “Notícias” e na revista Tempo (por iniciativa de Albino Magaia, que escreveu um esplêndido prefácio, anos depois, ao seu livro póstumo “Os Molwenes”). Morreu em 1983. Em Maputo, na zona da Sommerschield, há uma rua, com o seu nome.

Fernando Couto: “O Isaac Zita possuía um sentido de contista que considerei e considero espantoso, incomparável por se tratar de um jovem proveniente do ensino técnico, tão tímido quanto modesto, tão inexperiente da vida, tão quedado dos ambientes ditos culturais!”.

Brian Tio Ninguas, pseudónimo do jornalista Baltazar Maninguane, pertencia ao quadro do “Notícias” quando morreu prematuramente em 1987. Permanece inédito, há poemas seus publicados por Manuel Ferreira na revista “África” e está antologiado em Moçambique.

Este era o Fernando Couto que se revelava de corpo inteiro naquela ocasião. 35 anos depois de Moçambique ele retornava à Portugal. Não foi por muito tempo, felizmente. Em meados dos anos 90, Mia Couto, Manuela Soeiro (do Mutumbela Gogo), Ricardo Timane (perecido, infelizmente) e eu, formamos uma sociedade editorial que se associou à Caminho – a Ndjira. O Fernando regressara de Portugal e juntou-se-nos ao projecto. Quando foi preciso encontrar um editor a tempo inteiro, ali estava ele com toda a sua generosidade, a sua imensa cultura e o seu avisado saber.

Tive o prazer de lá editar, sob a sua responsabilidade, anos mais tarde, um livro de poesia, “A Viagem Profana”, título que ele dizia apreciar bastante. Um editor atento e dedicado. Um homem interessado pelo trabalho dos outros. Eu via nisso uma grande generosidade. Ele haveria, no entanto, de acrescentar à sua estante de autor: “Monódia” (1997) e “Os Olhos Deslumbrados” (2001).

A 10 de Janeiro de 2013, Fernando Couto apartou-se deste mundo. Tinha 88 anos. Não sei se o celebraram agora por esta efeméride. Felizmente, os seus filhos criaram, em Maputo, a Fundação Fernando Leite Couto, que honra a sua memória e está na origem de uma importante actividade cultural e cívica na cidade. Quanto a mim, guardo-o ciosamente na memória, sobretudo pelas conversas quase secretas e subversivas que tivemos, primeiro na Escola de Jornalismo, nos longínquos anos 80, mais tarde na Ndjira, ou noutros convívios literários, nas quais muito aprendi do ofício e da loucura de ser poeta.

O Fernando Couto era um homem de uma grande elegância, de uma incomensurável sabedoria e de uma humildade extrema. Não tinha soberba. Era um homem que amava poetas e partilhava esse amor ineludível pela poesia e pela vida. Era, eu diria até, de uma grande humanidade. Viveu até ao fim fitando a vida com “os olhos deslumbrados”. Também aprendi com ele a deslumbrar-me com os “milagres da vida”, como ele queria neste belíssimo poema:

 

São estes ainda,

os olhos da infância,

deslumbrados,

deslumbrando-se

aos milagres da vida:

a intacta pureza das crianças,

os luminosos rostos femininos,

a limpidez das nascentes,

os cambiantes do fogo…

tudo, tudo quanto é beleza

ou lhe deslumbram beleza

os olhos deslumbrados.

 

(Fernando Couto)

 

Cidade do Cabo, 12 de Janeiro de 2023

 

 

 

Depois de desembarcar do “Chaimite” a dona Mariana  ficou atarantada, ofuscada pela intensidade das luzes da cidade. Os candeeiros públicos jorravam uma luminosidade branco-leitosa que conferia aos objectos o colorido do arco-íris.  Viaturas de todos os tamanhos cruzavam-se nas ruas e buzinavam sinfonias que jamais escutara. Os semáforos alternavam-se em cores e dialogavam em silêncio. Os motoristas entendiam as suas mensagens.

Ao princípio, estacou à saida do cais. Bússola orientadora não possuía, a não ser essa que o Valgi, num telegrama que em tempos lhe enviara: “ …da baixa da cidade  apanha-se o machimbombo número sete para chegar ao Xipamanine…”. A informação era mesmo telegráfica, porém esclarecedora. Atravessou a Praça MacMahon, em cujo jardim flores variegadas exalavam perfumes e cujas cores  carregavam o ambiente de uma garridice invulgar. Deixou o instinto guiar os seus passos. Demorou-se a contemplar a variedade e o exotismo dos produtos exibidos nas montras. Uma espécie de magnetismo imobilizava-a por longos momentos diante das montras de casas de especialidades, da Casa Coimbra, do John Orr’s, da Marta da Cruz e Tavares. Viu multidões a cruzarem-se em todos os sentidos. Uns envergavam trajes em moda e penetravam em cinemas onde iriam exibir-se filmes ou peças de teatro. Outros, abancados ao redor de mesas dos Scala ou do Continental sorviam goles de cerveja, trocavam as novidades do dia e discutiam a chave do Totobola. Deixou-se inebriar pela calidez do ambiente e pelo espectáculo da noite. Era uma sombra que descobria as portas de acesso a esta cidade tão cheia de enigmas, tão distante de tactear com a  mão, quão almejada de conhecer. A cidade de Lourenço Marques estava finalmente ali a seus pés, sentia-a vibrar com todos os seus ruídos, com toda a sua musica.

Ia a caminho das vinte e uma horas e o movimento nos passeios não dava sinais de abrandar.

Contornou esquinas. Leu nomes gravados nos pórticos dos prédios: Santo Gil,  Fonte Azul,  Macau. Identificou as grandes avenidas; a República,  a Dom Luís; deu uma voltar ao Mercado Municipal; conheceu as designações dos grandes armazéns: Gulamussein, Bucellato, Breyner & Wirth.

Nessa ronda sem destino e sem aperceber-se entrou na Rua Araújo. Ao longo dos passeios assistiu ao espectáculo de marinheiros abraçados a mulheres que, pelas indumentárias se associavam às “mulheres da vida”, de que muito se falava em Porto Amélia. Outras destas, percorriam os passeios da via com vagares, ou aguardavam o recrutamento dalgum cliente paradas à beira das esquinas. Em alguns dos estabelecimento alinhados na rua filtravam-se sons de melodias, executadas por orquestras ou de juke-boxes.

Nesta multidão de transeuntes um homem carregado de um trombone bloqueou-lhe o passo e perguntou:

“ Bô-noite. Estás livre?”

“ Eu não sou p… Desculpa-me lá meu caro senhor, mas eu não sou p…”.

“Então o que fazes a esta hora da noite aqui nesta rua?”.

“ Acabo de chegar do norte. Como não conheço a cidade resolvi dar umas voltas antes de ir ao meu destino”.

“Ah!, é nortenha? Vê-se mesmo que és novata aqui na cidade. E o teu sotaque não engana a ninguém. Qual é o teu destino?

“ Vou para o Xipamanine”.

“ É melhor ir andando porque os machimbombos estão quase a recolher”. E escoltou-a até ao terminal da carreira número 7, mesmo defronte à entrada da reitoria dos Estudos Gerais  Universitários de Moçambique.

Naquela hora das vinte e uma e trinta desembarcou na paragem do “Botão Dourado”. Com o auxílio doutros passageiros arribou à varanda da loja do Bhai, ao encontro doutras e mais empolgantes novidades.

in Caderno de Memórias, Volume II.

 

Terapia surda

Doroteia, nome grego, que significa dádiva de Deus, decidiu quebrar os seus silêncios e se libertar de suas amarras, curando as suas próprias feridas e traumas. Ela escreve o seu primeiro livro e, com base em factos reiais, pretende dizer à sociedade e ao mundo que, muitas vezes, as famílias se enchem de cuidados para que nada de mal aconteça, aos seus filhos, fora de casa, porém, não têm os mesmos cuidados, dentro de casa, e nem sequer passa pelas suas cabeças que o perigo pode estar tão iminente.

Lipondo ou Terapia da Fala é uma narrativa que nos conduz para o pior que rapazes e raparigas podem, alguma vez, passar na infância. Entender a profundidade e o âmago destas revelações equivalem a compreender a condição humana e as formas de vida que o ser humano impõe a si próprio, para coexistir e sobreviver, ou se autodestruir. São os caminhos perversos que mais do que tornar a peregrinação um momento aprazível, fazem dela uma outra forma de suprir a existência e felicidade do próprio ser humano. Destituir o essencial da nossa condição significa iniciar outra guerra tão mortífera como a guerra das armas.

Estes textos navegam entre diferentes géneros literários. Algumas vezes mais poéticos, outras agrestes e até ficcionais. São como diria Hannah Arendt, a súmula da própria condição humana ou da perversidade dessa mesma humanidade. Sugiro, então, uma leitura cuidada e com tempo, um momento disruptivo e de desassossego. Uma caminhada sofrida e mística. Estamos diante desse buracão, que nos persuade a revisitar temática sobejamente debatida, com estatísticas perturbadoras, porém, cujas soluções continuam tão utópicas, como imprevisíveis e, convenhamos, incompreensíveis.

Estas são as histórias de várias vítimas da violação de direitos humanos, de direitos da criança e do direito de viver um mundo de sonhos e aspirações. Ela descreve, jamais livre, que jaz como menina de saia escocesa vermelha, uma menina morta e sem voz. O funeral profanado de uma infância, a esperança esmiuçada da eternidade dos seus sonhos. Aqui jaz uma inocência; e aqui jaz uma existência.

Por vezes, e em certos momentos, a vida nos conduz para os seus próprios fins e destinos. As marcas de um sofrimento que impelem uma relação psicológica distorcida entre o corpo e a mente. Tudo vira disfuncional. Com a autora, essa sensação de não pertença aconteceu. Sentiu, ao longo de anos, um misticismo destorcido da carne distanciada da mente e do seu intelecto. O corpo deixou de ser, somente, o fenótipo, o visível, mas, também, a parte sensorial e mais notável. Passou, uma vez tatuado pelos traumas, à matéria, no seu estado físico material, como provam todas as lições metafísicas, onde o todo se desencontra das suas partes, se descomunga, atravessando as linhas do imaginário e do inalcançável. Só a força de vontade e o desejo de superação podem falar mais alto.

Eu sou Doroteia ou Dorinha ou, se quisermos, uma mulher de lutas. Pouco mais do que dádiva de Deus, também, posso ser luz; a fonte de energia suprema que nos liberta de todas as trevas, escreve a autora. É doloroso e repugnante reler estas descrições porque se tornaram senso comum, numa sociedade que se debate com gravidez precoce, casamentos prematuros, com mães que são crianças. Um pouco por todo o país, estas verdades morrem ao sabor do vento e quase deixam de indignar.

Relendo Lipondo, e essa apologia ao buraco, um buraco invertido, porque passamos a conhecer o seu interior, sem antes nos atinarmos à superfície, nos recordamos, também, de George Orwell que versou, nas suas obras sobre a paz, a liberdade, a escravidão, sobre a ignorância e a força. Por conseguinte, ele afirmava, que a consolidação do silêncio se comparava ao exercício do direito a voz desse mesmo silêncio. Exercitar o silêncio exigia coragem, da mesma forma que exigia a intuição para a inacção. Libertar a voz era uma terapia, não completa, mas a possível.

Doroteia toca nos extremos, aqueles paradoxos que levam as verdades para o túmulo. Dizia, no começo, que recomendaria uma leitura invertida. Os valores do bom senso também se inverteram. Forçar as crianças, mesmo antes da sua puberdade, a uma relação sexual repetida, tem mais do que perverso, tem maldade e indignação. Desumano e malicioso. Pior quando acontece no tecto da mesma família que julga estar a conviver e a educar. O resto da narrativa suaviza os impactos. Factos consumados e essa busca pela superação e compaixão. Reter aquilo que mais nos pertence, o nosso corpo.

O Prefácio deste livro, que tem a missão de orientar o sentido das nossas leituras, fala numa descrição magnífica, mas, igualmente, numa matéria que faz chorar do princípio ao fim, não só pelo inaceitável, mas, igualmente, pelo facto de serem situações recorrentes e que alcançam milhares de Doroteias, naquilo que elas têm de mais sagrado, que é o seu corpo.

O abuso sexual de menores e, igualmente, de qualquer outra mulher, de qualquer idade, continua um crime repugnável, que iliba o criminoso e pune, duplamente, as suas vítimas. Estes actos infames e violentos e, muitas vezes, desproporcionais, não geram, apenas, a dor e a revolta, mas, enterram e sepultam a mulher e seus sonhos. Eles vão acontecendo a cada segundo, todas as horas, todas as semanas e, muitas vezes, nos mesmos locais.

O nosso país vive esta encruzilhada. O mundo também. São as histórias de terror que ninguém preza escutar. As aporias que, jamais, nos esforçamos a resolver, e os mantos do pior com que o ser humano tem de conviver, a bom rigor, os dissensos com os quais convivemos e, também, em silêncio, nós os homens, ou nós os pseudo-homens.

Quebrar as barreiras do silêncio, como diz Doroteia, tem a missão de tornar em inspiração para outros e para outras. Esse é o sinal de luz, como refere Dorinha.

É necessário que todas as Doras de Moçambique se inspirem na jornada do autoconhecimento. Estas mulheres têm que provar que homem nenhum tem poder sobre elas e nós, que escutamos estas declarações, destas vítimas da violência, precisaremos de entender que só exercitando o poder de escutar, de ajudar e de ser solidário, fará de nós próprios, pessoas mais corajosas, destemidas, solidárias e fraternas.

Precisamos de acreditar que temos, todos, um propósito, pois as histórias de nossas vidas começam muito antes de qualquer escrita ou de qualquer leitura. O sinal da luz está sempre presente nas planícies, nas montanhas, na infinita superfície do mar, no interior de qualquer lipondo. Que esta leitura nos ajude a transformar uma terapia surda em acções que nos libertem e que nos ajudem a falar, sem medos, sem receios e em busca de uma cura que tenha o sentido de todos os sons e de todas as cores das canções. Quando as mulheres vítimas de violência sexual poderem falar, elas serão e estarão empoderando todas as mulheres que vieram antes delas próprias, e até, daquelas que ainda não passaram por esse trauma. (X)

 

 

 

Num belíssimo, raro e derradeiro poema, Noémia de Sousa, que escrevera o essencial da sua obra poética entre os finais da década de 40 e os inícios da subsequente, terminava com uma premonição: “os espíritos ancestrais me esperam”. O epílogo da sua vida dar-se-ia a 4 de Dezembro de 2002, aos 76 anos, passam hoje 20 anos. Para muitos de nós, que a acompanhamos ao longo dos anos e que a amamos sem tréguas, foi um duro golpe, não obstante a ciência que tínhamos da sua saúde, que se precarizara com o tempo. Custou aceitar que ela chegara, por fim, à fala “com a voz do nyanga”. Tínhamos, porém, o consolo de termos editado, um ano antes, o seu arrebatado e arrebatador “Sangue Negro” (2001), que permanecera inédito durante 50 anos.

 

Carolina Noémia Abranches de Sousa nascera a 20 de Setembro de 1926 na Catembe: “Quando eu nasci na grande casa à beira-mar / era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico. / Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul. / Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda / arrastando as redes pejadas”. Quando em Janeiro de 1990, num remoto inverno em Lisboa, a entrevistei, para o livro “Os habitantes da memória”, ela falava-me de uma infância feliz: “Penso que a infância é sempre marcante. É para nós uma espécie de paraíso perdido. Depois, tive uma infância extraordinariamente feliz. Talvez por isso me lembre muito dela. Era uma vida livre e cheia de aventuras porque não havia quintais, fronteiras, limites”.

 

Poema da Infância Distante”: “meninos negros e mulatos, brancos e indianos, / filhos da mainata, do padeiro, / do negro do bote, do carpinteiro, / vindos da miséria do Guachene / ou das casas de madeira dos pescadores. / Meninos mimados do posto, / meninos frescalhotes dos guardas-fiscais da Esquadrilha / – irmanados todos na aventura sempre nova / dos assaltos aos cajueiros das machambas, / no segredo das maçalas mais doces, / companheiros na inquieta sensação do mistério da “Ilha dos navios perdidos” / – onde nenhum brado fica sem eco”.

 

Noémia de Sousa: “A esta distância, quando me veem dizer que dizer o que eu queria dizer com o “Poema da infância distante”, eu penso, mesmo inconscientemente, que no fim queria falar de Moçambique. A casa à beira-mar era Moçambique. Outra coisa: por causa das circunstâncias, como não podia dizer Moçambique, quando digo “África” quero dizer “Moçambique””.

Viveu na mítica casa até aos seis anos. Lembrava-se de, aos quatro anos, aprender a ler, através da “Cartilha Maternal”, de João de Deus. Foi o pai quem a ensinou a ler, antes de saber redigir. Começou a escrever cedo, desde miúda. Fazia jornais com os irmãos, sobretudo com Nuno (Abranches de Sousa), que lhe era mais próximo, pela idade e cumplicidade. Lia muito. Lia tudo: desde Eça de Queirós a Guerra Junqueiro. Lia revistas. Publicações estrangeiras. O pai era um leitor omnívoro e um homem dado às artes, à música, à fotografia. A pequena Carolina frequentava, inquieta, o escritório de casa do pai. À volta dos livros e das revistas. Sempre com perguntas.

Eram seis irmãos, os mais velhos, Paulo e Camila, cedo foram enviados para Portugal para estudar. A ideia era fazer o mesmo com os que se seguiam. Mas a mãe, que não suportava estar apartada das crianças, impediu que o projecto paterno tivesse seguimento. Carolina conhecia os irmãos mais velhos através da correspondência que mantinham. Entretanto, aos 8 anos, ela perde o pai e o futuro que este sonhara. Estuda na Escola Técnica, área comercial. Não obstante, o seu obstinado amor pelos livros prossegue. Começa a trabalhar cedo.

Da parte materna era oriunda de um cruzamento entre sangue alemão (Brüheim) – de caçadores e negociantes alemães (Paulo e Max), que se aliaram aos chefes locais da região de Maputo e desposaram as suas filhas. Do lado paterno, sangue português, indiano e macua. O pai nascera na Ilha de Moçambique. A mãe vestia capulana. Quando casou, o que aconteceu muito tarde, com os filhos nascidos, deixou de a usar, por força dos ditames da época, que impediam que a mulher de um alto funcionário da Administração exibisse tal indumentária. O pai não queria que a sua mulher, que era muito mais nova, ficasse desprotegida caso ele morresse. Noémia e os irmãos assistem ao casamento.

De uma geração de seis, Noémia é próxima de Nuno: fazem jornais, conversam até à madrugada, numa época em que se recolhia cedo, partilham amigos. Antero, amigo do seu irmão Nuno, estava num grupo de jovens que se agregavam à volta do jornal da Mocidade Portuguesa, queriam subverter a publicação – disseram-lhe – e pedem-lhe colaboração. Noémia escreve o “Poema ao meu irmão negro”. Embora assinasse Carolina Abranches à época, nas suas colaborações de “O Brado Africano”, o texto literário haveria de levar as iniciais N.S. O poema criou evidente alvoroço. À época ninguém escrevia com aquela desenvoltura, aquele tipo de poesia. José Craveirinha, que lhe mostrara sonetos, que praticava, ainda desconfiou tratar-se de uma criação Nuno Abranches de Sousa. Estávamos nos finais dos anos 40. O grupo dos ruis (Knopfli, Guerra e Guedes), que se agregariam à volta do “Itinerário”, também ficaram espicaçados. Quem seria N.S.?

Seria, no entanto, a reacção de espanto, de Augusto dos Santos Abranches, a um poema publicado em “O Brado Africano”, igualmente assinado N.S., intitulado “Poesia, não venhas”, que iria, nas palavras da autora, salvar-lhe do anonimato futuro. Inicialmente, Augusto dos Santos Abranches pensara tratar-se de um plágio, mas depois concluirá ser um texto autêntico. Pareceu-lhe espantoso. Disse-me Noémia de Sousa anos mais tarde: “Se não tivesse surgido um Augusto dos Santos Abranches a chamar atenção para o meu nome talvez ele permanecesse desconhecido até hoje”.

Augusto dos Santos Abranches, que dirigira em Coimbra a famosa Portugália Editora, não terá influência sobre a jovem intrépida, como enganosamente alguns críticos irão referir futuramente. Foi, contudo, uma personagem importante no pequeno meio da velha cidade colonial. Trabalhou na Minerva, coordenou páginas literárias (“Sulco”), esteve na última fase do “Itinerário”. Foi influente para os jovens que então surgiam. Quem exerce influência sobre Noémia de Sousa e, de certo modo, algum magistério, é Cassiano Caldas, funcionário dos Caminhos de Ferro e intelectual ligado ao “Itinerário”. Sobretudo iniciando os jovens da sua época na leitura dos neo-realistas, dando-lhes a conhecer a revista “Vértice” (onde haveria de ler e conhecer a poesia de Nicolás Guillén) ou a ler os livros de Jorge Amado, como “Jubiabá”.  Noémia já tinha lido, entretanto, os negros americanos. Fizera-o através de um embarcadiço que lhe trazia das viagens livros e o eco dos seus convívios com os negros americanos. O Sul dos Estados Unidos e Moçambique pareciam-lhe subscrever alguma similaridade. Sobretudo quanto ao racismo, à discriminação e às desigualdades. Foi dessa realidade, e não da “Negritude” – irá conhecer mais tarde os seus protagonistas e traduzirá o célebre “Discurso sobre o colonialismo”, de Aimé Césaire –, que ela encontrou a força motriz da sua poesia. Foi nessa época que conheceu a história trágica de “Strange fruit”, que estaria na origem de um poema de Lewis Allan (Abel Meeropol) que a mítica Billie Holiday deu voz, a quem dedicará um dos poemas do seu “Sangue Negro”: “e era só melancolia / do princípio ao fim”.

João Mendes, cujo nome consta do frontispício do livro “Sangue Negro”, ao lado do nome de Cassiano Caldas, foi quem estabeleceu a ponte entre ela e os míticos ruis: Knopfli, Guerra e Guedes e a malta que frequentava o Núcleo de Arte. Fonseca Amaral, embora fizesse parte da tertúlia, era um homem ensimesmado. Noémia ia à casa Ruy Guerra na companhia do Ricardo Rangel, e por vezes aos encontros do “Itinerário”. Ela era da ala do “Brado Africano” e da Associação Africana, mas tinha amigos no outro lado da cidade. Alguns estranhavam que ela frequentasse a Escola Técnica e fosse dada às letras.

Nos anos 50, fingindo um encontro inofensivo, no Jardim Paraíso, redigem – José Craveirinha, Noémia de Sousa, Dolores Lopez y Lopez e Ricardo Rangel – um manifesto exigindo a independência de Moçambique.  Estamos ainda longe dos movimentos libertários. Ela tinha já uma actividade política clandestina. Pertencera ao MUD-Juvenil. Colava cartazes e panfletos à noite, sobretudo com João Mendes, que será degredado. Fez parte do grupo de jovens que ajudavam na Associação Africana. Os mais velhos: Cassiano Caldas, Henrique Dahan, Miguel da Mata, Joaquim Soares, entre outros. Na comissão de festas, estava Beatriz Albasini, que viria a casar com Artur Garrido. Hoje conhecemo-la como a Avó Bia. Eram correligionários: Victor Santos (irmão de Marcelino), Nobre de Melo, Amália Ringler, Dolores Lopez y Lopez, Ricardo Rangel, ou filhos dos Dahan.

O surgimento de Noémia de Sousa quebra um marasmo que perdurava desde a morte de Rui de Noronha na poesia moçambicana.  Noronha (1909-1943) tinha sido a grande figura literária nos anos da sua juventude. Augusto dos Santos Abranches: “Moçambique dorme ou mede as suas divagações pela intensidade do luar da noite”. Noémia não conviveu com o poeta, mas lembrava-se de o ver passar em frente da sua casa. Conhecia-o de vista. “Poema para Rui de Noronha”: “Rui de Noronha / nesta nova África de certezas e forças restauradas, / no meio dos “paixões” e das bebedeiras do natal, / vens-me tu, torturado e solitário, / ainda projectado para os fundos abismos do teu eu”.

O mesmo em relação à João Dias. Via-o na rua. Não chegaram à fala. As irmãs Dias, sim, frequentavam a sua casa, eram amigas das suas primas. Lembra-se de as ouvir falar do irmão, que fora muito jovem estudar para Portugal e da esperança que depositavam no filho do celebrado jornalista Estácio Dias. No poema “Godido” escrito à memória de João Dias, diz Noémia de Sousa: “Quando cheguei / trazia no olhar a luz verde dos negros simples / e uma dádiva maravilhosa em cada mão”.

Estes são alguns dos seus predecessores. No emblemático poema “Deixa passar o meu Povo” pode estar inscrita, de algum modo, a chave da sua poesia: “vozes da América remexem-me a alma e os nervos” ou “não poderei deixar-me embalar pela música fútil / das valsas de Strauss”. “Escrevo…/ Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. / Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado / e revoltas, dores, humilhações, / tatuando de negro o virgem papel branco”. O poema que inicia a sua obra poética (“Nossa voz”), dedicado a José Craveirinha: “Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara / sobre o branco egoísmo dos homens / sobre a indiferença assassina de todos”.

A Antero, o amigo do mano Nuno, que lhe pediu aquele poema inicial, dedicará o poema “Se me quiseres conhecer”: “Se me quiseres conhecer, / estuda com os olhos bem de ver / esse pedaço de pau preto / que um desconhecido irmão maconde / de mãos inspiradas / talhou e trabalhou / em terras distantes lá do Norte”. Palavras de pitonisa, voz de sibila. Era já uma mulher consciente do seu papel e sobretudo revoltada.

Francisco Noa: “Divindade maior desta cosmologia é a liberdade ansiada (e ensaiada) e o exercício da palavra como instrumento consciencializador e agonístico. E a expressão arrebatada se, por um lado, subjectiva a expressão poética em Noémia, por outro, confere-lhe uma dimensão majestática e que faz do sujeito rapsodo das dores, dos anseios, da revolta, das resignações e dos mitos dos flagelados irmanados por um destino comum determinado pela ocupação colonial”.

Esta voz rude ímpia, brutal, feroz, selvagem, instintiva, brava, indócil, laboriosa, perseverante surge, na sua ferocidade juvenil, com uma espantosa maturidade. É, ao mesmo tempo, uma voz esplendente, deslumbrante, magnificente. É assombrosa e portentosa. A esta distância, ainda assim, não se consegue atingir a dimensão da sua força telúrica. “Ah, essa sou eu: / órbitras vazias no desespero de possuir a vida, / boca rasgada em feridas de angústia, / mãos enormes, espalmadas”. Esta é uma voz sublime.

Voz indignada, colérica ou enfuriada, contra a resignação, consciência do ser moçambicano, da sua condição, da sociedade injusta, voz insubmissa, intrépida. A voz do grito. Grito negro, mestiço, solitário e solidário. Voz livre e libertária. Voz e condição primeira da “poesia de raiz marcadamente moçambicana”, como avisadamente lhe designou Rui Knopfli, a quem Noémia dedica o poema “Bayete”. Em três anos, entre os 22 e os 25 anos, isto é: entre 1948 e 1951, escreve a poesia que constitui hoje o seu espólio. O nosso espólio. O espólio da moçambicanidade. O espólio da africanidade. Forçada a exilar-se, arrancada da terra e das suas gentes, da sua condição negra e mestiça, não escreve mais, à excepção de dois poemas, um na morte de Samora Machel, arrancado a ferros pelo sobrinho Camilo e aquele no qual acena aos antepassados.

O angolano Mário de Andrade, que fora colega de universidade de Eduardo Mondlane, no ano em que este permanecera em Portugal, a caminho dos Estados Unidos, escreve-lhe sabendo que ela, cansada do cerco da PIDE, se preparava para embarcar para a antiga capital do Império. Uma das causas desse cerco fora um artigo seu, em “O Brado Africano”, relatando a situação de Mondlane, então na África do Sul, a quem o governo de Malan não concedia a prorrogação do visto, impedindo-o de prosseguir os estudos na Universidade de Witwatersrand. Quando se conheceram, mais tarde, falaram das interrogações que haviam sofrido e o facto de não se conhecerem até então.

O Centro de Estudos Africanos, iniciativa que se iria replicar nos países independentes, estava em marcha, na rua Actor Vale, 37, da Tia Andreza, tia da Alda do Espírito Santo. Noémia não assiste às apresentações iniciais de Francisco José Tenreiro (de São Tomé) nem de Amílcar Cabral (da Guiné). Mas irá ter uma activa participação, ajudando sobretudo Mário de Andrade a organizar as sessões que visavam problematizar o futuro dos seus países. Estão ainda na capital portuguesa os jovens nacionalistas africanos. É companheira de Lúcio Lara (será madrinha do seu filho mais velho), Agostinho Neto, Amílcar Cabral, entre outros. Também se reúnem, amiúde, em casa de Francisco José Tenreiro ou no quarto de Mário de Andrade.

Em 1953, Francisco José Tenreiro e Mário de Andrade publicam “Poesia Negra de Expressão Portuguesa”. É a primeira publicação do género que reivindica a “poesia negra”. Noémia colabora com dois poemas: “Magaíça” e “Deixa passar o meu povo”. Já é, seguramente, a mais arrebatadora e arrebatada voz feminina da poesia africana de língua portuguesa. O seu nome começara a construir o mito.

Andrade será um dos primeiros a ir para Paris onde vai trabalhar na “Presence Africaine”. Noémia segue-se-lhe mais tarde. Entretanto, casara e nascera-lhe uma filha, a sua única filha, Gina. O marido Gualter Soares, poeta, oriundo de Moçambique, encontrava-se em Ponta Negra quando recebeu o aviso, em 1964, de que se voltasse a Portugal seria preso. Vai para Paris. Noémia vai ao seu encontro. Leva a filha, de ambos, às costas e é contrabandeada nas fronteiras até chegar a Paris. Marcelino dos Santos consegue-lhe um emprego no Consulado de Marrocos. Só em 1973, em plena primavera marcelista, regressará. Primeiro para a Reuters e, depois, para a ANOP, predecessora da LUSA, onde permaneceria até ao fim.

Em Paris assistira ao Maio de 68. Em Portugal, viverá o 25 de Abril. Ruy Guerra zombaria com carinho da amiga de infância: faltava ela ir para o Brasil para acontecer uma revolução. Não foi convidada para os festejos da Independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975. Os seus antigos companheiros tinham-na proscrito. Disseram-se inverdades sobre a sua estada em Paris. A maledicência de sempre: que estava rica e que se estava nas tintas para Moçambique: baixo, canalha e detestável. Ela visitou Moçambique quando pôde em 1984. Levaria 33 anos para revisitar a terra.

Entretanto, Noémia de Sousa subscrevia a condição de mito. Os seus poemas tornaram-se hinos: “Nossa Voz”, “Se me quiseres conhecer”, “Poema da infância distante”, “Zampungana”, “Moça das docas”, “Sangue negro”. Era lida e admirada não só em Moçambique, mas em todos outros países africanos de língua portuguesa. A sua voz chegara ao Brasil. No seu país de origem, os jovens reivindicavam-na. Esquecida apenas dos palácios.  Aliás, este fenómeno irá continuar ao longo da década 90 e no início do século XXI: a sua poesia é redescoberta pelos jovens, que a proclamam e a conclamam com jubilosa energia. Dizem os seus poemas, declamam os seus versos, reverberam-na. Em 1996, quando faz 70 anos, é-lhe prestada uma homenagem pública.

50 anos sobre a data em que cessara a sua escrita, lançámos, finalmente, o seu livro “Sangue Negro”.  Foi a 20 de Setembro de 2001, no dia dos seus 75 anos. Durante os anos em que convivi com Noémia fui um dos que insistiram para que publicasse em vida o seu legado. Ela anuiria e haveria de me incumbir a responsabilidade de coordenar esta edição. Queria a participação da Fátima Mendonça e do Francisco Noa, que irão assinar os textos ensaísticos que acompanham a obra. Também queria que a chancela fosse da AEMO. Chegámos a cogitar fazer uma co-edição com a Imprensa Nacional-Casa da Moeda em Portugal, mas tal desiderato não se cumpriu. Foi com gáudio que o fizemos. Ela já se encontrava muito debilitada pela doença. Ainda fui, meses depois, na companhia da Fátima Mendonça, visitá-la. Levávamos o livro. Ficámos deprimidos ao vê-la.

Manuel Ferreira fora dos primeiros a tentá-la convencer em publicar “Sangue Negro”. Michel Laban, seu amigo, também não conseguira. Aliás, ele ajudou a recuperar poemas que estavam em falta no caderno da autora. Rui Nogar, Gulamo Khan, Leite de Vasconcelos, Júlio Navarro, Fátima Mendonça, entre outros, tinham-na persuadido ao longo dos anos, debalde. Felizmente e finalmente ela acedera e conseguimos tributar-lhe em vida a nossa veneração, a nossa amizade, a nossa devoção. Inicialmente editado pela AEMO, “Sangue Negro” foi, posteriormente, publicado pela Marimbique e pela brasileira Kapulana. Está em marcha uma edição em francês. Estranhamente não está editada em Portugal.

Para além dos textos que enformavam o seu vetusto caderno, acrescentamos-lhe três textos: um velho poema de 51, um texto que fizera para um filme de Camilo de Sousa e um belíssimo poema que escrevera para um livro de fotografias (“A meu ver”) de Carlos Pinto Coelho. Desafortunadamente, o poema intitulado “A mulher que ri à vida e à morte” haveria de cumprir o seu desígnio a 4 de Dezembro de 2002. Aqui a relembro, nesta evocação hoje, 20 anos depois da sua morte, para que o nome da Noémia de Sousa não subscreva o anátema da desmemória e do descaso.

 

A MULHER QUE RI À VIDA E À MORTE

 

Para lá daquela curva

os espíritos ancestrais me esperam.

 

Breve, muito breve

tomarei o meu lugar entre os antepassados.

 

À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil

as unhas córneas de todos os labores

este invólucro sulcado pela aranha dos dias.

 

Enquanto não falo com a voz do nyanga

cada aurora é uma vitória

saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo.

 

Oyo, oyo, vida!

Para lá daquela curva

os espíritos ancestrais me esperam.

 

NOÉMIA DE SOUSA

 

Kampfumo, 4 de Dezembro de 2022

Já durante quase três décadas, líderes de todo o mundo têm-se reunido para formular uma resposta global à emergência climática que se torna cada vez mais agudizada. Acontece que, em vez de responder aos desafios reais, a maior parte dos debates nos últimos anos tem-se concentrado no crescente fosso entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. A Cimeira de 2022, a COP-27 em Sharm El Sheikh, não foi uma excepção.

O custo da “transição verde” acrescentado às despesas no combate às próprias consequências das alterações climáticas tornou-se uma verdadeira pedra de tropeço nesta temática global… A parte do mundo, que na altura se desenvolvia sem travões, energicamente exerce pressão, ameaçando – com multas e sanções por não seguirem os princípios da “agenda verde” – aqueles “desafortunados” que não podem aguentar tal fardo pesado.

Na cimeira climática de Glasgow (2021), uma coligação de Estados em desenvolvimento apelou à criação de um novo mecanismo financeiro para este fim, mas a proposta foi rejeitada. Este ano, foi finalmente aprovado um acordo sobre um “Fundo de Perdas e Danos” para regiões directamente afectadas pelas mudanças climáticas. Os meios de comunicação apressaram-se a chamar a este acordo de última hora “um evento histórico, coroando anos de esforço por parte de campeões do clima e activistas dos direitos humanos”. No entanto, todas as principais modalidades ainda devem ser elaboradas até à próxima cimeira. Portanto, é muito provável que a chamada “luz de esperança” para os países carenciados seja, de facto, apenas uma mera fachada para uma verdade incómoda. Quantas vezes altas palavras destes campeões divergiram nos seus actos?!

Ao contrário da proclamada disponibilidade dos países desenvolvidos para prestar ajuda financeira os Estados mais pobres, apoiando os seus esforços em descarbonização, o problema de financiamento da “transição verde” está muito longe de ser resolvido. Em 2009, a OCDE prometeu 100 mil milhões de dólares ao tal chamado “Terceiro mundo” na reestruturação económica. No fim, apenas 26 mil milhões foram atribuídos, sendo na sua maioria sob forma de empréstimos, o que tornou as economias ainda mais vulneráveis. Só para comparar – os países da NATO nos últimos tempos têm gastado duas vezes mais em armamentos para o regime nazi na Ucrânia. E nos próximos anos hão-de gastar ainda mais para recuperar as suas próprias reservas de armas esgotadas. Alguém calcula as emissões?

Perante um tal cenário, a Rússia está plenamente solidária com as reivindicações dos países em desenvolvimento de tomar em consideração especificidades das suas economias. A fim de alcançar uma transição sem prejuízo para o país, a política climática deve estabelecer um equilíbrio entre a utilização de tecnologias verdes e a manutenção da estabilidade económica com recursos disponíveis para o seu desenvolvimento actual. Hoje em dia, na Rússia, mais de 33% da energia eléctrica produz-se dos recursos renováveis. Está a ser criado um sistema nacional de monitorização de gases com efeito de estufa, e foram atribuídos fundos para a digitalização e melhoria dos relatórios nacionais sobre a implementação do Acordo de Paris. Mas é indispensável aperceber-se da impossibilidade de se recusar completamente os hidrocarbonetos nos próximos anos, passo a passo, preparando o terreno para a “transição verde”.

Neste ano, a União Europeia mostrou-se desiludida com os resultados da COP-27 “pouco ambiciosos”, apontando para a falta de novos compromissos da redução de emissão de gases poluentes. Continuando a fingir o empenho na “transição verde” acelerada, de facto, a política europeia move-se na direcção oposta – recuo nas ambições climáticas.

Desde o início da operação militar especial, os países europeus, por razões políticas, puseram como objectivo principal um corte acelerado das fontes de energia russas. Face a uma escassez de gás, as empresas estão à procura de uma saída desta crise à custa de combustíveis muito mais poluentes. Tem-se aumentado rapidamente a utilização do carvão. Tudo isto, portanto, se faz às escondidas e não se revela à voz alta nas tribunas internacionais, devido a um aumento considerável das emissões globais de gases com efeito de estufa. As importações de carvão da UE não diminuíram nos primeiros cinco meses de 2022. Segundo os dados da Agência Internacional de Energia (AIE), o consumo de carvão-vapor da UE na primeira metade de 2022 aumentou 16%. Entre outras coisas, os planos para substituir o gás de gasoduto russo (interrompido pelo ataque terrorista) pelo Gás natural liquefeito (GNL), particularmente dos EUA, Qatar e Egipto, não podem deixar de suscitar preocupações, uma vez que o fornecimento deste combustível tem uma pegada de carbono mais elevada. O gás norte-americano é maioritariamente de xisto, cuja produção contamina enormemente a ecologia. Outrossim, transportações do GNL aumentadas apresentam maior risco de fuga de metano, cujo impacto no aquecimento global é mesmo maior do que o do carbono. Quem se importa com que tudo isto contradiga as promessas europeias de diminuir as emissões de metano?

Tentando desfazer-se da dependência energética da Rússia, a União Europeia cai numa armadilha de fontes mais poluentes. Assim, multiplicam-se os riscos para os países vulneráveis que continuam a sofrer as consequências das alterações climáticas com uma grave falta de recursos. Nestas condições, na COP-27 a fenda entre o Ocidente e o “terceiro mundo” (embora encoberta por um “acordo formal”) na realidade nem diminuiu. Continuando a impor uma agenda verde a todos, o Ocidente está a violar descaradamente, por todos os meios, as regras que ele próprio escreveu. As ideias arduamente defendidas pelo grupo dos ecoactivistas, de facto, acabam por ser sacrificadas aos interesses políticos de “conter” a Rússia, mas quem sabe quais serão amanhã…

Na realidade, o mundo inteiro está a viver uma convulsão climática global, que os especialistas em clima de todo o mundo estão a chamar de sinais alarmantes para todas as nações. Em Junho passado, um terço do Paquistão esteve debaixo de água numa inundação devastadora, a pior inundação de uma década observou-se na Nigéria, a pior seca em 500 anos – na Europa, em 1000 anos nos EUA… Contudo, como podemos observar, em vez de reforçar medidas conjuntas, alguns países continuam a especular nos problemas climáticos, revertendo mesmo os avanços anteriormente alcançados.

P.S. Os canhões e mísseis ucranianos diariamente bombardeiam a maior central nuclear na Europa – a de Zaporíjia, cuja segurança é garantida pelos técnicos russos. Mas quem vai lembrar que a energia nuclear é uma das mais “verdes” e limpas (mas nas mãos limpas) se um dos mísseis afinal atingir o coração da Central?!

 

Por Alexander Súrikov,

Embaixador da Rússia em Moçambique

Luís Bernardo Honwana, que faz hoje, neste sábado, 12 de Novembro, 80 anos, é um dos precursores da literatura moçambicana e um dos maiores intérpretes da moçambicanidade. Quando tinha 22 anos, em 1964, fez publicar uma obra seminal e fundadora da moderna ficção moçambicana – Nós Matámos o Cão Tinhoso”. O início desta obra é um dos mais belos que se podem cotejar entre nós: “O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer”.

O jovem autor de “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, uma bela edição de 135 páginas, de pequeno formato, com ilustrações da pintora Bertina Lopes e composto por caracteres hieráticos, redigira uma nota biográfica igualmente singular: “Não sei se sou realmente escritor. Acho que apenas escrevo sobre coisas que, acontecendo à minha volta, se relacionem intimamente comigo ou traduzam factos que me pareçam decentes. Este livro de histórias é o testemunho em que tento retratar uma série de situações e procedimentos que talvez interesse conhecer”.

Começou a publicar histórias na página “Despertar” do “Notícias”. Colaborou em jornais (“Notícias”, “Voz de Moçambique”, “Tribuna”, “Diário de Moçambique” e “A Voz Africana”, na Beira), fez desenhos à pena, participou em exposições de artes plásticas, viu filmes e escreveu para o cinema, dedicou-se à fotografia, participou com jornalistas, poetas e pintores do seu tempo na efervescente vida cultural dos anos 60. Para além disso, praticou desporto e não se coibiu de conspirar activa e politicamente contra o regime. Foi um intrépido nacionalista. Conheceu, aos 22 anos, o opróbrio da PIDE, a humilhação, as sevícias, as injúrias. A prisão. Foram três anos e meio. A crueldade de um tempo que está hoje obliterado. A brutalidade de um regime.

As histórias – as sete histórias do livro – têm claramente um recorte autobiográfico, aliás isto é assumido pelo autor. “O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Devia ter sido a Mamã. Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que eu, também, ressonarei quando adormecer?” (“Inventário de imóveis e jacentes”) Ou: “Antes de ir para o serviço, o Papá foi ver a capoeira com a Mamã. Apareceram os dois à porta da cozinha, a Mamã com o avental já posto e o Papá com um palito na boca e o jornal debaixo do braço. Quando passaram por mim, o Papá dizia ´não pode ser´, ´não pode ser´, ´isto não pode continuar assim´” (Papá, cobra e eu”).

O mundo da infância é cartografado aqui num poderoso olhar. Para além destes textos (“Inventário de imóveis e jacentes” e “Papá, cobra e eu”), “As mãos dos pretos” compõe o universo encantado desse tempo pueril. Mas há aqui, também ou sobretudo, um admirável testemunho de um olhar indagador. O gabarito do seu narrador esplende, igualmente, em “A Velhota”, “Dina” ou “Nhinguitimo”, os restantes textos deste conjunto primoroso. A prosa é de grande quilate e denuncia uma espantosa maturidade do seu autor. Há nela uma acuidade linguística espantosa e um enriquecido resgatar da oralidade.

A realidade que estas histórias narram ultrapassa, em muito, a circunstância da mera biografia. Estes textos denunciavam, de forma resoluta e corajosa, uma realidade social profundamente injusta e desigual. Textos breves, quase todos, à excepção daquele que nomeia o volume (“Nós matámos o Cão Tinhoso”). Este livro é uma surpreendente obra literária e é um libelo acusatório virulento. Provavelmente, a grande literatura seja isso mesmo: a combinação entre as faculdades da arte em si e o poder de esta nos interpelar com a realidade que ilustra ou denuncia.

“Nós Matámos o Cão Tinhoso” é uma vigorosa denúncia das desigualdades e das injustiças sociais que o tempo e a realidade colonial impunham aos moçambicanos.  A obra consegue isso através de um olhar ou uma capacidade de observação invulgares. O fino recorte da escrita, o seu despojamento, a sua carpintaria literária, a forma como desenha as personagens, como expõe as tensões dessa sociedade profundamente disjuntiva, dessa realidade divergente, desse tempo digressivo, coloca-o, não só na condição de grande narrador moçambicano, mas também o filia entre o escol dos escritores africanos que seriam consagrados na mítica “African Writers Series”, da Heinemann, industriada pelo célebre Chinua Achebe.

A série publicou, para além do nigeriano Chinua Achebe, o queniano Ngugi Wa Thiong´o, o senegalês Sembène Ousmane, o egípcio Naguib Mahfouz, o nigeriano Wole Soyinka ou a sul-africana Nadine Gordimer, os três últimos laureados com o Prémio Nobel da Literatura. Diria, afoitamente, que Luís Bernardo Honwana, com “We Killed Mangy Dog and Other Stories” (tradução de Doroth Guedes, de 1969) pertence, sem favor, a esta plêiade dos maiores intérpretes africanos. Doroth, mulher de Pancho Guedes, é a Dori (“que é sensível à angústia dos cães”), da dedicatória da edição original de “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.

A obra de Luís Bernardo Honwana não se pode dissociar da sua biografia cívica, política, cultural e ética. Esteve três anos e meio preso.  Com ele, Armando Pedro Muiuiane, Rui Nogar, José Craveirinha, Malangatana Valente, Rogério Njauana, entre outros, são seus companheiros. Primeiro na ominosa Vila Algarve e depois na Cadeia da Machava. Craveirinha escreveria sobre esta dura provação Cela 1 (1980) e Rui Nogar haveria de cartografar esses tempos sinistros em “Silêncio Escancarado” (1982). No belíssimo livro “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade (2018), Nely Nyaka, mãe do autor, faz um arrepiante relato sobre a experiência prisional de Luís Bernardo Honwana. Antes deste, num outro brilhante testemunho, Memórias (1985), o pai, Raúl Bernardo Honwana, que também fora preso, dois anos antes, refere-se à prisão do filho e de outros nacionalistas. José Craveirinha: “Lembras-te amigo Luís? / Por semana eram duas vezes meia hora / e o guarda de turno a avisar / – “São 30 minutos e acabou!” (“Dia de visita”).

É interessante, aliás, numa leitura comparativa, perceber que há, nestas vidas, nestes percursos e nestas obras, um mesmo desiderato: um mesmo compromisso ético. Há, mesmo, nestas obras, uma mesma estética, uma mesma poética e uma mesma ética que enforma o percurso desta família exemplar: os valores, a decência, a integridade, a moral, a probidade, a honradez. Isto é inédito. Para além disso, a realidade familiar e social que estes autores (Pai, Mãe e Filho) traduzem nas suas obras revelam uma lisura e uma autenticidade impressionantes. Mais uma vez, aqui se atesta o prodigioso olhar de Luís Bernardo Honwana, que fixou, muito jovem, magnífica e cabalmente, um tempo histórico.

Se, em 1964, Luís Bernardo Honwana, com a sua pluma de escritor de primeira água, inventava a nossa ficção narrativa, em 2017, ao publicar o livro de ensaios “A Velha Casa de Madeira e Zinco” afirmar-se-ia, de novo, como intérprete fundamental da moçambicanidade. Este livro, sobretudo o seu ensaio inicial, irá balizar os estudos, as análises, as perspetivas, os debates, ou o que quer seja, que exista, lá, no futuro, sobre uma época, o contexto e a realidade sempre contraditória da nossa nacionalidade. Este é, também, por consequência, um texto fundador à semelhança do que acontecera com o prodigioso “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.

O livro “A Velha Casa de Madeira e Zinco” alia e articula uma capacidade e qualidade literárias sobejamente conhecidas a uma análise, discussão e provocação intelectuais igualmente únicas e invulgares. Publicado 53 anos depois da sua obra de estreia, este livro desfez o mito do autor de uma obra só. Aliás, ao longo de décadas defrontou-se com cobranças implacáveis. Quando, em 1990, o entrevistei para o livro “Os Habitantes da Memória”, não contornei a pergunta sacramental: continua a escrever? A resposta foi fleumática: “Escrevo intermitentemente como suponho que toda a gente o faz. Mas tenho agora uma situação interessante, que é a raiva das pessoas pelo meu silêncio, uma situação de devedor que eu preferia não ter e que nos melhores momentos me convenço de que não tenho. Mas é isto que se está passando. As pessoas “cobram” de mim o não publicar. E, às vezes, cobram de uma forma violenta, extremamente severa. Mas, de qualquer modo, suponho que, se isso estiver no desígnio dos deuses, essa actividade poderá ser retomada e é bem provável que sim”.

Luís Bernardo Honwana procede uma época clemente em termos culturais para Moçambique. A sua geração é a dos prestigiosos fundadores. Não só na prosa de ficção, como é o seu caso, mas também na poesia, na pintura, na fotografia ou na música. Craveirinha (“expressão verdadeira da poesia de Moçambique”, como dirá na dedicatória no frontispício da sua excepcional obra) é um dos seus companheiros, como o são: Rui Nogar, outro poeta extraordinário; Malangatana, pintor arrebatador e uma força tenaz da natureza; Ricardo Rangel, o mestre do instante decisivo, entre outros tantos. Esta é, por conseguinte, uma geração única, absolutamente magnificente, determinante e fundadora do devir moçambicano. Nesta pátria da desmemória e do esquecimento, não raro, pratica-se o descaso. A história destes fundadores – poderia e deveria acrescentar o insigne nome de Noémia de Sousa, cujos versos fazem a epígrafe de “A Velha Casa de Madeira e Zinco” – é uma das páginas mais nobres da nossa história e cultura do século XX. A nobreza é o que os distingue.

De Luís Bernardo Honwana avulta um percurso público edificante: jornalista e nacionalista, preso político, combatente pela liberdade, Director do Gabinete do Presidente da República logo após à Independência, sucessivamente Secretário de Estado e Ministro da Cultura, fundador e Presidente do Fundo Bibliográfico, membro do Conselho Consultivo da UNESCO, seu representante na África Austral, é hoje Director Executivo da Fundação para a Conservação da Biodiversidade – BIOFUND.

Para além da sua vastíssima cultura, é um tribuno lustroso, homem de uma rara inteligência, dono de uma sedutora e fascinante conversa. Pertence à categoria dos que melhoram o silêncio quando falam. Entre nós, não abundam espécimes similares. Tenho o privilégio de privar com este vulto da nossa nacionalidade e não tenho pejo em encomiá-lo hoje e aqui. Não há muitos como ele, pese embora a pátria condescenda a dispensar figuras deste quilate. Este desapreço só amesquinha a pátria que se compraz com sua mediocridade.

Pertenço à geração de moçambicanos que estudaram, em anos sucessivos, a obra “Nós Matámos o Cão Tinhoso” e se formaram na companhia das suas personagens, sobretudo: Ginho, Quim, Gulamo, Zé, Xangai, Carlinhos, Issufo, Chico, Telmo, Chichorro ou Norotamo, sem esquecer a renitente Isaura. O Senhor Duarte da veterinária, o Administrador, Madala, Maria, o Capataz, Djimo, Filimone, n´Guiana, Muthakati, Tandane, Muthambi, o Senhor Antunes da Coca Cola, a Dona Dores, o Senhor Frias, a dona Estefânia, o Rodrigues da loja, o Vírgula Oito, Maguiguane, Mathumbitana, eu sei lá! Papá, Mamã, Lolota, Tina, Gita, Nandito, Nelita, Joãozinho. Uma verdadeira galeria de personagens (reais) que hoje fazem parte do nosso imaginário.

Termino este depoimento celebrativo, lembrando que, gozando do privilégio de conviver com estes numes da literatura moçambicana – Noémia, Craveirinha, Nogar, entre outros –, ao ouvi-los, o que fazia amiudadas vezes, eles falavam, com veemência, de homens probos, que eram comuns no tempo em que eles viveram e se afirmaram. Esta fidalguia, de mulheres e homens distintos, honestos e honrados, dignos e decorosos, éticos e probos, não avulta, hoje, por certo. Vivemos nos antípodas dos tempos irrepreensíveis de outrora e das figuras que nos nobilitavam. Luís Bernardo Honwana é um dos últimos desta tribo exemplar. Aqui lhe deixo o meu preito, neste dia em que ele celebra 80 anos e que nós, seus leitores contumazes, perseveramos.

 

KaMpfumo, 12 de Novembro de 2022

 

 

 

Nos últimos dias, o mundo está de olhos na cimeira do Clima de Sharm El Sheik, no Egipto. São cerca de 200 Chefes de Estado e de Governo reunidos para discutir medidas de redução da emissão de gases com efeito estufa, que estão na origem da subida da temperatura no mundo, originando as alterações climáticas.

Para muitos, as mudanças climáticas são apenas um mito. No entanto, aqueles que sentem os efeitos na pele sabem que são reais. Por isso, este é um tema que ainda não é levado muito a sério em vários sectores, principalmente em países em desenvolvimento, como Moçambique.

Muitos acreditam que Moçambique e outros países pobres têm de conseguir uma licença para continuar a poluir em troca do desenvolvimento, porque foi assim que se desenvolveram os países mais poluentes.

Esta visão é problemática, porque o planeta terra já não aguenta mais poluição e, como resposta, surgem as mudanças climáticas, cujos efeitos são cada vez mais frequentes e violentos para todos nós.

Os países pobres, como o nosso, têm de procurar formas de se desenvolver em termos ecológicos, adiantando-se, tornando as suas economias menos poluentes, porém altamente rentáveis. Isso é possível!

Para um país ser rico não depende exclusivamente da exploração de combustíveis fósseis ou de outros recursos que tendem a prejudicar a vida do ser humano. Usando o raciocínio, é possível ter uma economia mais competitiva, amiga do ambiente e resiliente aos efeitos das mudanças climáticas.

Moçambique é dos poucos países que pode, rapidamente, fazer a transição para a economia verde, enriquecer e tirar milhões de pessoas da pobreza. Para tal, é preciso aproveitar as cimeiras do clima para negociar com os países ricos e mais poluentes, de modo a pagarem-nos ou a indemnizarem-nos pelos estragos que causam ao planeta. Esse pagamento tem de ser usado para a verdadeira transição de que precisamos.

Ora, quando se fala das mudanças climáticas, Moçambique não é apenas vítima. O nosso país é dos grandes poluidores. Um estudo realizado pelo então Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural (MITADER), que avaliou o desmatamento no país, entre 2003 e 2016, indicou que deitamos abaixo, anualmente, 269 mil hectares de floresta.

Isso é apenas um quarto do desmatamento ocorrido ano passado, no Amazonas, e que deixou o mundo em alerta máximo. É apenas um terço de toda a área que ardeu na Europa este ano. O mais intrigante é que 86% dessa área é desmatamento feita pela agricultura itinerante, ou seja, familiar. E só 13% corresponde ao desmatamento causado pelo sector da indústria madeireira – vale lembrar que a agricultura é responsável por cerca de 25% das emissões de carbono.

Dados do Centro de Informação de Ciências Climáticas indicam que, anualmente, Moçambique emite para a atmosfera 111 milhões de toneladas de gases com efeito estufa, o que representa cerca de 10% das emissões da China, que é o país que mais polui no mundo, com 10 mil milhões de toneladas por ano. A China tem um PIB anual de 17,73 triliões de dólares, enquanto Moçambique produz apenas 15 mil milhões. Ou seja, temos um PIB mais de mil vezes menor que o da China, no entanto, poluímos 10% do que eles poluem. Ainda segundo o Centro, acima citado, é mesmo com a destruição de florestas e a agricultura que mais poluímos. O desmatamento emite 75 milhões de toneladas de carbono enquanto a agricultura e a pecuária, juntas, mandam para atmosfera um total de 18 milhões de toneladas de gases poluentes.

Cientistas entendem que a floresta está directamente ligada às mudanças climáticas e os dados de Moçambique provam isso. Muitos cientistas defendem que não basta cortar a emissão de gases poluentes, é preciso tirar o carbono que está na atmosfera. E só as árvores é que podem fazer isso de forma eficaz. O que significa que, ao cortar mais árvores, estamos a tirar a capacidade de o planeta reduzir o aquecimento global. Plantar mais árvores é a solução que a humanidade tem à sua disposição para combater as alterações climáticas. Por isso, na anterior cimeira de Glasgow, essa foi a principal recomendação: plantar mais florestas e reduzir drasticamente o desmatamento.

Por um lado, através da fotossíntese, as árvores retiram da atmosfera o dióxido de carbono, libertam o oxigénio e enviam o carbono para o solo, onde desempenha um papel fundamental: alimentar os triliões de microrganismos que têm a função de degradar a matéria orgânica e fornecer nutrientes e imunidade às plantas.

Por outro lado, as árvores, através da transpiração, garantem a humidade do ar, bem como 40% da chuva que cai no planeta. Os outros 60% vêm dos oceanos, rios e lagoas, através da evaporação. Estes dois processos, fotossíntese e transpiração das árvores, têm uma grande influência sobre o microclima, estabilizando as temperaturas e garantindo a regularidade das chuvas.

Segundo o estudo do MITADER, citado acima, as províncias com maior índice de desmatamento em Moçambique são Manica, Nampula e Zambézia. Sofala, Tete, Cabo Delgado e Niassa estão com desmatamento moderado, e com menor índice estão as províncias do Sul.

Nos últimos cinco anos, as províncias de Sofala, Manica, Nampula, Zambézia, Cabo Delgado e Tete ressentem-se, frequente e violentamente, dos desastres naturais, que, de forma repetitiva, afectaram quase 4 milhões de pessoas e mataram outras mil.

Cresci a ouvir que Madagáscar servia como uma barreira contra ciclones para Moçambique, porque, sempre que houvesse um ciclone a formar-se no Oceano Índico, passava por aquela ilha e perdia forças quando entrasse no Canal de Moçambique. Hoje em dia, já não é bem assim. Antes pelo contrário, os ciclones até ganham forças. Segundo os meteorologistas, é a alta temperatura das águas do mar que causa os ciclones.

Segundo um estudo feito por climatologistas dos EUA, os maiores ciclones que já se abateram pelo planeta terra aconteceram num cenário de temperaturas altas. Pelo que alertam: se a humanidade não tomar medidas para baixar a temperatura, haverá mais ciclones e, cada vez mais violentos.

É cada vez mais consensual entre os cientistas que a floresta pode ajudar-nos a baixar a temperatura do planeta terra, claro, o que deve ser combinado com a redução da emissão dos gases com efeito estufa.

Mesmo para reiterar a importância das árvores/florestas e da agricultura na redução da temperatura, convido aos leitores a verem o documentário “Kiss the Ground”, na Netflix, onde o cientista norte-americano Ray Archuleta, com recurso a imagens retiradas dos satélites da NASA, mostra a concentração dos gases com efeito estufa depois das colheitas. Igualmente, mostra como essa concentração dos gases baixa drasticamente após as sementeiras e durante o período em que as culturas agrícolas se desenvolvem.

Retomando, a ideia da transição da economia verde, passível de ser adoptada por Moçambique, pode ter fundamento no facto de que a agricultura é a base de desenvolvimento do país e a principal fonte de renda para 75% a 80% da população.

Actualmente, o modelo de produção dessa agricultura familiar está completamente exposta aos efeitos das mudanças climáticas, que, para além de destruir os campos agrícolas, através de ventos fortes, inundações e/ou secas, propiciam a proliferação de pragas e doenças que destroem milhares de hectares de diversas culturas. Isso aliado à enorme dificuldade de acesso a pesticidas e outros insumos por parte desses agricultores, além da degradação dos solos por erosão ou uso intensivo de agroquímicos.

Essa é uma realidade nua e crua em Moçambique.

Soluções?

Há várias. Mas é uma conversa para a qual ainda me parece que não estamos preparados. A actual política pública de desenvolvimento da agricultura passa pela distribuição de milhares de tractores aos camponeses, o que significa que, nos próximos anos, a área desmatada vai aumentar. Só se usa tractor numa área sem árvores, para além de que revolver a terra com recurso a estas máquinas é uma das formas de tirar o carbono armazenado no solo para a atmosfera, o que concorre para agravar os efeitos das mudanças climáticas.

Ademais, penso que com um estudo aprofundado podemos, com certa surpresa, descobrir que um número considerável dos tractores distribuídos pode não ter sido usado e, se tiver, as áreas que lavraram ficaram inundadas e/ou as culturas foram perdidas.

A solução, a meu ver, passa por Moçambique adoptar a Agricultura Sintrópica e/ou Agricultura Regenerativa, com resultados positivos em vários cantos do mundo, quer para a adaptação da agricultura familiar, quer no aumento significativo da renda dos camponeses. As duas formas de agricultura geram abundância e diversidade de produtos agrícolas e reduzem, drasticamente, a dependência por agroquímicos: na fertilização e no combate a pragas e doenças. Por exemplo, uma família que produz em Sistema Sintrópico, numa área de um hectare, consorciando café, hortícolas, leguminosas, cereais, frutas e espécies florestais nativas, tem potencial para ter duas ou três vezes mais rendimento do que aquela família que desmata cinco hectares e planta apenas o milho (é uma experiência que pessoalmente estou a fazer em Manica).

Este modelo tem potencial para parar o desflorestamento (recuperar terras que as famílias deixaram de usar por esgotamento, por sucessivos anos de más práticas agrícolas), combater as queimadas descontroladas e, sobretudo, proteger estas famílias dos efeitos das mudanças climáticas. Por se tratar de pluricultura e não monocultura, em caso de ciclone, podem perder uma parte das culturas de porte mais elevado, mas as de porte baixo vão resistir e vão garantir a segurança alimentar.

É com enorme satisfação que vejo que grandes projectos de agricultura comercial, em Moçambique, estão a começar a adoptar este modelo de produção. É o caso dos projectos de café, em Chimanimani e Gorongosa, e o algodão em Nampula e Niassa, pertencentes ao Grupo João Ferreira dos Santos. Mas é preciso que o Governo adopte como política pública.

A pecuária também pode adoptar modelos de produção amigos do ambiente e bastante rentáveis como a Integração Lavoura, Pecuária e Floresta, em que nas áreas de pasto se plantam espécies florestais em consorciação com a produção de grãos (milho e soja, por exemplo) e a própria criação gado.

Só se adoptarmos estas práticas, teremos potencial para melhorar a renda de 75% a 80% da população moçambicana. Isso significa tirar essa gente da linha da pobreza, usando o princípio da economia verde e ecológica. Significa diversificar a economia, porque os camponeses com mais recursos vão aumentar o seu consumo de bens e serviços, atraindo outro tipo de actividades económicas para as zonas rurais. Se este ciclo funcionar, a educação, a saúde, a água, a energia, as telecomunicações e outros serviços públicos de qualidade vêm automaticamente. Porque quem tem dinheiro vai procurar sempre o melhor para si e para os seus, tal como explica a Teoria das Necessidades de Maslow.

Portanto, acredito que é possível uma Nação desenvolver-se adoptando um modelo de sustentabilidade ambiental, social e económica. Caso contrário, estamos a caminhar para o suicídio colectivo e para o fim da humanidade. E sem humanos, o planeta terra sabe como se auto-curar e não irá desaparecer.

O Poeta Jorge Viegas, de seu nome completo Jorge Alberto Viegas, nascido em Quelimane, a 6 de Novembro de 1947, faz hoje 75 anos. Publicou, muito jovem, aos 19 anos, em 1966, “Os Milagres”, o seu livro de estreia. Seria, porém, ao ver os seus poemas estampados nos cadernos de poesia “Caliban”, editados por João Pedro Grabato Dias e Rui Knopfli, dois nomes importantes da nossa lírica, que se sentiria reconhecido como poeta. Não é caso de somenos importância: estava acompanhado de José Craveirinha, Rui Nogar, Sebastião Alba, João Pedro Grabato Dias, Rui Knopfli (para citar os nomes locais), ou Jorge de Sena ou T.S. Eliot (traduzido por Knopfli e apresentado por Eugénio Lisboa). Isto em 1971, no ano em que o jovem promissor está à beira dos 24 anos.

Quando publica “O Núcleo Tenaz”, a sua obra mais significativa, na mítica colecção Autores Moçambicanos, do INLD, na brevíssima nota biográfica, na contra-capa da obra, este facto (a sua colaboração nos cadernos “Caliban”) merece destaque. Não refere aí o seu livro primaveril. Do autor vai constar ainda o facto de exercer as funções de Director de Finanças, em Nampula, onde então residia. Estávamos em 1982, Jorge Viegas tinha 35 anos. Começara, porém, a experimentar as amolações da revolução. Vivíamos tempos alvoroçados. Abatido, exaurido, fatigado, profundamente doente, aparta-se da Pátria, no ano seguinte.

Do meu país as aves se ausentaram / e com elas se foi a vida, a alegria. / E os poetas, nos versos que cantaram, / foram pássaros de morte e de melancolia”. À esta distância, eu diria que estes acerados versos subscrevem o anátema do nosso destino individual e colectivo. A despeito, um poeta capaz de semelhantes versos tem direito a habitar a nossa mitologia literária. Jorge Viegas, avaro e escasso, rebelde e tenaz, indômito e soturno, eufórico e taciturno, canta sempre a vida e a morte, proclama a liberdade, ama voluptuosamente as palavras. Nos tempos em que a revolução concitou o seu entusiasmo teve dele uma adesão comedida. Nunca foi panfletário, sempre um subversor da linguagem.

“O Núcleo Tenaz” inicia com um poema que traz uma epígrafe que é também uma espécie de programa ou, até, epigrama: “A Pátria está nos livros que eu não li”. Este poema, sem título, evoca, no seu primeiro verso, o Poeta, que enuncia: “As pátrias nascem, crescem, / vivem dentro de nós.” Mais adiante em “Fala de um guerrilheiro”: “Neste tempo de susto e de loucura, / Tempo de fome e tempo de amargura / A Pátria cresce em nós num sonho puro.”

Acto contínuo, na página seguinte, o poeta da “Subversão” prescreve o tom da insurreição: “O pintor subverte a paisagem. / O poeta subverte os planos da linguagem. / O guerrilheiro subverte os homens sem mensagem. // Subverte. Subvertemos. / Subvertidos fomos. / À subversão devemos / A estatura do que somos.” Sublinho: “À subversão devemos / A estatura do que somos”. Este poema, este tom subversivo, esta sublevação poética, também seriam o mote da geração que viria a despontar nos anos 80 quando esta obra foi publicada. Alguns dos poetas da minha geração – Eduardo White sobretudo – reclamam-no. “O Núcleo Tenaz” foi, para alguns de nós, uma espécie de breviário.

Era o tempo no qual “o inimigo move-se no arco dos azimutes”, tempo onde: “Baionetas caladas / Perfuram a noite. / Permaneço de pedra. / Transmudado em basalto”.  Isto na “Canção de Bagarila”, dedicada a José Craveirinha. Aliás, as dedicatórias neste livro para além de denunciarem laços poéticos inextricáveis, são uma espécie de cartografia lírica do autor. A Sebastião Alba dedica-lhe Jorge Viegas o poema que dá título ao livro onde estão inscritos estes versos: “Com o poema / abriremos a noite, / jugularemos o medo.” “Porque o poema é sempre / (mesmo o das palavras mansas e amáveis) / o núcleo tenaz / duma revolução.”

Poesia que adere ao sonho sem ser necessariamente panfletária. O fervor da revolução numa escrita vigiada obstinadamente. Parece que estamos perante uma contradita? “Ao escreveres um poema / articula bem as palavras, / todas as palavras necessárias, / para que elas permaneçam intactas / não na brancura do papel, / mas grafadas, indelevelmente, / na memória dos homens”, conclama Viegas.

Provavelmente, o verso que cito a seguir resolva o paradoxo de uma poesia engajada que não é necessariamente panfletária: “As palavras estão no começo e no fim de todas as cousas”. Creio que está aí a chave. No texto “Poema” diz o poeta: “E canto. / E evoluo nas minhas coordenadas. / “Que os humanos se matem às dentadas” / Pois que, por enquanto, / eu escrevo poemas para mulheres sentadas”.

Nos primórdios da década de 80, a revolução revela algumas fissuras e começa a conhecer-se-lhe um certo refluxo. Uma brutal e indisfarçável crise social denunciava-lhe o impasse. Não deixa de ser admirável, neste contexto, a afoiteza do poeta. Neste mesmo livro, o tom lírico, que ao tempo era uma espécie de sublevação, vai-se acentuando: “O teu corpo de planos e derrotas, / Onde esvoaça à pura luz da aurora, / A exilada sombra das gaivotas”. (“Guida”). Ou: “o amor fende as águas da melancolia”. Ou ainda: “Há um lugar de sombra nos teus olhos. / Nesse lugar me deito e adormeço.”

“O Núcleo Tenaz” é também um livro de desencanto. Num texto ominoso, dedicado a Rui Knopfli (“Círculo de Sombra”): “A minha alma é um círculo de sombra. / Os meus poemas são a pálida mensagem / dum homem melancólico. Se sou poeta, / decerto não sou do tempo presente.” Há lugar para uma certa distopia aqui. “Escrevo poemas de amor, e os meus poemas / não conduzem os povos à contestação. / Gosto de passear nas ruas a antiga liberdade / que eu sei haver nos poetas que mais amo”. É um dos mais belos e pungentes poemas deste poeta moçambicano.

Esta inflexão acentua-se no poema seguinte: “Eu escrevo poemas, / somente para fugir à sedução, / ao trágico pendor da minha alma / por uma poça negra, / tão funda como a morte”. Aqui está o desengano. Em “A Esperança Aracnídea”, dedicado a Rui Nogar: “No espaço de sombra / das palavras que escrevo / o futuro é ilegível”. Ou mais adiante: “Sobreviventes do naufrágio de nós mesmos”. Torna-se flagrante este dissídio quando em “As palavras são poucos” o poeta escreve: “As palavras são poucas / para explicar o cansaço, / o desânimo de estarmos / inevitavelmente vivos.”

“O Poeta / é o que tem a memória límpida de alguns lugares / onde não foi em data nenhuma a sua vida.” Eu diria que este livro que vai da adesão à revolução à disforia aquando do seu refluxo é, ao mesmo tempo, belo e lancinante, melancólico e profundo, escrutina ou perscruta, o mais profundo do seu ser.

O livro seguinte, “Novelo de Chamas”, publicado em 1989, em Lisboa, pela ALAC, de Manuel Ferreira, experimenta os limites dessa circunstância biográfica adversa do autor, marcada pela exaustão, pela descrença, pela prostração, pela angústia e pela tribulação. Mesmo quando afirma em “Brancura viva”: “Da obscura noite do sonho / nasce a brancura vida do poema”, o que encontramos neste livro profundamente taciturno? “Sinais de morte?”

No poema “Necrologia” parece chegar-se ao limite do paroxismo: “Acaba de morrer / na sua residência circular / de Illinois ó Prata, / o poeta moçambicano / Jorge Viegas. / Paz à sua alma”. “Nenhuma aspa de luz me ilumina, / nenhum deus vela à minha cabeceira.” Poesia agoirenta, aziaga, sinistra, consternada, amargurada, sorumbática, agónica.

Mas sempre uma poesia reveladora do seu alto estro, capaz de versos sublimes: “fina haste de melancolia”, “os açulados nervos da linguagem” ou “a fúria vocabular de deus”, entre outras tiradas, que denunciam o conseguimento daquilo que o poeta alvitra ser “a tentativa de fazer / com as palavras, / o que a Ralenkova / faz com o arco”.

Para além destas obras, os poemas de Jorge Viegas estão coligidos em “No Reino de Caliban III” (1985), de Manuel Ferreira, na “Antologia da Nova Poesia Moçambicana” (1993), que co-organizei com a Fátima Mendonça e em “Nunca Mais é Sábado” (2004), antologia de poesia moçambicana. “Novelo de Chamas”, publicado há 33 anos, foi a sua última obra conhecida. Foi nessa época em que o conheci pessoalmente e tivemos um cordial embora limitado convívio.

Num texto mítico (“Notas para a recordação do meu mestre Fonseca Amaral”), o Poeta Rui Knopfli escreve: “Fonseca Amaral é, por direito e mérito próprios, um dos nomes mais altos e representativos da Poesia em Moçambique e, simultaneamente, por desleixo ou abulia, um dos menos conhecidos e apregoados, espécie de grande ausente nos vários certamos em que vamos acrescentando pátina às nossas acanhadas glórias caseiras”. Eu diria exactamente o mesmo de Jorge Viegas. Proferiria as mesmas palavras. Esta efeméride, os 75 anos do Poeta Jorge Viegas, constitui, por conseguinte, um facto literário importante e um pretexto para o lembrar e celebrar.

No texto que redigiu para o prefácio de “Novelo de Chamas”, Luís Carlos Patraquim diz o seguinte deste poeta muitas vezes omisso entre nós: “É esse Ser, esse deus ou deuses plurais, que desde longa data vêm habitando a Poesia deste Jorge Viegas, ora sarcástico, ora terrível, ou angustiado como um dos escolhidos para descobrir no deserto o maná da sua travessia”.

No poema “A loucura”, Jorge Viegas escreve: “De louco e de poeta / todos temos um pouco. / Mas eu tenho mais de louco”. Isto é óbvio sarcasmo. No entanto, este poderia ser um epigrama da vida, da biografia ou do destino deste poeta que escreve dolorosa e profeticamente estes terríveis versos: “No meu país / a única forma de liberdade permitida / é a loucura”.

 

KaMpfumo, 6 de Novembro de 2022

 

 

Quem manda nas nossas vidas é a sociedade, o senso comum, e não o nosso mero querer,

o nosso livre arbítrio. A sociedade é quem nos tira a fotografia e exibe-a publicamente.

in Masingita ou a subtileza do incesto.  

 

Boa noite a todos.

Antes de me perder nesta tentativa de apresentar o livro, eu quero agradecer ao Juvenal por me confiar esta nobre tarefa. O Juvenal é um dos escritores de referência em Moçambique e dos que mais regularmente publica. Então, quando nos convida a apresentar uma obra literária da sua autoria, dá-nos uma falsa ideia de que somos importantes, até porque o nosso nome circula em cartazes de grandes centros culturais como o Camões.

Lembro-me de que o Juvenal convidou-me a apresentar a sua novela depois de uma entrevista que me concedeu, no programa Artes e Letras da Stv, mesmo a propósito dos 40 anos da AEMO. Nessa ocasião, disse-me assim: – Zé, eu tenho um novo livro que em breve será lançado pela Fundza no Camões. Mas ainda não tenho um apresentador.

Bem, nesse instante, vocês sabem, o Juvenal é uma pessoa serena e que fala muito devagar, o que nos dá a possibilidade de pensarmos mil e uma coisas enquanto ele ainda não terminou a ideia ou mesmo a frase… Não tendo o escritor um apresentador do seu mais recente título, preciptei-me a julgar que ele pretendia que o ajudasse a encontrar alguém para assumir essa função. Imediatamente, pensei em três nomes: Lucílio Manjate, Albino Macuácua e Léo Cote. Quando pretendia avançar para o quarto, eis que o escritor remata: – Gostaria que fosses tu a apresentar o meu livro. O que te parece?

Um convite desta natureza, feito por um autor como Juvenal, fundador da primeira revista literária de Moçambique depois da independência, a Charrua, e uma voz de vanguarda da Geração Charrua, é uma ordem e um privilégio. Por isso aceitei cá vir partilhar convosco as minhas leituras sobre a nova proposta do escritor.

Assim sendo, eu intitulei esta intervenção da seguinte maneira: Masingita ou a casa do pecado. Logo no princípio, o que me motivou a intitular parte desta minha intervenção, no caso a casa do pecado, foi o título do livro de Matilde Chabana, O perfume do pecado, apresentado por mim aqui no Camões, em Fevereiro deste ano. Na verdade, apropriei-me daquele título porque, em parte, o livro da Matilde, editado pela Kulera, dialoga com a novela de Juvenal Bucuane, editada pela Fundza. No primeiro caso, mesmo sendo poesia, O perfume do pecado é um mergulho na proibição, no que é vedado às mulheres, no pecado que, na realidade, funciona como uma espécie de reivindicação da liberdade numa sociedade machista.

Em segundo lugar, o que inspirou o título desta minha intervenção, a parte do pecado, foi a seguinte passagem. Para os que têm o livro, por favor, página 59:

 

Não suportavam mais aquele lugar que, durante o sono que lhes devia ser retemperador, agoiravam-nos esgares infames que habitavam os seus sonhos. Os pesadelos não tinham fim, perfilavam ao longo da noite. Já não tinham paz. O tecto de zinco da casa parecia estar a ruir, pelo barulho e miar incessante dos gatos, como se se aliassem ao ambiente sinistro dos habitantes das redondezas da casa pecaminosa.

 

Quanto ao termo masingita, nesta minha intervenção, claro está, resulta do facto desse termo compor a totalidade do título da mais recente obra literária de Juvenal Bucuane: Masingita ou a subtileza do incesto. Masingita é um termo ronga, entre vários significados, quer dizer sacrilégio em português. Mais à frente, iremos perceber porque a utilização do termo faz sentido neste livro.

Ora, Masingita ou a subtileza do incesto é uma história sobre as consequências que o amor não correspondido pode gerar nas pessoas. Tem-se dito que os filhos pagam pelos erros dos pais. E, desse ponto de vista, Juvenal Bucuane traz aqui uma novela interventiva, pisando, muitas vezes, terrenos movediços. Esta é uma história, fundamentalmente, de Marta e Pepuka, mãe e filho que, depois de cada um se separar do seu cônjuge, voltam a morar juntos. É uma aventura acutilante sobre a condição da mulher e sobre como certos hábitos e costumes conspiram para o que podemos considerar minimização do sujeito feminino, conforme ilustra o seguinte excerto. Por favor, os que têm o livro, página 21:

 

Depois de se concluir, no fervor da troca de palavras, que já não havia volta para a reunião do casal, esgrimidos que foram os argumentos, de ambas as partes, até à exaustão, à família M’Phumelo não restava mais que insistir no argumento de que, como Marta não tivesse sido lobolada e premiara a família Ndleleni com um filho varão, que era uma promessa de continuidade do seu nome familiar, o justo seria que esta família se redimisse, lobolando a sua filha, caso contrário, esta voltaria para casa paterna, passando, o filho do casal e sua prole – dois filhos menores, a serem, exclusivamente, novos elementos da família M’Phumelo, como se nenhuma relação tivesse existido entre as duas famílias.

 

O excerto que acabei de ler marca o episódio em que Marta e Plínio encontram-se no processo de separação. Marta não tem voz. Não se faz ouvir para dizer que não concorda com a separação ou com a contrapartida colocada pela família e muito menos é consultada sobre o que quer que seja. O marido e a família dele pretendem-na devolver ao lar paterno como mercadoria. Do mesmo jeito, a sua própria família pretende-a receber de volta como “coisa” inexpressiva. Os hábitos e os costumes colocam Marta numa situação difícil, de tal maneira que, ao nível da comunidade onde vive, ao invés de receber apoio pelas consequências enfrentadas antes e depois da separação, é praticamente discriminada, inclusive, por outras mulheres.

Há neste Masingita ou a subtileza do incesto o cuidado de Juvenal Bucuane no retrato da condição daquelas mulheres que, por exemplo, ao separarem-se, devido à forma como a sociedade moçambicana reage a isso, mesmo precisando, não voltam a casa dos pais. Para evitar certos olhares, certas perguntas e constrangimentos, colocam-se a alugar uma casa geralmente precária onde “recomeçar” não é um verbo tão auspicioso quanto deveria ser.

Masingita ou a subtileza do incesto é uma história de relações amorosas tensas e sobre a consequência das coisas. Quando as relações entre Marta e Plínio e Saquina e Pepuka falham, surgem danos colaterais. Logo, a ligação causa e efeito é tão necessária quanto indispensável. A causa e o efeito acompanham toda a narrativa como se Juvenal Bucuane pretendesse iluminar zonas de penumbra que, afinal, podem constituir determinadas formas de ler a realidade à nossa volta e, sobretudo, à volta dessas tantas mulheres que a percepção machista as destrói sem redenção.

Ao colocar o amor no princípio de tudo que move o enredo, Juvenal Bucuane questiona e questiona-nos sobre as nossas acções em prol do investimento naquele sentimento. Desse ponto de vista, claramente, o livro não nos dá respostas gratuitas, mas pode ser que nos ajude a chegar a algum lugar, a algum entendimento, a uma visão alargada de um mundo menos preconceituoso e mais sugestivo. Há-de ser por isso que o autor textual deste universo diegético preserva a introdução dessas relações familiares sempre em desgaste. Aliás, é devido a esse desgaste das relações de afecto que surge o incesto no enredo.

A vossa atenção a mais uma passagem do livro. Prometo que, depois desta, não leio mais nada. Por favor, página 37:

 

A madrugada ia profunda quando Pepuka, tentando encontrar uma posição melhor para acomodar o seu esgazeado sono, deu com um corpo de mulher ao seu lado, deitado desmazeladamente. A voz do despudor chamou pelos seus instintos vorazes de macho, bloqueando-lhe toda a razão. A correspondência, encapuçada no proporcional despudor, completou os actos várias vezes repetidos, naquele breve espaço temporal da noite.

A inconsciência do sono, misturada com a exaustão corporal, prevaleceu.

Quando, cerca das oito da manha, coincidentemente, despertaram, deram-se conta de que dormiram juntos, mãe e filho, na mesma cama, a cama do filho, como se contrariassem os tempos em que Pepuka, ainda infante, se refugiava, com medo do escuro e se deitava entre os seus pais. A nuvem entorpecedora da noite finda dissipou-se, trazendo-lhes, timidamente, a lucidez que, como num puzzle, completava, os revérberos misteriosos da noite finda. Nada poderia ser tão evidente ou esclarecedor do que a meia nudez em que se apresentavam um diante do outro.

Quem consegue voltar a recuperar o caldo entornado?

 

Nem o narrador consegue recuperar o caldo entornado e muito menos eu. Bem observado, a passagem incestuosa é tão arrepiante que o narrador nunca consegue entrar em pormenores. O narrador é covarde no seu discurso e fica ali a dar a volta às coisas. Mas essa estratégia não compromete o entendimento do episódio constrangedor. Longe disso, o discurso do narrador garante ao texto uma linguagem requintada e cuidada, conferido ao leitor a decisão de inventar imagens da circunstância incestuosa. Sob sua própria responsabilidade.

Segundo Freud, o primeiro objecto sexual do bebé é incestuoso, porque é mãe. Essa acção incestuosa, com efeito, acontece através da amamentação. Adler e Jung rebatem essa concepção do incesto porque, ainda que um bebé sinta prazer ao comer, isso não significa um prazer sexual. Seja como, no caso de Masingita, de Juvenal Bucuane, o incesto não está nada ligado ao que Freud sugere ou às contradições de Adler e Jung. Em Masingita, o incesto é inconsciente. Depois de Marta se separar de Plínio, recebe em sua casa o filho Pepuka, que se separa de Saquina. Mãe e filho, portanto, embriagados, perdem a noção das regras e a lucidez e mergulham fundo num caso irreversível. As duas personagens arrependem-se desesperadamente, dando azo à introdução de outro tema importante para esta história: o suicídio.

De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de quatro mil pessoas tentaram resolver os seus problemas recorrendo à morte, ano passado. Quatro mil pessoas. Sobretudo em Maputo e em Manica. É muita gente! Se assumirmos que o suicídio é um problema social grave em Moçambique, então faz todo o sentido ler Masingita, de Juvenal Bucuane, porque esta novela nos permite compreender as causas de certas atitudes trágicas do nosso quotidiano. À literatura também cabe essa espécie de luz a iluminar-nos a nós próprios e aos outros.

Masingita ou a subtileza do incesto é tudo isso, uma novela riquíssima do ponto de vista temático; uma novela que não se perde em demasiados procedimentos técnicos no investimento da narrativa. Esta é uma novela progressiva, cujo discurso do narrador revela gradualmente o universo diegético e a essência das personagens que nos movimentam nesta viagem.

Portanto, nessa instauração do equilíbrio entre os fundamentos temáticos e a estratégia narrativa, Masingita ou a subtileza do incesto expia o lado imperfeito da mente humana, mas não para colocar a imperfeição num patamar alto. Logo se vê, a pretensão aqui é outra, despertar-nos para os sentidos da coexistência por via de uma ficção dilacerante e inevitável.

 

* Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro Masingita ou subtileza do incesto, dia 21 de Setembro, no Camões – Centro Cultura Português em Maputo.

   No meio da euforia carnavalesca perdemos a pista ao Valgi e à Eva. Que se tenham perdido no tumulto das multidões era hipótese de pouca consistência, porque desses folguedos estavam já habituados. Com os dias de tolerância de ponto concedidos pelas autoridades o mais provável era que tenham preferido o recolhimento das suas casas para as intimidades a que tinham direito.

Nesta fase da narração poder-se-ia dizer que eles formavam um casal que dava aparências de uma oficialidade às suas relações. Depois das jornadas de trabalho, e lá para o cair da noite, o Valgi era figura obrigatória em casa da Eva. Ou o inverso sucedia; a Eva pernoitava na residência dele; aí juntos confeccionavam o jantar, ela lavava alguma roupa e de madrugada era vista a varrer o quintal antes de se dirigir para o trabalho. Era, por assim dizer, a dona daquela casa, a esposa do vizinho Hussene Valgi.

As colegas dele já não duvidavam sobre a inicialmente camuflada relação entre aqueles. A certeza  sobre a mesma era uma realidade sentida e vivida todos os dias. O Valgi falava da Eva como se fosse já sua esposa, e atribuía-lhe uma profusão de adjectivos que até faziam inveja às colegas. Algumas destas encorajavam-no até a dar passos mais sérios, como tomar um compromisso oficial através do lobolo e dum pedido em casamento. A Mariazinha é que não ia nas ideias das amigas, dado que alimentava remotas esperanças de fazer dele o seu parceiro no futuro, na “vida e na morte”.

Passavam dezoito meses depois da chegada do Valgi a Lourenço Marques, naquela ocasião em veio à busca de informações sobre o paradeiro do pai. Por aqui deixou-se ficar, hipnotizado pelas luzes da cidade, cativo de paixão e embevecido pelos olhos da Eva. Uma vez e outra dirige-se aos Correios para enviar um telegrama à família em Porto Amélia. Sempre que recebe uma missiva dela, a dona Mariana lamenta o dia em que o deixou partir para a capital. Mas que outra alternativa tinha se o pai desaparecera sem dar notícias do seu estado e paradeiro. Até que chegou aquela informação sobre o seu envenenamento. Sempre que ela pergunta ao esposo “Afinal quando é que voltas para casa?”, ele redargue que “ Se eu vier embora, quem vai tomar conta da campa do papá? ”. E andavam nisto: volta, não-volto.

Algumas tias da Mariana, testadas pelas experiêncas da vida, aconselharam à sobrinha:

“ Mariana, não acreditamos que esta resistência do Hussene em regressar tenha alguma coisa a ver com a campa do pai. Anda aqui muita marosca. O melhor é tu ires lá procurá-lo e tirar a verdade do saco”.

A dona Mariana ponderou, tarefa para a qual levou o cabo de três meses antes de se decidir. E naquela manhã solarenga embarcou no costeiro “Chaimite” a caminho da cidade de Lourenço Marques.

Ela era uma passageira presente na embarcação, mas ausente nos sucessos da expedição. Não se lembra se esta foi pacífica, com as ondas a impelir o marejar vagaroso do barco, ou se alguma tempestade alvoroçou a marcha. A sua viagem era a da imaginação ao encontro do Valgi, já saudade desde o dia em que partira de Porto Amélia, sombra que depois povoou os seus sonhos, as suas insónias angustiadas e cheias de necessidades de fagos masculinos como só dele. A mãe e as tias eram umas linguarudas maldosas ao tentar impingir-lhe ideias de que “…por alguma razão ele não volta e essa pode ser uma mulher…”. Com o Valgi isso era impossível de suceder, porque não era pessoa de cometer tal baixeza. Ele que lutara por ela, enfrentara a oposição dos pais dela e dele, que não queriam aquele matrimónio por nada, naquela de que “essa família não presta” por motivos que só eles é que conheciam, antigas rivalidades que transbordaram e afectaram as relações entre os próprios filhos. Não seria ele a destruir aquela felicidade construída com sangue e lágrimas, para envolver-se com outra mulher. É claro que o Corão diz que “um homem pode ter quantas mulheres quiser, desde que as possa sustentar”. O Valgi não era desses. E isso pode jurar porque conhece-o como um poço de respeito e de virtudes, e porque a ama, e ama-a profundamente. Daria a vida para que as suspeitas das tias disso não passassem, porque se assim for, a morte iria separá-los.

Foi este o diálogo interior da Mariana com o seu companheiro, com as sombras da imaginação durante o curso da viagem que durou três dias, ao encontro com o desconhecido, até o barco atracar no cais Gorjão da cidade de Lourenço Marques.

 

in Caderno de Memórias, Volume II.

 

I

Março de 2020. É nesta altura em que entro em contacto com este livro. Para vocês é intitulado “as máscaras da verdade”. Para mim “o injusto testamento” embora não tivesse gostado deste título na altura. Agora que o autor o trocou por outro, passei a gostar dele. É verdade. Convenhamos: há daquelas coisas de que passamos a gostar pura e simplesmente porque nos parecem exclusivas. Vem daí, talvez, o encanto das mulheres pela roupa de fardo. Dizem elas: aquelas peças são fashion. Únicas. Sem versões. Nem sósias que se recusam a tirar uma foto, tal como aconteceu com o outro de quem se suspeita que nos tenha burlado.

Mesmo por causa desse afecto que tenho com o título anterior, vou, em seguida, rectificar a capa. Bem no espaço em que o designer redigiu, de forma manhosa, “as máscaras da verdade” ou “as más caras da verdade”, no meu exemplar virá “o injusto testamento”. Em seguida vou tirar uma foto e publicar nas minhas redes sociais para provar que, de facto, o livro é meu. Não estranhem: são coisas da terra! Somos mesmo assim. Até o Rick Ross já sabe. Moz anima, não é?

Já agora, é momento de cada um dar o seu título ao livro. Eu já tenho o meu. Mas voltaremos a tratar disso quando tiverem comprado o livro. Asseguro-vos. Terá sido a vossa melhor aquisição neste Outubro. Estamos em dia de paz e o preço também é pacífico.

II

Dizia, no início, que entrei em contacto com este livro em Março de 2020. Quando Almeida Cumbane sugere-me que venha fazer a apresentação do mesmo no dia em que se celebra a assinatura do acordo geral de paz, vi nisso uma oportunidade para, também, sugerir um acordo de paz entre duas figuras importantes no meio literário: o escritor e o crítico literário.

Vem esta ideia a propósito de uma falsa percepção de estas serem figuras que devam, necessariamente, estar em conflito. Não é verdade. Do mesmo modo que a nossa paz surge e vai se construindo num processo negocial, a geração de harmonia entre estas duas figuras não tem como existir sem que haja uma negociação de crenças, perspectivas ou horizontes.

Digo isto por uma razão muito simples: quando recebi o manuscrito pelo e-mail, li-o com toda calma necessária e fiz um comentário que continha alguns pontos dos quais, para esta conversa, convém trazer dois. O resto são coisas de bros! A malta resolveu nuns papos por aí.

Primeira nota:

O enredo é bastante rico, parabéns! Remeteu-me aos clássicos do policial. O biográfico, o love story, o filosófico e o policial fizeram uma boa mescla. Ainda sobre esta mescla a que me referi no ponto anterior, creio que o título dado à obra não chegue a fazer o real jus ao que se vive na obra no seu todo. Enfim, essa é uma opção estilística e pessoal sobre a qual apenas posso expressar a minha opinião sem perspetivar anuência nem concordância da sua parte. Mas, querendo, é uma reflexão que sugiro que faça.

 

Segunda nota:

Comentei acima sobre a caracterização temporal em dois momentos, no sentido de alertá-lo relativamente às práticas sociais e os objectos que menciona mas tal reflexão só tem razão de ser porque há práticas mencionadas no texto que parecem bastante antigas e que não parece que seja verosímil que as mesmas ocorram nos últimos tempos que, pelo que me parece estamos na aura dos anos 2000 (conclusão feita pela menção da ponte sobre o rio Limpopo que une os distritos de Guijá e Chokwè, pela alusão do Toyota Allion, enfim essas peculiaridades). Em todo caso, é um “papo” que ainda podemos ter.

 

 

Realmente (e na altura) chegamos a ter este papo que durou quase uma hora e houve um acordo de paz. Embora hoje tenha dito que gostava do título anterior por outras razões alheias ao livro, reitero que o mesmo andava (e ainda andaria) à margem do enredo. Até aí, tudo bem. Contudo, quanto à segunda nota, a prática referida no texto é o nkelekele que, segundo o autor, é uma cerimónia tradicional para combater pragas. A mesma é feita por mulheres anciãs da povoação que recolhem amostras da praga e caminham despidas em direcção ao rio para que as águas levem as pragas a outras aldeias. Ocorre, todavia, que o crítico julgou que esta prática fosse antiga e, em algum momento, entrava em choque com alguns aspectos mencionados no texto, o que transtornava a caracterização temporal. Coube ao escritor esclarecer que tal prática ainda predomina em algumas regiões do distrito de Guijá, e assim foi dissipada a nuvem que colocava em cheque uma das categorias da narrativa.

Portanto, como podemos entender, este cenário que trago vem demonstrar que o exercício da escrita passa por este processo de negociação de paz entre quem imagina e escreve e quem estuda o objecto da imaginação do outro. Há, para este efeito, uma necessidade de haver muita humildade em aceitar as sugestões do outro e, obviamente, alguma verticalidade para esclarecer possíveis equívocos da outra parte.

III

A leitura que hoje faço deste “as máscaras da verdade” é tão simples quanto esta: é um romance bom e envolvente. Um page-turner, de facto! É quase inevitável ler as acções de Lucas (personagem do romance) sem pensar na emblemática personagem de vários romances de Dan Brown: o Professor Robert Langdon. Tem cada um o seu perfil mas a inteligência é o que os assemelha.

Num tecido em que transcorrem várias histórias, “as máscaras da verdade” modaliza a vida Lucas. Um jovem muito inteligente nascido em Jana, uma localidade da Província de Inhambane. Conclui os estudos mas a sua condição financeira não permite que siga para a universidade. Inscreve-se no curso de formação de polícias em Matalane. É afecto no Comando Distrital de Homoíne, em Inhambane. Lá inicia a sua vida laboral e se prepara para ter uma vida a dois com a Rosa, sua namorada desde a infância. Um amor puro e provinciano. Tempos depois recebe uma bolsa para estudar ciências policiais em Pyongyang, na Correia do Norte. Lá se forma com distinção. E, pela natureza do trabalho que devia passar a realizar em Moçambique, é orquestrado um falso acidente no qual se alega que se tornara cego. Esta é a versão que prevalece para a sociedade, seus familiares, sua esposa, menos para os seus dois superiores hierárquicos no SISE, instituição para a qual passa a colaborar em sigilo. Em virtude desta condição (a de cegueira) aprende a ler e a escrever em braile. Tudo é orquestrado de tal maneira que ele passa a trabalhar infiltrado no Project Lab, uma empresa sob investigação pelo SISE devido às suas práticas bastante sigilosas que, na opinião dos peritos do SISE, perigava o estado. Para permitir que trabalhe a tempo inteiro nessa missão, é obrigado a se divorciar da então esposa, Rosa (com quem já tinha uma filha), e se juntar a Chudy, filha do proprietário do Project Lab. Para proteger os seus interesses conjugais e laborais, orquestra também uma morte para a sua esposa e filha através de um acidente de viação que fora maquinado de tal forma que nem os peritos contratados pelo Project Lab conseguem detectar a farsa.

Para saber como é que a história termina, só adquirindo o livro. Em todo caso, o que cabe referir neste momento é que toda trama do romance gira em torno desta empresa cujo proprietário (Moreira/o Projectista) é admirador de John Rawls e de vários teóricos da Justiça Social. Moreira acredita que nesta teoria esteja a chave para a redução de assimetrias entre ricos e pobres, daí a sua preferência em contratar, para a sua empresa, ex-presidiários que, até certo ponto, tenham sido vítimas do sistema vigente na sociedade ou indivíduos com uma história de vida que revela que poderiam ter tido sorte melhor se na sociedade houvesse algum senso de solidariedade.

Ora, “qual amador que se torna na coisa amada”, para usar as palavras de Camões, “as máscaras da verdade” de Almeida Cumbane ensaiam, em forma de romance, esta ideia de John Rawls não em forma de teorização como bem o fazem os ensaios académicos. Há, sim, uma rebusca desta teoria de Rowls na própria função das personagens deste romance, se quisermos usar a terminologia de Vladimir Propp no seu “Morfologia do Conto Maravilhoso”, com o cuidado de não se fixar apenas em Lucas que, nesta forma de ler a narrativa, seria o herói e, como tal, única base de análise. Quase todas as personagens do livro, desde o pai da Rosa em Jana, que rejeitara o Lucas como genro por se ter tornado cego; o Cadinho que se tornara criminoso por mero acidente em defesa da mãe ante a violência do pai; a mãe de Cadinho que fora dada por louca por não ter suportado as consequências da injustiça que minam o sistema judiciário e a sociedade como um todo; o Malache, um polícia de trânsito que fora encarcerado pelo mesmo sistema que o formou como corrupto acérrimo; a Chudy que fora vítima da personalidade materialista da mãe até ao Moreira, um senhor visionário que almeja reeducar os seus filhos através da simulação de raptos e construir uma sociedade melhor.

Portanto, reiteramos esta ideia de “as máscaras da verdade” ser uma obra que no universo ficcional materializa a justiça social de Rowls tal como nos evidencia o epílogo,

Anos depois, Moreira vence o trauma e namora a dona Tina. Este namoro de idosos é adoçado por uma ocasião especial. Sentado no banco da frente, o par de namorados assiste efusivamente ao casamento de Chudy. Ela falhou o Lucas, mas finalmente consegue fechar o lugar de Gerito por um homem determinado a amá-la. É também uma grande festa para o Project Lab, porque o noivo é Cadinho, e para padrinho escolheram a família Malache. Do último banco, ligeiramente atrasados, Lucas e Rosa assistem à cerimónia emocionados por ver Chudy nesta página da sua vida.

Em linhas gerais, este jeito de construir a narrativa em que as personagens experimentam alguma redenção independentemente das suas acções no universo diegético vem reiterar o que dissemos na leitura que fizemos do romance “Ilusão à primeira vista” cujo texto fora publicado no jornal O País e no blog RectasLetras, em 2020, em que referíamos que a regeneração de André (personagem daquele romance) do ponto de vista social revela-nos uma ruptura com uma dimensão escatológica da ficção moçambicana, devidamente analisada pelo Professor Francisco Noa no seu “A Escrita Infinita”, abrindo-se assim um espaço para um quê de herança dos contos de fada em que os enredos, na sua maioria, se encerram com o famoso “…e todos foram felizes para sempre”. O que de uma forma ou de outra, revela que o narrador aplica o princípio de justiça social de Rowls no universo diegético através da redenção das personagens, independentemente das acções que tiverem tido ao longo da narrativa.

Dito isto, cabe-me apenas dizer que se o livro não fosse a materialização da liberdade no seu grau mais elevado, eu diria que “as máscaras da verdade” é de leitura obrigatória. É obra!

[1] Texto de apresentação do livro as máscaras da verdade da autoria de Almeida Cumbane, chancela pela editora Fundza, no dia 04 de Outubro na Casa Distrital de Cultura de Guijá.

“Antes de abolir-se a pena de morte,

que se bana o homicídio” Arthur Schopenhauer

 

Se o terrorismo nos assusta a todos, a lei penal contra os praticantes deveria amedrontar-nos ainda mais.

Enquanto o maior castigo legal para os terroristas for a pena máxima de 30 anos, ainda poderemos contar com mais jovens nas fileiras de terrorismo. Os sistemas carcerário e penitenciário do nosso país mostram-se inadequados para lidar com esse tipo de fenómeno criminal, pelas seguintes razões:

  1. A sobrelotação das cadeias que continuamente forçam o governo a conceder amnistias e liberdade condicional a milhares de prisioneiros, anualmente.
  2. A reincidência de comportamentos delinquentes dos ex-condenados;
  3. A falta de programas biopsicossociais sérios para reabilitação dos delinquentes;
  4. A precária segurança das instituições carcerárias.

Perante estas debilidades notórias do nosso sistema penal, torna-se óbvio que se há um aspecto capaz de intimidar ou desencorajar mais jovens a aderir a missões terroristas, tal aspecto não é a lei e o castigo praticados no nosso país. O que são 30 anos de prisão para um jovem recrutado pelo terrorismo, sem emprego, na extrema pobreza e sem esperança dum futuro melhor?

De alguma forma, o encarceramento como maior punição para quem tenha sido condenado por práticas de terrorismo não é mais que um período de reclusão em que vê uma oportunidade de descansar da luta diária pelo pão, poder fazer amigos e conter a sua selvajaria com objectivo de reduzir a sua pena sob o critério de bom comportamento. Existirão raras excepções, mas, em caso geral, as experiências penitenciárias se nos têm mostrado negativas a respeito da reabilitação dos ex-condenados por crimes hediondos.

A reincidência criminal dos ex-condenados não deveria ser olhado de leve ânimo como um fenómeno ordinário, pois é um aspecto que, quando recorrente, gera um profundo descrédito sobre o sistema penal dum Estado por parte da população. E, quando é a própria população que deixa de acreditar nos mecanismos de correcção e reabilitação dos prisioneiros, as consequências são previsíveis: as massas passam a fazer a justiça pelas “próprias mãos”, um fenómeno macabro que agrava a situação dos direitos humanos, pois o julgamento popular tem esta mania de devorar suspeitos, culpados e inocentes, sem descriminação alguma.

Assim sendo, a reincidência de comportamento criminal deve ser interpretada como o fracasso dos mecanismos legais de correcção, reabilitação e inclusão dos delinquentes que foram instituídos pelo Estado. E um desses mecanismos que vislumbra fracasso é o nosso código penal que se me afigura demasiado brando para os graves crimes que se propõe a corrigir. Talvez valha reiterar: o encarceramento por até 30 anos como pena máxima para quem pratica crimes hediondos tem fraca capacidade de dissuadir ou impedir que crimes de género voltem a ser cometidos tanto por ex-condenados como por indivíduos inseridos nas comunidades. E se o código penal praticado mostra-se ineficaz para dissuadir comportamentos delinquentes na sociedade, então, que ele seja tirado ao lixo, pois não serve como mecanismo de punição e reabilitação. É suposto que as pessoas temam ir à cadeia e, consequentemente, se afastem de todas as práticas ilegais capazes de os conduzir até lá.

Quando esses mecanismos de punição e reabilitação não existem, nem a consciência, nem Deus são capazes de impedir uma alma má de cometer o crime. Dizia Aristóteles que toda a pena deve ser um pouco mais pesada que o crime cometido. O outro filósofo, Arthur Schopenhauer, observou o comportamento dos indivíduos prestes a cometer um crime. Ele notou que a primeira coisa que os indivíduos ponderam antes de praticar um dado crime é se vão ser apanhados ou não, e se forem, o que lhes aguarda como pena é mais grave do que o lucro obtido do crime cometido? Só depois destas avaliações é que o indivíduo passa para considerações morais do tipo este crime não me criará peso de consciência, será que Deus me vai perdoar.

Para os terroristas no norte do país que nos têm habituado a cenas macabras e sádicas em que, com certo prazer, torturam, violam e decapitam mulheres, crianças e homens inocentes, o que significa 30 anos como pena máxima? É uma pena oca que nem intimida nem reabilita. E ainda que tivesse o poder de reabilitar a mente do terrorista, que espécie de paz a sua presença traria ao coração das vítimas e da comunidade que ele voluntariamente massacrou? Quem dessa comunidade vítima sentiria a falta da sua existência, ao ponto de desejar a sua reintegração social, depois do horror perpetrado por ele.

Sentimentalismo à parte, há certos crimes que, uma vez, cometidos já não permitem ao criminoso uma vida social normal. E quanto mais ele estende a sua existência, mais dor e ódio gera no coração das vítimas. O terrorismo é um desses crimes que se configuram imperdoáveis, ainda que o terrorista tenha sido coagido a praticar o tal terror. Daí que a morte, como pena capital, é a apologia que levanto contra todos os terroristas, incluindo os recém-recrutados e os seus financiadores. E, para que seja uma pena que sirva de mecanismo de dissuasão contra práticas terroristas, a reintrodução da tortura física antes da morte com direito à presença pública mostra-se conveniente. Outrora, esse tipo de pena já foi implementado em Estados onde se privilegiavam bons costumes, a moral e a justiça. Mesmo a Bíblia, que se autointitula uma escrita sagrada, apregoava castigos físicos na praça pública como forma de repreender comportamentos abomináveis e mostrar à população o que lhe aguarda se ela seguir pelo mesmo caminho.

O desafio na implementação desse tipo de pena prende-se na criação de melhores condições para que os julgamentos contra indiciados de terrorismos sejam transparentes e justos, 100% baseados em factos. Todavia, não afasto essa possibilidade de o próprio governo instrumentalizar a lei penal e os órgãos da justiça para perseguir os seus oponentes políticos levando-os à pena de morte. Esse risco existe, mas ele não anula a provável eficácia da implementação da pena de morte como mecanismo de combate e dissuasão ao terrorismo.

Sem julgamento justo, a pena de morte é outro mal tão grave quanto terrorismo, mas quando há julgamento baseado em evidências que se demonstram irrefutáveis, a pena de morte por métodos dolorosos pode ser o mais amargo e apropriado remédio para o mal que assola o país.

 

tsembah@gmail.com

Um centenário parece uma eternidade que esta imerecida lógica da vida impõe sobre a humanidade e nos condicionou às ausências infinitas. A mão invisível persuade-nos a abdicar da presença dos líderes que pavimentaram os caminhos de verde para deixar passar a liberdade e o futuro. De forma prematura, teríamos adorado seguir a revolução, ainda devotados pelas memórias e serenidade poética de Agostinho Neto. Foi como se uma estrela se tivesse escurecido no espaço celestial.

Fiz parte do grupo que saiu para as ruas para receber o Presidente Agostinho Neto, na sua última visita a capital moçambicana. Ele era discreto e exagerado nas suas aclamarias. O oposto de um Samora vibrante e extrovertido. Vimo-los abraçados e em franca cavaqueira. Algumas vezes, mais comprometidos e serenos. Uma cumplicidade que escondia uma amizade que se reconfigurava em irmandade.  Meses depois, a força desse inapelável destino roubou, de todos nós, esse lutador intransigente, com visão profética e mobilizadora. O líder que frequentou mais cadeias e celas políticas, que qualquer outro da sua época. Como prisioneiro político, deambulou por Luanda, Lisboa, Cabo Verde, entre Santo Antão e Santiago e, novamente, Lisboa.  Mas não era a ele que se prendia, mas sim aos seus poemas. Como se pudessem colocar algemas nas suas palavras.

Nenhuma masmorra, ainda assim, o privara de escrever esses proféticos poemas que denunciam as amarras e amarguras de um povo que vivia subjugado e oprimido. As prisões de Agostinho Neto desencadearam uma incontestável onda de protestos e de petições, de inúmeros intelectuais, de entre os quais o célebre filósofo francês Jean Paul Sartre; quem diria. Outros celebres intelectuais e artistas, apelaram, igualmente, a sua libertação, como se uma onda de grandes proporções e comoções tivesse invadido os corações de André Mauriac, Aragon e Simone de Beauvoir e, ainda, do prestigiado Nicolás Guillén, poeta cubano. A indignação não deixou de fora o pintor mexicano Diogo Rivera. Tamanho reconhecimento ditou que António Agostinho Neto fosse eleito o prisioneiro político do ano pela Amnistia internacional.

Já nos trajes de Presidente da República de Angola, Neto Kilamba, pseudónimo que o consagrou esse médico de profissão, poeta por vocação e iconoclasta líder revolucionário por missão, colocou Moçambique no topo das suas prioridades. Com Machel, sofreram juntos as agressões belicistas da África do Sul racista e da Rodésia de Smith.

As visitas de Estado entre Angola e Moçambique se regavam sob o manto da fraternidade. Por isso, Agostinho Neto tem o seu nome associado a toponímia nacional moçambicana, numa auspiciosa avenida no coração da cidade de Maputo. Igualmente, centenas de aldeias mais recônditas ostentam seu nome. Pelo menos, 36 escolas primárias e secundárias de Moçambique tem Agostinho Neto como seu patrono. A empatia e simpatia que granjeou no seio dos moçambicanos alimentaram esse caudal, tão devoto, de memórias que continuaram sendo invocadas entre distinções e designações. Agostinho Neto vive e se imortaliza como líder estrangeiro, patrono do maior número de escolas em Moçambique. Não deve ser obra do acaso.

O poeta e presidente que trouxe a independência à Angola foi dos mais proeminentes e carismáticos líderes africanos. Ombreia nesse estatuto com tantos outros intelectuais e líderes como Eduardo Mondlane, Samora Machel, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos ou, ainda, com Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah. Também eles, rendidos e impregnados de veia e pensamentos utópicos, com uma dose de pragmatismo e humanismo. Agostinho Neto, sonhou Angola e todas as antigas colónias portuguesas como territórios e espaços livres e independentes, como Estados de justiça social, nações prósperas e unidas pela irmandade e solidariedade, educadas e, sobretudo, democráticas.

A meio da azáfama das eleições no seu próprio país, das cerimónias fúnebres de seu sucessor José Eduardo dos Santos, da fatídica guerra da Ucrânia e de outras intermináveis reuniões partidárias, ficamos, todos, devendo uma homenagem ao saudoso António Agostinho Neto, no seu centenário. Uma espécie de missa reconciliatória e purificadora. Um reencontro com os fundamentos dos nossos Estados e com os sonhos que seguiram outros rumos e horizontes. Ele próprio escreveu, em tantos poemas, que nunca se está só e nem se deve ignorar a presença do outro; todavia, parece abandonado e sem convicções, no mausoléu que o alberga para que jamais desapareça do nosso imaginário.

Parece, pois, imperdoável que esta amnésia colectiva e ausência de pronunciamentos públicos e de outra índole, não sejam, por conseguinte, merecedores da indignação. Como nos alheamos a esse espírito revolucionário que serviu de menu para a nossa caminhada inicial? Não creio que seja, simplesmente, pela cultura de esquecimento que esta celebração ficou invisível, pois, não pode existir tanto descaso, sem razão, que omita a celebração deste centenário. Fomos presunçosos e, marcadamente desatentos, por quaisquer que sejam as razões.

Mesmo que não queiramos fazer-lhe aqui a biografia, seria incontornável reviver seu percurso, desde esse longínquo 17 de Setembro de 1922. Foi no Município do Icolo, Bengo, arredores de Luanda que tudo começou. Ali foi enterrado o cordão umbilical e o jovem António viu a luz do sol pela primeira vez. Oriundo de uma família já assimilada e com créditos evidentemente reconhecidos, seu pai, Agostinho Neto, era pastor metodista e catequista da mesma missão metodista americana, em Luanda. Sua mãe, Maria da Silva Neto, por outro lado, era professora primária. Se aglutinavam os condimentos para que o jovem António enveredasse e revelasse sua apetência pela literatura e rigor escolar.

Ele foi educado para saber usar o verbo na sua plenitude.  Esse mesmo poder da palavra o transformou e marcou profundamente a sua personalidade e irreverência. Do poema à utopia revolucionária foi um passo subtil e mágico. Essa utopia o personificou e fez dele jovem inconformado, atento às dinâmicas do seu povo, alguém que não se evadia da realidade e do sofrimento, e que referenciava, nas suas quadras e estrofes, a realidade que o circundava. Emancipou-se e jurou usar essa mesma palavra para combater, sem tréguas, a descriminação e o colonialismo. A deambulação de seus escritos e a tonalidade de suas palavras, converteram-lhe naquele sujeito poético que a humanidade testemunhou e que lutou contra a ordem existente até a independência de Angola.

Amadurecido pelas circunstâncias e com o apoio da igreja metodista, foi uma lança que desferiu golpes contra o regime colonial português. Importante salientar a igreja Metodista como a mesma igreja que ajudou tantos outros nacionalistas a prosseguirem seus estudos para melhor combaterem a presença colonial em seus países. Nem mesmo a Congregação dos Padres Burgos ou mesmo Jesuítas teve tanto impacto na preparação e financiamento de estudantes nacionalistas. Eduardo Mondlane teve e recebeu o mesmo apoio.  Não se pode, portanto, dissociar o papel e a responsabilidade da igreja metodista no apoio aos processos revolucionários nas ex-colónias portuguesas.

Neto Concluiu o Liceu “Salvador Correia”, em Luanda, onde terminou o 7º ano em 1944, e partiu para Coimbra, Portugal, onde frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e depois Lisboa. A capital portuguesa fervilhava e transbordava a lava de vulcão da revolução. As dinâmicas propiciaram o momentum e os espaços para que a militância política ganhasse suas letras de ouro e glória. Por ironia do destino, o controlo da polícia política portuguesa fraquejou e permitiu que Lisboa se convertesse na sede embrionária da subsequente revolta anticolonial.

Em 1947, António Agostinho Neto integrou o movimento dos jovens intelectuais de Angola, cujo lema era vamos descobrir Angola. Associou-se aos não menos carismáticos Lúcio Lara e Orlando Albuquerque, publicando seus textos iniciais nas revistas Momento e Mensagem, que pertenciam aos órgãos da associação dos naturais de Angola. Casou-se, mais tarde, com Maria Eugenia Neto, seu maior amor e mulher, com quem partilhou todas as cumplicidades que, igualmente, visitou Moçambique, passeando todo o ar da sua descrição, generosidade e sabedoria. Eles tiveram três filhos, sendo Mário Jorge Neto, o primogénito, depois, Irene Alexandra Neto e, finalmente, a Leda Neto.

Os seus exímios poemas e a colectânea de textos publicados, insuflaram as mentes e o sentimento libertador. Pelos seus dedos e caneta, transfigurava a vontade de libertação. Neto foi esse esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser, antes de mais, a expressão viva das aspirações dos oprimidos e a arma para a denuncia da injustiça e crueldade colonial. Um exemplo a seguir pelo simbolismo que representa e pela multiplicidade de acções que desenvolveu.

Em 1956, fundaram-se, nos arredores de Luanda, em Angola, vários movimentos patrióticos para formar o MPLA. A 4 de Fevereiro de 1961, as prisões de Luanda foram assaltadas por homens munidos de catanas e armas de fogo. Algumas das quais capturadas em acções anteriores. Mesmo sem lograrem os intentos, estava lançada a primeira salva da luta armada que se alastraria pelo solo angolano. A resposta dos portugueses foi cruel. Bombardearam aldeias e milhares irmãos angolanos sucumbiram aos métodos mais horrendos do colonialismo.

Em 1962, sai, de forma clandestina, de Portugal e se estabelece em Léopoldville, Kinshasa, onde o MPLA tinha já a sua sede. O primeiro congresso do MPLA elegeu Ilídio Tomé Alves Machado como seu primeiro presidente, permanecendo em funções até ser preso, em 1959. Foi substituído pelo secretário-geral, Mário Pinto de Andrade, que exerceu o cargo entre 1959 e 1960. Em 1963 foi declarado Presidente do MPLA, substituindo Mário Pinto de Andrade. No interior de Angola, outros movimentos libertadores faziam já a sua luta, a UNITA, de Jonas Savimbi e o FNLA, de Holden Roberto.

Ao poeta António Agostinho Neto foi-lhe atribuído, em 1970, o prémio Lótus, pela Conferência dos Escritores Afro-asiáticos. Publicou vários livros cujo substrato e pendor exaltavam o sonhar e lutar pela independência. Ainda hoje, guardo um dos seus poemas, a bom rigor, dos meus substratos favoritos. Este poema foi musicado por Rui Mingas. Minha Mãe/tu me ensinaste a esperar/como esperaste paciente nas horas difíceis/mas a vida matou em mim essa mística esperança/eu não espero/sou aquele por quem se espera. Agostinho Neto revelava e recorria a metáfora da Mãe, como representação da pátria e como o centro de toda a sua narrativa.

Tive o ensejo e prazer de ler um texto escrito por Beto Van-Danem, enquanto encerrava minhas memórias sobre António Agostinho Neto. O autor recorda episódios pitorescos que mostravam a grandeza e personalidade de Agostinho Neto. Era existente e transparente. Só isso permitiu que se mantivesse leal a uma gestão digna, criteriosa, rigorosa e exemplar. Ele entendeu a liderança partidária como uma forma de servir ao povo e não de se servir do Estado. “O Neto era um homem honesto, não vivia deste país e é por isso que morreu pobre”, comenta Van Dunem. Saudades desse tempo e da justeza do movimento pós-colonial.

Ninguém ousou jamais questionar, ao longo dos anos, sobre a possibilidade de Agostinho Neto ter deixado contas no estrangeiro. Elas simplesmente nunca existiram. Neto morreu com a roupa que tinha no corpo. Não tinha dinheiro, concluiu Van Dunem. Era, convenhamos, um Machel numa versão Atlântica.

Neto partiu quatro anos depois de ter sido proclamado Presidente. Para trás, uma única mancha que pode ter marcado seu brilho: 27 de Maio de 1977. A forma como os revolucionários responderam a um movimento interno e uma alegada tentativa de golpe de Estado. Angola já se retractou, mas as mágoas ficaram muito para além do por do sol. Aqui estão os 100 anos de uma vida plena e tumultuada, uma poesia profética, porém, verdadeiramente, instigante.

António Agostinho Neto e seus camaradas e amigos de sempre, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Marcelino dos Santos, Orlando Albuquerque, Ilídio Tomé Alves Machado e tantos outros, incluindo Jonas Savimbi, já tiveram tempo de prestar as contas a divindade e recebem as últimas notícias de José Eduardo dos Santos. Os tempos são adversos onde a revolução e os revolucionários perderam a centralidade e os novos ventos aniquilam os anseios de outrora. Os líderes revolucionários, parafraseando Machel, nunca morrem, porque ganham o tamanho e estatuto de um povo. Povo nunca morre. (X)

Este título faz cócegas na alma para que me dedique a um ensaio possível de fazer acerca do ofício a que possivelmente se reservem os nossos mestres da palavra que já não andam entre nós. Seria um texto e tanto, tasaver. Daqueles que só sairiam em circunstâncias tais em que a aura atinge um estado zen. Imagine-se, caro leitor: neste Setembro. A pensar. Não no amarelo. Mas no azul do mar. Descalço. Sentado na praia. Os pés das calças dobrados até ao joelho e as mangas da camisa ao cotovelo. Os sapatos pousados à esquerda. Ou sandálias. Sei que és mulher. Aliás, todo homem já foi mulher. Por 9 meses, para ser mais preciso. Imagine-se, ainda, com o paladar degustando a água de coco. A imagem de um sol que se põe como se estivesse a nascer. O livro de Lahissane à mão, com o indicador marcando a página 21 do seu livro de estreia “Os Pores-do-sol” em que é possível ler: escrever um poema/ é palpar os pores-do-sol.

Experimente, caro leitor, melhor forma de mandar a burocracia da vida às favas não há!

Agora, volta. Voltarás a pensar nisso em breve. Para já, voltemos àquela ideia dos poetas mortos. É, na verdade, uma ideia do Lahissane. Nos últimos tempos anda cheio dessas ideias de escrever na terra porque acredita que nos céus a vida o reserve outros ofícios. Mas, acredite, o tipo escreve. Escreve maningue. Não sei se sabe, caro leitor, mas existem muitos significados para a palavra escrever. Os poetas são exímios criadores de sentidos para as palavras que já conhecemos com significados já padronizados. Mas sempre o fazem no bar. O bar é um templo sagrado, disse a poeta dos cães à estrada. Mas, peço um minuto, caro leitor, acabei a tinta na caneta.

_ Por favor, encha-me a caneta com aquela tinta à nossa maneira, na conta do Lahissane. Quero escrever.

Então, dizia que…

_ Sim, na conta dele.

Referia-me, então, ao título que inaugura este texto. Com um pouco mais de zelo, trocaria a preposição “em” pela “sobre”. Porque é sobre a terra que Lahissane escreve no seu “Os pores-do-sol”. É daqueles livros de leitura proibida quando se estiver na diáspora numa missão diplomática, por exemplo. E, mais ainda, se se tiver “nilava kumuka kaya” de Elsa Mangue ao fundo.

Ouvir “nikala kumuka kaya hiyini?/ Por que não vou para casa?/ Niholovile namani lekaya?/ Com quem estou desavindo em casa?/ Nilava kumuka kaya kamamani!/ Quero ir para casa da minha mãe!” enquanto se lê “vim de uma terra chamada África/ onde o batuque é uma bandeira/ que adeja ao sabor dos ares/ uma terra cheia de sabores: massala, malambe (p. 45)” seria a mesma experiência dramática que tingiu os poetas da “Claridade” em Cabo Verde: querer ficar e ter de partir/querer partir e ter de ficar. Mas, partir para onde? Lembra-te: falamos de alguém que esteja na diáspora!

Os Pores-do-sol é um livro cheio de África. Não a África do clichê de quem cultiva um adâmico lócus mas uma África real. Com as suas flores, suas mazelas, sua(s) rapariga(s) fogosa(s) (título do meu poema preferido, vide página 69), seus pores-do-sol e suas copas de coqueiros. Seria, por isso, difícil ler este livro sem que te espectasse a flecha da nostalgia. Do amor telúrico. E, já agora, aqui está um objecto para um ensaio académico sobre este livro.

Os pores de sol é tão híbrido quanto o processo editorial que o origina. A Ethale Publishing, de Jessemusse Cacinda, e a Associação Cultural Xitende, de Deusa d’Africa, unem os deuses do norte e do sul de Moçambique para editar este livro cujo design é de quem parece querer competir consigo mesmo como se já não soubéssemos da sua excelência no acto. Digam ao designer da Ethale que já percebemos. Chega! És bom, puto!

Ainda sobre o hibridismo a que me referia, engana-se quem pense que o compromisso estético dispensa a dimensão semântico-pragmática do texto. É comum nos dias de hoje. Textos há (e não são poucos) que desenham uma linda mangueira mas, inda que a abanemos, dela não cai uma manga sequer. Com Os Pores-do-sol é diferente. Asseguro-te. O compromisso com a imagem situa Lahissane na sua geração de poetas mas as nutritivas mangas que caem das mangueiras lindas que desenha, o tornam único. Um poeta, de facto. Que vive na/da/ sobre/a poesia. Leia-se:

“meu rumo/ é esmagar com os dentes dos olhos/ as letras que florescem no ventre dos livros/ esmagá-las até lacrimejarem pétalas/ e com elas irradiar o cosmo que há em mim/” (p. 38)

“quando os meus olhos/mergulham no mar/ esqueço-me dos hinos de dor/ canto os mais belos e cheios de amor/ (p. 41)

“o chão era verde como as algas do Limpopo/ de imensas garrafas partidas/ (p. 23)

Repare, caro leitor, é poesia moçambicana do século XXI: esta mescla de um quê panfletário dos fundadores, um outro quê lírico dos vanguardistas e mais um quê imagético dos surrealistas filhos mimados dos últimos que não lhes foi explicada a real essência daquela revolução. Tasaver, é mais um objecto para outro ensaio académico. Mas sobre isso falaremos com os ensaístas permanentemente cientes dessa condição. Eu tenho cá os meus episódios de luz e de neblina. Hoje, por exemplo, a neblina é meu mister. Mas a culpa é tua, caro leitor: andas maningue distante daquelas cenas que a malta escreve.

Pronto! Acabou-se a tinta. Mas ainda quero escrever. Dê-me outra caneca. Digo, caneta. Mas, não se esqueça, leia Os Pores- de-sol. É obra!

Na posse de todas aquelas informações o senhor Mapilele ficou estático. Meditava.

Aquela comitiva da comunidade ia retirar-se para deixar com ele a responsabilidade de prosseguir os trâmites para a consumação do enterro da falecida esposa.

“Lavo das mãos toda a responsabilidade de tratar seja o que for para o enterro dela”, disse o senhor Mapilekle, fleumático, quase com um sorriso trocista nos lábios.

“Não está a falara sério, irmão Mapilele. A irmã Veva continua sua esposa, apesar do sucedido”, aventou o emissário-mor de sobrolho carregado. Outros remexeram-se desconfortados sobre os assentos. Estava nos horizontes que o problema estava a crescer, a tomar proporções que ninguém previra.

Trocaram olhares de estupefação e mantiveram-se em silêncio.

E Mapilele atacou, já com ferocidade:

“Meus caros, fizeram bem em vir à minha morada anunciar esta triste notícia. Triste para ela, a Veva, para a família dela e para comunidade. Assim ficamos todos a saber quem era ela na verdade, que tipo de esposa eu tinha nesta casa. Morreu na cama doutro homem? Tudo muito bem. Esse tal do Bocoda que assuma toda a rsponsabilidade por aquilo que aconteceu. Comigo não contem, seja para o que for. Não quero ajuntamentos em minha casa, nem mensagens de condolências de ninguém. Ainda querem-me ferir mais? Chega! E ponto final meus senhores”.

“Irmão Mapilele”, outra voz que não a do emissário-chefe fez-se ouvir, mais cordata e conciliadora. “Para todos os efeitos, e segundo a catecismo da Igreja Católica, a falecida tornou-se sua esposa pelo matrimónio, e por isso recomenda unidade na vida e na morte”.

“ Na vida sim, mas enganado, como todos podem constatar. Na morte não, porque não morreu em minha casa, muito menos na minha cama. A tal doutrina cristã de que você está a falar o que diz sobre o adultério? Estão calados? Se eu fosse outra pessoa até iria ao funeral sim, mas para apedrejar o cadáver dela, estão a perceber?”.

Mapilele levantou-se de brusco da cadeira e convidou os membros da delegação a abandonarem a sua propriedade.

“ Meus senhores, renovo os meus agradecimentos pela notícia, mas façam o que lhes convier porque apartir deste momento já lavei as mãos a tudo o que diga respeito à pessoa e ao corpo da Genoveva. Deus castiga os que erram. Ela pecou então que se amanhem, ela, o amante e a família dela”.

O escândalo encheu as bocas de comentários. Especulações choviam de todos os cantos.

O fim trágico da dona Genoveva ficou marcado de muitos questionamentos nas cabeças de muitos homens sobre quantas esposas tinham conduta semelhante à que levou à perda de vida da vizinha.

E, deste modo, a Veva do Mapilele teve aquele funeral insólito, o fim triste de desmerecer as glórias e as homenagens do esposo legítimo, dos vizinhos, familiares e amigos, que a tinham por mulher exemplar, fiel aos cânones do matrimónio.

Quatro coveiros samaritanos juntaram as vozes à do infeliz amante, oraram e entoaram despedidas à senhora Genoveva Mapilele: ”…pai-nosso que estais no Céu…o pão nosso de cada dia nos dai hoje… perdoai as nossas ofensas, assim  como perdoamos a quem nos tem ofendido e livrai-nos do mal…amen…”.

Umas pàzadas vigorosas dos diligentes coveiros deram forma à campa e “…era uma vez uma senhora de nome Veva…”.

Deste modo nasceu aquela lenda muito popular da mulher que, por via de amantismos, pereceu na esteira do amante.

O Djacabai era uma sombra de si próprio, um homem desolado, atarantado pela monumental desgraça que em si caira, e pela possibilidade agravante de poder vir a ser preso, acusado de homicídio e desterrado para a ilha de São Tomé… o que de facto veio a suceder.

 

in Caderno de Memórias, Volume II.

É início de noite de domingo. Setembro na pele da cidade e o cheiro do Outono mais próximo de nós, como o molho picante que se evade da cozinha do restaurante indiano da minha rua. A cada dia o sol deita-se um minuto mais cedo. O céu azul, rasgado por pássaros mecânicos, mais escuro que nos dias anteriores. Vinte horas e dois minutos e o céu azul mais escuro que nos dias anteriores e as luzinhas dos pássaros mecânicos às piscas. O campus da universidade iluminado pelas lâmpadas fluorescentes que ajudam as árvores a fintarem a escuridão. Espreito pela janela e a noite tranquila lá fora.

Na quinta-feira passada pernoitei no Estoril. Uma noite um pouco mais fria e tranquila que a de muitas freguesias de Lisboa. Claro que não podia ser diferente, no Estoril as ondas do mar rastejam com coragem e a praia do Tamariz sempre no mesmo lugar. O escritório para o qual trabalho pôs-nos lá para umas sessões de imersão à vida de advogado associado que se avizinha, razão pela qual no dia seguinte almocei no restaurante do hotel.

Durante o almoço, a mulher que serviu aos meus colegas e eu fez uma centena de visitas à nossa mesa e sempre que se aproximava ignorava os meus colegas, olhava para mim, abria um sorriso que se estendia de uma ponta à outra da boca e cantarolava para mim com aquele jeitinho e tempero brasileiros que ela transbordava:

está tudo bem? você quer mais alguma coisa?

Os olhos dos meus colegas em cima de mim e eu todo constrangido com a situação, sem saber se era aquilo mesmo que me apetecia responder:

está tudo óptimo! Muito obrigado…

Cinco minutos depois, a mulher voltava com um sorriso mais brilhante que o da vez anterior, olhava-me nos olhos com ternura e cantarolava novamente:

está tudo bem? você quer mais alguma coisa?

As batatas a murro e a bifana estateladas no prato branco a rirem-se de mim, os olhos dos meus colegas mais acusadores que nunca e eu a pensar em como ia reagir àquela situação. De repente, a minha colega com um sorriso à queima-roupa disparou:

acho que ela gostou de ti, ilustre!

Não perdi tempo, deixei escapar um risinho maroto e retruquei imediatamente:

o Brasil e eu temos alguma coisa…

As noites de Setembro, de facto, mais fresquinhas que o meu coração. As noites mais escuras. Sinceramente, eu não menti:

o Brasil e eu temos alguma coisa.

No dia 7 de Setembro, o Brasil, um país com mais de duzentos milhões de habitantes, celebra duzentos anos de independência. Tal como para muitos moçambicanos da minha geração, o Brasil chegou-me pela televisão na primeira década do século XXI. Lembro-me de ver o Brasil, um país que só mais tarde descobri colorido, chegar-me aos olhos através das telenovelas que passavam todas as noites na televisão à preto e branco que os meus vizinhos tinham estacionada no centro da cristaleira colada à parede da sala. Lembro-me de ouvir o Brasil chegar-me aos ouvidos através das melodias de Leonardo e Leandro, Zezé de Camargo e Luciano, Almir Sater, Chitãozinho Xororó, Caetano Veloso, Chico Buarque, Alexandre Pires e Alceu Valença. Lembro-me de ver o Brasil chegar através de Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa e de Capitães de Areia de Jorge Amado. De tal modo que não menti quando disse:

o Brasil e eu temos alguma coisa.  

São duzentos anos de independência e o Brasil, meu amor, chega-me através dos brasileiros afectuosos e simpáticos que encontro no meu dia-a-dia. O Brasil chega-me através dos vários amigos brasileiros que não cabem em nenhuma das minhas mãos sempre secas. E sem dúvida, Brasil é poesia, negro, metrópole, cachaça, futebol, música, favela, sofrimento, índio, Aparecida, alegria, samba, sertão, amizade, paixão, Domitila, carnaval, vulcão, quilombo, trabalho árduo, esperança, branco, grito, sonho, pimenta no arroz, serena, beleza, vida. De tal modo que a voz no meu ouvido, bem devagarinho, cantarolando:

Arrumadjinho!

Setembro na pele da cidade, a noite mais noite que em Agosto. As luzinhas dos pássaros mecânicos às piscas. As luzes fluorescentes iluminando o campus da universidade e as árvores esquivas a fintarem a escuridão.

 

A grandeza dos homens também se mede pela

capacidade de reconhecerem os seus erros.

in No verso da cicatriz.

 

Boa tarde a todos.

Eu chamo-me José dos Remédios e, hoje, terei a oportunidade de partilhar convosco as minhas leituras sobre um belíssimo livro, que é No verso da cicatriz, de Bento Baloi. É um romance que, inclusive, leva-nos a viajar pelas várias latitudes de Moçambique. Mas esta ainda não é uma tentativa de apresentar o livro. Antes de me perder, eu gostava, primeiro, de felicitar ao Município de Quelimane, em especial ao Presidente Araújo. Tenho acompanhado o bonito trabalho que tem sido feito cá em prol da literatura. Sei que cá temos uma feira do livro e que o Município tem adquirido livros de autores moçambicanos, ora promovendo as obras desses mesmos autores, ora criando condições para que a literatura chegue a mais pessoas e possa funcionar como ferramenta para compreensão do no nosso espaço existencial e do nosso tempo.

Eu acho que este tipo de iniciativa, como a Feira do Livro de Quelimane, que este ano homenageou Eduardo White, é tão necessária quanto urgente. Infelizmente, nem sempre conseguimos a possibilidade de ter muitas réplicas em vários municípios a nível nacional. Quando calha um município funcionar como um espaço que pensa e vive a literatura, fazendo com que a experiência literária seja partilhável, é algo notável.

Também quero agradecer e felicitar ao Bento Baloi, lá mais para frente posso esquecer-me, por este No verso da cicatriz que funciona como uma espécie de introdução ao que Moçambique foi, ao que Moçambique é e ao que Moçambique pode ser em função das nossas leituras do passado. É um livro muito coerente, profundo e acutilante. Eu tinha de dizer isto publicamente ao Bento porque, para mim, é uma oportunidade de reconhecer o grande livro que é No verso da cicatriz. Deu-me muito gosto lê-lo e já o considero um dos melhores romances moçambicanos publicados nos últimos anos.

Para encerrar esta página dos agradecimentos, agradece-vos a todos, por terem vindo cá participar nesta celebração à arte literária, que é, essencialmente, um momento de partilha. Nem sempre temos um público para dizer o que nós pensamos. Então, em reconhecimento ao vosso gesto, aproveito esta ocasião para vos contar um segredo. Não vão contar a ninguém, não é? Os segredos não são se devem recontar.

É assim, há um ano, eu ganhei este livro e li-o. É interessante que na mesma época eu fui convidado pela revista literária Mayombe, de Angola, a escrever um artigo sobre um livro da literatura moçambicana, à minha escolha. Como já tinha lido No verso da cicatriz, decidi que o meu artigo seria sobre este romance. Então, em Setembro de 2021, o artigo foi publicado em português e em inglês na Mayombe. Mas o segredo não é esse, que cá estou a fugir do assunto, mas o seguinte. Quando terminei de ler o romance, eu disse cá para os meus botões, eu gostaria de apresentar este livro. Mas estava num dilema, porque como potencial apresentador do livro, eu não tinha essa luz verde para poder manifestar tal interesse. O autor tem sempre de escolher quem quer que apresente o seu livro e eu não iria querer mudar isso. Então, fiquei a contar com a sorte, à espera que os astros conspirassem de modo que o Bento me convidasse para apresentar o romance, mas isso não aconteceu. Quer dizer, quem apresentou o livro pela primeira vez, na Fortaleza de Maputo, foi um grande professor, Francisco Noa, que, inclusivamente, faz parte da minha formação literária. E fê-lo muito bem! E pronto. Não ficou nenhum ciúme e nem nada disso. No entanto, apenas julguei que tinha perdido uma oportunidade de dizer publicamente o que penso do livro. Até que há dias, Bento Baloi liga-me a convidar-me para apresentar No verso da cicatriz em Quelimane. O convite foi ainda especial do que se tivesse sido feito para apresentar em Maputo, onde vivo, porque Quelimane também me diz muito. A minha mulher, Angélica Pereira, nasceu em Maquival, aqui pertinho. Eu não conhecia Quelimane, esta é a minha primeira experiência na única cidade do Centro do país que não conhecia. Então, vir a Quelimane por causa de literatura e ainda conhecer a terra-natal da minha mulher é algo realmente especial e, afinal, os astros conspiraram para que isto acontecesse.

Há um ano, ao artigo que escrevi para Mayombe dei o título de A desconstrução da utopia (e a narrativa dos desafectos) em No verso da cicatriz. Mais tarde, melhorei o texto e, um dia, irei publicá-lo em livro. Mas por que é que eu pensei em dar esse título ao meu texto? Bem, é um título ligeiramente longo, mas que traduz duas principais ideias que eu aqui pretendo partilhar com os leitores e com os potenciais leitores, evidentemente. Quer dizer, por um lado, ao ler No verso da cicatriz, ocorreu-me outro livro: Utopia, de Thomas More, onde existe uma ilha inventada que funciona como um lugar fantástico e, acima de tudo, bom. E, num mundo em que estamos tão sedentos de coisas boas, num mundo tão violento, com acidentes, violência e tantas outras peripécias que nos incomodam e comprometem a nossa sanidade mental, pensar na Utopia, de More, é fundamental.

A Ilha da Utopia de More é um lugar justo, solidário, comunitário e de harmonia. É um lugar inventado para incluir a todos. Então as leis funcionam, a justiça funciona, o amor existe, a solidariedade, a amizade e todos os valores que deveriam nortear os seres humanos lá também existem. É um lugar de sonho!

Quando nós lemos No verso da cicatriz, ocorre-nos que o primeiro espaço para a narrativa, apresentado pelo narrador, é Maguaza, algures no Distrito de Moamba, em Maputo. Usado como categoria da narrativa, Maguaza é um espaço ideal. Nós até podemos identificar várias localidades como Maguaza pelo país adentro, mas este que a história nos traz é um lugar ideal. A questão que aqui se coloca é: como é que nós pensamos num plano real, com tantas dificuldades, a partir de um lugar fictício e como é que a ficção, a partir desse exercício, comunica-se connosco? A ficção tem o poder de reinventar a realidade? Como é que a ficção faz com que a realidade ganhe mais sentido? Na verdade, estas são as principais questões que os dois narradores de No verso da cicatriz nos trazem, porque a realidade, às vezes, é tão efémera que nós não a conseguimos compreender. Em No verso da cicatriz temos essa espécie de lugar que nos ajuda a construir mundos, personagens e, assim, instaura-se uma personificação que nos faz olhar para o nosso universo interior. E olhar para o nosso interior não é tão fácil quanto fechar os olhos, porque aqui também buscamos a resposta à pergunta quem nós somos como povo?

Os dois narradores que me referi há pouco são Bernardo Penicela Muhlanga e Maria Helena. Quanto ao estatuto, são narradores autodiegéticos, aqueles que na escola secundária designamos narrador participante. Mas este termo participante não é tão feliz quanto isso porque o narrador, quer integre, quer não integre a história como personagem, é sempre uma entidade participante na narrativa. Logo, o termo autodiegético ajuda-nos a compreender que além deste narrador contar a história, também é protagonista.

Neste livro temos narradores que contam as suas próprias histórias e como é que essas mesmas histórias se vão relacionando com as outras. Há aqui um pouco de invocação do que nós podemos passar a pensar em termos de como a nossa vida e a nossa existência vão-se entrelaçando com os outros. Não existimos sozinhos e os protagonistas de No verso da cicatriz estão constantemente a lembrar-nos disso.

Esta é, logo no princípio, uma história de amor, mas uma história de amor transversal. É uma história de amor às pessoas, às personagens, à literatura, à terra e ao que nós podemos julgar ser nação. A nação aqui é construída e reconstruída através da história de duas personagens.

Em jeito de sinopse, neste livro temos um certo rapaz, Bernardo, que se apaixona por uma rapariga, Maria Helena. Entretanto, há aí um problema delicado. A certa altura, o pai de Maria Helena apercebe-se de que o rapaz é originário de uma determinada etnia e não quer que se relacione com ela. Sendo ele uma das autoridades do lugar, parte para a sede de Maguaza e mente aos seus superiores, dizendo que na sua aldeia havia um testemunha de jeová, Bernardo, numa altura em que o regime do dia, depois da independência de Moçambique, perseguia aqueles devotos. E nós podemos nos perguntar: qual é o problema de ser testemunha de jeová? No romance, é um grave problema. Por isso, a promissora história de amor é, desde cedo, interrompida. Bernardo, que tanto ama Maria Helena, é levado à força de Maguaza e vem parar aqui a Zambézia (eu não sei se já ouviram falar de Carico), depois de ter sido aliciado a abandonar uma fé que não tinha e, depois, passou a ter.

Seja como for, nesse sentido, o romance de Bento Baloi confronta-nos com as seguintes perguntas: quanto custa a nossa fé? Vale a pena abandonarmos as nossas convicções e aquilo em que acreditamos por medo de morrer? Vale a pena desistirmos de tudo o que somos por medo? O romance traz-nos este tipo de confrontação e cada leitor irá responder à pergunta mediante à forma como for a ocorrer a sua própria introspecção.

Este é um livro narrado na primeira pessoa do singular, no presente do indicativo, em três cadernos, em que, a certa altura, captamos o cruzamento entre a história, a pesquisa, a realidade e também a técnica narrativa. Portanto, não se trata apenas de um livro que mexe com a História recente de Moçambique nas suas várias vertentes; não se trata apenas de uma narrativa que inicia em Maguaza, no advento da nossa independência, até 1992, na altura em que termina a guerra dos 16 anos; não é apenas um livro que percorre o país do Sul ao Norte. Conforme disse anteriormente, aqui também há “muita” Província da Zambézia, desconhecida para vários habitantes da cidade, que, eventualmente estão aqui.

Uma dessas passagens que nos leva ao interior da Zambézia, sempre esquecido, ajuda-nos a perceber a relação entre o narrador e as coisas que narra sobre o seu habitat. Diz o seguinte:

 

Carico. O sol procura esconder-se por entre as montanhas anunciando o fim da tarde e o princípio da noite. Os 30 quilómetros, que agora nos separam da vila de Milange, foram feitos em bagageiras de camiões. Apertadíssimos uns com os outros. Mal cabíamos. O desembarque é uma operação de alívio ao convívio com a catinga do outro. É o fim do suplício de inalar poeira. O nosso aspecto amarelado é disso denunciador.

Carico é uma região encravada num conjunto de serras que fazem parte do sistema montanhoso Chire-Namúli. A própria expressão “Carico significa “dentro da panela”, na língua local, indicando que o local é rodeado de montanhas.

A ideia de estarmos num território dominado por felinos desaparece logo à chegada. Há um enorme grupo de pessoas que nos recebe efusivamente com cânticos e dança, o que constitui uma grande surpresa. É muita gente! Acredito serem as Testemunhas de Jeová para cá enviadas antes de nós (p. 53).

 

Quem discursa desta maneira é Bernardo Penicela Muhlanga, o retirado à força do seu território, do seu espaço perfeito, da utopia e ideal. Vai parar a Carico, no interior da Zambézia, numa época em que palavras como “centro de reeducação” e “operação e produção” eram recorrentes para alguns moçambicanos. A partir desta passagem que li, conseguimos sentir cheiros, ver imagens e sentir a sensação das personagens. A descrição é feita de tal maneira que nós passamos a compreender, num novo espaço, os receios de Bernardo (mais tarde, de Maria Helena também) e os sentidos do amor. E voltamos às perguntas retóricas do romance: vale a pena sacrificarmo-nos por amor? Ou podemos largar tudo em prol da sobrevivência? Entre a sobrevivência e o amor, o que é o mais importante?

O romance desenrola-se em 17 anos, envolvendo personagens que sofrem, mas que, mesmo numa época de cólera, não desistem de amar. Ainda podemos amar? O que significa amar as pessoas e a terra?

Este é um romance sobre a intolerância religiosa e ideológica, é um romance onde nos encontramos, que nos ensina que podemos fazer da ficção um factor de reconciliação de facto, porque esta palavra reconciliação, em muitos círculos, é muito gasta, muito vazia de sentido e de imaginação. Nesta história podemos pensar em cada termo que nós muitas vezes usamos ao pronunciar palavras como paz e amor. Eu sempre repito a palavra amor porque é isto o que o livro é e que Bento Baloi traz. E esta capacidade de mergulhar dentro das personagens para trazer uma certa sensibilidade faz com que experimentemos o que há mais de dois mil anos Aristóteles designou catarse, esta capacidade de assumir a dor do outro como nossa.

Ao partir desta aceitação da dor do outro, pensamos no mundo real de uma outra forma, de uma forma mais justa, honesta e solidária. Então esta catarse nos purifica e leva-nos de regresso ao passado, não para o corrigir, mas para pensar nesta geografia que cabe na fronteira Rovuma a Maputo e do Índico ao Zumbo. O que significa ser moçambicano também é uma questão presente neste livro, permitindo-nos conhecer as zonas recônditas do nosso país e o espaço, de certa maneira. Isso faz com que o romance de Bento Baloi seja uma narrativa necessária e urgente de ler. É uma narrativa através da qual o autor consegue mergulhar de uma forma profunda na alma humana, buscando as suas virtudes e as suas imperfeições.

Quem quiser passar a conhecer-se melhor, quem desejar fazer um exercício de introspecção até para saber o que significa as palavras humanismo e moçambicanidade e como o país construiu-se ao longo do tempo, tem aqui um bom pretexto. Quem também quiser pensar na literatura e nas formas de narrar uma bela história, deve ler este livro, no qual os discursos dos narradores se complementam.

Se puderem, leiam No verso da cicatriz, porque, assim, serão melhores pessoas, renovadas, purificadas e, se calhar, a interessarem-se mais pela magia das letras. A propósito de letras, este romance conecta-se com outras literaturas, como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Teresa Raquim, de Émile Zola, e O vermelho e o negro, de Stendhal, pela descrição da paisagem, caracterização das personagens e pelo efeito trágico.

Mesmo a terminar esta minha intervenção, que já vai longa, eu quero partilhar duas frases das várias bonitas proferidas pelo narrador de Bento Baloi. A primeira passagem diz o seguinte: “Mas a força da razão jamais sucumbi à razão da força” (p. 56). Há aqui duas palavras-chave: razão e força. O que é superior e o que deve ser superior? É uma frase para pensarmos nas nossas relações, no nosso contexto e na relação entre o tempo e o espaço.

A outra frase diz precisamente o seguinte: “A grandeza dos homens também se mede pela capacidade de reconhecerem os seus erros” (p. 80). Se nós podemos aprender o alfabeto, se podemos aprender a contar, a andar, a relacionar-nos uns com os outros e até a sofrer, nós também podemos aprender a reconhecer os nossos erros, porque nós erramos todos os dias e caímos todos os dias. O que importa é que podemos aprender a aceitar e a corrigir os nossos erros, e, a partir daí, reconciliarmo-nos com os visados dos nossos deslizes. Este romance é mais do que um encontro com a nossa História, é mais do que um encontro com a nossa paisagem e com a nossa geografia, é um encontro com a nossa humanidade.

Se puderem, leiam a história de Bernardo e Maria Helena porque nos ajuda a tornarmo-nos pessoas novas, ainda que tenhamos 20, 50 ou 90 anos e idade. A literatura também tem este poder e esta capacidade.

Obrigado!

 

*Transcrição da intervenção feita na apresentação do romance No verso da cicatriz, de Bento Baloi, no dia 26 de Agosto, no Salão Nobre do Município de Quelimane.

 

 

Em menos de um ano, Moçambique passou do 4° lugar a 2° lugar dos países mais infectados pelo HIV/Sida no mundo, ficando atrás da África do Sul. Entretanto, ao mesmo tempo, tem crescido o número de campanhas de sensibilização sobre esta doença em diversos meios de comunicação. O que estará a falhar?

Fazendo uma breve análise sobre as campanhas e acções sociais sobre HIV/SIDA, ocorre-me este entendimento de que ainda há muito que se melhorar na forma de sensibilização e comunicação. Tomando de exemplo a campanha denominada “Somos Iguais” lançada pelo Ministério de Saúde em Maio do ano passado em parceria com a USAID, passa-me a ideia de que haja um duplo efeito da mensagem veiculada por essa campanha.

O primeiro efeito é que a campanha “Somos Iguais” conseguiu responder ao desafio que lhe foi proposto – erradicar o estigma e descriminação sobre as pessoas com HIV/Sida que, por sua vez, temiam buscar pelo tratamento. Ou seja, a campanha “Somos Iguais” tem sido capaz de operar um processo de normalização das vidas das pessoas seropositivas, que antes eram conotadas como gente culpada pela sua doença, estando à beira da morte e com poder de contaminar as pessoas mais próximas.

Com a série de propagandas positivas sobre o HIV/Sida que tem sido disseminada nos meios de comunicação e nos espaços públicos, incluindo depoimentos de pessoas seropositivas que alegam estar a viver as suas vidas como qualquer outra pessoa seronegativa, nota-se que há uma crescente aceitação e integração social das pessoas com HIV/sida em comparação aos tempos passados.

Todavia, por trás dessas campanhas massivas de normalização do HIV/Sida, como tem sido a campanha “Somos Iguais” é provável que haja um outro efeito gravemente negativo que esteja a ser ignorado. Refiro-me a uma tendência generalizada em considerar o HIV/Sida como uma doença vulgar e inofensiva. Ou seja, Afigura-se-me que, na medida em que as pessoas passam a normalizar esta doença, ao mesmo tempo, o nível de precaução e a consciência do perigo em relação ao HIV/Sida tende a reduzir no seio das comunidades.

O facto de as campanhas de HIV/Sida propagar-nos mensagens positivas e imagens de pessoas de boa aparência, descrevendo as suas vidas como saudáveis devido à adesão ao tratamento antiretroviral (TARV) ajuda no combate à estigmatização, entretanto, de algum modo, pode servir como um mecanismo para quebrar o nível de alerta sobre a real gravidade que esta doença representa na nossa saúde. E quando há mais pessoas que passam a destemer o perigo de viver com o HIV/Sida, automaticamente, o nível de infeccão tenderá a aumentar na sociedade, pois com ausência do medo e da devida consciência sobre a gravidade do HIV/SIDA, aumenta a vulnerabilidade das pessoas.

É por esta razão que considero a campanha “Somos Iguais” uma faca de dois gumes afiados. Dum lado, combate com sucesso o estigma e descriminação contra pessoas seropositivas, doutro lado, ainda que de modo indirecto, minimiza a preocupação das pessoas acerca dos riscos de viver-se com HIV/Sida.

Assim sendo, com este tipo de campanha, abre-se-nos um cenário futurista em que passaremos a ter maior número de pessoas incautas e, consequentemente, infectadas com HIV/Sida mas que busca zelosamente pelo serviços do TARV numa sociedade cada vez mais aberta e inclusiva.

Todavia, nada nos garante que os seropositivos não possam perder a luta para esta doença, pois a sustentabilidade dos serviços do TARV depende de alguns factores: o financiamento para contínua importação dos medicamentos; a facilitação das vias de acesso ao TARV que inclui a questão da distância entre os pacientes e os postos de saúde, sobretudo, em zonas rurais; a pobreza como um factor que eleva o número de desistência dos pacientes que alegam não ter condições alimentares para sustentar os efeitos do consumo dos comprimidos; comportamentos de risco daqueles seropositivos que ainda mantêm relações sexuais desprotegidos, elevando o risco de mais carga viral no seu organismo.

Urge, portanto, um apelo para que as campanhas de prevenção e combate ao HIV/Sida, tal como a campanha “Somos Iguais” continuem a marcha de sensibilização das pessoas, entretanto, deve dar-se maior atenção e cuidado aos efeitos da informação veiculada. Com mais precisão, os órgãos de activismo devem abster-se de todas as formas de romantizar a vida de quem porta a doença do HIV/SIDA. O eventual efeito duma mensagem romantizada do HIV/Sida é tornar as pessoas menos preocupadas e mais vulneráveis a essa doença. Entretanto, o apelo para não romantização do HIV/Sida não deve implicar ou significar uma dramatização do HIV/Sida, pois esse alarmismo não resolve o problema, mas sim cria uma sociedade de medo, preconceito e descriminação.

O desafio que se impõe à sociedade civil e institutos governamentais é de produzir-se informações precisas sobre as dificuldades de viver-se com o HIV/Sida, a importância de aderir-se aos métodos de prevenção e os riscos de não se aderir, na plenitude, os serviços de TARV. É preciso que haja maior coordenação e equilíbrio entre as correntes de informação que apregoam a prevenção contra HIV/Sida e as que apelam ao tratamento e a não descriminação contra os seropositivos.

Somente com campanhas muito mais responsáveis na forma de comunicar, podemos construir uma mentalidade positiva e prudente em relação à condição do HIV/SIDA.

 

e-mail: tsembah@gmail.com

O Poeta Alberto de Lacerda morreu há 15 anos. Li, pela primeira vez, um poema seu publicado, na vetusta “Gazeta” da TEMPO, por Luís Carlos Patraquim, que me marcaria para sempre: “Diotima”. Aqueles versos iniciais são inesquecíveis e nunca me abandonaram: “És linda como haver Morte/ depois da morte dos dias”. Isto é de uma beleza tremenda. Mas o poema tem outros versos igualmente perfeitos: “Quem te criou destruiu / qualquer coisa para sempre”. Um poeta capaz deste tipo de síntese poética tem lugar em qualquer panteão. Este poema foi inspirado pela sua sacerdotisa, a Poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, talvez a mais importante poeta portuguesa do século passado.

Alberto de Lacerda nasceu na Ilha de Moçambique a 20 de Setembro de 1928 e cedo imigrou para Londres onde viveu – com intermitências pela América – até ao fim. Luís Amorim de Sousa escreveu um testemunho pungente sobre o Poeta em “Às Sete no Sa Tortuga: um retrato de Alberdo de Lacerda”. Um comovente testemunho de amigo desde que se conheceram em Londres até ao fim. Lacerda abandona Moçambique em 1946, parte para Lisboa onde prossegue os estudos e chega, em 1951, a Londres. Aos 23 anos almoçou “Exactamente / No centro / Da liberdade” com o imenso poeta T.S. Eliot, autor desse celebrado “The Waste Land” e Nobel em 1948. Conhece, através de Edith Sitwell, o poeta Dylan Thomas.

Será na capital britânica onde publicará o seu primeiro livro: “77 Poems”, em 1955, pela Allen&Unwin. Teve um acolhimento caloroso e críticas entusiasmadas. Em Portugal, onde no início dos anos 50 conviveu com a nata da poesia portuguesa – Ruy Cinatti, Mário Cesariny, Raul de Carvalho, António Ramos Rosa, Luís Amaro e Sophia de Mello Breyner Andresen, a sua Diotima –, participou da criação da “Távola Redonda”, com Ruy Cinatti, António Manuel Couto Viana e David Mourão-Ferreira.

Poeta maravilhado e do maravilhamento, poeta deslumbrado e do deslumbramento, poeta sensível e iluminado, poeta intenso, por vezes enigmático, esfíngico, nostálgico sempre. Poeta amante da poesia, da música, das artes plásticas. É amigo, até ao fim, da grande artista Paula Rego. Outra musa. Coleccionador inveterado de arte, de livros, de discos. Vive compungido com a música, sobretudo de Mozart, exulta com Picasso. Poeta da língua, grande exegeta. A língua portuguesa esplende-se e esplende-lhe. Quem o conheceu, via nele a figura e a imagem do poeta. Homem por vezes ensimesmado, recolhido no seu ser. Soberbo conversador: Eugénio Lisboa dizia que a conversa com Alberto de Lacerda melhorava o silêncio. Aliás, Luís Amorim de Sousa, nas várias homenagens que lhe faz, não poupa elogios a essa arte de conversar e a essa festa da palavra no diálogo com Alberto de Lacerda. Da palavra exacta. Da poesia esmerada. Do silêncio.

Numa remota viagem pelo seu lugar de origem escreve um dos poemas mais belos e translúcidos sobre a Ilha de Moçambique, que lhe chama “L`isle joyeuse” no livro “Exílio”: “Ó festa de luz de mar tranquilo”. Aliás, em “A Minha Ilha”, esta mesma Ilha de Moçambique estará na origem dos mais breves e mais intensos versos de sagração da Ilha de que há memória: “Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam / No meio da rua como peregrinos / Dum mundo mais aberto e cristalino”. Este e outros versos seus, igualmente lapidares, foram recolhidos na antologia “A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas”, compilada por mim e pelo António Sopa. Numa ulterior empreitada, “Nunca Mais é Sábado” (título pilhado a Rui Knopfli), antologia que organizei, sobre a poesia moçambicana, iria, igualmente, incluir poemas de Alberto de Lacerda. Para obter o seu consentimento, falei-lhe ao telefone e ele foi extremamente afável nesse único contacto que estabelecemos. Tive pena de nunca o ter encontrado pessoalmente. O Eugénio Lisboa quis muito que eu o conhecesse, mas não calhamos em Londres.

Quando vou a Londres hospedo-me em Battersea. Não raro imagino-o a percorrer as ruas de Chelsea, o seu bairro predilecto, no qual residiu até ao início da década de 70 e que está profusamente cartografado na sua poesia. Mudar-se-ia para 48A Primrose Mansions, na Prince of Wales Drive, que margina o Battersea Park, onde frequento amiúde. Certa noite fui lá em busca da sua memória. Em Julho passado ainda intentei uma visita ao Cemitério de Brompton onde ele está sepultado. Mas o calor impenitente que assolava Londres impediu-me essa romagem poética.

Das suas efemérides literárias destacaria: “Oferenda I” (1984), que inclui “77 Poemas” (1955), “Palácio” (1961), “Exílio” (1963), “Tauromagia” (1981) e “Cor: Azul”. Publicou “Elegias de Londres” (1987), “Meio-Dia” (1988) e “Oferenda II”, que acolhe “Opus 7” e “Mecânica Celeste”, para além de “Átrio” (1997” ou “Horizonte” (2001) ou ainda o póstumo “O Pajem Formidável dos Indícios” (2010).

Foi amigo do poeta brasileiro Manuel Bandeira, a quem visita no Brasil, entre 1959 e 1960, numa prolongada estada, que será preenchida com leituras e palestras. Conhece figuras estelares do modernismo brasileiro. Trava amizade com Oscar Niemeyer, este irá levá-lo a conhecer Brasília, então em fase de construção.

Da sua estada na América avulta a sua passagem por Austin, na Universidade do Texas, onde dá aulas, orienta cursos de Português, Francês e Literatura Comparada. Deixara para trás o trabalho precário de locutor e redactor da BBC. Convive à época com nomes como Octavio Paz, o poeta mexicano que seria laureado com o Nobel em 1990. Em 1969 surgem os seus “Selected Poems” nos Estados Unidos. Visita o México, que lhe inspira “Trinta e Quatro Poemas Mexicanos ou a Genealogia do Tempo”, obra inédita. Organiza um festival de poesia. Dele participam: Jorge Luis Borges, Czeslaw Milosz (outro Nobel, em 1980), Robert Duncan, Louis Zukofsky, David Wevill e Robert Creeley, entre outros.

Em 1972 vai leccionar para a Universidade de Boston. Foi, entre outros, professor de Jhumpa Lahiri, uma grande escritora americana, nascida em Londres, filha de indianos. Reencontra Octavio Paz, trava novas amizades: Jorge Guillén, Roman Jakobson, Elisabeth Bishop, entre tantas outras figuras da literatura americana. Sobretudo os da Costa Leste.

Em 1977 fez uma leitura pública da sua obra na Biblioteca do Congresso, em Washington, e gravou uma selecção de poemas para os arquivos sonoros desta instituição. É provavelmente o único poeta em língua portuguesa que mereceu até hoje esta distinção.

A sua ligação com a Universidade de Boston perdura até à sua aposentação em 1996, ano em que retorna, definitivamente, a Inglaterra. Os últimos livros que publica em vida são “Átrio” (1997) e “Horizonte” (2001).

Era um grande colecionador. Existe uma obra – “Colecção Alberto de Lacerda – Um Olhar”, com textos de Luís Amorim de Sousa, Jhumpa Lahiri, Mário Soares, John McEwen e Alfredo Caldeira. Lacerda, para além de ser grande nome da poesia em língua portuguesa, era um obstinado colecionador de livros, quadros, desenhos, discos, cartazes, fotografias. Em 1987, parte da sua colecção esteve exposta na Gulbenkian, em Lisboa, em “O Mundo de Um Poeta”. No livro “Apesar de Tudo – Em memória de Alberto de Lacerda”, Luís de Sousa Amorim relata os últimos dias e a morte do Poeta, bem como a saga kafkiana que se seguirá para a recuperação do seu vasto espólio. O testemunho de como venceu a burocracia das heranças e os obstáculos que a banca impunha é assombroso. Deve-se-lhe a recuperação do património e do nome de Alberto de Lacerda.

Alberto de Lacerda não terá voltado a visitar Moçambique depois da viagem que antecede o belíssimo livro evocativo “Exílio”. Mas o referencial poético moçambicano está sempre presente. Sobretudo o Norte de Moçambique. Na “Segunda Elegia” das suas belas e pungentes “Elegias de Londres” a infância e os seus territórios desse eterno encantamento estão cartografados de forma ineludível. E noutros versos e noutros poemas.

Rui Knopfli, no luminoso livro “Mangas Verdes com Sal” (1969), num dos seus mais belos poemas, cita-o como um dos seus predecessores: “Que subtraio de Alberto de Lacerda / e pilho em Herberto Helder e que / – quando lá chego e sempre que posso – / furto ao velho Camões.” Hoje é um poeta praticamente deslembrado. Há quatro anos foi publicada uma antologia de sua poesia (“Labareda”), em Portugal, com prefácio e organização de Luís Amorim de Sousa, seu indefectível amigo e legatário. Por sua iniciativa, tinha sido editado o livro póstumo “O Pajem Formidável dos Indícios”. Entre nós, o seu nome sempre escapou à quezilenta discussão da nacionalidade literária. Ainda bem. Nunca os ensimesmados esbirros literários se meteram com ele. Um poeta do seu quilate, um poeta do seu gabarito, não é de todo prescindível. Hoje, 27 de Agosto, passam 15 anos sobre a sua morte. Num remotíssimo breve poema intitulado “Vento” escreveu premonitoriamente: “Que a minha vida fosse para os humanos / como o vento que passa e que se esquece.” Está gravado na pedra do seu túmulo o poema de uma única palavra que também faz a súmula da sua vida e de como viu este mundo: “Paraíso”.

 

KaMpfumo, 27 de Agosto de 2022

 

“…ela estava entre as estrelas mais brilhantes deste país, no sentido próprio da palavra.”

Nelson Mandela

 

Naquele infausto dia 17 de Agosto de 1982, há precisamente 40 anos, quando ouvi, na rádio, a notícia do brutal assassinato de Ruth First, por intermédio de uma carta-bomba, eu não passava de um adolescente de 15 anos. Vivíamos, é certo, tempos vertiginosos e empolgantes, ulteriores a uma emancipação política recente. Eram tempos de engajamento, tempos de exacerbamentos ideológicos, tempos disjuntivos, sem dúvida, entre a revolução e os seus acérrimos defensores e aqueles que eram os inimigos figadais da mesma, ou que estavam nos seus antípodas. Mesmo sendo um jovem adolescente, tinha a noção do que estava a acontecer no território movediço da política em Moçambique e da África Austral, então em ebulição, numa encarniçada e violenta disputa.

 

Os virulentos ataques da então Rodésia do Sul (actual Zimbabwe, independente em 1980) e os da África do Sul do apartheid, quotidianamente demonizados na imprensa, estavam na origem de mossas visíveis no tecido social e económico. Para além disso, os indícios da guerra de agressão eram já ineludíveis. O nosso apoio sem tréguas às lutas pela libertação do Zimbabwe e pelo fim do apartheid na África do Sul traduziu-se numa impiedosa agressão, cuja devastação tem efeitos ainda hoje.  Os nossos dias, nos quais tudo escasseava, de bichas para tudo e de uma miséria material e social inelutáveis, eram já o testemunho do desastre. Tínhamos, afinal, consignado o nosso presente e o nosso futuro a esta causa. Teríamos nós a noção do que estávamos a penhorar? Ou estávamos cegos imbuídos pelo arroubo do proselitismo que nos movia?

 

Quando o infortúnio atingiu Ruth First, eu já estivera em comícios na Praça da Independência, vira Samora Machel de mãos dadas com Oliver Tambo, ouvira as suas diatribes contra o regime vigente na África do Sul, marchara a favor da libertação de Nelson Mandela, abominava visceralmente o regime do apartheid, tinha devotado muito antes a mesma bílis em relação a Ian Smith. Era já, de algum modo, um jovem politizado. Não estava imune à propaganda e à ideologia dominantes. Antes pelo contrário. Os meus versos daquela noite foram de ira, ódio, fúria, repulsa. Não os tenho mais, perderam-se, mas guardei a lembrança do facto de terem desencadeado, em mim, naquele momento de cólera, o escritor que se iria revelar com tempo. Ali, naquele acontecimento plangente, estava inscrito, de algum modo, o meu destino literário e o nome sacrificado de Ruth First ficaria assim ligado à minha mitologia pessoal.

 

Heloise Ruth First, filha de judeus oriundos do Mar Báltico, entre a Lituânia e a Estônia, no Leste europeu, nascera, em Joanesburgo, a 4 de Maio de 1925. O pai era um dos membros fundadores do Partido Comunista Sul-africano. As causas que ela iria abraçar e o seu aguerrido carácter parecem advir da ascendência. A estirpe da lutadora tem uma origem indissimulável. Na Universidade de Witwatersrand, que frequentou entre 1942 a 1946, foi contemporânea do futuro marido e companheiro de vida e de luta – Joe Slovo -, bem como de Nelson Mandela. Estudou ciências sociais que lhe garantiram os instrumentos para o combate intelectual e político. Estava do lado dos oprimidos, dos vexados pela História, dos amofinados pelo regime – os violentados, os aviltados, os molestados, os injustiçados. Sempre esteve. A sua vocação, por assim dizer, era o jornalismo, era a denúncia, era a contestação, era a rebeldia. Apoiou a luta dos mineiros em 1946, esteve na campanha da resistência pacífica dos indianos em 1950, ou nos protestos contra o banimento do Partido Comunista nos anos 50. Esteve sempre do lado certo da História.

 

Casa-se com Joe Slovo em 1949. A casa de ambos converter-se-ia numa célula política, lugar importante para a conspiração, para reuniões e debates, naqueles duros anos 50. Ela é já então uma activista intrépida. O legendário fotógrafo Peter Magubane, que tem a provecta idade dos 90 anos, tem uma fotografia de Nelson Mandela confabulando com Ruth First nos tempos em que ambos combatiam o apartheid. É uma belíssima imagem desses tempos acirrados e fascinantes da História – testemunho e testamento da História. First e Slovo são brancos e combatem a supremacia racial e incivil instalada no seu país.

 

Ruth é presa, tal como Nelson Mandela, no processo e, depois, Julgamento por Traição (1956-1961). No entanto, as acusações do regime foram retiradas e todos os réus absolvidos. Aquando da declaração do estado de emergência, na sequência do massacre de Sharpeville e da dura repressão, foge do país, contudo retorna a Joanesburgo seis meses depois. Torna-se editora do “New Age”. Importa citar a sua passagem pelo “The Guardian” e pelo “Fighting Talk”, igualmente. Aliás, seria novamente detida, em 1963, por conta do seu activismo e dos artigos que escrevia. Esteve na solitária 117 dias e redigiu um testemunho dessa experiência. Foi, indubitavelmente, a primeira branca a experimentar essas agruras.

 

Nelson Mandela e muitos dos seus companheiros, na sequência da “Operação Mayibuye”, são presos. As anotações de Mandela sobre a guerrilha e os seus diários da sua célebre viagem de 1962 (ilegal para o regime) eram incriminatórios. Walter Sisulu, Dennis Goldberg, Govan Mbeki, Ahmed Kathrada, Raymond Mhaba, ou Andrew Mlangeni estão entre os réus. Estavam todos arrolados no célebre Julgamento de Rivonia. Oliver Tambo, Joe Slovo e Ruth First também foram envolvidos.

 

Joe Slovo exilara-se no Reino Unido. Quando Ruth ganha o direito à liberdade, ela e as três filhas, juntam-se-lhe. Nas décadas 60 e 70, a viver na Grã-Bretanha, é uma activista anti-apartheid destemida e escreve uma série de livros audazes e tem uma brilhante carreira acadêmica. A sua história em Moçambique está umbilicalmente ligada ao Centro de Estudos Africanos, onde desempenhará o papel de directora de pesquisa, coadjuvando Aquino de Bragança, seu director, pela mão de quem viera. Ao abandonar o Reino Unido juntava-se a uma geografia que lhe devolvia a proximidade com o seu país e a sua luta. À época, Slovo vivia em Angola. Posteriormente, estabelece-se em Maputo. A fronteira era importante para a luta e para as actividades do Umhkonto we Sizwe.

 

Quando chega a Moçambique, em meados dos anos 70, Ruth First é uma intelectual afirmadíssima e autora de uma importante obra. O Centro de Estudos Africanos, inspirado no remoto CEA criado em Lisboa por Mário Pinto de Andrade e seus companheiros nacionalistas africanos, que funcionou inicialmente em casa da Tia Andreza, tia da santomense Alda do Espírito Santo, é uma experiência, de laboratório social, reproduzida não só em Moçambique. Na Guine Bissau, o próprio Mário de Andrade será propulsor de um dos CEA mais activos e formará importantes investigadores e intelectuais, entre os quais está o proeminente Carlos Lopes, uma das mentes cintilantes de África hoje, que é dessa fornalha.

 

Em Moçambique, o CEA tem um papel decisivo no estudo e na problematização social do novo país.  Uma abrangente pesquisa colectiva de campo, por si dirigida, entre 1977 e 1979, sobre a situação do trabalhador migrante moçambicano de origem camponesa, nas minas sul-africanas, é um dos trabalhos pioneiros no campo da economia política ou da sociologia económica em Moçambique, ou, se quisermos, das ciências sociais moçambicanas, e um dos vibrantes legados de Ruth First. Seriam estes camponeses migrantes, expostos à indústria do Rand, fautores da industrialização na nova realidade social e política de Moçambique?

 

Ruth era uma militante engajada na luta anti-apartheid, mas nem por isso deixava de ser uma cientista social de grande gabarito intelectual e com um aparato metodológico inatacável. As suas causas não lhe tolhiam a racionalidade. Sendo uma socióloga marxista, por assim dizer, mesmo quando a realidade social desmentia a ideologia ou aquilo que se pretendia politicamente, não pervertia os números. Os seus trabalhos estavam alicerçados em dados estatísticos e em evidências empíricas sólidas. Não os torcia a favor da política.

 

Gillian Slovo, a sua filha do meio, é uma escritora reputada no Reino Unido. É autora, entre muitas obras, de “Every Secret Thing”, um relato biográfico onde retrata, com evidente e comovente candura, a sua mãe, os seus pais – melhor dizendo -, as suas lutas e as suas heranças políticas. É um poderoso testemunho. Por outro lado, Rob Davies, que chegou a Moçambique em 1979, jovem branco activista anti-apartheid, integrou a equipa do CEA, trabalhou com Ruth, faz o testemunho disso no seu mais recente livro “Towards a New Deal – a political economy of the times of my life”. São as suas memórias depois de servir os governos do ANC ao longo de duas décadas. Ele relata os tempos de Moçambique e da revolução e dos sonhos que então acalentavam naqueles anos. Chegou a estar na mira de Craig Williamson, o carrasco de First.

 

Williamson é uma figura tenebrosa. Está na origem de assassinatos e atentados em vários países, de Angola ao Reino Unido, passando por Moçambique, visando activistas e combatentes anti-apartheid. Seria, no entanto, beneficiário de uma amnistia da Comissão da Verdade e Reconciliação, o que exasperou as filhas de Ruth First e Joe Slovo, que intentaram, inclusive, a postergação da mesma. Paradoxos da nova África do Sul.

 

No dia em que a mataram, no Centro dos Estudos Africanos, que tem um memorial com o seu nome e o de Aquino de Bragança, Ruth estava na companhia de Aquino, que ficou ferido, bem como do seu camarada Pallo Jordan e da investigadora americana Bridget O´Lauglin. As imagens deste atentado são pungentes. Depõem sobre um tempo que tendemos a esquecer e que foi distinto na história entre os nossos países. No ano anterior, Matola tinha sido atacada, resultando na morte de activistas sul-africanos e de moçambicanos inocentes. O que quitávamos deste esforço era a destruição da nossa economia e a morte dos nossos concidadãos. Dois anos depois, em 1984, Samora Machel e Pieter Botha intentam um Acordo de Nkomati. O ANC viu-se atraiçoado. Ainda hoje vivemos contrafeitos desse pacto e as nossas relações continuam irresolutas.

 

A distância destes 40 anos não vejo referida, entre nós, a sublime figura de Ruth First. É a nossa congénita amnésia? Não fosse o seu vulto de intelectual, ou o seu combate intrépido contra o regime de segregação racial, a sua marcante passagem pelo CEA, em Moçambique, num tempo e numa circunstância em que as ciências sociais procuravam ser o laboratório da revolução em curso, ela mereceria de nós, no mínimo, um preito, um tributo, um reconhecimento. Para além da desmemória e do descaso, somos desagradecidos e deslembrados. Há uma história de sangue que nos une à África do Sul, contudo somos incapazes de a nobilitar. Dos dois lados da fronteira. O Acordo de Nkomati – e todas as contradições que encerra – não pode explicar tudo quanto à nossa displicência e omissão. Moçambique hipotecou, severamente, o seu presente e o seu futuro para a liberdade dos sul-africanos. A remuneração disso não pode ser a desatenção, o lapso e a indiferença.

 

Ruth First não viveria os tempos da liberdade que chegariam na década ulterior. Joe Slovo, o seu companheiro de vida, ainda viu a África do Sul livre e foi, por alguns parcos meses, ministro de Nelson Mandela, antes de ser tolhido pela doença e pela morte. Uma pintura emblemática do seu marcante rosto, numa das casas sociais do bairro de Langa, na Cidade do Cabo, à beira da estrada, ilustra o lugar de Slovo na história da África do Sul. 40 anos após a sua morte, Ruth continua a ser, para mim, uma figura inspiradora. Descobri, amarrado, por uns dias, numa das docas da mesma Cidade do Cabo, há dois anos, um navio patrulha, com o seu nome e, confesso, fiquei emocionado. Sabia que o seu nome dera crédito à toponímia em algumas cidades da África do Sul, mas desconhecia a monta inscrita naquele navio.

 

Em Moçambique, a despeito da pedra evocativa no CEA, não lhe conheço outra valia que a tenhamos prestado. A Slovo concedemo-nos a honra de uma rua na baixa da cidade de Maputo. Não obstante, o nome de Ruth First está irreversivelmente ligado à minha humilde história pessoal. Afinal, foi naquela noite ominosa que eu cometi os meus primeiros versos. Passam 40 anos! Lembro-a não apenas por isso. Ela é uma grande intérprete do destino da África do Sul, de Moçambique e da África Austral. É evidente que laboramos hoje no lodo de outros equívocos e outros ímpetos, aluviões incapazes de sufragar o que a História de bom nos designou, ou de autuar os excessos – afinal de contas assim ditam os eufemismos! – que estarão na origem dos desacertos que ainda hoje nos perseguem e assombram.

 

KaMpfumo, 17 de Agosto de 2022

Rui Knopfli, nascido em Inhambane, a 10 de Agosto de 1932, faria hoje 90 anos.  Um acaso está na origem da minha descoberta juvenil de o “Reino Submarino, publicado em 1962. Esse encontro desencadeou um tumulto, difícil de descrever, em mim. Aquele tom estava fora do tom. Aquela poesia parecia estranha. Aquelas imagens, aquela sonoridade, aquelas metáforas. Aquele poder discursivo, barroco, torrencial por vezes, alegórico. Sempre cativante, sedutor e encantatório. Quase sempre pungente, língua dilacerada e dilacerante. Voz dos eleitos. Oriundo de uma educação literária onde avultava a poesia engajada e revolucionária, no lídimo contexto de afirmação de um novo país, desconhecia este poeta tão impressivo. Aliás, havia um ensurdecedor silêncio à sua volta.

Não se falava à época, meados dos anos 80, de Rui Knopfli.  Nascera em Inhambane. Filho de um funcionário da Administração, a sua família vivia, nos anos 30, em Vilanculos. A mãe foi tê-lo à Inhambane onde estavam asseguradas condições de assistência médica mínimas. O poeta só aos 20 anos irá conhecer a cidade que lhe dá naturalidade. Viverá na Moamba, na Namaacha, em Magude. Curiosamente, Magude tem uma importância capital sob o ponto de vista literário. Foi lá, aos 15 anos, que começou a ler livros emprestados. Estava-se nos finais dos anos 40.

No final da juventude e já na capital teve encontros decisivos: Fonseca Amaral e João Mendes – os mentores da sua geração -, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar ou Ricardo Rangel. Em casa da Noémia, a pretexto de ouvir o mítico Daíco, empreendem conversas subversivas. Não estavam isentos da perseguição política. Aquando das eleições de 1949 e da candidatura desafiante de Norton de Matos (que concitou tantos jovens africanos em Moçambique e em outros países) colam cartazes, promovem reuniões, conspiram. Alguns são presos, interrogados e mesmo espancados. Aníbal Aleluia é violentamente sovado. Rangel e Noémia não são isentos da bordoada pidesca. Knopfli, por conta da raça, é humilhado verbalmente.  Era branco e a PIDE tinha critérios epidérmicos no seu acto incriminatório. Mais tarde, em 1952, foi parar aos calaboiços por um dia. Tinham importado livros inobedientes.

Em 1959 publica, aos 27 anos, o seu primeiro livro. Alguns companheiros de juventude tinham emigrado ou se exilado noutras latitudes. Rui terá, no entanto, uma passagem por Joanesburgo onde estuda e escreve alguma poesia em inglês. Aliás, no seu livro de estreia essa influência anglo-saxónica já é visível: “Velho poema da cidade do ouro”. Mais tarde ver-se-á ampliada. Sobretudo no seu encontro com T.S. Eliot, que traduz e glosa. Mas é a evocação da sua cidade, do seu tempo de infância, “da sociologia de esquinas”, dos jogos “pueris de sexo”, mas também a consciência de um lugar e de um tempo em tumulto, em transição, em transformação. O título do livro é uma provocação ou, se quisermos, o assumir dessa consciência de um tempo que mudaria, inexoravelmente: “O País dos Outros”.

Como disse intentei o seu conhecimento através de “Reino Submarino” (1962). Os poemas elegíacos foram aqueles que mais me impressionaram: “A Menina do Retrato”, “Encontro”, “Monólogo”, sobretudo “A Uma Criança Longe”: “Escrevo-te estas palavras/ sabendo que as não lerás” ou ainda: “A morte é isso, é acabar/ simplesmente, não acontecer mais.” Este é um dos poemas que mais remotamente recordo, um poema dolorosamente biográfico.

Rui Knopfli: “Nada me auxiliam as lágrimas/ que me salgam a face/ e o muito que tenho blasfemado/ de borco, rente ao teu silêncio gelado. / Esta a lógica prosaica dos factos: / Continuamos a viver, dolorida/ a consciência/ da tua cada vez maior ausência. / E teu pequeno corpo moreno, / que nem todo o meu amor aquece, / é um palmo de ternura/ que apodrece.”

Este livro dedicado à memória da filha é atravessado por esse tom pungente de versos elegíacos. O poema “Pequena Elegia” termina com estes versos que nunca me esqueci: “Inteira, a tua morte/ viaja dentro de mim.” O livro tem outras elegias, como aquela dedicada ao poeta Reinaldo Ferreira, que morreu em 1959: “O que na vida repartiu seu poema/ por alados guardanapos de papel, / o criador de sonhos logo perdidos/ na berma dos caminhos, / o mago que pressentia o segredo/ da beleza perene”. Este ano, pleno de efemérides literárias, foi também o ano do centenário de Reinaldo.

Deste livro destaco ainda o poema “Adeus Xico”, uma dolorida memória da juventude, poema que eu declamei inúmeras vezes. O poema é uma longa homenagem a um companheiro da juventude morto aos trinta anos. Ainda hoje quando recordo este texto oiço os acordes da “Patética” que o poeta cita profusamente neste texto. Seria, porém, “Winds of change” e “Velho Colono”, dois dos mais reveladores poemas deste impressivo “Reino Submarino”, que me acompanhariam, mais frequentemente, ao longo destas quatro décadas de convívio apertado com a poesia de Rui Knopfli.

Rui Knopfli: “Sentado no banco cinzento/ entre as alamedas sombreadas do parque. / Ali sentado só, àquela hora da tardinha, / ele e o tempo. O passado certamente, / que o futuro causa arrepios de inquietação. / Pois se tem o ar de ser e o passado, / os dois ali sentados no banco de cimento. // Há pássaros chilreando no arvoredo, / certamente. E, nas sombras mais densas/ e frescas, namorados que se beijam/ e se acariciam febrilmente. E crianças/ rolando na relva e rindo tontamente. // Em redor há todo o mundo e a vida. / Ali, está ele, ele e o passado, / sentados os dois no banco de frio cimento. / Ele, a sombra e a névoa do olhar. / Ele, a bronquite e o latejar cansado/ das artérias. Em volta os beijos húmidos, / as frescas gargalhadas, tintas de outono/ próximo na folhagem e o tempo. // O tempo que cada qual, a seu modo, / vai aproveitando.”

Citei o poema na íntegra. Aqui está já o grande poeta que se iria revelar, na plenitude, no livro “Mangas Verdes com Sal” (1969), depois de “Máquina de Areia” (1964). Apetecia-me citar na íntegra também o “Winds of change”. Li-o até à exaustão. Há outros poemas extraordinários neste livro. Como “Fim de tarde no café”. Como tantos outros. Não há aqui espaço para os acolher. A segunda obra de Rui Knopfli que eu li foi esse inigualável “Mangas Verdes com Sal”, o livro da sua completude. Tinha um sulfuroso prefácio do Eugénio Lisboa. Recordo-me de poemas e versos que me ficariam para sempre na memória. Do poema “Não obstante”: “nunca escrevi versos que não fossem de amor”. Ou “o meu Paris é Joanesburgo”, do poema “À Paris”. O poema aforístico “Progresso”: “Estamos nus como os gregos na Acrópole/ e o sol que nos mira também os fitou. / Mas fazemos amor de relógio no pulso”. Livro sardónico, como sempre, pungente, dolorido, profundo. Ali se amplia o estro que fala do seu quotidiano, do seu profundo humanismo. Ali está o poeta erudito e, sobretudo, a mestria do seu labor limae. O seu depurado labor oficinal.

Durante anos impressionou-me o poema “Aparição”, li e reli “Hackensack”, que cito no frontispício do “Maputo Blues” e como o título revela é uma referência a Thelonious Monk. Citei abundantemente o poema “Velasquez”: “Só de perto te apercebemos: é de baixo/ que os gigantes te miram”, li e reli “A Descoberta da Rosa”, declamei “Mangas Verdes com Sal”, glosei “Lembranças do futuro”: “só os poetas têm lembranças do futuro”, comovi-me com “Praça Sete de Março”, exultei com “Disparates seus no Índico”, pilhei versos como em “Contrição” ou consignei ao futuro a minha escolha da melhor poesia moçambicana do século XX o título “Nunca Mais é Sábado”.

A mitologia da Ilha como tema central da poesia moçambicana devemo-lo a Rui Knopfli e ao seu roteiro belíssimo sobre a “A Ilha de Próspero” (1972): “Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo/ em que, do alto do minarete, / Alá – o grande saca! – sorria/ aos tímidos versos bem comportados/ que eu te fazia”. Este livro é notável, uma alquimia perfeita entre texto e imagem, com fotografias belíssimas do poeta e fotógrafo. O livro tem uma origem remota – o poema “Ilha Dourada” -, que vem no seu livro de estreia O País dos Outros.

Rui Knopfli: “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras. /Tudo mais são ruas prisioneiras/ e casas velhas a mirar o tédio. / As gentes calam na / voz/ uma vontade antiga de lágrimas/ e um riquexó de sono/ desce a Travessa da Amizade. / Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique, / e faço-te estes versos/ de sal e esquecimento”.

Se “Mangas Verdes com Sal” era, indubitavelmente, o seu alto canto, a plenitude, a maturidade, “O Escriba Acocorado” (1978), publicado depois de o poeta abandonar “a capital da memória”, coagido pelos ventos da História, seria aquele que haveria de me parecer o seu livro mais conseguido. Aliás, tanto este titulo, como “Máquina de Areia”, “A Ilha de Próspero”, ou, mais tarde, O Corpo de Atena (1984) são poemas únicos em vários cantos.

Rui Knopfli: “Servidor incorruptível da verdade e da memória, / escrevo sentado e obscuro palavras terríveis/ de ignomínia e acusação” – começa assim o poema “Proposição”, que termina: “A História que há-de ler-se é por mim escrita. / Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.”. O poema seguinte chama-se “Pátria” e foi glosado por outros tantos poetas, entre os quais Heliodoro Baptista ou Luís Carlos Patraquim. “As árvores chamavam-se casuarina, / eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também/ tinham nomes por que era costume designá-los”.

O poema que mais me impressionou deste livro – “As Imagens Quebradas” – um diálogo intertextual com Eliot: “Uma última vez percorro a cidade no dia / em que começa a minha morte. Reconheço/ estes lugares apesar da mudança e a sua / esquiva familiaridade roça-me as tolhidas/ asas da memória. Aqui escrevi. Naquela // sombra imaginei. Entre uma e outra coisa, / vivi. (…) // Caminho// pelos lugares queridos, sem tristeza, nem mágoa, / altas, condoídas árvores, lagos serenos escorrendo/ de meus olhos, hálito azul da tarde que, por cair, / de sombras vai tranquilizando o horizonte. Só, / meu coração, bate contra a pedra e o silêncio.”

Publicaria antes, como aludi o livro “O Corpo de Atena”, em 1984, no qual recupera um belíssimo poema – “Notas para a regulamentação do discurso próprio”, inicialmente dado a conhecer nos cadernos Caliban, que promoveu com o poeta João Pedro Grabato Dias. Há depois um longo interregno, um ínterim poético que dura treze anos. “O Monhé das Cobras” (1997), a sua derradeira obra, é publicada meses antes do seu falecimento, que ocorre no dia de Natal desse ano.

Rui Knopfli dizia-me, numa remota entrevista, quando lhe perguntei como via a questão da nacionalidade literária, o seguinte: “A nacionalidade literária é aquela que é proclamada pelos livros que nós escrevemos, pela conjuntura cultural, pela inteligência social que os produziram. Os meus livros – mesmo aqueles que eu escrevi desde que saí daqui – o seu referente é sempre, obrigatoriamente, moçambicano”. Nessa mesma conversa, nobilitava Craveirinha: “Ele é o maior de todos nós, com a Noémia ao lado e eu. Honra minha.”

O poeta, que retornaria a Moçambique, numa comovida visita em 1989, não ficou apenas na “exclusividade da memória privada”. Encontrou-se, num jubiloso convívio, com uma nova geração, que o reivindicava. Vivia então em Londres, o seu “exílio doirado”. Haveria só de ir a Portugal para, no final da vida, se entrevistar com os deuses. No poema “As Origens”: “Paro diante do jazigo de família, / Vila Viçosa, Alentejo profundo. Afinal tudo/ principiou aqui. O apelido seria, / puramente como outros, alentejano, / não fora a incursão oportunista// do estrangeiro, que perturbaria o resto, / confundido o futuro e as interpretações.”

Seria despiciendo, nesta homenagem, referir-me, com exaustão, à extensa polêmica sobre a nacionalidade literária e a dificuldade que sempre houve em enquadrar a obra de Rui Knopfli, sobretudo em Portugal. Isso caberia numa outra circunstância, não sendo o escopo desta breve evocação neste dia em que celebramos os seus 90 anos. Regozijo-me, a esta distância, por verificar que há uma geração, muito mais nova que a minha, que o reivindica, cultua e mitifica. (Rui Knopfli: “Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. / Mas dentro de mim há savanas de aridez/ e planuras sem fim/ com longos rios langues e sinuosos, / uma fita de fumo vertical, / um negro e uma viola estalando.”)

Quando o descobri, há quarenta anos, estava de certo modo proscrito. O tempo, esse grande escultor, devolveu-o ao nosso convívio. O tempo, que é a matéria primordial da sua fecunda poesia, uma das mais altas expressões líricas deste país. Felizmente, remido: lemo-lo, cultivamo-lo, amamo-lo. Citamo-lo e glosamos a sua obra. Há teses universitárias, há livros evocativos, os poemas circulam, na medida do possível.  Esta recidiva acontece apenas dentro da tribo literária? Não importa. Ele está tão esquecido e deslembrado como estão tantos outros poetas. Coisas desta pátria, que é nossa, esta pátria que também é sua. Mesmo quando ele quer, como Fernando Pessoa”: “pátria é só a língua em que me digo”, Rui Knopfli é também, ou sobretudo, poeta moçambicano. Um grande poeta moçambicano.

Rui Knopfli: “Porque eu teimo, / recuso e não alinho. Sou só. / (…) / Não entro na forma, não acerto o passo, / não submeto a dureza agreste do que escrevo / ao sabor da maioria. / Prefiro as minorias. / De alguns. De poucos. De um só se necessário/ for. Tenho esperança porém: um dia / compreendereis o profundo significado da minha / originalidade: I am really the Underground.”

KaMpfumo, 10 de Agosto de 2022

Quando se diz “uma narrativa faz de conta” a ideia que fica é a de que estamos diante de uma coisa que não é, ou se quisermos, que pretende ser, que se insinua, que tenta. Mas neste caso em que o tema é  Jorge de Oliveira e o seu último livro, apresso-me a esclarecer que o termo “faz de conta” pretende ser apenas uma saudável provocação, uma alusão a uma forma de escrita que desde sempre o escritor pretendeu construir, “fazendo de conta” que a literatura também se pode erguer sem se estar amarrado aos paradigmas que orientam a arte de escrever. O Jorge de Oliveira vem criando o seu percurso literário de uma forma desinteressada, posicionando-se como um escritor que nunca levou a escrita demasiadamente à sério, ou seja, como uma questão de vida ou de morte, de tudo ou nada, para ele, escrever é uma imensa fonte de prazer, uma maneira de retirar da vida a solenidade que se lhe veste, emprestando-a outra roupagem, sem lhe retirar a seriedade que lhe é devida. Talvez seja a espontaneidade e a simplicidade, o grande mérito deste livro.

“Quando os dias correm mal aos astros” é um livro de contos, uma colectânea que fala de um povo em constante sofrimento, incapaz de ultrapassar as vicissitudes da vida e coagido por um poder que de uma ou de outra forma impõe a sua ordem, impedindo o progresso e o bem-estar. Este livro tem a particularidade de se apresentar como se fosse um álbum de fotografia e o Jorge de Oliveira uma espécie de fotógrafo ambulante que percorre os lugares mais desencontrados desta sociedade para captar com o seu “click” as imagens mais perturbadoras desta vida, assim como as situações mais caricatas, pois, como se sabe, “um escritor exerce sempre uma acção moral”, ele se insurge, se emociona, e depois, através da escrita, reivindica, consciencializa. Parece- nos ser esta a função do último livro do Jorge de Oliveira.

“No gelo do silêncio, sentiu-se o céu desabar sobre as cabeças. Pôs o dedo no ar, não queria incutir medo mas estimular, nos inseguros, a confiança em si e garantir a vitória final contra os inimigos da sua pátria de heróis. Ele vinha com as nuvens, toda gente via, até os que sonhavam abatê-lo, em si estava o Alfa e o Ômega, era, fora e havia de ser, preenchia o Estado, utilizava uma vara de ferro e quem se metesse consigo morria partido igual a uma vasilha de barro. Os seus caminhos iluminavam qualquer um, logo todos deviam temê-lo e prostrar-se diante dele pois as suas sentenças andavam há muito descobertas. Quem não me conhece? Experimentem contrariar-me, faço como da outra vez, retalho o mis espertinho, separo unhas e pestanas e meto na minha caixinha de joias. Estamos juntos?”

Jorge de Oliveira oferece-nos um livro com um título que nos sugere muitas coisas, “Quando os dias correm mal aos astros”, colocando-nos no dilema de questionar quem serão os astros, nós o povo ou os outros? E o que nos interessa saber? A única coisa que temos a plena consciência é de que “se os dias correm aos astros, ao Jorge a prosa corre bem!”. As estórias deste livro são construídas com a mesma naturalidade com que se respira, ou seja, da mesma forma como o autor observa as questões obscuras que afugentam a nossa sociedade, ou seja, “o luto que é viver no lado mais sombrio da pobreza”. São essas incongruências sociais que Oliveira privilegia de forma particular na sua obra fazendo dele uma espécie de griot que canta permanentemente à injustiça.

Cada conto é um conto, isto é, cada história vale por si mesmo, a fazer-nos recordar as nossas próprias histórias, os cenários que -assistimos no nosso país. Não restam dúvidas que o Jorge de Oliveira é um bom fotógrafo, quer dizer, um bom escritor, não existe palavra amais nem a menos, cada palavra tem a sua missão, por isso o espelho que Oliveira coloca diante de nós nos faz ver o país inteiro, as nossas pobrezas, as nossas sacanices, as nossas alfactruas. Os diálogos são elucidativos. Os perfis dos personagens são magistralmente definidos. Rimo-nos ao longo da leitura. Rimo-nos da triste caricatura que somos. Rimo-nos porque um livro que não nos faça rir é um livro que não vale a pena. “Quando os dias  correm mal aos astros” traz a interessante inovação de ter personagens sem nome, o que os identifica é o seu aspecto físico, isto é, “o homem alto”, “o funcionário baixo”, “o mais velho”, “a mulher de tranças onduladas e batom púrpura”, “o repórter de cor torrada”, “a miúda de vestido curto”, “a professora de feições orientais”. É assim que o autor caracteriza os seus personagens, “talvez para os proteger dos feiticeiros”, como o disse o escritor Suleiman Cassamo nessa sua saudável ironia. Se quisermos, podemos dar-lhes os nomes que acharmos, isso pouco importa. O que interessa é a sua representatividade dentro da narrativa. Apenas isso.

Estamos perante um escritor com uma imaginação fértil que nos coloca diante de mil imagens, donde podemos encontrar os vícios do poder, as querelas pós-eleitorais, a violência, a corrupção. Poderíamos concluir estar perante uma temática sombria, talvez, de certa maneira, o seja. Mas Suleiman Cassamo, ao se referir a este aspecto disse: “ …nem por isso o livro é triste. E isso simplesmente dada à forma como Jorge de Oliveira aborda os assuntos. Mesmo quando trata de questões sensíveis ou aflora episódios chocantes, com desfecho cruel, ele vai até ao fundo. Parece ter como intenção chocar, sacudir, despertar a gente para as anormalidades que nos rodeiam. Jorge de Oliveira não expurga, não rejeita palavra, raramente se socorre de eufemismos. Mantém hirta a pena, isenta a mente e minucioso o retrato”.

A forma eloquente, despudorada e repleta de significados que nos é oferecida neste livro leva-nos a concluir que a estrutura narrativa de Jorge Oliveira pode ganhar uma maior expressão no romance, os contos apenas asfixiam o escritor, porque está perfeitamente claro que o Jorge é um motorista de longo curso e as suas viagens são para lugares distantes. O romance é, sem sombra de dúvidas, o seu porto de ancoragem. É verdade ou não é, Jorge?“

 

 

A cidade deixou de ser tão amável, amável no sentido de objecto de amor.

É mais difícil gostar das nossas cidades porque elas estão como estão. Estão doentes…

Mia Couto.

 

Boa tarde a todos.

Começo esta minha intervenção felicitando a Universidade Pedagógica de Maputo, através da professora Aissa Mithá Issak, pela promoção da arte literária sempre que possível. O país tem várias universidades e institutos superiores, mas são poucas as instituições comprometidas com a divulgação dos livros e dos autores.

Felicito, igualmente, à Judite Chipenembe, pela belíssima apresentação do livro que fez. Penso que a sua abordagem ajuda-nos a ampliar horizontes na forma como podemos ler o livro e na maneira como podemos pensar à volta do processo criativo dos autores dos textos. Sinceramente, eu até poderia não dizer mais nada sobre esta antologia, que todos nós regressaríamos a casa satisfeitos e realizados pelo que ouvimos. Parabéns, Judite!

Por fim, e não menos importante, um abraço muito especial ao meu amigo Jessemusse Cacinda, que, para além de ter coordenado esta edição da antologia, também assina o texto “Pedopsiquiatria”. No princípio do ano passado, o Jessemusse convidou-me para dirigir uma oficina de escrita criativa a que dei o título “A cidade e as escritas: Nampula, um lugar de partida”. Foi um exercício extremamente interessante, que me lembrou a minha eterna paixão: dar aulas. Igualmente, o evento foi um excelente momento de partilha de ideias. Como nos encontrávamos num período de “confinamento”, ao longo de cinco ou seis semanas, a oficina foi toda virtual. A minha abordagem começou de “A problemática da literatura (entre a abrangência e o particular)” até a apresentação de algumas ideias ao que considerei “Propostas para o derradeiro momento do conto”. Foi realmente incrível essa experiência com autores como Hermínia Francisco, Belchior Eduardo, Tony Amurane ou Eunice Moreira, que infelizmente não faz parte desta primeira edição da antologia. A partilha de percepções literárias foi tão excepcional que hoje nos encontramos aqui na Biblioteca da UP Maputo para lançar esta obra. Felicito-te por isso, Jessemusse.

À parte as felicitações, bem, a minha relação com Nampula é muito fantasiosa. Infelizmente, e até tenho vergonha de dizer isto em público, eu não conheço Nampula. Entretanto, tenho um fascínio enorme pelo espaço urbano e rural da província e, sobretudo, pela Ilha de Moçambique. Além disso, há 12 anos, quando ainda almejava tornar-me poeta ou escritor, inventei um pseudónimo, que é Mirette Muzi. Ambos os termos significam remédios. No primeiro caso, Mirette vem do emakhuwa e Muzi provém do rhonga, minha etnia.

Ainda há 12 anos, muito longe de imaginar que um dia iria apresentar um livro sobre Nampula, meti-me em aulas de emakhuwa, na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Lá aprendi termos como “salaama”, “munrowa vayi” ou “koshukuro”. Então, cá estar para poder partilhar convosco as minhas leituras sobre a antologia da Ethale Publishing constitui, de facto, um grande privilégio.

Ora, há dias, tive a oportunidade de conversar com o escritor Juvenal Bucuane, na AEMO, a propósito do seu mais recente título, sobre a Charrua. Recupero a memória dessa conversa porque a escrita da geração a que Bucuane faz parte, no sentido contrário, diz-nos muito sobre Nampula: antologia de His-es-tórias de uma cidade vibrante. Ou seja, enquanto em autores como Ungulani ba ka Khosa, Aldino Muianga ou Marcelo Panguana temos esse movimento do campo para a cidade, com tudo o que essa trajectória encerra em termos de paisagem do espaço, da tradição e da cultura, nos textos desta antologia temos um outro fenómeno. Aqui a cidade não é um ponto de chegada, como para aqueles autores, mas de partida. A cidade, em Nampula, é uma janela aberta para o país inteiro e, consequentemente, para Índico.

Ler esta colectânea de histórias significa uma maneira categórica de conhecer a terceira maior cidade do país. Para quem não conhece Nampula, como eu, tem a possibilidade de percorrer, através da escrita, ruas, avenidas, espaços físicos, sociais e até mesmo psicológicos. Cada autor, do seu jeito e activando determinadas técnicas narrativas, conduz-nos a esse vibrante espaço que é Nampula, onde se cruzam poetas de outros tempos e os prosadores de agora.

Se concordam comigo, a ficção é um mecanismo potente na construção e consolidação da imagem real. Ao escreverem sobre o espaço urbano, mais ou menos ao estilo Avenida Névsky, de Nicolai Gógol, os nossos autores redefinem a sua condição de cidadãos na mesma proporção que reinventam esses universos feitos de cor, sons e imagens.

Na nota do coordenador, Jessemusse Cacinda refere que Nampula é uma cidade marcante para todo aquele que a visita. Ao ouvir a Judite referir-se às ruas que conseguiu rever depois de ler o livro, até senti alguma inveja. Mas não conhecer, neste meu caso, pode ser uma vantagem no sentido de que crio ilusões e perspectivas inevitáveis. Ainda na sua nota, o nosso coordenador e editor refere que “Este livro é, por um lado, uma celebração escrita de uma cidade que merece entrar para o roteiro da literatura moçambicana”. Eu diria ainda mais. Esta antologia coloca Nampula no mapa literário moçambicano, digamos assim, do mesmo modo que Ana Mafalda Leite procede em relação a Tete, em Outras fronteiras (poesia). Por exemplo, quem lê a história “Como se o futuro tivesse conserto: o inverno duma vénia”, compreende que o narrador de Baptista Américo assume uma relação acesa com o espaço a que pertence: “Não me desgrudo da cisma de rever a cidade que me conhece a meninice e a mocidade, rever o miolo que rumina a memória” (p. 13).

Essa cisma do narrador contribui para que, através do seu campo visual, se apreenda o que pode simbolizar, parcialmente, a Cidade de Nampula. Há aí uma acentuada reciprocidade entre a personagem e o espaço. Afinal, um faz o outro e as duas categorias diegéticas tornam-se um só no nível global da história, na qual temos tempo sem relógios, estradas sem chapas, espera sem ansiedade, mas também saúde sem higiene.

O narrador de “Como se o futuro tivesse conserto: o inverno duma vénia” é uma personagem activa da sensibilidade, que nos permite captar cheiros, irritações causadas por congestionamentos e esses excessos que até se podem resumir em preservativos no cemitério.

O espaço urbano é, nesta antologia, sinónimo do conflito entre a ordem e a razão, a decência e a devassidão, a autoridade e a contrariedade. Um exemplo desta aplicação é a história de Belchior Eduardo, “O cágado que levou prisão”. Além dos inevitáveis cheiros que nas nossas cidades e vilas têm cor, esse texto, inclusive, é uma reunião de temperamentos, atitudes, movimentos e violência. Portanto, não temos aqui um mar cor de rosa, aliás, a cidade pode-se resumir no que se aproxima ao nome de uma excelente banda de rock: guns & roses. Ou seja, é um lugar da expectativa e da perdição, do amor e ódio, do afecto e da crueldade. Mas que lugar, neste momento em crise, não é assim?

Nampula: antologia de His-es-tórias de uma cidade vibrante é um livro onde se discute a moral e o ético. Os protagonistas são tendencialmente o canal privilegiado dessa construção. Talvez porque, em geral, essas personagens são seres imperfeitos num contexto social turvo. No já referido texto “Pedopsiquiatria”, Jessemusse Cacinda dá voz a uma personagem que deveria ser feliz na sua relação amorosa. Porque a felicidade poder ser algo distante, ela questiona-se num monólogo: “O que é um marido, se não um aventureiro” (p. 22). E mais à frente sentencia: “Os homens são mesmo fracos e mimados. Basta negar-lhes o sexo que os destróis” (p. 23).

No discurso de uma personagem feminina estabelecem-se certas fronteiras: entre o sexo e o desejo, a paz e o caos. Por isso o autor textual autoriza a narração de episódios sobre moçambicanos que, impedidos de ficar na sua querida Província de Cabo Delgado, têm de partir numa difícil viagem. Nesse ponto de vista, sim, Nampula é um lugar de chegada. No entanto, na maioria dos casos, parte-se do espaço físico e social daquela cidade para, necessariamente, se pensar as ruas, as infra-estruturas ou as comunidades como pertenças colectivas.

A Cidade de Nampula, nesta antologia, também é um espaço de afirmação identitária, onde as mulheres podem dizer NÃO com o mesmo rigor que muitas vezes se lhes exige que digam sim. Além do texto “Pedopsiquiatria”, “O moço da Rua das Flores”, que sugere uma rua concreta de Nampula, é um claro exemplo disso. Como não admira em Arsénia Ressique Amade, nesse texto a autora investe no erotismo, na sensualidade, na liberdade e na afirmação sexual feminina. Aqui a mulher é o verbo ser, estar e querer, porque não há apenas uma forma de a definir. Na verdade, ela é pela indefinição, além dos arquétipos, longe da padronização imediata. Nesse aspecto, a protagonista de “O moço da Rua das Flores” aproxima-se a essa personagem makhuwa que em Niketche, de Paulina Chiziane, dá sabias lições sobre o que se pode considerar plenitude da mulher, com plenos direitos que a humanidade a limita.

Com Arsénia Ressique Amade viajávamos pela vida noctuna de Nampula, pelo sentido do sexo (animalesco ou selvagem?) e pelas armadilhas prováveis do verbo poder.

Numa entrevista concedida a LEITE et al (2012), Mia Couto afirma, a certa altura, “só escrevemos sobre aquilo que amamos”. Concordando ou não com o escritor, essa frase aplica-se muito bem em relação aos autores desta antologia. Mas o que realmente me chama atenção nessa mesma entrevista é o seguinte: “A cidade deixou de ser tão amável, amável no sentido de objecto de amor. É mais difícil gostar das nossas cidades porque elas estão como estão. Estão doentes…”.

Bem, não é por me chamar Remédios que terei a pretensão de trazer alguma receita clínica para curar as nossas cidades. Trago essa citação porque, de facto, as nossas cidades confrontam-se com tantos problemas que fazem com que a esperança no futuro pareça coisa sombria. Se conseguirmos visualizar o futuro em função dos conflitos e dos constrangimentos do presente (alguns apontados pela Judite, até numa perspectiva sociológica), através da ficção, podemos inventar narrativas para influenciar o bem-estar, o sossego e a tranquilidade. No fundo, eu penso neste Nampula: antologia de His-es-tórias de uma cidade vibrante como tudo isso: um ponto de partida para pensarmos naquele lugar concreto, mas também para visualizarmos que tipos de cidades estamos a destruir ao longo do território nacional.

Enfim, temos aqui um conjunto de autores que merecem ser lidos, por nós e pelos habitantes dessas cidades que serão a nossa continuidade, quando partirmos.

 

*Intervenção na cerimónia de lançamento do livro Nampula: antologia de His-es-tórias de uma cidade vibrante, coordenado por Jessemusse Cacinda, realizada na Biblioteca da Universidade Pedagógica de Maputo, no dia 30 de Junho de 2022. Aqui, escrito de cor.

Nota: Judite Chipenembe foi uma das apresentadoras da antologia.

 

 

Fico bastante honrado por este convite para tecer breves linhas sobre um livro com o qual tenho imenso carinho. As razões são várias. Depois tratamos delas, tim-tim por tim-tim. O que me cabe dizer neste momento é que não vim fazer uma apresentação no sentido mais trivial desta actividade. E vou pedir perdão por isso porque já lá vão os tempos em que os eventos literários se despiram, quase que por completo, de alguns cerimonialismos. A Deusa d’África já disse, e muito bem, que não se faz poesia de mini-saia. Haja vista que, também, não se faz literatura de gravatas, terno italiano, sapato polido e vinco tinindo nas calças.

Voltando ao meu apreço pelo livro: o ano é 2020. Os tempos são pandêmicos. É Novembro. Os decretos abrem uma janela para a realização de alguns eventos com algumas restrições. Estamos em périplos pela província de Inhambane a divulgar o meu primeiro trabalho literário individual. Foi nessa altura que eu pude perceber que além de exímio prosador, Almeida Cumbane é um gajo mau. Isso mesmo. Eu disse: Almeida Cumbane é um gajo mau. De lá para foi sempre assim. Mau!

“Bro” é assim que me tem chamado. “Tenho um projecto na manga. É uma colectânea de contos e crónicas. Vou precisar da tua leitura e possíveis sugestões. Para que não seja um trabalho tedioso, eu vou enviando um texto por semana para que possas fazer uma revisão linguístico-literária até que se esgotem todos os textos da colectânea”. O discurso dele foi mesmo assim. Manhoso. Num país como o nosso, os escritores tornam-se revisores, críticos literários, livreiros, editores, designers e toda uma infinidade de actividades inerentes aos livros para poderem ganhar algum e sustentar os seus vícios. A proposta do meu amigo não veio com essa adenda de custos e orçamentos. Somos “bros”, não é? “Tudo bem, bro. Vamos trabalhar.” Foi a minha resposta enquanto fartávamo-nos de rir: eu, o Almeida Cumbane e o Emílio Cossa, quando dávamos um ar da nossa graça numa lagoa em Quissico. E eu disse cá para mim: tenho de rever as minhas amizades. Com gajos maus assim, não consigo dinheiro nem para o alvará do meu empreendimento.

Não passava uma semana, e eis que recebo no meu e-mail, a primeira investida da maldade do meu “bro”. Era um conto intitulado “Dona Pérola”. Li o texto num só trago. E meu discurso mudou: Almeida Cumbane é um gajo bom. O texto tinha pouquíssimas arestas por limar e eu julguei que as tivesse deixado de propósito para testar a minha atenção. E foi assim durante quase um ano. Textos e mais textos por corrigir até que num belo dia, voltou à carga e com outros “papos”. “Bro, aquele livro que estivemos a organizar paulatinamente já está pronto. Você é que conhece melhor os textos então tens de fazer a revisão. Mas agora com outros termos e condições.” Ele disse. Mas sobre isso falaremos noutro dia. Esta estória já vai longa, não é!

Portanto, foi assim que eu entrei em contacto com este livro. Dessa forma mágica e desinteressada. Daí o carinho que tenho por ele. Ao percorrer as 7 crónicas e 10 contos nele contidos, havendo momentos que estes dois géneros se misturam, pensei em Salvato Trigo quando na introdução do seu “Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira” afirma que

poderá parecer excessiva, reducionista mesmo, esta opinião, mas a verdade é que o texto literário africano moderno nem é tão transparente quanto parece nem é de tão fácil acesso quanto se julga. Recorrendo às palavras de Jacques Chevrier, o autor remata: a inteligibilidade dos textos do domínio africano passa, a maior parte das vezes, por um bom conhecimento antropológico, linguístico, histórico e até político do contexto de emissão da obra.

É nisso que resulta a experiência de leitura deste “a distante proximidade”. Numa primeira impressão, somos convidados a reviver o infortúnio de Genito. Um jovem com a vida sempre a desacelerar e teve a sorte de ser escolhido para representar o país numa turnée pelos palcos da CPLP. Por vários motivos, o jovem não consegue chegar ao aeroporto a tempo de seguir no avião que o esperava. O infortúnio faz com que Genito maldiga a si, o destino, a Deus e ao universo que, a seu ver, não conspira a seu favor. Algumas horas depois, uma notícia deixa-o sobressalto: o avião em que devia seguir despenhou quando sobrevoava Namíbia com destino a Luanda.

Mais adiante, aparece-nos uma narrativa intitulada “traídos pelo sono”. Quem é que nunca teve uma experiência igual? Em todo caso, nada será equiparado ao que ocorrera à Salmina (a esposa de Filmão) na sua palhota em Jonasse, província de Gaza, quando fora surpreendida pela luz do sol enquanto albergava o seu amante. Só lendo o livro para saber do desfecho deste imbróglio.

Depois de perpassar o texto a “a matreca da festa” e deleitar-se não só com o título mas com o enredo, surge, algumas páginas depois, “o vinho da discórdia” para perpassar questões como a corrupção e a promiscuidade entre o vileza e o egoísmo mesmo em momentos dignos de solidariedade e concórdia entre as pessoas.

A maior parte dos textos que nos são apresentados em “a distante proximidade” remontam momentos não muito específicos o que afasta a possibilidade de verossimilhança, se tomarmos o conceito no viés filosófico. Ora, tal não interfere no lato sensu literário do mesmo. Pelo contrário.

Vem este comentário a propósito do texto intitulado “carta de um invisível”, no qual o autor não fica alheio aos tempos pandémicos em que vivemos e dialoga com a Covid-19.

“Escrevo-te com alguma dificuldade existencial (ou talvez inexistencial) derivada do facto de que preciso de me apresentar, mas depara-se-me que, nos últimos tempos, não sei quem sou.” Ele diz.

Em todo caso, este diálogo com este mal que nos enferma e nos impusera restrições desmedidas, só revela que o escritor é, de uma forma ou de outra, uma voz imprescindível no domínio social embora exerça o seu activismo através da ficcionalização de mundos possíveis com base na realidade. Nesse exercício, ele deleita-nos e sobressalta-nos rumo a uma catarse dos nossos próprios medos, assombros e, por que não, desvarios.

O que também nos remete a este raciocínio, é o misticismo que serpenteia o texto intitulado “os filhos gémeos” no qual é difícil não estabelecermos um paralelo com uma situação vivida ou que nos fora contada sobre os túneis em que alguns concidadãos migram em busca da prosperidade. Outro aspecto bastante corriqueiro é o mote do texto “uma casa de alvenaria” que era o sonho do velho Mabunda cujos filhos, mesmo com posses, nunca chegaram de satisfazer senão em forma de cripta depois da sua morte. Enfim, o velho teve uma casa de alvenaria que os filhos julgaram que ele merecia.

Esta é uma amostra da temática que corporiza este “a distante proximidade” em que Almeida Cumbane não só se revela como um exímio “tradutor de línguas” (título de um dos seus textos) como revela que o comum, o corriqueiro que existe na plasticidade das nossas vivências não só é matéria de deleite no universo textual como o é de reflexão.

A capacidade de prender os olhos do leitor que estes textos trazem é típica dos mestres do suspense como Dan Brown, de quem o autor é admirador acérrimo, e de outros mestres da ficção como Franz Kafka em “Metamorfoses”, por exemplo, em que se denota uma narrativa riquíssima do ponto de vista de enredo sobre um mote aparentemente corriqueiro. É isto que encanta nos bons prosadores que Almeida Cumbane vai provando ser desde o seu primeiro livro, Ilusão à Primeira Vista, que mereceu o prémio literário TDM em 2016. Tal como naquele romance, os textos deste livro trazem-nos realidades rurais e urbanas com as quais convivemos diariamente e não nos damos conta delas.

Já dizia Arthur Schopenhauer: a tarefa não é ver o que ninguém viu mas pensar o que ninguém pensou sobre o que todo mundo vê. Se esta frase é de um grande filósofo e estamos a falar de um livro cuja autoria é de alguém com uma formação nesta área, abre-se uma janela biografista através da qual surgiria um belíssimo ensaio a quem se interessa por estás lides.

“A distante proximidade” descortina, também, os usos mais corriqueiros da língua na nossa tradição literária: trata-se de um Suleiman Cassano sem os neologismos que emergem da aportuguesação do ronga, sobretudo, e de um Aldino Muianga sem a opulência léxica que lhe é característica. Esta linha fronteiriça e identitária que traço através de uma tendência comparatista destes gurus da nossa literatura, pode ser a primeira pista para catalogar a escrita de Cumbane mas, atenção, sem rótulos.

Falando em rótulos, é chegada a vez de nos despirmos deles e vermos, nestas crónicas e contos, um material indispensável para as aulas de língua, tanto no secundário quanto no superior. Com toda vénia que voto aos nossos autores mais renomados, chegou o momento, meus caros, de preenchermos as nossas actividades lectivas, jornalísticas e ensaísticas com outras cores que nos são trazidas por escritores como o Cumbane que representam uma continuidade e ruptura quer estilística quer temática (ou conteudística, se quisermos) para com os seus antecessores.

Com este convite, algo presunçoso, convido a todos para a leitura destas crónicas e contos que Almeida Cumbane nos presenteia através do seu “a distante proximidade”. É obra!

[1] Texto de apresentação do livro a distante proximidade da autoria de Almeida Cumbane, chancela pela editora Kulera, no dia 25 de Julho no Festival Internacional de Poesia, organizado pela Associação Cultural Xitende, no paços do Conselho Municipal de Xai-Xai.

“Equalização” significa acto ou efeito de equalizar; uniformização; equilíbrio. É o que dispõe o dicionário da língua portuguesa. Mas também significa, em termos electrónicos, redução de distorção por meio da introdução de redes capazes de compensar a distorção própria de determinada faixa de frequências. Um equalizador gera equilíbrio, sintonia, concordância e sincronia dos sons. Para “linha” há uma panóplia infindável de significados que vão desde traço a fio, comunicação a estilo, molde a orientação, elegância a forma ou fisionomia. Seria bizarro a tentativa de citar aqui o que prescreve o dicionário sobre este vocábulo. O mesmo diria da palavra “vida”, que vai de existência à época, essência ou destino, fisionomia ou biografia, história ou sentido, eu sei lá! Seria igualmente enfadonho fazer a antologia do que este substantivo feminino (é importante que se lhe diga) exprime.

Detenho-me, outrossim, no cartaz e nas obras que enformam esta mostra e dou-me conta de que aquilo que aparentemente parece discordância ou barganha sintáctica deste título – “Equalização das linhas da vida” – é, afinal, a síntese da arte deste prodigioso nome das nossas artes: Chaná de Sá. A estilização usada no rosto que lhe dá voga e por meio do qual se consigna a obra em exposição desfaz qualquer dúvida a este respeito e produz, cabalmente, o sentido deste título e desta proposta ousada.

Chaná é um dos mais inventivos artistas da novíssima geração. Um dos mais dotados e, no entanto, um dos mais humildes. Digo humilde e emprego esta locução no melhor e mais alto sentido da mesma. Sabe do seu ofício e sabe da sua singularidade, mas não se perde na soberba. Cerebral e intuitivo, é ainda um dos nossos criadores mais profícuos e proficientes. Tudo isto subsídio da sua técnica, com o seu traço e com aquilo que ele transmite ou significa. O seu traço é único. As suas cores também. As técnicas, quase sempre miscelânea das mesmas, idem. Tintas naturais, aquarelas e acrílicos.

A vida, o seu sentido e significado, a sua explicação ou o seu milagre – avultam na sua obra cordões umbilicais –, o seu assombro ou a sua dádiva são um tema recorrente da sua pintura. Há sempre nas suas telas cordões, sequências, linhas, cordéis, fios, vínculos. O seu génio criativo parece ater-se a essa procura,  a essa busca quase obsessiva: de ligar, ajustar, direcionar, dar um sentido ou significado  a essas formas, figuras ou composições, essa busca de sintonia, de sincronia, de frequência e uniformização, com técnicas das mais diversas, cores e traços, às vezes ténues, outras tantas fortes e intensas, que são, no fundo, as linhas da vida, afirmação da procura do entendimento desse destino que a existência, desde o nascimento à morte, se nos impõe.

Estas figurações, estas expressões, estas feições, estes vultos, estas expressões, estes semblantes, estas cores, estas posturas, estas linhas, estes traços, estes sinais, estas impressões que se reproduzem, de forma recorrente, nestes quadros, sempre lá estiveram, ainda que de forma oculta – ou se quiserem dissimulada –, em toda a sua criação. Exprimem a vida ela própria. São a sua tessitura e revelam a sua estrutura, composição ou textura e contextura.

A forma como Chaná trama e ata ou entrelaça estes fios que compõem a vida não é óbvia, mas ali reside a divícia da sua poesia, da sua arte e do seu génio. A arte, a grande arte, não é necessariamente o domínio do explícito. Um poeta, um grande poeta no caso, meu mestre, dizia-me, há décadas, quando eu debutava no ofício: a poesia é a arte da dissimulação. Eu acrescentaria hoje: toda a arte subscreve a arte da dissimulação – passe-se a redundância. Não obstante, a arte não tem que ser necessariamente obscura, nem flagrante. A arte é magnificente, pecuniosa, fecunda. A arte inquieta-nos, desassossega-nos, subverte-nos. Não podemos sair indiferentes de um encontro com a obra de um artista. Um grande artista, como é o caso deste, instiga-nos sempre, provoca, espicaça. A arte, a grande arte, também repara, redime, expia. Quase sempre vamos ao encontro da criação em busca disso mesmo: redenção ou absolvição.

Disse, não há muito, a respeito de artistas da mesma progénie, que se há domínio em que Moçambique se distingue é na criação e no soberbo pecúlio que os artistas, de diversas gerações, erigem quotidianamente. O nosso génio, o génio moçambicano, radica aí: na cultura. Digo cultura e não o seu arremedo ou seu simulacro. Há hoje, entre os novos artistas moçambicanos, nomes assombrosos. Quem acompanha, de perto, o movimento ascensional das nossas artes sabe do que aqui se diz. Estes tipos são talentosos, admiráveis, esplêndidos, assombrosos e assombrados, arrebatados e arrebatadores, enérgicos e pujantes, possantes e vibrantes. Chaná de Sá é um deles. Indubitavelmente.

 

Cidade do Cabo, 11 de Julho de 2022

Quem nos resgata do escuro, quando a bússola solar nos desvia?

 

 

Este livro não é apenas um simples livro, traz consigo outros tantos, que atravessam vários tempos e revisitam a obra de Taruma enriquecida com o acréscimo de alguns textos inéditos que o poeta nos fez o favor de oferecer. “O recolher obrigatório do coração” é, portanto, uma espécie de antologia onde o poeta nos permite esse agradável reencontro com os escritos que melhor se enquadram nesta aventura discursiva que se espalha em sete dezenas de páginas. Quem teve o privilégio de desfrutar as suas obras anteriores, “Para uma cartografia da noite”, depois “Matéria para um grito” e muito recentemente “Animais do ocaso”, apercebe-se que Taruma persegue a escrita do mesmo livro, percorre os mesmos caminhos, sobretudo estéticos, tendo como suporte o lado passional que desde sempre percorreu a sua poesia. Confessa-nos, aliás, o poeta, que “ a tónica dos poemas reunidos neste livro é intimista e confessional, como um sujeito que se depara com a impossibilidade prática das suas paixões e recolhe para dentro as cortinas e as janelas do seu coração”. Os poemas obedecem quase o mesmo sistema de construção, é como se estivessem a respirar o mesmo ar e a atravessar os mesmos processos conflituais. Apesar desse lado passional, os seus escritos não deixam de fazer a abordagem de tudo aquilo que a vida tem de contraditório  e inaceitável, colocando-nos diante de um poeta indignado, preocupado com o seu tempo e ansioso pela construção de outras linguagens e formas de estar. Há nos escritos de Taruma o reflexo de uma enorme vivência, duma vasta erudição. Apercebemo-nos das suas vastas leituras e influências, de subtilidades próprias de um poeta que escreve num mundo cheio de desafios e numa sociedade de bastantes hostilidades que apenas o amor e as palavras do poeta são capazes de contrariar!

Parece-nos que aquilo que o Taruma nos pretende sugerir com estes tres livros inscritos num só, é que estamos diante de um livro das impossibilidades. E a primeira é a impossibilidade de construir uma paixão sólida, um amor dilacerante, perene. Taruma já não acredita num amor ideal, mas sim, num amor razoável, e disso nos apercebemos quando o poeta escreve:

Já não acredito em coisa alguma; a mim só restam os calafrios, as paredes sobressaltadas, o frio odor da amónia, o lume ardente da insónia sobre a lembrança vaga do teu nome.

A segunda impossibilidade de Taruma é o de nunca atingir os propósitos que sempre desejou: os de construir uma poesia que o satisfaça e realize, uma poesia capaz de buscar tudo o que está oculto para colocar aos pés dos homens. Uma poesia que seja também capaz de trazer consigo, não apenas os sentimentos, como também os símbolos da terra, com os seus cheiros e suas côres, porque afinal são estes elementos que serão capazes de definir, na nossa modéstia opinião, a propalada identidade literária. Por isso, dizíamos, Taruma está permanentemente em busca, nesta aventura que a Literatura lhe impõe e onde, certamente, vão sobressair aqueles que forem capazes de serem eles próprios, isto é, de construir uma poesis que tenha como alicerce o seu substracto cultural, a sua identidade. E aqui, ao falar de identidade, nos lembramos das palavras de Francisco Noa buscadas na sua obra “Além do Túnel”, quando diz: “Julgo que pensar e discutir a identidade é das experiências mais resvaladiças, mais atraiçoantes, às vezes dolorosas, mas ao mesmo tempo mais fascinantes, a que nos podemos entregar. Não me enganaria muito se afirmasse que essa deverá ser eventualmente uma das ocupações intelectuais mais marcantes a que o homem, desde às suas origens, se tem dedicado, de forma latente ou            manifesta.” Fim de citação. Mas aquilo que interessa referir neste momento é que Taruma faz parte duma geração de novos escritores apostados em ocupar o lugar que lhes é devido. Creio, no entanto, que Taruma não pretende ocupar lugar nenhum, o que lhe preocupa, isso sim, é encontrar o caminho que lhe permita escrever todas as palavras capazes de tornar a sua poesia mais apetecível, resgatar os amores verdadeiros e sobretudo fazer acreditar que quando na vida tudo parece perdido resta ainda a poesia para iluminar os caminhos sombrios e devolver a esperança que nos dias que correm tende a tornar-se escassa. A poesia é a salvação. Não é por acaso que José Marti, jornalista, filósofo e poeta cubano, deixou ficar esta magistral definiçao: “ um grão de poesia é suficiente para perfumar um século”. É, pois, esse perfume que Taruma pretende espalhar através dos seus poemas.

Aqui chegados, há que tentar dar resposta a pergunta que todos, creio, levantamos: o que significa “recolher obrigatório do coração?”. De acordo com o dicionário dos saberes o termo “recolher obrigatório” se aplica à uma proibiçao oficialmente decretada vedando a permanência de pessoas nas ruas após determinada hora. E então se levanta a seguinte questão:  a que “recolher obrigatório do coração” se refere o Alvaro Taruma?  Não restam dúvidas que é dificil o ofício de descodificar os nomes dos livros, mas podemos supor que o título em questão pode significar que existe um coração dilacerado, desencantado, repudiado, incompreendido, amargurado, isto é, náufrago nas imensas águas do amor.  Para Taruma, e cito, “recolher obrigatório do coraçao é uma lúdica aventura, uma brincadeira, e ao mesmo tempo um chamamento para o interior de nós mesmos. Se não houvesse, infelizmente, a pandemia da Covid-19 se calhar nem existisse tal título, pelo que de certa forma é um oportunismo circunstancial, mas que por outro lado é uma verdade flagrante, uma vez que os poemas todos aludem a um certo tipo de recolher: de sentidos, de braços, de espantos, de sentimentos. Fim de citação. Mas essa impressão de recolhimento, de desamor, de um homem em permanente naufrágio, “mesmo sem nunca ter partido ao mar”, é uma espécie de um estado passageiro, uma ponte que se deve atravessar, porque é da esperança que o livro nos fala. É de amor. Aliás, como muito bem o disse o escritor Baptista Bastos, “ as pessoas precisam de afecto, as pessoas precisam de amor, as pessoas precisam de ser namoradas e acarinhadas”. Não é por  acaso que Taruma escreveu:

 

Sê ilha: catedral de terra e espuma, onde

um búzio calado é um canto na boca

da amargura. Refaz-te na minha pele cansada

e apaga-me esta cicatriz, esta agrura; que eu,

docemente, acordarei levitado, louco, quase

incontido no lume dos teus braços.

 

Diríamos que não existe nenhuma diferença entre os primeiros poemas e outros mais recentes, o timbre das palavras continua sendo o mesmo, a voz altiva do poeta ergue-se diante de outras vozes, o seu estilo peculiar continua se vincando, há cada vez mais segurança, há cada vez mais  leveza, mais maturidade, desapareceu na escrita de Taruma, aquilo que se chama a querela das palavras, isto é, as palavras deixaram de se guerrear umas às outras, harmonizaram-se, e quando assim acontece, surge um Taruma com uma voz própria, um poeta consistente. Percebe-se, apesar de tudo, que o poeta vai continuar a trilhar os caminhos duma escrita intimista e confessional, porque, como diria James Baldwin, “ o amor é uma batalha, o amor é uma guerra; o amor é um crescimento.”

 

Não gosto de escrever sobre poesia, não gosto de navegar ou naufragar, e muito menos de enlouquecer, que são viagens a que muitas vezes recorrem os poetas. Não gosto de escrever sobre poesia porque o poeta quando diz agua quer dizer pedra, quando diz pao quer dizer fome, quando fala do sol é porque há o prenúncio da chuva, quando fala de vinho nao traz nenhuma taça na mão, e quando não diz nada é bom estarmos atentos porque o mundo está prestes a desabar! Não gosto de escrever sobre poesia, mas  gosto dos poetas, porque são mais atrevidos que os ficcionistas, Teem a coragem de se levantar e dizer não, porque sabem dizer as coisas com gramatica e com criatividade, são os poetas, como o Álvaro Taruma,  que ajudam a manter acesa a chama da vida, que perfumam as palavras, que nos chamam a atenção para o pôr-de-sol, que nos despertam, por exemplo, para uma realidade insólita: a de que um coração pode ter um recolher obrigatório!

Como diria o Taruma, “Entrar no coração deste livro é descalçar os sentidos”. É encontrar um poeta que dormiu com Marylin Monroe; que fala com Platao e Sócrates em grego; que conhece Thelonious Monk e John Coltrane; que já leu o Clive Barker e Ruy Belo; ler este livro de Taruma é encontrar a luz, o sol, a água, a noite , o fogo, a morte, o vinho, o mel, o vento, a pedra, o pão, o silêncio, a solidão, o frio, os pássaros, os búzios. É encontrar a paixão, o amor e o corpo duma mulher. É com estes elementos que Taruma se municia para construir o seu livro, sem esquecer, também alguma saudável ironia e sobretudo, de certa loucura! É verdade que ela, a loucura, não se aconselhará a ninguém, mas o imobilismo, principalmente o literário, não é saudável, conduz a ausência da criatividade, a ausencia da inovação literária. Por isso, a loucura de Taruma, é saudável para a sua poesia!

A poesia que se propõe para Moçambique deve ser uma poesia que nos prestigie e que se situe na mesma grandeza daquela outra que desde sempre dignificou esse género literário e obviamente os nossos poetas. Refiro-me a poesia do Knopfli, Craveirinha, Albino Magaia, Eduardo White, Juvenal Bucuane, Calane da Silva e Armando Artur. Cremos que não estaremos a enveredar por um lugar comum ao afirmar que a poesia em Moçambique encontra-se num bom caminho, embora a crítica não lhe preste a devida atenção, ou se quisermos ser politicamente correctos, essa crítica não tem sido publicamente expressa. Apesar  do aparente crescimento da nossa poesia, há que trabalhar mais. Há que escrever muito. Há que ter essa vontade indómita de fazer da nossa poesia a melhor de todas as poesias. Taruma, felizmente, sabe disso, porque se assim não fosse, não nos teria oferecido este  “recolher obrigatório do coração”.

 

Julho/2022

 

“Equalização” significa acto ou efeito de equalizar; uniformização; equilíbrio. É o que dispõe o dicionário da língua portuguesa. Mas também significa, em termos electrónicos, redução de distorção por meio da introdução de redes capazes de compensar a distorção própria de determinada faixa de frequências. Um equalizador gera equilíbrio, sintonia, concordância e sincronia dos sons. Para “linha” há uma panóplia infindável de significados que vão desde traço a fio, comunicação a estilo, molde a orientação, elegância a forma ou fisionomia. Seria bizarro a tentativa de citar aqui o que prescreve o dicionário sobre este vocábulo. O mesmo diria da palavra “vida”, que vai de existência à época, essência ou destino, fisionomia ou biografia, história ou sentido, eu sei lá! Seria igualmente enfadonho fazer a antologia do que este substantivo feminino (é importante que se lhe diga) exprime.

Detenho-me, outrossim, no cartaz e nas obras que enformam esta mostra e dou-me conta de que aquilo que aparentemente parece discordância ou barganha sintáctica deste título – “Equalização das linhas da vida” – é, afinal, a síntese da arte deste prodigioso nome das nossas artes: Chaná de Sá. A estilização usada no rosto que lhe dá voga e por meio do qual se consigna a obra em exposição desfaz qualquer dúvida a este respeito e produz, cabalmente, o sentido deste título e desta proposta ousada.

Chaná é um dos mais inventivos artistas da novíssima geração. Um dos mais dotados e, no entanto, um dos mais humildes. Digo humilde e emprego esta locução no melhor e mais alto sentido da mesma. Sabe do seu ofício e sabe da sua singularidade, mas não se perde na soberba. Cerebral e intuitivo, é ainda um dos nossos criadores mais profícuos e proficientes. Tudo isto subsídio da sua técnica, com o seu traço e com aquilo que ele transmite ou significa. O seu traço é único. As suas cores também. As técnicas, quase sempre miscelânea das mesmas, idem. Tintas naturais, aquarelas e acrílicos.

A vida, o seu sentido e significado, a sua explicação ou o seu milagre – avultam na sua obra cordões umbilicais –, o seu assombro ou a sua dádiva são um tema recorrente da sua pintura. Há sempre nas suas telas cordões, sequências, linhas, cordéis, fios, vínculos. O seu génio criativo parece ater-se a essa procura,  a essa busca quase obsessiva: de ligar, ajustar, direcionar, dar um sentido ou significado  a essas formas, figuras ou composições, essa busca de sintonia, de sincronia, de frequência e uniformização, com técnicas das mais diversas, cores e traços, às vezes ténues, outras tantas fortes e intensas, que são, no fundo, as linhas da vida, afirmação da procura do entendimento desse destino que a existência, desde o nascimento à morte, se nos impõe.

Estas figurações, estas expressões, estas feições, estes vultos, estas expressões, estes semblantes, estas cores, estas posturas, estas linhas, estes traços, estes sinais, estas impressões que se reproduzem, de forma recorrente, nestes quadros, sempre lá estiveram, ainda que de forma oculta – ou se quiserem dissimulada –, em toda a sua criação. Exprimem a vida ela própria. São a sua tessitura e revelam a sua estrutura, composição ou textura e contextura.

A forma como Chaná trama e ata ou entrelaça estes fios que compõem a vida não é óbvia, mas ali reside a divícia da sua poesia, da sua arte e do seu génio. A arte, a grande arte, não é necessariamente o domínio do explícito. Um poeta, um grande poeta no caso, meu mestre, dizia-me, há décadas, quando eu debutava no ofício: a poesia é a arte da dissimulação. Eu acrescentaria hoje: toda a arte subscreve a arte da dissimulação – passe-se a redundância. Não obstante, a arte não tem que ser necessariamente obscura, nem flagrante. A arte é magnificente, pecuniosa, fecunda. A arte inquieta-nos, desassossega-nos, subverte-nos. Não podemos sair indiferentes de um encontro com a obra de um artista. Um grande artista, como é o caso deste, instiga-nos sempre, provoca, espicaça. A arte, a grande arte, também repara, redime, expia. Quase sempre vamos ao encontro da criação em busca disso mesmo: redenção ou absolvição.

Disse, não há muito, a respeito de artistas da mesma progénie, que se há domínio em que Moçambique se distingue é na criação e no soberbo pecúlio que os artistas, de diversas gerações, erigem quotidianamente. O nosso génio, o génio moçambicano, radica aí: na cultura. Digo cultura e não o seu arremedo ou seu simulacro. Há hoje, entre os novos artistas moçambicanos, nomes assombrosos. Quem acompanha, de perto, o movimento ascensional das nossas artes sabe do que aqui se diz. Estes tipos são talentosos, admiráveis, esplêndidos, assombrosos e assombrados, arrebatados e arrebatadores, enérgicos e pujantes, possantes e vibrantes. Chaná de Sá é um deles. Indubitavelmente.

 

Cidade do Cabo, 11 de Julho de 2022

À guisa de uma introdução

Dos primeiros critérios que aprendemos quando nos ensinam a escrever é que um texto deve conter introdução, desenvolvimento e conclusão. Muitas vezes se para por aí e já nos é instruído a escrever um texto, uma redacção, na verdade, sem uma clara explicação sobre como integrar num texto as construções frásicas antes aprendidas e sobre a construção de um parágrafo coeso e coerente. O que tem sucedido é que muitos precisam de chegar à Universidade, para aprender que um único parágrafo deverá também conter uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. Ou seja, a escrita obedece a compassos.

Supondo que um compasso de escrita, num texto, seja a, b, c e d. No decurso da sua escrita, não deverá haver a, c, d e b. Se isso acontecer, estamos a tornar o texto pouco coeso e muita das vezes incoerente e inconsistente. Não me refiro aqui a prolepses nem a analepses (ou seja, a avanços e a recuos num texto literário), que têm uma construção própria. Refiro-me à escrita de uma simples redacção de uma carta ou de uma mensagem comum ou ainda, no caso daquilo de que me interessa falar, neste texto, à obra Como fazer propostas de investigação, monografias, dissertações e teses: manual de metodologias e de investigação, de João Ruas, docente universitário.

Há compassos a serem obedecidos, para permitir uma leitura harmónica e compreensiva de um texto qualquer. Quantas vezes é que recebemos um e-mail ou uma mensagem de texto de alguém e, a seguir temos que lhe ligar a perguntar o que é que pretendia dizer com ele?

Uma outra grande dificuldade que muitos alunos enfrentam no final da frequência a um curso universitário ou a quando da necessidade de escrita de um projecto de trabalho de final ou de início de um curso é a organização e a escrita. É altura comum para se desistir. Os mais práticos no grupo dos que têm dificuldade em fazer um trabalho de fim de curso, no lugar de desistirem, preferem a alternativa de Exame de Estado, que muitas universidades oferecem. Ao menos isso. Mas elaborar um projecto ou uma monografia é tarefa difícil e não é à toa que existem diferentes tipos de livros sobre a escrita de projectos para investigação, para final de curso ou projectos, que também servem para apresentar propostas de consultoria.

Existe, na maior parte das vezes, dificuldades dentro desses tipos de escrita. No que diz respeito ao livro de João Ruas, acima mencionado, por se tratar de Filosofia da Ciência, devo dizer que são poucas as pessoas que têm paciência de ler esses livros, mas também são poucos os autores que preparam essas matérias de forma prática; simples de seguir, como se de uma receita de bolos se tratasse.

João Ruas se coloca entre os que simplificam a Filosofia da Ciência. O livro a que me vou referir é um manual. E lembrando, um manual é um instrumento que contém conhecimentos imprescindíveis sobre um tema e escritos de forma simples, para que leigos também possam seguir.  É como uma receita para fazer bolos, por exemplo. E ao dizer uma receita para bolos, não é para minimizar este trabalho científico; é que mesmo se tratando de bolo, quem tem bom gosto estético ou é guloso, não come qualquer um. Quer o bolo do melhor pasteleiro. E o melhor pasteleiro, muitas das vezes é quem sabe seguir à risca uma receita ou quem sabe escrever muito bem uma e, em ambos casos, há, claramente alguma dose de criatividade. É a esse propósito que existem as estrelas Michelim ou seja, cozinha requintada, comida excelente.

 

Breves notas sobre a primeira e a segunda edições da obra Como fazer propostas de investigação, monografias, dissertações e teses: manual de metodologias e de investigação

Todo aquele introito era para reiterar o que eu afirmei num dos comentários que fiz relativamente à primeira edição desse livro e que consta da segunda edição e reitero:

Li, à exaustão, o livro do Professor João Ruas. E decidi que o utilizaria, a título experimental, em duas disciplinas que leccionei repetidas vezes: Métodos de Pesquisa e Metodologias de Pesquisa, ministradas no primeiro e no quarto anos universitários.

Equacionei, muitas vezes, a possibilidade de não partilhar a obra com os alunos do primeiro ano, mas a simplicidade e a objectividade com que o autor da obra aborda um assunto complexo, as propostas de investigação e afins, fez-me acreditar que os alunos teriam prazer em aprender a partir dela.

Fiz o teste e resultou. Várias vezes, constatei que os alunos o citavam e que elaboravam os seus trabalhos recorrendo à estrutura proposta no livro, mesmo em contextos nos quais a obra disputava espaço com outras de outros autores. Isso comprovou, na minha óptica, o valor da ciência. Coloquei a obra em teste e não houve obstrução na compreensão sobre o fazer ciência ou sobre a compreensão do facto de que a Filosofia da Ciência pode ser abordada com leigos, desde que o método e a linguagem utilizados favoreçam o processo de aprendizagem, como o caso desta obra de João Ruas.

Lendo a segunda edição constatei que é uma edição revista e ampliada da primeira. Aquilo que é imprescindível numa monografia, numa dissertação ou numa tese, como já tinha sido dito e estava muito bem referido. Entretanto, nada me custou elaborar uma segunda aferição; e uma forma de o fazer é comparar esta obra ou a sua abordagem com outras altamente recomendáveis ou altamente reputadas.

Então, para além das experiências que tinha feito e que aqui referi, consultei o trabalho de Ricardo Morais, um cientista conhecido mundialmente, na academia, pela simplificação de modelos para escrita e avaliação de trabalhos académicos. Morais defende a existência de 21 itens a serem integrados num trabalho de pesquisa. Ele designou ao seu trabalho “Ideia Puzlle”. E quem o segue, faz sempre uma boa monografia, dissertação ou tese ou faz uma excelente avaliação desses mesmos tipos de texto, após tê-los escrito.

São seguintes os critérios propostos por Ruas, para se fazer um projecto de pesquisa: (1) abstract; (2) identificação do tópico; (3) definição do problema a ser investigado; (4) definição da pergunta a ser investigada; (5) definição de perguntas investigativas); (6) definição das hipóteses a considerar; (7) identificação do paradigma de investigação; (8) metodologia de investigação; (9) definição dos objectivos gerais e específicos;  (10) justificativa do trabalho (importância do tema para a investigação); (11) abordagem das limitações da investigação; (12) delimitação da investigação; (13) estado da arte com os prós e contras relativos ao tópico ou às variáveis escolhidas, mais a definição de conceitos operacionais;  (14) recolha de dados; (15) técnicas de recolha de dados; (16) técnicas de análise de dados; (17) análise e interpretação de dados (18) conclusões; (19) recomendações; (20) tempo de realização da pesquisa e (21) introdução.

Não sendo exactamente os mesmos itens preconizados por Morais, têm a mesma função e cumprem o mesmo objectivo. Têm, na verdade, a mesma ciência: realizar uma pesquisa com qualidade; ou mesmo, avaliar uma pesquisa de modo adequado, após esta estar elaborada. Para além de mostrar a necessidade de se utilizar esses 21 itens para compor a pesquisa, João Ruas revela, com exemplos práticos, como é que esses itens devem ser formulados. Chega a mostrar os exemplos daquilo que deve ser essa formulação, bem como aquilo que não deve ser. Em qualquer teoria, o mais difícil depois de se fazerem definições é apresentar-se exemplos práticos. Teorizar, experimentar: montar, construir, testar e medir. Esses conhecimentos complementam-se, mas nem sempre são fáceis de elaborar e de relacionar.

Quem lê ou assiste as aulas do Professor João Ruas, constata que, contrariamente às grandes discussões sobre o que é que se faz primeiro para se elaborar uma tese; se a revisão bibliográfica ou se a formulação do problema a pesquisar, constata que se deve formular o problema. Isso pode ser confirmado em Ruas (2021:70), a segunda edição da obra em apresentação, por exemplo. Para este autor, o problema já existe na realidade empírica; precisa de ser formulado, para ser resolvido cientificamente.

Mais ainda, Ruas explica, nesta obra, o erro fossilizado, entre algumas pessoas, de se considerar que o resumo ou abstract de um trabalho académico são uma introdução ao mesmo. Uma coisa não substitui a outra, nem uma coisa prescinde da outra. E são distintas, tanto em termos de tamanho, quanto na filosofia da sua escrita. Ainda a este respeito, muita das vezes, a vida de alunos se torna complicada quando se lhes pede que apresentem uma introdução ao trabalho, parte que, descomplicando, Ruas adverte ser a última parte do trabalho a ser escrita. Em minha óptica, mais vale solicitar primeiro um abstract ao aluno, que ele possa depois reformular ao decorrer da pesquisa, fazer o trabalho, depois, a introdução.

 

O autor

 João Ruas é um cidadão multifacetado. Foi piloto de automobilismo. Para além de ter uma licenciatura em Engenharia Civil, cujo diploma foi-lhe atribuído pela Universidade Eduardo Mondlane; tem um mestrado em Gestão de Empresas, pela Montfort University da Grã-Bretanha e dois doutoramentos, um em Engenharia de Gestão pela Universidade de Johannesburg e outro, em Governança e Administração – passado pela Cranefield Colege em Pretória. É docente universitário, tal como o tinha afirmado e, nessa qualidade, tem sido orientador e arguidor de diferentes trabalhos de fim de curso, desde as licenciaturas, até aos doutoramentos.

Recomendo a leitura da sua obra. A quem a ler, desejo uma leitura, uma análise e, desejando, uma aplicação proveitosa; porque, como disse, a obra ajuda na elaboração de um projecto de pesquisa e, se desejarmos, criteriosamente e, com as devidas escolhas, pode ajudar a elaborar um projecto de consultoria ou mesmo avaliá-la.

 

Sara Jona Laisse, docente universitária. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

A cada segunda quinzena de Dezembro, fecha-se ao trânsito a avenida 24 de Julho, reforça-se o contingente policial, monta-se o estrado, estende-se o tapete vermelho à entrada da Assembleia da República e, ao ritmo de uma carregada salva de palmas, sobe-se ao púlpito para se falar do desporto moçambicano. As suas conquistas!

No informe sobre o Estado da Nação, descreve-se em alguns parágrafos as medalhas conquistadas pelos atletas moçambicanos em competições internacionais.

O Presidente da República enaltece quem, de medalha ao peito, faz arrepiar corações e subir as emoções dos moçambicanos com a entoação do hino “Pátria Amada” e o içar da bandeira nacional.

Uma glorificação aos feitos alcançados por atletas que galgaram patamares elevados, uma reclamação do papel do Governo neste desiderato através de assertivas político-desportivas.

Cerram os punhos os atletas, ficam na expectativa de receberem dinheiro à luz do Regulamento de Premiação Desportiva, um instrumento legal aprovado pelo Governo em 2007.

Governo tal que definiu a atribuição de valores monetários aos atletas e respectivos acompanhantes que conquistem medalhas em provas internacionais de carácter oficial. Mas o Executivo pontapeia, hoje, o dispositivo legal por si aprovado.

Faz ouvidos moucos às reclamações de atletas que, há cinco anos, não são premiados. Sobe de tom a indignação dos medalhados, a despeito de terem escrito uma carta ao Fundo de Promoção Desportiva (instituição subordinada à Secretaria de Estado de Desporto), a reclamarem o pagamento de um valor global de treze milhões, duzentos e dez mil Meticais.

Com os atletas nacionais a manterem-se nos lugares de pódio, mais claro se torna que o gráfico vai subir e os dígitos vão aumentar!

O prometido não está a ser cumprido! A narrativa do Governo é solucionar o problema o mais breve possível.

Os atletas sentem-se enganados, genuinamente; Desvalorizados; Menorizados. Afinal, é algo de direito. Do boxe ao atletismo. Do judo à vela e canoagem. Do futebol ao basquetebol. Da natação ao voleibol e tantas outras modalidades. É como se nada tivesse acontecido. Com tamanha naturalidade, quais verdadeiros obreiros das conquistas, os dirigentes apossam-se dos momentos de chegada dos atletas no Aeroporto Internacional de Maputo.

Promovem passeatas, recepções calorosas e sessões de fotografias de bradar aos céus. Tudo para alimentar as redes sociais e reclamar protagonismo. O bom senso não habita! Nem tão pouco.

A tudo isto se soma o patrocínio de pais e encarregados de educação para assegurar que atletas de algumas modalidades participem em provas internacionais.

E mesmo assim, com alto patrocínio dos portadores de microfones e gravadores, são os mais destacados na hora de falar das glórias.

Atropelam os protocolos, colocam-se na linha da frente, no tradicional momento de exibição de troféus à saída das aeronaves, e pousam para a posterioridade. Pode parecer normal os dirigentes saudarem e marcarem presença na recessão de atletas, quando estes regressam ao país. Sim, pode parecer mesmo normal. Contudo impõe-se que respeitem o espaço de quem efectivamente fez por merecer.

Até hoje, os Mambinhas, vencedores do Torneio COSAFA sub-20, aguardam a passeata prometida ao mais alto nível e estadia num dos paraísos turísticos de Moçambique.

Não basta minimizar os objectivos traçados pelas federações desportivas nacionais de simples participação em provas internacionais, desafiando-os a trazerem medalhas para o país. É preciso que haja coerência no discurso aliado ao cumprimento das promessas.

Dos mais velhos, os Mambas, já nem se fala. Os tão prometidos terrenos na agora apetecível região da KaTembe, pela qualificação ao Campeonato Africano das Nações de 1996, na África do Sul, continuam uma miragem.

Não podemos dar muito, mas podemos e devemos honrar os nossos compromissos!

Os dirigentes das federações desportivas têm, igualmente, as suas responsabilidades. Porque, embora reconhecendo que o Estado tem que desempenhar um papel central, não podem cair no erro habitual para ele transferir todas as responsabilidades.

Começo por agradecer a todos os presentes neste lançamento, pela simpatia que demonstram. Incluo neste modesto gesto, todos os meus companheiros das letras, particularmente, os que calcorrearam os caminhos um tanto inóspitos, mas nem por isso, a pouco-e-pouco, desbravados pelo Movimento Charrua através da revista do mesmo nome. Uma alfaia intelectual que ocasionou a germinação literária dos primeiros escritores e poetas da era pós-proclamação da Independência de Moçambique.

Passavam já cerca de 8 anos depois deste marco histórico importante, quando tudo começou. Foi a 23 de Junho de 1984, uma data que faz hoje 38 anos. Brotavam, então, os escritores e poetas que mais tarde se viram continuados por outros mais jovens ainda, que, actualmente habitam o nosso universo literário.

A odisseia foi, em parte, apoiada, ainda que em surdina, pela Embaixada de Portugal em Moçambique, através do então seu Conselheiro Cultural, Doutor Soares Martins, o célebre escritor José Capela, já falecido, que desembolsou os valores necessários à 1ª. Edição da Charrua, graças à lúcida e convincente intervenção do nosso companheiro Eduardo White, também já falecido.

Foi muito duro que nem podem imaginar, mas a nossa vontade vingou, agarrados à certeza de que o triunfo sempre reside na coesão do colectivo. Esta a razão fundamental de eu ter escolhido o Centro Cultural Português para o lançamento deste livro. Algumas figuras representativas da época ora evocada, estão nesta sala. Não vou poder citar os nomes de todos, mas o conteúdo do livro os contempla, pela importância da sua contribuição na construção da utopia transformacional dos paradigmas da nossa literatura. Há, porém, uma pessoa que gostaria de apresentá-la de um modo muito especial. Penso que não se opõe a este gesto de reconhecimento: a Professora Olga Horácio Pires, então esposa do nosso saudoso confrade Eduardo White, falecido a 24 de Agosto de 2014. Ela aceitou fazer, em lugar deste poeta, um depoimento constante neste livro. Obrigado Olga.

De entre os nomes que o livro contempla, há, porém, os que por razões óbvias não posso, neste momento, omitir, por terem sido os pilares da odisseia ou a Pedra Angular do grande sonho transformacional. São eles: Hélder Muteia, juvenal Bucuane, Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, Pedro Chissano, Ídasse Tembe, e, à terceira edição, Tomás Vieira Mário. Estes constituíam o Conselho Coordenador.

Um papel fundamental teve Elias Cossa como maquetista da revista.

Ídasse Tembe, não sendo escritor, nem poeta no sentido rigoroso, aceitou ilustrar a revista, com a sua poesia plástica, expressa a tinta-da-china, ao longo das suas páginas, durante o tempo em que ela vigorou, tendo-se-lhe juntado, ao longo do percurso, outros artistas da sua área. Aliás, o desenho da capa deste livro é uma das suas ilustrações.

Consequentemente, outros escritores e não só, e não menos importantes, juntaram-se a este grupo, como Colaboradores Permanentes: Marcelo Panguana, Armando Artur, Afonso Santos, Júlio Navarro, Fernando Couto, Aníbal Aleluia, Filimone Meigos e Guilherme Afonso. Quero aqui assegurar que os que se empenharam na vida da Charrua, e não mencionados nesta intervenção, cada um, à medida da sua contribuição, estão referenciados nas páginas do livro. Para todos estes “kotas”, alguns, jovens de ontem, que sustentaram a utopia que hoje é a realidade literária do nossa pais, peço uma merecida salva de palmas!

Este livro traz memórias de um tempo marcante para o desenvolvimento literário de Moçambique, o tempo da inversão profunda do paradigma literário nacional, ou seja, a mudança do cânone. De acordo com o escritor e crítico literário Francisco Noa, citado pela Professora e estudiosa Fátima Mendonça: “… a Charrua, de certa forma, protagonizou uma rebeldia em relação ao que se tinha canónico, em relação ao curso da nossa literatura pós-independência.”

Não se tratava de uma rotura definitiva com o que se tinha escrito até aquele momento. Exemplo disso é a prevalência do valor da obra dos escritores e poetas que nos antecederam, resumidos em José Craveirinha, nosso expoente máximo, nosso Poeta-mor, que manteve o seu traço premonitório e o seu tom de denúncia das arbitrariedades, não importando quem as praticasse, nem em que tempo, até à sua passagem a outra dimensão existencial.

Tratava-se de acrescer um marco que considero histórico, um legado às gerações posteriores à Charrua, para que tivessem pontos de referência que ajudassem a reflectir sobre a nossa literatura.

Narro factos reais, porém rebatíveis, conforme o ângulo de visão em que cada um esteve a observá-los. Encontro hoje uma ocasião excepcional para explicar aos que às vezes oiço falar, movidos por dúvidas e aos que, simplesmente desvalorizam, sem conhecerem a história real desta aventura.

As páginas deste livro contam a verdadeira história da Charrua, podendo, contudo, não terem sido exaustivas o quanto seria de desejar. As razões que me levaram a escrevê-lo são diversas, mas quase todas andam à volta do conhecimento ou desconhecimento, se quisermos, do papel primordial da Charrua em relação à juventude daquela época, e à força titánica de massajar as mentes dos então já consagrados, no sentido de encararem positivamente, as mudanças que se impunham, na forma de representar culturalmente Moçambique no mundo.

É que a guerra colonial, no terreno das operações tinha acabado e o país devia-se curar das feridas que o evento deixara. Tinha que se encarar a reconstrução nacional de forma mais solta, embora, ainda, com as armas apenas ensarilhadas, não enterradas. Tinha que se cantar o país liberto, numa descrição aberta das suas potencialidades, usando uma linguagem nova que destacasse o amor, a beleza, a esperança e a certeza; a suavidade do rosto e a largueza do sorriso do homem, da mulher e da criança, sob o esplendor de um novo sol que começava a inundava todos os recantos do país!

Reitero, foi duro, primeiro, pela inexperiência dos novos escritores no traquejo dos instrumentos literários, aliada à teimosia dos que se julgavam detentores da autoridade literária, naquele tempo. Mas tínhamos que nos agarrar à fórmula do triunfo: Visão, Coragem e Perseverança.

Empedernimo-nos na ideia, no sonho e avançamos, porque sabíamos, apesar da nossa inexperiência, que o triunfo residia na coesão do grupo. As nossas diferentes cargas emocionais se atraíam. Pensamos juntos e derrubamos os obstáculos. Muitas pessoas, hoje falam da Charrua, pintando-a com as mais variadas cores, ao sabor da sua imaginação certamente influenciada. O que noto com alguma apreensão é que quando ela desbravava a árida terra da cultura do nosso país, na área literária, muitos não tinham ainda nascido ou estavam a nascer e, o que é mais grave, nunca, à posterior, viram um exemplar da revista ora em causa. Os seus pronunciamentos estão afectados eufórica ou disforicamente. Anda no ar uma interpretação difusa e confusa do que foi e representou para a literatura moçambicana o surgimento da Revista Literária Charrua e do Movimento do mesmo nome que a suportou. Estas são as razões fundamentais que me levaram a escrever este livro. Aliás, passe a publicidade, a Alcance Editores tem disponível, julgo, o livro Comemorativo dos 30 Anos da Charrua, que comporta todos os números da revista. Quem queira aferir o que digo poderá ter esse ensejo, folheando tal livro.

Felizmente, os fundadores da Charrua, exceptuando Eduardo White, estão ainda entre nós. Igualmente, um número considerável dos seus Colaboradores Permanentes. Isto significa que as fontes para o conhecimento real daquele movimento estão presentes. E porque não me arvoro detentor do conhecimento absoluto, deixo espaço para eventuais rebates ou complementos, pois a verdade mora dentro de cada um dos arautos da grande aventura que foi a Charrua.

Aproveito esta deixa, para encorajar os escritores mais antigos, consagrados ou não, a olharem para trás e se recordarem do seu penoso começo, para poderem facilitar, hoje, o surgimento de novos escritores, sobretudo os mais jovens. Ajudá-los a realizar os seus sonhos, nesta área! Isso não tirará o seu prestígio, pelo contrário, granjeará respeito e admiração. Temos que ser pilares e não obstáculos. Tem de haver uma espécie de osmose entre o velho e o novo para que a dialectica literária se vá cumprindo, suave e progressivamente.

Talvez seja uma mania minha, mas acho bonito e expressivo, um quadro em que escritores, antigos e novos se mesclem na construção de um conceito novo e coeso de literatura, capaz de espantar o mundo pela sua maturidade.

Dói muito ouvir interpretações erróneas, muitas vezes com intenção, sobre um projecto feito com convicção e sacrifício, tornado obra real e consistente, a ser arrastado na sargeta, quando tem frutos hoje palpáveis! Muitos dizem: “nós não somos produto da Charrua”… na verdade, aparentemente não são, mas a matriz que marca a sua introdução na literatura tem o condão pioneiro da Charrua. Têm essa incontornável origem, que marcou a transformação, o desvio do padrão da literatura moçambicana, baseado na resistência ao colonialismo e na luta armada de libertação nacional.

Chegado aqui, expresso o meu mais profundo sentimento de gratidão aos apresentadores da parte lúdica deste lançamento: (Roberto Chitsondzo, Iracema de Sousa e Mabjeca Tingana); ao Tomás Vieira Mário, pelo depoimento; aos professores de literatura: Aurélio Cuna e Lucílio Manjate. O primeiro por me ter ajudado na revisão inicial da obra, acto complementado, mais tarde, pelo poeta e confrade Ricardo Santos, e o segundo, também meu confrade Lucílio Manjate, pela sábia apresentação acabada de fazer. Aliás, Lucílio Manjate é, academicamente autoridade do assunto que por meio deste livro trago à reflexão. Ele, em algum momento estudou com profundidade esta matéria.

Reitero os meus agradecimentos a todos vós por estarem aqui, estendendo este reconhecimento ao Centro Cultural Português pela sua já acostumada hospitalidade, por me ter cedido este maravilhoso espaço; à AEMO, representada pelo Professor Luís Cezerilo, por ter sido a base do Movimento e da Revista Charrua e por ainda me considerar um dos seus destacados membros; à Alcance Editores, pela sua verticalidade e por, ao longo de 16 anos de actividade aceitar-me, ainda, como um dos seus autores de preferência, na senda do engrandecimento da literatura moçambicana.

E a fechar, como se estivesse a começar, agradeço à minha família alargada, especialmente, à minha mulher, Ana Maria e aos nossos filhos e netas.

 

Maputo, 23 de Junho de 2022

 

*Intervenção na cerimónia de lançamento do livro Geração Charrua: uma juventude literata ao ritmo do seu tempo, 1983 – 1986, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

“A África que o mundo necessita é um continente capaz de ficar de pé, de andar com seus próprios pés. É uma África consciente do seu próprio passado e capaz de continuar reinvestindo este passado no seu presente e seu futuro.” 

 

Joseph Ki-Zerbo

 

Joseph Ki-Zerbo, que nasceu a 21 de Junho de 1922, em Toma, no Burkina Faso, há precisamente 100 anos, é, indubitavelmente, o mais importante autor da História de África e um dos mais proeminentes intelectuais africanos. Era lendária a sua verve, a sua transbordante retórica e as suas inesquecíveis alegorias. Mas isso não o afastava do rigor científico no seu mister. Antes pelo contrário. O seu empenhamento político não estorvava a cientificidade dos seus trabalhos, que são fundadores da historiografia africana. Foi um dos primeiros africanos de grande craveira a refutar a ideia de que o continente não tinha história nem cultura.

A sua “Histoire de I´Afrique Noire” (Paris, Hatier, 1972) é um livro cardinal. Este livro, que foi sucessivamente actualizado, teria uma tradução em português em dois volumes: “História da África Negra”. Ki-Zerbo estudou inicialmente em Bamako, no Mali, onde ganhou uma bolsa para frequentar a universidade em Paris, tendo-se formado na Sorbonne com distinção. Nos anos 50 encontra-se de volta ao continente de nascimento, contudo instala-se em Dakar, no Senegal, onde cria o Movimento de Libertação Nacional. Este foi essencial para o apoio dos movimentos libertários da África Ocidental. Tem depois uma longa e brilhante trajectória, que se reparte entre a sua demanda política e a sua curial incursão intelectual.

África tem hoje poucos nomes deste quilate, com um porte intelectual desta envergadura e acuidade, no entanto não nos sabemos rever em figuras como Joseph Ki-Zerbo. Onde estão os nossos pontos cardeais? As nossas universidades parecem mais taludes para tirocínios políticos e menos centros de estudos e de investigação. Não são capazes de abordar cientificamente estes intelectuais ou o seu marcante trabalho. Por isso, não se fala, entre nós, de Joseph Ki-Zerbo. Não se aperceberam os pressurosos intendentes da nossa academia deste centenário? Subscrevemos o anátema da desmemória. Somos contumazes no esquecimento, no olvido, no descaso e no vazio.

No entanto, aqui está um dos esteios do pan-africanismo, um dos homens que conceptualizou primordialmente a independência de África e dos africanos com um modelo de pensamento que se confrontava acirradamente com os preceitos coloniais e colonialistas. A matriz do seu pensamento radicava na necessidade de se observarem os processos históricos (eu diria até ontológicos) endógenos na idealização do desenvolvimento africano. Este espantoso intelectual preceituava, ainda, ou sobretudo, a união dos países e dos povos africanos.

“História da África Negra” aborda a evolução do continente africano desde a pré-história ao século XX. África era até então vista como um continente sem história. Joseph Ki-Zerbo desmentiu essa ominosa lenda num trabalho ciclópico e notável, com rigor científico irrefutável, que nos revela períodos que vão desde o esplendor à decadência de reinos e impérios, aos primeiros contactos com os europeus e a influência destes no devir do continente. Por outro lado, o autor escalpeliza os eventos que ao longo dos séculos dominaram África: os séculos, os conflitos, a pilhagem a que foi exposta, o dissídio dos que não se conformavam com a situação, a emergência das suas grandes figuras emancipadoras, sobretudo os pan-africanistas, o despertar do continente, os movimentos independentistas e, posteriormente, as independências e o seu tempo ulterior.

Joseph Ki-Zerbo, que morreu em Ouagadougou, a 4 de Dezembro de 2006, foi também um animal político obstinado, mas a sua longa e virtuosa vida foi dedicada sobretudo à investigação, à história e à escrita. Também se lhe reconhece um papel decisivo na direcção da “História Geral de África” da UNESCO. Seria distinguido no continente e fora dele, agraciado com muitas láureas e merecedor de insígnias. Por aqui, a despeito do nome na nossa toponímia, ignoramo-lo com a nossa proverbial soberba: incapazes de o estudar, de meditar sobre o que pensou e escreveu – o que poderia ser importante para discernir o presente e prospectar o porvir. Mas nós acreditamos nos prodígios da insciência, tal a nossa presunção. Talvez não nos devamos queixar. Quanto a mim, reputo e exulto africanos como este. Pelo entendimento que estabeleceu, pelo pensamento que estruturou, pela lucidez da sua abordagem, pela sua eloquência, pelo discernimento de África e pelas referências que deixou, pela sua imensa sabedoria, pela erudição e pela ampla e ilustrada cultura, pela sua mestria libertadora. Pelo passado, mas sobretudo pelo presente e futuro de África.

 

 KaMpfumo, 21 de Junho de 2022

Mamã, Eu Vou

A cidade da Maxixe despontava com o vigor de sempre, como se o pulsar da vida tivesse sido meticulosamente sincronizado com o romper do dia.

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