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NOÉMIA DE SOUSA

Num belíssimo, raro e derradeiro poema, Noémia de Sousa, que escrevera o essencial da sua obra poética entre os finais da década de 40 e os inícios da subsequente, terminava com uma premonição: “os espíritos ancestrais me esperam”. O epílogo da sua vida dar-se-ia a 4 de Dezembro de 2002, aos 76 anos, passam hoje 20 anos. Para muitos de nós, que a acompanhamos ao longo dos anos e que a amamos sem tréguas, foi um duro golpe, não obstante a ciência que tínhamos da sua saúde, que se precarizara com o tempo. Custou aceitar que ela chegara, por fim, à fala “com a voz do nyanga”. Tínhamos, porém, o consolo de termos editado, um ano antes, o seu arrebatado e arrebatador “Sangue Negro” (2001), que permanecera inédito durante 50 anos.

 

Carolina Noémia Abranches de Sousa nascera a 20 de Setembro de 1926 na Catembe: “Quando eu nasci na grande casa à beira-mar / era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico. / Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul. / Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda / arrastando as redes pejadas”. Quando em Janeiro de 1990, num remoto inverno em Lisboa, a entrevistei, para o livro “Os habitantes da memória”, ela falava-me de uma infância feliz: “Penso que a infância é sempre marcante. É para nós uma espécie de paraíso perdido. Depois, tive uma infância extraordinariamente feliz. Talvez por isso me lembre muito dela. Era uma vida livre e cheia de aventuras porque não havia quintais, fronteiras, limites”.

 

Poema da Infância Distante”: “meninos negros e mulatos, brancos e indianos, / filhos da mainata, do padeiro, / do negro do bote, do carpinteiro, / vindos da miséria do Guachene / ou das casas de madeira dos pescadores. / Meninos mimados do posto, / meninos frescalhotes dos guardas-fiscais da Esquadrilha / – irmanados todos na aventura sempre nova / dos assaltos aos cajueiros das machambas, / no segredo das maçalas mais doces, / companheiros na inquieta sensação do mistério da “Ilha dos navios perdidos” / – onde nenhum brado fica sem eco”.

 

Noémia de Sousa: “A esta distância, quando me veem dizer que dizer o que eu queria dizer com o “Poema da infância distante”, eu penso, mesmo inconscientemente, que no fim queria falar de Moçambique. A casa à beira-mar era Moçambique. Outra coisa: por causa das circunstâncias, como não podia dizer Moçambique, quando digo “África” quero dizer “Moçambique””.

Viveu na mítica casa até aos seis anos. Lembrava-se de, aos quatro anos, aprender a ler, através da “Cartilha Maternal”, de João de Deus. Foi o pai quem a ensinou a ler, antes de saber redigir. Começou a escrever cedo, desde miúda. Fazia jornais com os irmãos, sobretudo com Nuno (Abranches de Sousa), que lhe era mais próximo, pela idade e cumplicidade. Lia muito. Lia tudo: desde Eça de Queirós a Guerra Junqueiro. Lia revistas. Publicações estrangeiras. O pai era um leitor omnívoro e um homem dado às artes, à música, à fotografia. A pequena Carolina frequentava, inquieta, o escritório de casa do pai. À volta dos livros e das revistas. Sempre com perguntas.

Eram seis irmãos, os mais velhos, Paulo e Camila, cedo foram enviados para Portugal para estudar. A ideia era fazer o mesmo com os que se seguiam. Mas a mãe, que não suportava estar apartada das crianças, impediu que o projecto paterno tivesse seguimento. Carolina conhecia os irmãos mais velhos através da correspondência que mantinham. Entretanto, aos 8 anos, ela perde o pai e o futuro que este sonhara. Estuda na Escola Técnica, área comercial. Não obstante, o seu obstinado amor pelos livros prossegue. Começa a trabalhar cedo.

Da parte materna era oriunda de um cruzamento entre sangue alemão (Brüheim) – de caçadores e negociantes alemães (Paulo e Max), que se aliaram aos chefes locais da região de Maputo e desposaram as suas filhas. Do lado paterno, sangue português, indiano e macua. O pai nascera na Ilha de Moçambique. A mãe vestia capulana. Quando casou, o que aconteceu muito tarde, com os filhos nascidos, deixou de a usar, por força dos ditames da época, que impediam que a mulher de um alto funcionário da Administração exibisse tal indumentária. O pai não queria que a sua mulher, que era muito mais nova, ficasse desprotegida caso ele morresse. Noémia e os irmãos assistem ao casamento.

De uma geração de seis, Noémia é próxima de Nuno: fazem jornais, conversam até à madrugada, numa época em que se recolhia cedo, partilham amigos. Antero, amigo do seu irmão Nuno, estava num grupo de jovens que se agregavam à volta do jornal da Mocidade Portuguesa, queriam subverter a publicação – disseram-lhe – e pedem-lhe colaboração. Noémia escreve o “Poema ao meu irmão negro”. Embora assinasse Carolina Abranches à época, nas suas colaborações de “O Brado Africano”, o texto literário haveria de levar as iniciais N.S. O poema criou evidente alvoroço. À época ninguém escrevia com aquela desenvoltura, aquele tipo de poesia. José Craveirinha, que lhe mostrara sonetos, que praticava, ainda desconfiou tratar-se de uma criação Nuno Abranches de Sousa. Estávamos nos finais dos anos 40. O grupo dos ruis (Knopfli, Guerra e Guedes), que se agregariam à volta do “Itinerário”, também ficaram espicaçados. Quem seria N.S.?

Seria, no entanto, a reacção de espanto, de Augusto dos Santos Abranches, a um poema publicado em “O Brado Africano”, igualmente assinado N.S., intitulado “Poesia, não venhas”, que iria, nas palavras da autora, salvar-lhe do anonimato futuro. Inicialmente, Augusto dos Santos Abranches pensara tratar-se de um plágio, mas depois concluirá ser um texto autêntico. Pareceu-lhe espantoso. Disse-me Noémia de Sousa anos mais tarde: “Se não tivesse surgido um Augusto dos Santos Abranches a chamar atenção para o meu nome talvez ele permanecesse desconhecido até hoje”.

Augusto dos Santos Abranches, que dirigira em Coimbra a famosa Portugália Editora, não terá influência sobre a jovem intrépida, como enganosamente alguns críticos irão referir futuramente. Foi, contudo, uma personagem importante no pequeno meio da velha cidade colonial. Trabalhou na Minerva, coordenou páginas literárias (“Sulco”), esteve na última fase do “Itinerário”. Foi influente para os jovens que então surgiam. Quem exerce influência sobre Noémia de Sousa e, de certo modo, algum magistério, é Cassiano Caldas, funcionário dos Caminhos de Ferro e intelectual ligado ao “Itinerário”. Sobretudo iniciando os jovens da sua época na leitura dos neo-realistas, dando-lhes a conhecer a revista “Vértice” (onde haveria de ler e conhecer a poesia de Nicolás Guillén) ou a ler os livros de Jorge Amado, como “Jubiabá”.  Noémia já tinha lido, entretanto, os negros americanos. Fizera-o através de um embarcadiço que lhe trazia das viagens livros e o eco dos seus convívios com os negros americanos. O Sul dos Estados Unidos e Moçambique pareciam-lhe subscrever alguma similaridade. Sobretudo quanto ao racismo, à discriminação e às desigualdades. Foi dessa realidade, e não da “Negritude” – irá conhecer mais tarde os seus protagonistas e traduzirá o célebre “Discurso sobre o colonialismo”, de Aimé Césaire –, que ela encontrou a força motriz da sua poesia. Foi nessa época que conheceu a história trágica de “Strange fruit”, que estaria na origem de um poema de Lewis Allan (Abel Meeropol) que a mítica Billie Holiday deu voz, a quem dedicará um dos poemas do seu “Sangue Negro”: “e era só melancolia / do princípio ao fim”.

João Mendes, cujo nome consta do frontispício do livro “Sangue Negro”, ao lado do nome de Cassiano Caldas, foi quem estabeleceu a ponte entre ela e os míticos ruis: Knopfli, Guerra e Guedes e a malta que frequentava o Núcleo de Arte. Fonseca Amaral, embora fizesse parte da tertúlia, era um homem ensimesmado. Noémia ia à casa Ruy Guerra na companhia do Ricardo Rangel, e por vezes aos encontros do “Itinerário”. Ela era da ala do “Brado Africano” e da Associação Africana, mas tinha amigos no outro lado da cidade. Alguns estranhavam que ela frequentasse a Escola Técnica e fosse dada às letras.

Nos anos 50, fingindo um encontro inofensivo, no Jardim Paraíso, redigem – José Craveirinha, Noémia de Sousa, Dolores Lopez y Lopez e Ricardo Rangel – um manifesto exigindo a independência de Moçambique.  Estamos ainda longe dos movimentos libertários. Ela tinha já uma actividade política clandestina. Pertencera ao MUD-Juvenil. Colava cartazes e panfletos à noite, sobretudo com João Mendes, que será degredado. Fez parte do grupo de jovens que ajudavam na Associação Africana. Os mais velhos: Cassiano Caldas, Henrique Dahan, Miguel da Mata, Joaquim Soares, entre outros. Na comissão de festas, estava Beatriz Albasini, que viria a casar com Artur Garrido. Hoje conhecemo-la como a Avó Bia. Eram correligionários: Victor Santos (irmão de Marcelino), Nobre de Melo, Amália Ringler, Dolores Lopez y Lopez, Ricardo Rangel, ou filhos dos Dahan.

O surgimento de Noémia de Sousa quebra um marasmo que perdurava desde a morte de Rui de Noronha na poesia moçambicana.  Noronha (1909-1943) tinha sido a grande figura literária nos anos da sua juventude. Augusto dos Santos Abranches: “Moçambique dorme ou mede as suas divagações pela intensidade do luar da noite”. Noémia não conviveu com o poeta, mas lembrava-se de o ver passar em frente da sua casa. Conhecia-o de vista. “Poema para Rui de Noronha”: “Rui de Noronha / nesta nova África de certezas e forças restauradas, / no meio dos “paixões” e das bebedeiras do natal, / vens-me tu, torturado e solitário, / ainda projectado para os fundos abismos do teu eu”.

O mesmo em relação à João Dias. Via-o na rua. Não chegaram à fala. As irmãs Dias, sim, frequentavam a sua casa, eram amigas das suas primas. Lembra-se de as ouvir falar do irmão, que fora muito jovem estudar para Portugal e da esperança que depositavam no filho do celebrado jornalista Estácio Dias. No poema “Godido” escrito à memória de João Dias, diz Noémia de Sousa: “Quando cheguei / trazia no olhar a luz verde dos negros simples / e uma dádiva maravilhosa em cada mão”.

Estes são alguns dos seus predecessores. No emblemático poema “Deixa passar o meu Povo” pode estar inscrita, de algum modo, a chave da sua poesia: “vozes da América remexem-me a alma e os nervos” ou “não poderei deixar-me embalar pela música fútil / das valsas de Strauss”. “Escrevo…/ Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. / Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado / e revoltas, dores, humilhações, / tatuando de negro o virgem papel branco”. O poema que inicia a sua obra poética (“Nossa voz”), dedicado a José Craveirinha: “Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara / sobre o branco egoísmo dos homens / sobre a indiferença assassina de todos”.

A Antero, o amigo do mano Nuno, que lhe pediu aquele poema inicial, dedicará o poema “Se me quiseres conhecer”: “Se me quiseres conhecer, / estuda com os olhos bem de ver / esse pedaço de pau preto / que um desconhecido irmão maconde / de mãos inspiradas / talhou e trabalhou / em terras distantes lá do Norte”. Palavras de pitonisa, voz de sibila. Era já uma mulher consciente do seu papel e sobretudo revoltada.

Francisco Noa: “Divindade maior desta cosmologia é a liberdade ansiada (e ensaiada) e o exercício da palavra como instrumento consciencializador e agonístico. E a expressão arrebatada se, por um lado, subjectiva a expressão poética em Noémia, por outro, confere-lhe uma dimensão majestática e que faz do sujeito rapsodo das dores, dos anseios, da revolta, das resignações e dos mitos dos flagelados irmanados por um destino comum determinado pela ocupação colonial”.

Esta voz rude ímpia, brutal, feroz, selvagem, instintiva, brava, indócil, laboriosa, perseverante surge, na sua ferocidade juvenil, com uma espantosa maturidade. É, ao mesmo tempo, uma voz esplendente, deslumbrante, magnificente. É assombrosa e portentosa. A esta distância, ainda assim, não se consegue atingir a dimensão da sua força telúrica. “Ah, essa sou eu: / órbitras vazias no desespero de possuir a vida, / boca rasgada em feridas de angústia, / mãos enormes, espalmadas”. Esta é uma voz sublime.

Voz indignada, colérica ou enfuriada, contra a resignação, consciência do ser moçambicano, da sua condição, da sociedade injusta, voz insubmissa, intrépida. A voz do grito. Grito negro, mestiço, solitário e solidário. Voz livre e libertária. Voz e condição primeira da “poesia de raiz marcadamente moçambicana”, como avisadamente lhe designou Rui Knopfli, a quem Noémia dedica o poema “Bayete”. Em três anos, entre os 22 e os 25 anos, isto é: entre 1948 e 1951, escreve a poesia que constitui hoje o seu espólio. O nosso espólio. O espólio da moçambicanidade. O espólio da africanidade. Forçada a exilar-se, arrancada da terra e das suas gentes, da sua condição negra e mestiça, não escreve mais, à excepção de dois poemas, um na morte de Samora Machel, arrancado a ferros pelo sobrinho Camilo e aquele no qual acena aos antepassados.

O angolano Mário de Andrade, que fora colega de universidade de Eduardo Mondlane, no ano em que este permanecera em Portugal, a caminho dos Estados Unidos, escreve-lhe sabendo que ela, cansada do cerco da PIDE, se preparava para embarcar para a antiga capital do Império. Uma das causas desse cerco fora um artigo seu, em “O Brado Africano”, relatando a situação de Mondlane, então na África do Sul, a quem o governo de Malan não concedia a prorrogação do visto, impedindo-o de prosseguir os estudos na Universidade de Witwatersrand. Quando se conheceram, mais tarde, falaram das interrogações que haviam sofrido e o facto de não se conhecerem até então.

O Centro de Estudos Africanos, iniciativa que se iria replicar nos países independentes, estava em marcha, na rua Actor Vale, 37, da Tia Andreza, tia da Alda do Espírito Santo. Noémia não assiste às apresentações iniciais de Francisco José Tenreiro (de São Tomé) nem de Amílcar Cabral (da Guiné). Mas irá ter uma activa participação, ajudando sobretudo Mário de Andrade a organizar as sessões que visavam problematizar o futuro dos seus países. Estão ainda na capital portuguesa os jovens nacionalistas africanos. É companheira de Lúcio Lara (será madrinha do seu filho mais velho), Agostinho Neto, Amílcar Cabral, entre outros. Também se reúnem, amiúde, em casa de Francisco José Tenreiro ou no quarto de Mário de Andrade.

Em 1953, Francisco José Tenreiro e Mário de Andrade publicam “Poesia Negra de Expressão Portuguesa”. É a primeira publicação do género que reivindica a “poesia negra”. Noémia colabora com dois poemas: “Magaíça” e “Deixa passar o meu povo”. Já é, seguramente, a mais arrebatadora e arrebatada voz feminina da poesia africana de língua portuguesa. O seu nome começara a construir o mito.

Andrade será um dos primeiros a ir para Paris onde vai trabalhar na “Presence Africaine”. Noémia segue-se-lhe mais tarde. Entretanto, casara e nascera-lhe uma filha, a sua única filha, Gina. O marido Gualter Soares, poeta, oriundo de Moçambique, encontrava-se em Ponta Negra quando recebeu o aviso, em 1964, de que se voltasse a Portugal seria preso. Vai para Paris. Noémia vai ao seu encontro. Leva a filha, de ambos, às costas e é contrabandeada nas fronteiras até chegar a Paris. Marcelino dos Santos consegue-lhe um emprego no Consulado de Marrocos. Só em 1973, em plena primavera marcelista, regressará. Primeiro para a Reuters e, depois, para a ANOP, predecessora da LUSA, onde permaneceria até ao fim.

Em Paris assistira ao Maio de 68. Em Portugal, viverá o 25 de Abril. Ruy Guerra zombaria com carinho da amiga de infância: faltava ela ir para o Brasil para acontecer uma revolução. Não foi convidada para os festejos da Independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975. Os seus antigos companheiros tinham-na proscrito. Disseram-se inverdades sobre a sua estada em Paris. A maledicência de sempre: que estava rica e que se estava nas tintas para Moçambique: baixo, canalha e detestável. Ela visitou Moçambique quando pôde em 1984. Levaria 33 anos para revisitar a terra.

Entretanto, Noémia de Sousa subscrevia a condição de mito. Os seus poemas tornaram-se hinos: “Nossa Voz”, “Se me quiseres conhecer”, “Poema da infância distante”, “Zampungana”, “Moça das docas”, “Sangue negro”. Era lida e admirada não só em Moçambique, mas em todos outros países africanos de língua portuguesa. A sua voz chegara ao Brasil. No seu país de origem, os jovens reivindicavam-na. Esquecida apenas dos palácios.  Aliás, este fenómeno irá continuar ao longo da década 90 e no início do século XXI: a sua poesia é redescoberta pelos jovens, que a proclamam e a conclamam com jubilosa energia. Dizem os seus poemas, declamam os seus versos, reverberam-na. Em 1996, quando faz 70 anos, é-lhe prestada uma homenagem pública.

50 anos sobre a data em que cessara a sua escrita, lançámos, finalmente, o seu livro “Sangue Negro”.  Foi a 20 de Setembro de 2001, no dia dos seus 75 anos. Durante os anos em que convivi com Noémia fui um dos que insistiram para que publicasse em vida o seu legado. Ela anuiria e haveria de me incumbir a responsabilidade de coordenar esta edição. Queria a participação da Fátima Mendonça e do Francisco Noa, que irão assinar os textos ensaísticos que acompanham a obra. Também queria que a chancela fosse da AEMO. Chegámos a cogitar fazer uma co-edição com a Imprensa Nacional-Casa da Moeda em Portugal, mas tal desiderato não se cumpriu. Foi com gáudio que o fizemos. Ela já se encontrava muito debilitada pela doença. Ainda fui, meses depois, na companhia da Fátima Mendonça, visitá-la. Levávamos o livro. Ficámos deprimidos ao vê-la.

Manuel Ferreira fora dos primeiros a tentá-la convencer em publicar “Sangue Negro”. Michel Laban, seu amigo, também não conseguira. Aliás, ele ajudou a recuperar poemas que estavam em falta no caderno da autora. Rui Nogar, Gulamo Khan, Leite de Vasconcelos, Júlio Navarro, Fátima Mendonça, entre outros, tinham-na persuadido ao longo dos anos, debalde. Felizmente e finalmente ela acedera e conseguimos tributar-lhe em vida a nossa veneração, a nossa amizade, a nossa devoção. Inicialmente editado pela AEMO, “Sangue Negro” foi, posteriormente, publicado pela Marimbique e pela brasileira Kapulana. Está em marcha uma edição em francês. Estranhamente não está editada em Portugal.

Para além dos textos que enformavam o seu vetusto caderno, acrescentamos-lhe três textos: um velho poema de 51, um texto que fizera para um filme de Camilo de Sousa e um belíssimo poema que escrevera para um livro de fotografias (“A meu ver”) de Carlos Pinto Coelho. Desafortunadamente, o poema intitulado “A mulher que ri à vida e à morte” haveria de cumprir o seu desígnio a 4 de Dezembro de 2002. Aqui a relembro, nesta evocação hoje, 20 anos depois da sua morte, para que o nome da Noémia de Sousa não subscreva o anátema da desmemória e do descaso.

 

A MULHER QUE RI À VIDA E À MORTE

 

Para lá daquela curva

os espíritos ancestrais me esperam.

 

Breve, muito breve

tomarei o meu lugar entre os antepassados.

 

À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil

as unhas córneas de todos os labores

este invólucro sulcado pela aranha dos dias.

 

Enquanto não falo com a voz do nyanga

cada aurora é uma vitória

saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo.

 

Oyo, oyo, vida!

Para lá daquela curva

os espíritos ancestrais me esperam.

 

NOÉMIA DE SOUSA

 

Kampfumo, 4 de Dezembro de 2022

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