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A noite em que Ubakka deu um KO a Kika Materula

A Kika esqueceu-se completamente de ser Eldevina. Neste sábado à noite, apresentou-se no palco da Sala Grande do Franco-Moçambicano, em Maputo, e, naturalmente, partilhou com o público o que há anos está bem enraizado no seu ADN. Com um ar alegre, a maestrina recebeu vários aplausos do público e lá reagiu com a aquela destreza de artista que sabe o que está a fazer.

Momentos antes, entretanto, Estevão Chissano tinha lá estado na função de maestro. Cumpriu o seu papel até quando o programa permitiu e ainda foi o protagonista de uma bela homenagem a Edilson da Conceição (antigo aluno do Xiquitsi), quando o Coro e a Orquestra Xiquitsi interpretou o tema “Tsama”. Mas como fazer ficar alguém que partiu, de forma prematura, para a eterna viagem?

Depois de “Tsama”, do ronga “senta” ou “fica” em português, Chissano deixou a batuta para aquela que há 10 anos fundou o projecto Xiquitsi.

Destemida, como sempre, até porque a música clássica faz parte da sua personalidade desde muito nova, Kika Materula assumiu a função de maestrina numa fresca noite de Dezembro, em que os astros conspiraram a favor da harmonia musical, entre o clássico e o popular. Há-de ser por isso que o Xiquitsi deu tanto sentido a “Liquirikita” e “Kinachukuro”, de Ali Faque, um músico de outra época, no entanto, ainda actual na memória desta geração…

Na composição de Ali Faque, o macua foi geralmente interpretado num sotaque ronga ou changanizado no Franco. Por isso mesmo, ao invés de “Kinachukuro”, só se ouvia “kina xkuro”, que, numa língua que não existe, quer dizer “dança e canta”.

Bem, a parte da dança não se viu lá grande coisa. Como se sabe, os artistas da música clássica trabalham mais o canto do que o movimento corporal. O mesmo se pode dizer de Ali Faque. O músico cantou e tocou a sua guitarra, mas, dançar que é bom, nada. Claro, nem se exigiu nada além disso. O que importa mesmo é que Ali Faque levou o auditório a uma viagem pelo tempo, em que muitos de nós tínhamos de ligar a televisão pública para podermos ver música de qualidade. Agora as coisas mudaram. Os megas levam-nos até onde não deviam. Mas isso não vem ao caso. Até porque vale a pena falar de Aniano Tamele.

O filho de Zeburani voltou a apresentar-se no Franco. Desta vez, à boleia do Xiquitsi. O músico apresentou-se no palco como que meio envergonhado. Alguns intérpretes são assim mesmo, aparentemente tímidos, quando são humanos, e absolutamente audazes, quando transcendem para dimensão artística. Foi o que se verificou com Aniano Tamele. No entanto, mal segurou o microfone, a delicadeza vocal ecoou aos quatro cantos da Sala Grande e, com isso, até quem não o conhecia, cantou “Nkosikaszi” e o afamado “Tsunela Papai”, uma homenagem ao mostro Zeburani e a todos os pais que têm algum juízo na cabeça.

Com Ali Faque e Aniano Tamele, a noite já estava resolvida. Mas havia muito mais, inclusive um KO que violou todas as regras protocolares. Antes disso, entretanto, o Xiquitsi interpretou o clássico “Dry your tears Africa” – John Williams, numa espécie de interlúdio para o que se seguiria. Na verdade, o assalto à batuta que derrubaria Kika Materula estava prestes a acontecer, sem que a oboísta pudesse prever.

Quando a interpretação do tema “Dry your tears Africa” terminou, Kika Materula apenas disse ao público: “Até já”. E lá foi ao backstage buscar Ubakka. Voltaram de mãos dadas. O cantor todo encabulado, quase sem saber como reagir àqueles bons tratos. Mas é fácil. No caso em que um cantor não sabe como reagir, dá-se um microfone e tudo resolve-se, como se viu.

Ubakka, agora com uns quilitos amais, relativamente ao ano que lançou o seu primeiro EP, lembrou que há uma música bonita nesse disco: “Khoma”, um hino ao amor e aos casais. De repente, na Sala Grande, os rapazes e as raparigas começaram a “khomar-se”, entre abraços e beijinhos. A música clássica, nessa mistura com a popular, estava a aproximar pessoas numa viagem que parecia não ter fim.

Foi então que, já na terceira apresentação musical, Ubakka cantou “Minha ostentação”. A maestrina, nessa altura, claro, era Kika Materula. No meio daquela emoção toda, Ubakka, que sem o Xiquitsi, provavelmente, nunca cantaria com coro e orquestra, viu diante de si uma grande oportunidade. Realizado o sonho de cantar com coro e orquestra, percebeu que a noite poderia ser ainda memorável. “ – E que tal se eu desse um KO na ministra, quer dizer, na maestrina do Xiquitsi?”.

Sem que ninguém percebesse qualquer intenção, Ubakka avançou para sua investida final. Para quem a ostentação era a mulher, os filhos e comida na mesa, exactamente naquele instante, passou a ser a batuta. Então o cantor aproximou-se sorrateiramente à maestrina. Sabendo que ela não iria resistir, tomou a batuta para si e ascendeu para o Olimpo. A partir daquele momento, os 70 membros do Coro e Orquestra Xiquitsi, bem como a banda convidada, passaram a ser comandados por Ubakka. Kika Materula foi destronada na derradeira noite da décima Temporada de Música Clássica. A oboísta nem sequer percebeu como aquilo aconteceu. Mas foi suficientemente ágil para decidir abandonar o palco onde se trava a luta de uma vida. Logo se viu, tinha sido despromovida para espectadora.

Com aquele KO dado a Kika Materula, o Xiquitsi ficou entregue à sorte.

– E agora, quem vai comandar o barco? – Perguntou uma espectadora.

– Esse é de igreja. Vai maestrar com engenharia! – Respondeu a outra.

– Maestrar?! Com engenharia?! – Perguntou um tipo com cara de mal disposto, que até aí tentava pedir o contacto telefónico a uma das míudas. Só que o ensaio foi muito mal feito e o pobre coitado ficou completamente ignorado, sem nenhum Plano B para voltar ao assalto.
“Quem não tem cão, caça com gato”. Diz o ditado. O problema é que o nosso amigo de gato não tem nada. Então, a reacção das meninas foi compreensível. Mas não se perca, caro leitor, que este texto não é sobre meninas e tentativas frustradas…

Voltando ao que interessa, Ubakka cumpriu bem a missão que se propôs. Colocou o coro a cantar “Minha ostentação”, quando convinha, e a orquestra a tocar, quando oportuno. O miúdo é bom e fez aquilo aparentemente de improviso. Tudo fácil. Tão fácil que, quando notou que liderar 70 pessoas no palco soava a pouco, voltou-se para o público. Aí, sim, a ostentação do cantor passou a ser colocar aquelas centenas de pessoas desafinadas a interpretar os coros.

A batuta não lhe pesou em nada. Pelo contrário, tirou tão bem a Kika de cena que a oboísta se habituou a bater palmas. Mas quem tem Ubakka conta com um moço educado. Quando o artista percebeu que tinha realizado o sonho de ser maestro do Xiquitsi e do público, devolveu a batuta a Kina Materula.

A oboísta recebeu o objecto sorrindo, como se dissesse “Agora deves ir até o fim”. Ubakka nem sequer quis interpretar o sorriso. Retirou-se alegre do palco. Sol de pouca dura. No instante seguinte, Kika Materula voltou a chamar o cantor para terminar com aquela coisa da ostentação. Ali Faque e Aniano Tamele seguiram o miúdo e, sempre que possível, todos improvisaram uns passos de dança. Nessa altura, já ninguém se lembrava daquele KO malandro que em muito ajudou a colorir a derradeira noite da décima Temporada de Música Clássica.

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