O País – A verdade como notícia

Não morras sem chorar comigo amanhã…

Por debaixo da ferida rançosa que cobre a cidade, mais do que tudo, salta à vista o medo do perecimento de uma espécie que duvida de sua eternidade autoconcedida. Talvez o silêncio destes tempos, ainda que seja efémero, cure os cancros de um planeta adoecido por excessos. Mais funesto que o distanciamento social no qual a cidade vive é demasiado doloroso o isolamento afectivo.

Pequenas gotas de chuva vão regando o fim de tarde de uma Primavera gelada e silenciada pela pandemia. As ruas estão vazias e um céu parcialmente nublado oculta as estrelas zonzas que lutam para dar as caras. Andamos todos num luto imposto; quando é que o luto não é imposto?

Um prédio amarelo continua sendo a única lanterna deste bairro periférico. Tem cinco pisos, cada um com as suas misérias. Um desses pombos que guardam a cidade bate as asas e levanta voo. Quase com o corpo no fim do prédio, o pequerrucho pára numa das janelas do quinto piso e fixa os olhos num miúdo de aproximadamente seis anos que se esforça para ignorar a realidade. O miúdo conduz o seu carro no chão da sala; brinca, mas sem conseguir esconder o semblante triste. O cheiro de cebola a apodrecer, na estante presa à parede da cozinha, vai infestando o fim de tarde.

De repente, um daqueles sons humanos que despertam a atenção de qualquer pessoa invade a sala através da porta do quarto, é um grunhido doloroso. Desde que amanheceu, o estado clínico da mulher que definha nos lençóis floridos da cama se deteriorou. É tão cinzenta a alma de um doente!

Perdeu a noção do tempo que passou desde que está deitada. Nem sequer se lembra que há cinco dias a cabeça foi tomada por fortes dores. Nem sequer se lembra que no meio de um sonho preso em calafrios perguntou-se quantos espíritos tinha no corpo. Nem sequer se lembra da cor creme das paredes que dão luz ao quarto. Não se lembra de nada, apenas grunhe e vê a viagem que se aproxima.   

O miúdo suspende a viagem que faz no chão da sala; pára de conduzir o seu pequeno carro. Ninguém consegue se concentrar por muito tempo com isto tudo a acontecer.  A cada segundo que passa, respirar é um sacrifício para a mulher; o bicho parece ir lhe fodendo os pulmões; ela dá luta, embora os grunhidos que lhe saem por todo o corpo se assemelhem aos de um asmático na última agonia. De vez em quando tudo pára e recomeça com fortes sessões de tosses que lhe deixam com um peito em chamas como o interior de um vulcão. O miúdo levanta-se e apoia-se ao corpo gordo do pai que lhe passa a mão grossa nos seus cabelos escuros. Enquanto duas filas de lágrimas grossas enchem a bagageira do carro, pergunta aos soluços

a mamã vai ficar bem?

O homem tira a mão dos cabelos do miúdo, enxuga as lágrimas que descem lentamente a face e diz

a mamã vai ficar bem, meu filho.

Enquanto o diz, ouve o som da campainha a tocar. São eles, pensa o pai do miúdo. O semblante não engana o seu estado de alma; se mantém altivo, mas está destroçado. Nunca é fácil ver uma pessoa amada a perecer. Se afasta do miúdo e rapidamente vai abrir a porta.

Muitos dos que nos precederam não esqueceram os seus anos de pestes. Poucos de nós apagaremos da memória os pedregulhos deste ano, cujas chamas desafiam a eternidade.

Cinco pessoas que trazem trajes verde brancas que cobrem o corpo inteiro e máscaras brancas que tapam a face entram na casa. O primeiro, sem cerimónias, pergunta onde está a doente. O pai do miúdo aponta para a direcção de onde vem os grunhidos. Três dos quatro homens que acabam de entrar seguem de imediato, com uma maca hospitalar, em direcção ao quarto. O primeiro homem a entrar na casa, o chefe da equipe médica, diz ao pai do miúdo

  vocês tiveram contacto com ela nos últimos dias. Provavelmente estão infectados. Também terão de vir connosco ao hospital.

O pai do miúdo parece que vai dizer alguma coisa, mas apenas deixa cair lágrimas apressadas e corre ao quarto quando ouve uma voz sobressaltada a gritar

ela está inconsciente, doutor Padilha.  

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