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Minerva e Continental – cultura e outros sabores

Nem em todos os amanheceres o sol é aberto. Em certos dias, ele se fecha, tornando-os plúmbeos e cinzentos, com cara de poucos amigos! Em outros, se bem que, a sua presença seja jubilosa, às vezes o abandonamos no terreiro e procuramos uma sombra que dele nos enchapele! Em outros, ainda, a sua tépida presença no firmamento, deixa-nos maravilhados e desejamos que devagar, devagarinho caminhe para o ocaso, e só lá chegue depois de termos usufruído, com plenitude a sua generosidade! Destes, foi, para mim, o dia em que, o meu, às vezes, aborrecidamente, silencioso telefone repicou, com alguma insistência, já que o seu silêncio reiterado me leva a deixá-lo, bastas vezes, pousado um pouco distante de mim. Já que insistisse no repique da sua breve melodia, deitei-lhe a mão e, surpreso, dei, no visor/ecran, com o nome de um amigo que já não via havia algum tempo. Era o Victor Gonçalves, um dos gestores da livraria MINERVA CENTRAL. Depois dos cumprimentos da praxe, ele foi directo ao assunto, endereçando-me um convite para que, desse uma breve entrevista, de alguns minutos antes da hora da inauguração da MINERVA & CONTINENTAL, aprazada para as 18:00 horas do dia 28 de Novembro de 2019. A referida entrevista seria através da RM, Radio Mocambique, que estaria a fazer uma emissão em directo, no pátio a entrada do novo edifício. Sem delongas perguntei sobre o conteúdo da conversa radiofônica, ao que ele me respondeu que se tratava de, sendo eu uma pessoa dedicada à literatura e conhecedora da cidade de Maputo, saberia, certamente, algo sobre a sua história, particularmente, sobre a Minerva  Central, como centro difusor do livro, e sobre o Continental, das primeiras casas de pasto da capital moçambicana, se não a primeira (com algumas reservas, como se verá mais adiante). Não me fiz de rogado. Aceitei o repto, depois de lhe retorquir que não era tão velho quanto ele imaginava, para saber da história daqueles dois incontornáveis centros culturais e turísticos da capital moçambicana! Fechamos o acordo.

O frenesim começou. Procurei documentar-me, como complemento do que a minha memória retinha, ainda, sobre os dois noivos que se iam casar no princípio da noite do soalheiro dia 28 de Novembro de 2019.  No intervalo que mediava o pedido do meu amigo Victor Goncalves e o dia do evento, o meu telefone retiniu e atendendo a chamada, uma voz feminina identificou-se como mensageira da RM para uma programação daquela emissora, em direito, na inauguração da MINERVA & Continental, a partir das 16:00 horas e que eu era um dos entrevistandos alistados. Informei que já tinha conhecimento de tudo, incluindo que a minha entrevista seria vinte minutos antes da inauguração. 

No dia aprazado, quando me ataviava para iniciar a marcha ao local festivo, uma vez mais, o meu telefone retiniu. Célere, como apenas vira um número desconhecido no visor, atendi e, a mesma voz feminina que num desses dias me ligará, identificando-se, como representando a RM informava-me que, dali a cerca de 10 minutos seria a vez da minha entrevista! Eram 16:20 horas. Eu estava ainda em casa. Estranhei a reprogramação, pois esperava intervir 20 minutos antes das 18:00 horas! Cavalguei o dorso do tempo e me fiz ao átrio do Minerva & Continental, onde cheguei e fui recebido com alguma deferência, pela senhora da RM que me havia contactado, a Dalila Miquidade. Procuramos um canto apropriado, aonde, a dois, fomos alinhavar a entrevista e, quando eram 17:10 horas, ela foi para o ar.

O que se me ofereceu dizer, sobre a primeira pergunta da minha entrevistadora radialista, foi que a Minerva Central foi a primeira papelaria/tipografia/livraria, estabelecida na capital  de Moçambique português – Lourenço Marques, a 14 de Abril de 1908, por J.A. Carvalho, na Rua Consiglieri Pedroso. Portanto, já lá vai mais de um século ou seja: 111 anos de existência. Nos anos que se seguiram à sua implantação, concentrou leitores, escritores  e outros tipos de artistas, pela cultura que emanava da diversidade das suas actividades. O cidadão, nacional, português-moçambicano ou português oriundo da metrópole ou de outras colónias lusas, (todos portugueses, na concepção colonial, sob o flamular da mesma bandeira, verde-rubra, centrada de cinco quinas, ao som da mesma melodia do hino ‘Heróis do Mar’, e o estrangeiro, afeiçoados às letras, com as arraias assentadas em ou de passagem por Lourenço Marques, tinham como polo de atracção, ou um dos seus destinos de lazer ou lúdicos, a Minerva Central. Este costume tornou-se um hábito arreigado das gentes sedentas do saber, que enfeitiçou a capital moçambicana, até aos dias que correm. Desde 1935, ano do lançamento da sua primeira Feira, até 2018, organizou e realizou 82 eventos similares, beneficiando os seus frequentadores assíduos, incluindo-os de palmo-e-meio, e mesmo os que sabendo das exposições venda, mesmo sem serem frequentadores do lugar, para lá se deslocavam, em que este factor de conhecimento universal, ofereceu, para gáudio de todos, valoração reduzida, considerável, em relação aos seus preços reais. Tratava-se de um esteio de conhecimento universal através da leitura e de troca de amizades entre os seus frequentadores, que variavam entre meros leitores e escritores, jornalistas e cultores de outras artes.

Volvidos mais de 40 anos da sua existência, eis que surge o Café e Pastelaria Continental, como uma das primeiras casas de pasto da cidade de Lourenço Marques, numa das esquinas do cruzamento da Avenida D. Luis com a Avenida da República, no primeiro-piso ou Rés-do-chão do prédio Paulino dos Santos Gil, ninho da engenharia, da arquitectura e de outras profissões pensadoras e activas, laurentinas, contando que, do outro lado da Avenida da República, na outra esquina do cruzamento desta, com a Avenida D. Luís, encontrava-se a Pastelaria SCALA, acoplada ao Cine Teatro SCALA, que, segundo alguns antigos conhecedores da cidade, surgiu, por volta dos anos 30 do século XX. Nestes lugares, aglomerava-se a elite da cidade, em retemperadoras cavaqueiras de diversos  níveis, tendo como pretexto o saboroso café e os frescos pastéis de nata e outra ‘bolaria’.

Com o correr do tempo, entre um e outro lugar, do nosso leitmotiv, (Minerva e Continental), a clientela era invariável, deslocando de um para o outro, com uma ligeira passagem pela Praça 7 de Março (actual Praça 25 de Junho), criando, assim, sem se aperceber, o eixo Minerva-Continental. Portanto, uma ligação inconsciente que foi durando o tempo que, galgando o evento da Independência de Moçambique, continuou até aos dias que correm, temperado com o surgimento, aqui e acolá, de similares estabelecimentos, mas mantendo a sua soberba e sóbria existência, a MINERVA, na sua Consiglieri Pedroso e o Continental, na mesma esquina, mas, já, das avenidas Samora Machel e 25 de Setembro, na nova toponímia municipal da cidade de Maputo, antiga Lourenço Marques, ou seja, com a cara lavada depois de acordar da noite colonial.

Percorreram, este eixo, de entre outros, não de irrelevante menção, personalidades como, por exemplo, José Craveirinha, Rui Nogar, Rui Guerra, Rui Nogar, Rui knopffli, Rui Baltazar, Malangatana Valente Gwenya, Ricardo Rangel, só para citar algumas.

‘Nosoutros’ ou seja, eu e alguns da minha geração, conhecemos, sem, no entanto, frequentar, que a idade e o status não o permitiam, ao, por lá e ao largo, perpassarmos, indo, a lazer, à Luna-Parque e ao Circo Mariano, montados, todos os anos, entre os meses de Novembro e Dezembro, período de férias escolares, no terreno baldio, perto dos eucaliptos do pantanal da baixa da cidade, onde hoje é a Feira Popular de Maputo; ou indo aos campos de futebol do Sporting Clube de Lourenço Marques ou do Grupo Desportivo de Lourenço Marques, igualmente, no pantanal eucaliptal da cidade. Aliás, na Minerva Central protagonizávamos, que nem os 'Capitães da Areia' de Jorge Amado, algumas batidas, sobretudo, nas prateleiras de revistas aos quadradinhos e da colecção 'Seis Balas' e, de fininho, sem que ninguém nos surpreendesse, fazíamo-nos à rua, de regresso aos nossos bairros suburbanos. No Continental era impensável, tamanha ousadia, pelas razões atrás evocadas.

***

Acima de quatro décadas de um namoro secreto, alcovitado, inconscientemente, por gente ávida de outros saberes e sabores, até que alguma alma pensadora, que não propriamente, o Pensador do grande escultor francês Auguste Rodin, achou por bem oficiar, não uma união de facto, mas um casamento entre as duas entidades: MINERVA & CONTINENTAL, onde a cultura e outros sabores se imiscuíssem. O evento, sob a égide da 83ª Feira do Livro, da Minerva Central, aprazada entre os dias 28/11 e 15/12, aconteceu no dia 28 de Novembro de 2019, perante o testemunho de quem se dignou corresponder ao convite público para a grande festa, num rol encimado por respeitadas personalidades políticas e artísticas  do universo nacional e não só. Naquela data, nasceu na cidade capital moçambicana um novo conceito, alinhado às práticas mundiais culturais atuais, onde a palavra de ordem é a globalização, em que não só os povos se cruzam e se fundem, na aldeia global, mais ou menos nos mesmos pensamento e acção, mas, também, nos modos de fazer as coisas, esperando-se que a iniciativa ganhe vigor para se replicar noutras paragens desta Pérolas Índico.

Na Minerva & Continental, entrelaçam-se a escrita, a leitura, a conversa, a gastronomia, em volta da Cultura e outros sabores. E, também, a avidez dos mais pequenos e do adultos, a tentarem deslindar o conhecimento, por entre os, ou dentro dos livros que pejam as preteleiras.

Mais do que o que sei sobre os casados de fresco: Minerva e Continental, não tenho, na minha caixa memorial.

 

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