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Entre a Gigi e os “Espíritos quânticos”*

Toda existência humana é uma vida em busca de uma narrativa.

in Narrativa, Richard Kearney

 

Um dia desses, a Gigi, para vocês Virgília Ferrão, ligou-me a convidar para apresentar o livro Espíritos quânticos: uma jornada por histórias de África em ficção especulativa. Nessa altura, eu já havia escrito dois textos sobre a antologia de contos que reúne 30 autores do nosso continente. Um desses textos deverá ser publicado em breve por uma revista europeia. Então, não me interessava nada voltar a preparar um discurso ou o que quer que seja para uma sessão de apresentação de livro. Por isso mesmo, mal a Gigi terminou de falar, como que a recusar o convite gentilmente, eu rematei.

– Gigi, com os textos que já escrevi fiquei tão envolvido que não me resta mais nada a dizer sobre o livro.

A frase foi dita num ápice, convicto de que a nossa querida escritora seria condescendente, libertando-me, portanto, da missão a que me confiava. Enganei-me. Ao invés de um está bem ou compreendo, veio a sentença.

Ó, Zé, deixa-te disso. Tens de ser tu a apresentar o livro e pronto.

Aquele pronto soou-me como um full stop, um não se fala mais nisso. No entanto, teimoso como sou e determinado a não apresentar esses rebeldes Espíritos quânticos ao público, insisti.

Gigi, isso é mesmo a sério. Não me ocorre dizer mais nada sobre o teu… Nem me permitiu terminar a frase. Para problemas locais, soluções locais. Deve ter sido isso o que ela pensou quando agravou o tom de voz e perguntou-me.

Zé, sabes por que marquei a cerimónia de apresentação do livro para 1 de Abril?

Bem, eu disse que não sabia. E ela:

Vá lá, Zé, por que será?

– 1 de Abril é o Dia da Mentira.

Nem mais. Então, já que estás bloqueado, aproveita a efeméride e vá à Fundação Fernando Leite dizer qualquer coisa que te ocorrer no momento, tipo umas mentirinhas.

A Gigi, essa mulher gira, educada, simpática e sincera, que há poucos minutos esteve aqui a falar-vos, sugerir-me ir à Fundação Fernando Leite Couto dizer umas mentirinhas, tudo em prol da literatura?! Espantei-me, mas, bem antes de expressar essa surpresa, a nossa escritora prosseguiu.

Zé, não te preocupes com isso. Nós, os escritores, passamos a vida a mentir. É normal nos nossos livros. O poeta é um mentiroso!

– Gigi, Pessoa fala de fingimento, e não de mentira.

– É mesma coisa. Mentir ou fingir, nesta ligação, é tudo farinha do mesmo saco.

Escusado é dizer-vos que ali não havia sacos nenhuns e muito menos farinha. Havia, sim, uma ordem disfarçada em convite. Sentindo-me sem alternativas, comprometi-me em dizer mais alguma coisa sobre o livro.

Ao fim de uma semana, recebi um cartaz pronto, que, de facto, referia que eu seria o apresentador de Espíritos quânticos. Não me convencendo, e sabendo que não valeria nada ligar à Gigi, peguei no meu telemóvel e liguei a uma outra personagem: o Muianga, o Celso Muianga, meus senhores. Desta vez, o editor foi bem simpático comigo e não me colocou entre a espada e a parede como é habitual. Então, aproveitando a boa-maré, convenci-lhe de que uma sessão tradicional de apresentação de livro não iria funcionar. O editor deixou-me a falar “sozinho” uns sete minutos.

Maré baixa. Pensei, interrompendo a minha tentativa de o convencer.

De repente, ouvi um procede. Até porque aqui na Fundação estamos a desconstruir esse formato tradicional de apresentação de livro. Faremos como sugeres.

É com este apadrinhamento do Celso, e não desobedecendo a Gigi, que cá estou a dizer estas coisas que, habitualmente, não se dizem numa cerimónia de apresentação de livro.

Contudo, eu não me vou concentrar nesta antologia. Mais do que dizer de que se trata o livro, a mim interessa partilhar experiências que revivi ao ler Espíritos quânticos. A primeira tem a ver com o conceito de fantástico, segundo Tzvetan Todorov, a hesitação entre o estranho e o maravilhoso. Ou seja, se, diante de uma situação particular, aparentemente sobrenatural, a personagem ou o leitor, depois de hesitar, decidir que as leis do seu universo não ficam beliscadas com essa mesma situação, está-se diante do estranho. Contudo, se o leitor (ou mesmo a personagem), no mesmo tipo de ocorrência, entender que as leis da natureza foram violadas, ascendendo-se, por isso, para uma explicação sobrenatural, o evento leva-nos ao maravilhoso.

A noção de experiência fantástica que me coube recuperar ao ler Espíritos quânticos levou-me a recuar no tempo, como se procurasse, nas gavetas da minha memória, um exemplo condizente. O ano que me apareceu, com efeito, foi 2008. Nessa altura, eu fui trabalhar para Namadende, uma localidade a uns 35 quilómetros da Vila de Furancungo, no Distrito de Macanga, no Norte da Província de Tete. Em Tete tive dois anos incríveis e considero que lá me fiz homem. Quem conversa comigo cinco minutos sabe muito bem do afecto que tenho por Tete e pelas circunstâncias inerentes à província. Vocês estão a ouvir-me há cinco minutos. Então, também já sabem disso. Em termos profissionais e pessoais, lá realizei-me, de alguma forma, mas essa é uma história para outros capítulos.

O que eu quero que vocês saibam é que eu fui a Tete para dar aulas, depois de me formar no IMAP de Chibututuine – Manhiça. No fim do meu primeiro ano de trabalho, mais ou menos em Novembro de 2008, activei uma mina e explodiu. Reparem, não se trata de nenhuma desses engenhos que devem estar a pensar. A mina que pisei e explodiu, segundo me explicaram os meus amigos e colegas, era uma droga, mas nada dessas coisas que se injecta ou que se inala. A droga é uma forma de dizer feitiço.

Dos Remédios, tu passaste por algum sítio onde montaram uma mina. Como não era para ti, os efeitos são esses, secundários.

– Como tu sabes disso, quer dizer, como tu sabes que o feitiço não era para mim?

– Se fosse para ti, não estarias aqui a conversar comigo.

Os efeitos secundários a que o meu amigo se referia eram graves inchaços nos pés. Os meus pés incharam tanto que nem podia calçar sapatos ou sandálias. Chinelos, apenas um certo tipo. Pior, os meus movimentos ficaram condicionados e de um dia para o outro deixei de ser aquele apfundzisi (do chichewa, professor em português) ágil a jogar futebol.

Diante daquela situação toda, em que realmente houve muita hesitação em relação ao que acreditar, se eu decidisse que tudo aquilo tinha uma explicação natural, estaria a activar o estranho. Se optasse pela ideia de forças transcendentes ou feitiço, o maravilhoso seria a palavra de ordem.

Esta minha experiência real, que não vos conto como terminou de propósito, tem muito a ver com o tipo de confronto que nos é imposto durante a leitura de Espíritos quânticos. O livro organizado pela Gigi, repito, Virgília Ferrão para vocês, traz-nos histórias que desafiam as nossas crenças e o que deixamos de acreditar. Não só se trata de uma bela antologia. Aqui, igualmente, temos um conjunto de textos que questionam a nossa linha de horizonte. O fantástico ou o que se pode julgar isso ser é, na verdade, um pretexto para encontrar nas coisas simples e/ou complexas uma forma de sairmos do lugar confortável onde eventualmente nos encontramos para atingir a transversalidade e a imprevisibilidade do que é capaz o espírito humano. Há um universo que os escritores publicados nesta antologia enxergam. E, ao experimentarem o que não é possível ao Homem comum, partilham em palavras o que não podem em imagens. Aliás, a palavra é a imagem delicada de uma sensação que se pode confundir com um gesto.

De igual modo, Espíritos quânticos é um convite para juntos partirmos em direcção ao passado da Humanidade em sintonia com o futuro sempre imprevisível. Aqui a narrativa não é apenas confronto de arquétipos, também é acção e contraindicação… A pessoa lê as histórias do livro e, acreditando ou não, torna-se uma outra versão de si, onde cabem a diferença e a incompreensão sem atritos.

Embora o fantástico, naquela perspectiva todoroviana, seja recorrente em Espíritos quânticos, no livro também se encontram propostas de ficção científica, uma área ainda por explorar em Moçambique e nos restantes Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. No caso, esse tipo de histórias serve para nos levar a algum lugar na mesma proporção que trazem de espaços incertos respostas sobre perguntas nunca antes formuladas. “Sonda M – sinais de um homem player”, da Gigi, é um exemplo disso.

Este é um livro que se faz de partículas visíveis e invisíveis; um livro com histórias bem conseguidas. Por isso, o leitor pode se surpreender com o que Mia Couto ainda é capaz de escrever ou render-se: à pena de Marcelo Panguana, ao processo criativo de Bento Baloi, à distinta criatividade de Suleiman Cassamo, à pertinência do texto de Vera Duarte, à originalidade de José Luís Mendonça, ao soberbo Lex Mucache com o seu “O portal de Chinhamapere”, certamente, entre os melhores textos do livro, ou ainda deixar-se envolver com “O perdão de Mwamulambo”, de Agnaldo Bata, e pela exaltação ecológica de Daniel da Costa/Andreia Edna da Silva.

Não pretendi apresentar este livro, o que me cabe dizer de Espíritos quânticos é que é esse lugar incomum, preenchido de histórias que nos despertam para outras possibilidades sobre o mundo e sobre a maneira como nos concebemos: interiormente e publicamente.

 

*Intervenção feita na apresentação do livro Espíritos quânticos: uma jornada por histórias de África em ficção especulativa, organizado por Virgília Ferrão, no dia 1 de Abril de 2022, na Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo. Texto escrito de cor.

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