Boa noite a todos.
Começo esta minha intervenção com uma confissão: nunca estive numa sessão pública como esta na companhia de um engenheiro. Então, quando há umas semanas o meu amigo Celso Muianga convidou-me a apresentar o livro Aqui há ópera?, de Álvaro Carmo Vaz, imediatamente, disse-lhe que não, que não estava à altura de cumprir esse papel de apresentador. Afinal, o que eu poderia dizer sobre o livro de um homem com tanta história, um engenheiro, um professor catedrático e com uma carreira de 50 anos na universidade? Reparem, só o tempo em que Álvaro Carmo Vaz dedicou-se à academia é bem superior à minha idade. Por isso recusei o convite sem hesitação. Mas o Celso, inabalável, insistiu dizendo que já estava tudo combinado com Carmo Vaz e que tinha de ser mesmo eu a apresentar a obra literária. E sendo um bom amigo, o Celso ainda acrescentou:
– San José, não te preocupes com nada disso. A pior coisa que te pode acontecer durante a apresentação do livro é meteres água. Se isso acontecer, não te preocupes na mesma, porque água é a especialidade de Álvaro Carmo Vaz.
Bem, se vocês não sabiam, Álvaro Carmo Vaz é engenheiro civil de formação, tendo Hidrologia e Gestão de Recursos Hídricos como área de especialidade. E o Celso continuou com excelentes sugestões, como se pode notar:
– O que tens de fazer é ver aí algumas notícias sobre as inundações em Boane e na periferia de Maputo. Se fizeres isso, logo estarás preparado para ler e apresentar o livro do engenheiro Vaz.
Vendo as coisas na perspectiva do Celso, de facto, tudo pareceu-me fácil. Até porque como eu trabalho numa redacção, acompanhar as notícias não seria propriamente algo novo. Então aceitei o convite de apresentar o livro de Álvaro Carmo Vaz, que, para o meu azar, não trata de inundações, de água ou algo do género. Mas, quando me apercebi disso, já era tarde para desfazer o compromisso. Por isso mesmo, cá estou na Fundação Fernando Leite Couto para vos apresentar uma história de amor entre Pedro e Guida, uma história de amor a uma ideia de território, a uma crença e à condição de ser moçambicano. Se alguma coisa correr mal, já sabem, a culpa é do Celso Muianga.
Ora, sendo Aqui há ópera? um conjunto de histórias com Pedro e Guida no centro dos eventos nucleares, na verdade, as duas personagens funcionam como pretexto para nos conduzir a uma viagem ao passado, recuperando-se, com isso, cerca de 60 anos de História referente ao espaço moçambicano. É uma viagem prazerosa, bem estruturada e, às vezes, vertiginosa, pois, nestas “histórias daqui e dali”, conforme assume o nosso autor, o que não faltam são temas graves, porém pertinentes sobre o projecto nação moçambicana.
Aqui há ópera? É um livro com histórias irmanadas. Só não temos aqui um romance porque o autor não quis. Diria, Álvaro Carmo Vaz até desestrutura essa noção dos géneros, talvez, para subverter as teorias literárias. Ao invés de romance, aqui traz narrativas que atravessam o período colonial, a transição para independência e os eventos subsequentes. Na profundidade e no alcance da ficção, os nossos narradores apresentam-nos discursos bem cuidados, convincentes e, lá está, a comprovar que Álvaro Carmo Vaz é um escritor há décadas, embora só nos últimos anos tenha começado a publicar em livro. O seu rigor narrativo, por exemplo, coloca este Aqui há ópera? ao nível e numa relação intertextual com tantos outros bons romances publicados em Moçambique e no estrangeiro. Estou a pensar num Tchova, Tchova, de Eduardo Paixão; Raízes do ódio ou As Raízes do ódio, de Guilherme de Melo; Ku Femba, de João Salva-Rey; Crónica da Rua 503.2 e Museu da Revolução, de João Paulo Borges Coelho; Tornado, de Teresa Noronha; ou A geração da utopia, do escritor angolano Pepetela.
À semelhança desses romances, Aqui há ópera? explora com êxito o registo paisagístico de uma época, de um lugar e de várias circunstâncias. Para os que viveram o período colonial e a seguir a independência nacional, com efeito, aqui encontrarão uma fronteira verdadeiramente ténue entre a realidade e a ficção. Sem soubermos que estas “histórias daqui e dali” são fictícias, somos capazes de julgar serem reais, pela originalidade e verosimilhança. Acrescido a isso, é bom de ler este livro de Carmo Vaz pelo tom engraçado convocado pelas personagens e pelo narrador. Quem tiver a primeira edição do livro, pode comprovar o que digo no primeiro parágrafo da página 21, numa passagem em que a velha Delfina não se farta de inventar argumentos sobre como gostaria de estar arrumada logo a seguir à morte:
A avó Delfina, que nem sequer era muito velha, tinha uma obsessão pelo que lhe aconteceria quando morresse, queria aparecer bem arranjada no caixão. Fartava-se de fazer recomendações à Aurora sobre o que ela devia fazer caso morresse à noite, durante o sono. As recomendações eram particularmente insistentes no que tocava ao vestido que lhe devia vestir, já muito preparado, como é que as mãos deviam ficar cruzadas em atitude piedosa e com o rosário nelas entrelaçado. Semana sim, semana não, lá estava a avó a repetir as instruções à Aurora, que se ria. Até que um dia, a Aurora fartou-se da conversa e respondeu:
– Mã Delfina, ouça. Para não ter de estar sempre a dizer essas coisas sem ter a certeza que não vou esquecer, é melhor fazer o seguinte: à noite, em vez de usar a sua camisa de dormir, use esse vestido, agarre no rosário e cruze as mãos. Assim, se morrer durante o sono, já está preparada como quer, só temos de a meter no caixão.
Durante uns tempos, a avó Delfina desistiu de dar instruções à Aurora.
Bem a calhar, esta passagem reflecte um dos registos narrativos de Álvaro Carmo Vaz: o tom engraçado, importante para tornar o campo da ficção algo igualmente animado. É assim… As personagens de Aqui há ópera? divertem-se e divertem-nos como se calculassem as nossas as reacções. Na seguinte passagem da página 107, num momento difícil do relacionamento, em que Pedro escolhe ficar em Moçambique para acompanhar e contribuir para a independência nacional do país, Guida prefere ir-se embora para Portugal. Quando lá chega, tem de explicar aos pais que as coisas não vão nada bem na relação com o namorado:
– O Pedro queria que eu fosse viver em Lourenço Marques, disse que Moçambique ia ser um país maravilhoso, que daqui a uns anos saíamos juntos para doutoramento. Mas ele está com a cabeça tão virada que, se a Frelimo achar que é melhor ele ir cultivar batatas num cu de Judas qualquer, ele deixa de dar aulas e a investigação na universidade, abana a cauda, todo contente, e vai plantar batatas.
Na escrita de Álvaro Carmo Vaz, o tom hilariante ajuda desmanchar alguma previsibilidade no acto de ler. O leitor, regulamente, nunca sabe de todo o que lhe espera. Pelo contrário, os ciclos do enredo tanto nos conduzem a uma direcção auspiciosa quanto nos podem meter em episódios dramáticos. Tudo é feito ao pormenor, com rigor técnico e discursivo como se exige a uma boa narrativa. Carmo Vaz sabe contar, de forma pausada, convincente e até didáctica. Há-de ser por essas qualidades discursivas que o escritor não deixa escapar nada relevante à fundamentação narrativa. Quando usa um verso, uma expressão invulgar, um título ou um substantivo particular sem possibilidade de ser esclarecido no texto, o nosso autor leva-nos à secção das notas, onde crescemos e aprendemos.
Álvaro Carmo Vaz é um mestre da descrição: do tempo, do espaço, enquanto categoria narrativa ou ponto de referência concreta, das circunstâncias sociopolíticas ou das personagens. Aliás, em Aqui há ópera? os narradores não introduzem uma nova personagem sem darem atenção à descrição. Vejamos, por exemplo, o segundo período da página 69:
Lena era vistosa, tinha o cabelo negro de azeviche, cortado curto à moda dos rapazes, corpo atraente, tinha a tez morena, daquele bronze dourado que algumas raparigas adquiriam após férias na praia e que nela era natural.
Conforme revela a passagem, a descrição da personagem faz parte do processo literário do autor de que muito depende uma narrativa envolvente e comovente. Em alguns casos, a narração também é interventiva e crítica. Afinal, contar também é pensar a realidade circundante. Logo, conhecendo o seu país como ninguém, Álvaro Carmo Vaz leva à sua ficção situações, para quem vive em Moçambique, infelizmente, normalizadas. A seguir, leio-vos uma passagem referente a um político burro, tão burro que, ao invés de quatro, tem oito patas. A personagem em causa foi confiada a uma função importante apenas por ser sobrinho de um antigo combatente de luta armada. O político burro chama-se Anacleto e não sabe tomar nenhuma decisão inteligente sozinho. Já o tio influente chama-se Jonas. Para os que gostam de política, podem abrir a página 237. Os que não gostam, podem abrir a página dois… três… sete.
Logo que terminou o curso, Jonas garantiu a sua colocação como administrador de distrito. E Anacleto começou a aperceber-se dos benefícios da sua posição: mandava, todos lhe faziam vénias e tinha um secretário que era quem, de facto, tratava da papelada e lhe dizia como resolver qualquer problema. Jonas tinha-lhe dito: Preocupa-te em organizar bem a visita de qualquer dirigente superior, cuida em fazer um bom discurso, com os elogios aos dirigentes máximos, tens de garantir que está tudo tranquilo nas localidades. Anacleto cumpria as instruções à risca, a vida corria-lhe bem, ia prosperando, adquirindo a barriga própria de um dirigente de sucesso.
Mas contra a burrice, há poucos argumentos. A certa altura da história, Anacleto comete uns disparates e é afastado do cargo. Nem mais, Anacleto serve de uma clara personificação de vários políticos moçambicanos da actualidade e revela um lado sombrio sobre o sentido político das escolhas que recaem em pessoas, de longe, incapazes de assumir certas funções. Por isso mesmo, quando Anacleto é demitido pelo governador da província, o leitor experimenta um certo alento, gozando a sensação de que a justiça tarda, mas nunca falha. Sol de pouca dura. No fim da história, o narrador goza com a nossa precipitação:
Como terminou a história do Anacleto, perguntam vocês? Pois não muito mal. Passados dois ou três anos, encontrámo-lo como vice-ministro de qualquer coisa. E, se querem a minha opinião, não foi nem melhor nem pior do que os vários que o antecederam ou os que vieram a seguir.
Este excerto sarcástico é fictício, mas serve absolutamente para pensarmos o país e questionarmos o perfil das pessoas que seleccionamos para nos dirigir.
Por fim, neste Aqui há ópera? destaco mais um registo que considero importantíssimo numa narrativa: excelentes diálogos. Quando lemos o livro, abraçamos a percepção de que o autor deve ter extraído os diálogos das personagens entre nós. São credíveis, regulares e consistentes. Independentemente do momento da narrativa, Álvaro Carmo Vaz consegue colocar as personagens a fazerem da ficção um momento de verdade. Vejam só esta belíssima passagem em que Guida aborrece-se com Pedro, já casados, por este ter inventado a ideia de escrever um livro de memórias sem a ter informado. Pior, ao invés dela, ainda prefere pedir ajuda ao filho deles, o Rodi. Guida reage assim à zanga:
– E achaste que o Rodi, aquele cabeça-no-ar, era mais capaz de te ajudar do que eu? Se é assim, não quero saber do teu livro para nada, fizeste segredo, então agora também não estou interessada.
Mas a curiosidade acabou por vencer. Devorou o livro entre uma sexta-feira à noite, que se prolongou pela madrugada adentro, e o fim da tarde de domingo. Quando terminou a leitura, fechou o livro e abraçou Pedro, disse-lhe:
– Por esta, perdoo-te. Gostei muito, emocionei-me ao ler algumas passagens.
Riu-se, deixando Pedro encantado.
– Escusavas de me pôr a chorar tantas vezes, podias ter tapado a verdade com o manto diáfano da fantasia, como o teu Eça. Mas trataste-me muito bem no livro, continuas míope, pões-me como se eu fosse a oitava maravilha do mundo.
– Escrevi-te como te vejo, só tenho estes olhos.
– Estás-me a dar graxa, Pedro. E o pior é que eu gosto.
Guida deu uma gargalhada e beijou-o.
Um parêntesis. Eu acho o Pedro um sedutor à moda antiga, daquele tempo em que as pessoas da nossa idade, quando gostavam de uma rapariga, escreviam cartas de amor e coisas assim. Não agora em que as relações iniciam quase de forma automática. Basta a miúda ceder o contacto do WhatsApp e pronto. Já está. Pedro é de outra escola e ensina, aos distraídos, como se trata uma mulher.
À parte o parêntesis, o excerto entre Pedro e Guida só confirma o grande escritor que Álvaro Carmo Vaz é. Este nosso escritor tem tanto de discreto quanto de talentoso. Deu-me imenso gozo lê-lo, pois os narradores conseguiram-me transportar do plano onde me encontrava, como ser existencial, para algum lugar, para alguma época e para alguma condição. Estas 367 páginas do livro valem o peso em ouro. Portanto, já a terminar, que esta intervenção vai longa, deixo-vos uma pergunta no ar: Aqui há ópera?
Obrigado pela atenção!
*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro Aqui há ópera?, de Álvaro Carmo Vaz, no dia 28 de Fevereiro, na Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo.