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Do feminicídio, HIV e estigma social à necessidade da legalização da prostituição em Moçambique

 

“Suprima a prostituição, e os desejos sexuais ocasionarão

a instabilidade social” – Santo Agostinho

 

Nada mais agravoso que uma solução frágil para reincidência de crimes hediondos como homicídios contra mulheres e trabalhadoras de sexo que têm ocorrido na Sofala, sobretudo, Beira. A aplicação de medidas ordinárias como reforço de patrulhamento policial em zonas perigosas pouco ajuda a reforçar a segurança duma trabalhadora de sexo que testemunhou cerca de 20 casos de assassinato brutal das suas colegas. A ocorrência massiva destes crimes em pouco tempo visando a um determinado grupo social dá azo a várias interpretações tais como: há um grupo organizado que queira extinguir ou desincentivar a prática da prostituição, usando violência; há um grupo de sádicos que busca satisfazer os seus prazeres, vitimizando prostitutas; ou, talvez, as trabalhadoras de sexo devem estar num estranho ajuste de contas com uma facção criminosa. Estas hipóteses ganham a sua razão de ser, quando as autoridades não chegam a trazer uma explicação sustentável por trás destes assassinatos praticados com a mesma tática – estuprar, agredir e asfixia-las com as suas roupas interior.

Em todo o caso, a certeza é uma só: a protecção das trabalhadoras de sexo na Beira, Sofala, assim como em qualquer canto de Moçambique é deveras precária. Um estudo de 2016 realizado em Moçambique por Aids Fonds em parceria com Hands OFF! revela que 80% das trabalhadoras de sexo foram alvos de violência em 2016, seja ela física, sexual, económica ou emocional. E o mais agravante é que o perpetrador não é somente o cliente, mas também a polícia, o profissional de saúde, a comunidade e entre as próprias prostitutas. Por esta razão factual, o reforço do patrulhamento policial torna-se ineficaz na garantia da segurança e protecção dessas mulheres.

Ademais, o estudo indica que a maioria das trabalhadoras de sexo em Moçambique tem evitado recorrer à polícia em casos de violência, pois das vezes que o fizeram, as autoridades não têm levado a sério as suas queixas e, muitas vezes, culpam-nas pela violência de que foram alvo. Tanto a polícia como profissionais de saúde e a própria comunidade tratam-nas como seres desprezíveis. Em parte, este estigma resulta da ausência de legislação desta actividade. Ou seja, em Moçambique, a prostituição não é legal nem é tida como crime, excepto casos de exploração sexual e lenocínio. A ausência da legislação sobre este assunto, ao invés, de criar uma atmosfera social saudável, somente serve para agravar a condição dos direitos humanos das trabalhadoras de sexo, por uma razão muito simples, a falta de regulamentação de qualquer actividade social que seja sempre gera injustiças em forma de exploração, roubo ou violência.

Para este caso de prostituição, são vários casos de injustiça relatados no estudo de Hands OFF! em que um cliente, depois de ter mantido relações sexuais com a prostituta, recusa-se a pagar-lhe pelo serviço, dizendo que ela é uma puta sem direito nenhum no Estado, por isso, a sua queixa na polícia de nada valeria. Casos em que ora o cliente paga-lhe abaixo do que se havia combinado, ora chega a ameaça-la de morte, ou mesmo força-la a manter relações sexuais desprotegidas, correndo riscos de contrair HIV. Alguns clientes chegam a roubar-lhes todos os seus pertences, abandonando-as em lugares distantes. Fora da relação com os clientes, as trabalhadoras de sexo têm enfrentado descriminação nos hospitais, onde os profissionais de saúde movidos por crenças religiosas ou pessoais chegam a insulta-las ou recusar-se a atende-las. Doutro lado, elas, de vez em quando, têm sofrido a perseguição da polícia que alega comportamentos contra decência e moral pública. E, em troca da sua libertação, muitas são exigidas dinheiro ou prática de relações sexuais não pagas. Nisto, a questão que se coloca é, pelo facto de terem escolhido um caminho vergonhoso aos olhos da sociedade para ganhar a vida, será que elas merecem ser sujeitas à tanta violência e abusos?

A tendência da nossa sociedade conservadora é olhar para prostituição como um mal contemporâneo, resultado da globalização, descuidando, assim, totalmente da história sobre ela. Tampouco se leva em conta que a prostituição é um fenómeno que sempre acompanhou a evolução da humanidade, há mais de mil anos antes de Cristo. A sua relação com a sociedade civil sempre variou entre positivo e negativo, aceitação e desprezo, ao longo de diversas eras e civilizações. Por exemplo, na Grécia Antiga e Roma, a profissão das trabalhadoras de sexo não era tida como desonra, mas sim admirável, sendo regulamentada pelo Estado com deveres de pagamento de imposto. Já na idade de Média, houve fortes tentativas de reprensão de prostitutas movidas pela moral cristã, mas sem sucesso. Mesmo em civilizações árabes onde se condena veementemente a prostituição, ela existe ainda que sob o disfarce de residências designadas Harém. Isto quer dizer que a resistência deste fenómeno para erradicar-se do mundo está ligada intimamente ao instinto sexual dos homens. Enquanto o sexo fizer parte dum conjunto das necessidades secundárias do homem, o negócio de sexo sempre acompanhará a civilizações. E quando se tenta erradicar uma actividade que constitui necessidade do ser humano, o que acontece é que ela provavelmente encontre outros meios clandestinos de ser praticada. Consequentemente, toda a actividade que se exerce à margem da lei acaba produzindo perigos inerentes ao seu estado.

Para o caso de a prostituição ser considerada ilegal, os perigos que nascem são a exploração sexual, escravatura sexual, tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos, violência, doenças e descriminação social. Ou seja, onde a prostituição é considerada ilegal, mas a sua prática clandestina persiste, ocorrem frequentemente casos como violação, roubo e agressões, na medida em que as prostitutas não gozam de nenhuma protecção do Estado, tornando-se totalmente vulneráveis aos clientes que as procuram. Sem assistência jurídica, policial nem médica, as prostitutas poderão continuar a exercer as suas actividades, mas num ambiente de medo e de graves riscos. Então, quando o Estado moçambicano simplesmente descriminaliza a prostituição não significa que esteja a tomar medidas para combate-la ou favorece-la, simplesmente está assumir uma posição de neutralidade para com a actividade. Ou seja, o Estado está a sentenciar que não é crime, mas também não é uma actividade reconhecida como profissão, digna de deveres e direitos. Tal posicionamento abre espaço dentro do Estado para que entidades singulares ou colectivas, formais ou informais, aproveitem-se da ausência da legislação para criarem as suas próprias normais, tentando evitar, pelo menos, a prática de lenocínio considerado crime. E quando são os particulares a regular o exercício da prostituição, o mais provável é que a exploração sexual e violência marquem essa actividade, tal como tem acontecido em Moçambique.

Não obstante elas exercerem uma actividade vista como desonrosa em Moçambique, as prostitutas fazem parte da categoria de cidadãos deste país, sujeitas aos deveres e direitos enquanto cidadãs. E, por isso, um tratamento condigno que inclui a segurança da sua integridade física e mental é-lhes um direito que devem exigir ao Estado. Julgo que não cabe à sociedade o direito de julgar cada uma das trabalhadoras de sexo os motivos que a moveram até a essa indústria sexual. Segundo o estudo da Hands Off!, 100% das prostitutas abraçam essa activadade movidas pela necessidade de ganhar dinheiro para sustentar os seus filhos, apoiar os seus pais, pagar os estudos, melhorar a sua vida, ou sustentar os seus caprichos e vícios. Julgar a razoabilidade desses motivos afigura-se-me uma invasão das liberdades individuais, contando que algumas prostitutas de dia exercem outros trabalhos vistos como dignos pela sociedade, entretanto, a baixa remuneração chega, para algumas trabalhadoras de sexo, a não cobrir as despesas básicas. Ademais, é inconcebível a condenação do trabalho das prostitutas quando ele pauta pelo livre acordo com o cliente. Nenhuma das partes insiste a outra a buscar pelo prazer carnal. Todo o envolvimento é resultado duma negociação.

Discorrendo com brevidade sobre a importância da prostituição na sociedade, ocorre-me a ideia de que o trabalho delas estranhamente auxilia na estabilidade duma relação conjugal, servindo como descarga do prazer ainda que frívolo para o homem nos dias que a sua parceira, por questões biológicas, não pode praticar o acto sexual. Julgo que o risco duma relação instável entre cônjuges é maior quando o homem, no lugar duma prostituta, busca contrair uma relação com uma amante. Ou seja, diferente duma prostituta, cujo envolvimento sexual com o homem é estritamente comercial, uma amante normalmente envolve-se com o homem casado movida pelo afecto e, muitas vezes, pela esperança de formar uma família. Por isso, o amantismo envolve sérios riscos de instabilizar ou causar divórcio aos casados, podendo desencadear, dessa forma, instabilidade familiar e social. A demissexualidade é uma condição rara na espécie masculina.

Todavia, a procura dos homens tanto casados como solteiros pelos serviços de trabalhadoras de sexo envolve riscos de infecção de HIV/Sida. Porém, esses riscos são deveras baixos, porque o cliente, sabendo que se vai relacionar com uma prostituta que por natureza do trabalho dela faz sexo com várias pessoas, ganha cautela de usar métodos preventivos contra HIV como o uso de preservativo. Sabemos que o preservativo não garante infalivelmente a protecção, pois, em algum momento do acto sexual, pode romper-se, mas o risco é bem menor. Entretanto, essa não seria uma razão suficiente para banir-se esta actividade, pois nenhum método seria eficaz para extinguir o trabalho de sexo no seio duma sociedade. De forma clandestina e, no submundo, a prostituição continuaria a ser praticada, pois é uma actividade relativa ao instinto natural do homem. O sexo mostra-se uma necessidade para o ser humano ao nível de roupa, habitação, conforto, ou até mesmo da paz. E, praticada de maneira clandestina, a prostituição pode elevar maior número de riscos tanto para as trabalhadoras como para o cliente e a sociedade em geral, do que quando tornada legal, pois tudo que é feito às escondidas tende a ser desregrado.

Há mais benefícios do que males, quando o trabalho sexual é legalizado e regulamentado pelo Estado. As prostitutas passam a ganhar maior protecção policial e jurídica, na medida em que, em casos de injustiça sofrida, tanto a polícia como o magistrado já têm mecanismos legislativos para melhor entender, mediar diferendos e solucionar crimes. Na área de saúde, as trabalhadoras de sexo teriam mais acesso à assistência médica podendo, por força da lei, ser sujeitas a exames de saúde e obrigadas a tomar todas as medidas necessárias de prevenção contra HIV/Sida sob o risco de perder a sua carteira profissional e, consequentemente, serem proibidas de continuar a exercer tal actividade. Havendo tal controlo estatal sobre a saúde delas, penso que casos de contaminação de HIV reduziriam drasticamente nessa indústria. Regulamentando-se esta actividade, fechar-se-ia, não por completo, o mundo de exploração sexual, pois elas teriam uma base jurídica para reportar casos de prepotência e abuso do poder dos seus eventuais gestores. A legalização da prostituição poderia ser acompanhada da legalização dos bordéis – lugares que seriam determinantes para proibir-se o exercício de prostituição nas ruas das cidades e subúrbios e, por conseguinte, elevar-se-iam a decência e moral públicas. Passando a prostituição ao nível duma profissão, tornar-se-ia justo e necessário que as trabalhadoras de sexo fossem obrigadas a pagar impostos para maior segurança dos seus empregos e o desenvolvimento económico dum país.

Em resumo, tanto a sociedade como a classe de trabalhadoras de sexo saem em vantagem com a legalização da prostituição, pois os casos de HIV, indecência pública, violência física, sexual, emocional e económica, tornar-se-iam menores em comparação com o estado de ilegalidade ou indiferença para com esta actividade tão antiga quanto a prática do comércio. Ademais, o Estado passaria a ter maior vigilância sobre casos de exploração sexual e tráfico de seres humanos. É para sociedade um grande risco ter-se uma prostituta camuflada duma jovem solteira e decente, ao invés duma prostituta que se identifica como tal e assume publicamente o seu trabalho de venda de sexo. Com a primeira, os riscos de contrair DTS são maiores. Com a segunda, só há riscos elevados de DTS, se o cliente e ela consentem. Onde ninguém é enganado, mais seguro e consciente a pessoa se sente.

 

Hélder Tsemba

tsembah@gmail.com

Maputo, 11 de Fevereiro de 2023

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