Os inimigos não são só os que pegam em armas.
São também os que nos impedem de sonhar
e de caminhar de cabeça erguida.
(autor desconhecido)
Em uma realidade marcada pela opressão colonial, em um contexto de luta pela terra e preservação cultural, surge uma narrativa ressonante na cinematografia moçambicana: “Nhinguitimo”.
Interpretada em português, changanam e ronga, a curta-metragem, carregada de autenticidade e identidade própria, é uma adaptação do conto homónimo do livro “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana, no entanto, dirigida por Licínio Azevedo. O realizador decidiu , com efeito, contar a história de Alexandre Vírgula Oito Massinga, um jovem agricultor moçambicano, cuja luta pela sobrevivência e justiça se desenrola sob o peso da exploração colonial. O filme, através de sua estética visual e detalhamento cuidadoso, transporta o telespectador para um tempo em que a terra e a dignidade dos moçambicanos eram constantemente ameaçadas pela ganância dos colonos portugueses.
O uso de imagens em preto e branco é uma escolha artística que adiciona profundidade e gravidade à narrativa, evocando a austeridade e a dureza da vida sob o colonialismo, mas também acentua a divisão entre o mundo dos colonizadores e dos nativos. As vestimentas de Massinga e as suas caminhadas, descalço, contrastam com a opulência e a arrogância dos colonizadores, simbolizando a dicotomia de poder e resistência.
A trama de “Nhinguitimo” é impregnada de simbolismo e metáforas. O sentido do título (ventos fortes que antecedem o verão) representa as mudanças inevitáveis e tumultuadas que trazem desconforto, mas também a esperança de uma nova estação. A pequena machamba de Massinga, situada estrategicamente para escapar dos ventos destrutivos, evidencia a resiliência e a esperança de um futuro próspero.
A certa altura, Vírgula Oito chega ao Bar de Rodrigues, destacando-se pelo seu carácter forte. Apesar da sua determinação e sonhos de prosperidade, acentuados pelo crescente sucesso da sua produção agrícola, revela uma falta de atenção e respeito pelos outros, particularmente pelas mulheres que não considera essenciais para sua ambição imediata.
Ao entrar no bar, ansioso para compartilhar as novidades com os seus amigos Machumbutana e Maguiguana, Vírgula Oito, acidentalmente, empurra uma mulher sem ao menos notar a sua presença ou se preocupar com seu bem-estar. A mulher, que poderia ter caído e se ferido, é tratada com desdém, em contraste directo com a reverência e admiração que Vírgula Oito reserva para N’teasse, a mulher com qual sonha casar. A cena não apenas sublinha a obsessão de Massinga por seu próprio sucesso e seus desejos românticos, mas também evidencia a forma como desconsidera as necessidades e a dignidade de outras pessoas ao seu redor. A falta de atenção para com a mulher que empurra, entretanto, contrasta fortemente com a dedicação que pretende oferecer à sua futura esposa, revelando uma complexidade e um paradoxo no seu comportamento, o que enriquece a narrativa cinematográfica.
“Nhiguintimo” apresenta uma complexa teia de interacções sociais e culturais, expondo as dificuldades enfrentadas por Massinga, ao tentar navegar entre os seus sonhos de prosperidade e a realidade opressiva que enfrenta.
“MULHER NENHUMA SUSPEITA O DESTINO DO FILHO QUE EMBALA NOS SEUS BRAÇOS ” (Chiziane, 2002, P. 350)
Com a ajuda de sua mãe, Vírgula Oito cultiva a sua machamba com sucesso. As cenas de colheita são retratadas com uma beleza serena, capturando a essência da conexão de Massinga com a sua terra e suas raízes culturais. Essas imagens reforçam a importância da preservação das tradições locais e a resiliência da comunidade face às adversidades.
No entanto, Machumbutana e Maguiguana, em uma conversa com Massinga, alertam-no para não expor as suas realizações e perspectivas, mostrando um entendimento pragmático das dinâmicas de poder que governam as suas vidas. A ingenuidade de Massinga, ao falar abertamente sobre os seus planos no bar do comerciante Rodrigues, revela a vulnerabilidade dos marginalizados perante aqueles que detêm o poder. Rodrigues, ouvindo a conversa, aproveita-se dessa informação para corromper o administrador e planear a desapropriação das terras.
O encontro de Massinga com o administrador destaca a injustiça e o desprezo enfrentado pelos que não falam a língua do poder. Incapaz de se comunicar efectivamente em português, Massinga é ridicularizado e subjugado, evidenciando a marginalização linguística e cultural. Este encontro sublinha a desconexão entre os administradores coloniais e a população local, exacerbada pela barreira linguística e pela falta de respeito pela identidade.
O filme de Licínio Azevedo ascende à amargura da realidade. As machambas, rotuladas como “reserva indígena”, simbolizam a segregação e a desigualdade impostas pelos colonizadores. Essa separação entre os que têm boas condições e os que não têm reforça a divisão social e a contínua opressão das comunidades indígenas.
“Nhiguintimo”, assim, oferece um retrato multifacetado da luta de Massinga e sua comunidade, através de belas imagens de trabalho e colheita.
Num cenário subsequente, Vírgula Oito inicia o dia com gratidão e serenidade. Após saudar à mãe, segue para o campo, onde se deita no capim, contemplando o céu. Num momento de introspecção e agradecimento a Deus, pelas bênçãos da vida, Vírgula Oito é interrompido por uma inesperada visita. Uma figura distante, percebendo-o deitado, aproxima-se com cautela.
Ao perceber a presença de alguém, Vírgula Oito levanta-se, reconhecendo imediatamente a mulher com quem sonha casar. O seu sorriso, ao vê-la, reflecte a intensidade dos seus sentimentos e das suas aspirações pessoais. Esse momento de esperança e desejo contrasta categoricamente com o desenrolar dos eventos ao redor.
Enquanto isso, o comerciante Rodrigues, em conluio com o administrador, inspeciona as férteis terras. Rodrigues, movido por ganância, convence o administrador a desapropriar essas terras, subjugando a população indígena e privanda-a dos seus meios de sustento. A injustiça protagonizada pelos dois colonos marca o ponto de virada na vida de Vírgula Oito.
Ao ver a sua terra e o seu futuro em causa, Vírgula Oito é impulsionado a agir. A perda iminente de tudo que ele e a sua comunidade construíram desperta uma profunda revolta. O despertar de resistência se torna o núcleo da narrativa de “Nhiguintimo”, ilustrando a luta contra a opressão e a luta pela preservação de suas tradições e dignidade.
A insistência de Vírgula Oito em incitar os seus companheiros à resistência é recebida com desdém e temor. Os seus apelos a Machumbutana, para que permaneça firme, resultam em fuga e incerteza. Machumbutana, aterrorizado pela perspectiva de confronto, foge, ilustrando a devastação que o medo e a traição podem infligir em uma comunidade.
“Nhiguintimo” é uma curta-metragem de 22 minutos, que consegue contar uma história emocionalmente ressonante. Produzido por Jorge Ferrão e realizado por Licínio Azevedo, o filme é uma co-produção da Ébano Multimédia e Mahla Filmes, com direcção de fotografia de Pipas Forjaz. A trilha sonora, composta por Joni Schwalbach, acompanha as imagens na tela, intensificando a atmosfera e as emoções presentes na história.
O final aberto do filme deixa o telespectador imerso em uma sensação de incerteza e tristeza, reflectindo a brutal realidade das lutas anticoloniais. A falta de resolução final não só ressalta a complexidade da situação, mas também a contínua luta pela justiça e pelos direitos da terra que muitas comunidades moçambicanas enfrentam com a expansão dos grandes projectos económicos.
Nm mundo onde as dinâmicas de poder, opressão e resistência continuam a moldar sociedades, contudo, “Nhinguitimo” emerge como um filme de vital importância para a actualidade. Através da história de Massinga e da sua luta pela justiça, o filme oferece uma reflexão profunda sobre questões que ainda são pertinentes em Moçambique: a desigualdade social, a exploração dos recursos, a preservação cultural e a resiliência diante das adversidades de vária ordem. “Nhinguitimo” não é apenas um espelho do passado colonial, mas também um farol que ilumina as contínuas lutas por dignidade e direitos humanos, inspirando novas gerações a questionar, resistir e lutar por um futuro mais justo e inclusivo.