O País – A verdade como notícia

a distante proximidade com que Cumbane narra os nossos mundos[1]

Fico bastante honrado por este convite para tecer breves linhas sobre um livro com o qual tenho imenso carinho. As razões são várias. Depois tratamos delas, tim-tim por tim-tim. O que me cabe dizer neste momento é que não vim fazer uma apresentação no sentido mais trivial desta actividade. E vou pedir perdão por isso porque já lá vão os tempos em que os eventos literários se despiram, quase que por completo, de alguns cerimonialismos. A Deusa d’África já disse, e muito bem, que não se faz poesia de mini-saia. Haja vista que, também, não se faz literatura de gravatas, terno italiano, sapato polido e vinco tinindo nas calças.

Voltando ao meu apreço pelo livro: o ano é 2020. Os tempos são pandêmicos. É Novembro. Os decretos abrem uma janela para a realização de alguns eventos com algumas restrições. Estamos em périplos pela província de Inhambane a divulgar o meu primeiro trabalho literário individual. Foi nessa altura que eu pude perceber que além de exímio prosador, Almeida Cumbane é um gajo mau. Isso mesmo. Eu disse: Almeida Cumbane é um gajo mau. De lá para foi sempre assim. Mau!

“Bro” é assim que me tem chamado. “Tenho um projecto na manga. É uma colectânea de contos e crónicas. Vou precisar da tua leitura e possíveis sugestões. Para que não seja um trabalho tedioso, eu vou enviando um texto por semana para que possas fazer uma revisão linguístico-literária até que se esgotem todos os textos da colectânea”. O discurso dele foi mesmo assim. Manhoso. Num país como o nosso, os escritores tornam-se revisores, críticos literários, livreiros, editores, designers e toda uma infinidade de actividades inerentes aos livros para poderem ganhar algum e sustentar os seus vícios. A proposta do meu amigo não veio com essa adenda de custos e orçamentos. Somos “bros”, não é? “Tudo bem, bro. Vamos trabalhar.” Foi a minha resposta enquanto fartávamo-nos de rir: eu, o Almeida Cumbane e o Emílio Cossa, quando dávamos um ar da nossa graça numa lagoa em Quissico. E eu disse cá para mim: tenho de rever as minhas amizades. Com gajos maus assim, não consigo dinheiro nem para o alvará do meu empreendimento.

Não passava uma semana, e eis que recebo no meu e-mail, a primeira investida da maldade do meu “bro”. Era um conto intitulado “Dona Pérola”. Li o texto num só trago. E meu discurso mudou: Almeida Cumbane é um gajo bom. O texto tinha pouquíssimas arestas por limar e eu julguei que as tivesse deixado de propósito para testar a minha atenção. E foi assim durante quase um ano. Textos e mais textos por corrigir até que num belo dia, voltou à carga e com outros “papos”. “Bro, aquele livro que estivemos a organizar paulatinamente já está pronto. Você é que conhece melhor os textos então tens de fazer a revisão. Mas agora com outros termos e condições.” Ele disse. Mas sobre isso falaremos noutro dia. Esta estória já vai longa, não é!

Portanto, foi assim que eu entrei em contacto com este livro. Dessa forma mágica e desinteressada. Daí o carinho que tenho por ele. Ao percorrer as 7 crónicas e 10 contos nele contidos, havendo momentos que estes dois géneros se misturam, pensei em Salvato Trigo quando na introdução do seu “Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira” afirma que

poderá parecer excessiva, reducionista mesmo, esta opinião, mas a verdade é que o texto literário africano moderno nem é tão transparente quanto parece nem é de tão fácil acesso quanto se julga. Recorrendo às palavras de Jacques Chevrier, o autor remata: a inteligibilidade dos textos do domínio africano passa, a maior parte das vezes, por um bom conhecimento antropológico, linguístico, histórico e até político do contexto de emissão da obra.

É nisso que resulta a experiência de leitura deste “a distante proximidade”. Numa primeira impressão, somos convidados a reviver o infortúnio de Genito. Um jovem com a vida sempre a desacelerar e teve a sorte de ser escolhido para representar o país numa turnée pelos palcos da CPLP. Por vários motivos, o jovem não consegue chegar ao aeroporto a tempo de seguir no avião que o esperava. O infortúnio faz com que Genito maldiga a si, o destino, a Deus e ao universo que, a seu ver, não conspira a seu favor. Algumas horas depois, uma notícia deixa-o sobressalto: o avião em que devia seguir despenhou quando sobrevoava Namíbia com destino a Luanda.

Mais adiante, aparece-nos uma narrativa intitulada “traídos pelo sono”. Quem é que nunca teve uma experiência igual? Em todo caso, nada será equiparado ao que ocorrera à Salmina (a esposa de Filmão) na sua palhota em Jonasse, província de Gaza, quando fora surpreendida pela luz do sol enquanto albergava o seu amante. Só lendo o livro para saber do desfecho deste imbróglio.

Depois de perpassar o texto a “a matreca da festa” e deleitar-se não só com o título mas com o enredo, surge, algumas páginas depois, “o vinho da discórdia” para perpassar questões como a corrupção e a promiscuidade entre o vileza e o egoísmo mesmo em momentos dignos de solidariedade e concórdia entre as pessoas.

A maior parte dos textos que nos são apresentados em “a distante proximidade” remontam momentos não muito específicos o que afasta a possibilidade de verossimilhança, se tomarmos o conceito no viés filosófico. Ora, tal não interfere no lato sensu literário do mesmo. Pelo contrário.

Vem este comentário a propósito do texto intitulado “carta de um invisível”, no qual o autor não fica alheio aos tempos pandémicos em que vivemos e dialoga com a Covid-19.

“Escrevo-te com alguma dificuldade existencial (ou talvez inexistencial) derivada do facto de que preciso de me apresentar, mas depara-se-me que, nos últimos tempos, não sei quem sou.” Ele diz.

Em todo caso, este diálogo com este mal que nos enferma e nos impusera restrições desmedidas, só revela que o escritor é, de uma forma ou de outra, uma voz imprescindível no domínio social embora exerça o seu activismo através da ficcionalização de mundos possíveis com base na realidade. Nesse exercício, ele deleita-nos e sobressalta-nos rumo a uma catarse dos nossos próprios medos, assombros e, por que não, desvarios.

O que também nos remete a este raciocínio, é o misticismo que serpenteia o texto intitulado “os filhos gémeos” no qual é difícil não estabelecermos um paralelo com uma situação vivida ou que nos fora contada sobre os túneis em que alguns concidadãos migram em busca da prosperidade. Outro aspecto bastante corriqueiro é o mote do texto “uma casa de alvenaria” que era o sonho do velho Mabunda cujos filhos, mesmo com posses, nunca chegaram de satisfazer senão em forma de cripta depois da sua morte. Enfim, o velho teve uma casa de alvenaria que os filhos julgaram que ele merecia.

Esta é uma amostra da temática que corporiza este “a distante proximidade” em que Almeida Cumbane não só se revela como um exímio “tradutor de línguas” (título de um dos seus textos) como revela que o comum, o corriqueiro que existe na plasticidade das nossas vivências não só é matéria de deleite no universo textual como o é de reflexão.

A capacidade de prender os olhos do leitor que estes textos trazem é típica dos mestres do suspense como Dan Brown, de quem o autor é admirador acérrimo, e de outros mestres da ficção como Franz Kafka em “Metamorfoses”, por exemplo, em que se denota uma narrativa riquíssima do ponto de vista de enredo sobre um mote aparentemente corriqueiro. É isto que encanta nos bons prosadores que Almeida Cumbane vai provando ser desde o seu primeiro livro, Ilusão à Primeira Vista, que mereceu o prémio literário TDM em 2016. Tal como naquele romance, os textos deste livro trazem-nos realidades rurais e urbanas com as quais convivemos diariamente e não nos damos conta delas.

Já dizia Arthur Schopenhauer: a tarefa não é ver o que ninguém viu mas pensar o que ninguém pensou sobre o que todo mundo vê. Se esta frase é de um grande filósofo e estamos a falar de um livro cuja autoria é de alguém com uma formação nesta área, abre-se uma janela biografista através da qual surgiria um belíssimo ensaio a quem se interessa por estás lides.

“A distante proximidade” descortina, também, os usos mais corriqueiros da língua na nossa tradição literária: trata-se de um Suleiman Cassano sem os neologismos que emergem da aportuguesação do ronga, sobretudo, e de um Aldino Muianga sem a opulência léxica que lhe é característica. Esta linha fronteiriça e identitária que traço através de uma tendência comparatista destes gurus da nossa literatura, pode ser a primeira pista para catalogar a escrita de Cumbane mas, atenção, sem rótulos.

Falando em rótulos, é chegada a vez de nos despirmos deles e vermos, nestas crónicas e contos, um material indispensável para as aulas de língua, tanto no secundário quanto no superior. Com toda vénia que voto aos nossos autores mais renomados, chegou o momento, meus caros, de preenchermos as nossas actividades lectivas, jornalísticas e ensaísticas com outras cores que nos são trazidas por escritores como o Cumbane que representam uma continuidade e ruptura quer estilística quer temática (ou conteudística, se quisermos) para com os seus antecessores.

Com este convite, algo presunçoso, convido a todos para a leitura destas crónicas e contos que Almeida Cumbane nos presenteia através do seu “a distante proximidade”. É obra!

[1] Texto de apresentação do livro a distante proximidade da autoria de Almeida Cumbane, chancela pela editora Kulera, no dia 25 de Julho no Festival Internacional de Poesia, organizado pela Associação Cultural Xitende, no paços do Conselho Municipal de Xai-Xai.

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