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O regresso do Festival Nacional da Cultura: Uma outra conversa sobre a moçambicanidade

O Ministério da Cultura e Turismo anunciou a realização do XI Festival Nacional da Cultura (FNC). Evento que tinha sido programado para o ano de 2020, na Província de Maputo, porém, devido ao agravamento da pandemia da Covid-19 e no cumprimento do Decreto presidencial nr 11/2020 de 30 de Março, que declara o estado de emergência por razões de calamidade pública em todo o país, o governo decidiu cancelar. Com o alívio das medidas, declaradas pelo decreto 4/2022 de 18 de Fevereiro, o histórico e mais importante evento cultural em Moçambique regressa sob o lema “Cultura a Força que Une a Nação Rumo ao Desenvolvimento”.

Este breve artigo pretende reflectir sobre o lugar ocupado pelo Festival Nacional Da Cultura no contínuo projecto de construção nacional e consolidação da unidade nacional. Adicionalmente, levanta reflexões no âmbito XI FNC, no contexto do actual paradigma cultural moçambicano.

Quando foi realizada a primeira edição do festival, 28/12/1980 – 4/01/1981, o então Festival de Música e Canção Tradicional (FNCMT), tinha um propósito aliado ao período pós-independência que o país vivia e cujo projecto de governação estava centrado na construção do “homem novo”. Neste contexto, o Festival constituía um “esforço do governo para a valorização da nossa própria identidade, da nossa personalidade moçambicana, e também para fazer com que as experiências individuais se tornem experiências coletivas, da comunidade; as experiências regionais, as manifestações culturais regionais se tornem manifestações culturais da nação moçambicana e, por isso mesmo, consolidar a unidade nacional” in Graça Machel (entrevista sobre I FNCMT).

A preocupação pela consolidação da unidade nacional sempre esteve presente no festival, seja por forma do discurso ou pelas mensagens evocadas durante as apresentações. Transformando cada edição numa oportunidade de exaltação da moçambicanidade.

Voltando ao contexto da realização da primeira edição, era evidente a sua centralidade na ideia de construção do “homem novo” como fundamento ideológico para a construção nacional. O homem novo foi imaginado como alguém que rejeitaria de forma consciente as heranças coloniais (especialmente o tribalismo e o obscurantismo) em prol da construção de uma nova sociedade, presumivelmente mais justa e o festival serviu como um dos momentos importante para capitalizar este pensamento nacionalista (Morais, 2022; Macagno 2009). Aliás, os procedimentos para a seleção dos grupos culturais para o festival tinham um viés nacionalista bastante forte, não permitindo nenhuma possibilidade de seleção de expressões/grupos culturais com ligações à cultura ocidental (colonial).

Sobre este assunto, a edição de 30 de Novembro de 1980 do Jornal Notícia explica que em alguns casos, bons artistas foram eliminados porque “apresentaram instrumentos não considerados tradicionais, mas que constituem parte dos mais populares, em algumas regiões do nosso País”. Tal foi o caso que aconteceu na província da Zambézia em que um tocador de acordeão foi afastado das competições provinciais” (Notícias, 30 de novembro de 1980, 1).

Analisando o contexto, podemos encontrar uma razoabilidade nestes critérios. Aliás, a cultura era uma das fórmulas encontradas pelo Governo para somar as diferentes expressões do povo que resultassem na construção da nação moçambicana. Acessar músicas e danças praticadas por diferentes grupos sociais do território permitia que o governo se comunicasse com pessoas de todo o país (Morais, 2022). Ainda assim, há críticos que consideram que a filosofia tradicionalista conjugada com a ideia de construção do homem novo e subsidiada com a célebre frase “Matar a tribo para construir a nação” contribuiu para a fragilidade da nossa cultura.

Não obstante, importa no actual paradigma abrir espaço, sem reserva, para as “novas produções culturais”, aquelas não tão tradicionalistas, mas resultantes da evolução social e tecnológica do País. Formas que podem ser facilmente visualizadas no seio da juventude. Ao incorporar essas novas formas de produção cultural evita-se, sistematicamente, o risco de construção de uma narrativa tradicionalista do Festival Nacional Da Cultura. Ora, a cultura não se faz apenas do tradicional e a construção da nação deve resultar do encontro entre o passado e o presente, da velha e da nova geração.

A XI edição do Festival Nacional Da Cultura surge num contexto de alargado debate sobre a moçambicanidade, a unidade nacional, a identidade e cultura moçambicana e o festival pode ser o grande palco de consolidação destes pressupostos, de demonstração daquilo que nos une como povo e de integração intergeracional. Elementos importantes para o desenvolvimento inclusivo e consolidação da identidade nacional. Aliás, é mais uma oportunidade para reiterar o valor que a cultura teve na luta de libertação nacional, no processo de construção nacional e hoje, enquanto um aliado da coesão social e de desenvolvimento económico.

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