O País – A verdade como notícia

FERNANDO MANUEL, 70 ANOS

Diluídos no escuro

os coqueiros, elegantes silhuetas

projectam-se contra o profundo

azul do céu

O macúti balança

sufocando o riso

num sussurro amigo

sob o peso da leve,

levíssima brisa do mar

Ao longe

filtrada pelo silêncio

a voz de Brenda Fassie

dando vida ao Galaxi, lembrança do John

Colados ao caniço

os homens eternizam

o culto da sura.

 

Fernando Manuel

 

Este poema, intitulado “Matsitsi”, de Fernando Manuel, tem indesmentíveis referenciais do lugar de origem: Maxixe, onde o autor nasceu a 20 de Janeiro de 1953, há precisamente 70 anos. Muitos vezes quando atravesso aquela paisagem cartografada poeticamente nestes versos, lembro-me deste seu belo texto, que povoa o meu imaginário há anos. Conhecido como jornalista – hoje em dia como cronista sobretudo – ele é, no entanto, um poeta de créditos indubitáveis e um dos mais interessantes contistas moçambicanos.

Para além da data e do lugar de nascimento, as parcas notas biográficas sobre Fernando Manuel dizem-nos que ele iniciou os estudos na Missão Sagrada Família e que os completou da escola Indígena da Munhuana. Eu estudei na escola primária do Bairro Indígena, aliás foi lá por onde comecei e esta coincidência é-me particularmente cara. Mais tarde, Fernando Manuel frequentaria os liceus António Enes e Salazar, que são hoje – para o nosso gáudio – Francisco Manyanga e Josina Machel.

Narram ainda as suas breves efemérides que antes de ingressar, em 1981, na carreira jornalística, haveria de ser monitor de educação física, músico, escriturário, professor de História no ensino secundário. A esta distância talvez eu possa especular: a sua entrada tardia no mundo do jornalismo permitiu-lhe fazê-lo com uma bagagem que lhe seria útil e o catapultaria, em poucos anos, para um dos lugares cimeiros entre os camaradas de ofício.

Quando entrei, aos 21 anos, para a redação da TEMPO, em 1988, Fernando Manuel era o jornalista mais importante daquela mítica revista. Chefiara a reportagem pouco antes. Era um dos gurus da publicação. Provavelmente, o Kok Nam fosse a sua figura mais emblemática, oriundo da tribo dos fundadores.  A TEMPO, é preciso dizê-lo, foi a tribuna de grandes nomes do nosso jornalismo. Miúdo ainda, quando eu frequentava a Maxaquene, passava diante do prédio quotidianamente a caminho da escola. Olhava para o edifício como quem olha para um santuário. Esperava ser um dia um dos seus membros. Quando lá cheguei, a redacção gabava o talento do Fernando Manuel. Já não estavam Alves Gomes, Arlindo Lopes, Augusto Casimiro, Hilário Matusse, Joaquim Salvador ou Mia Couto – isto para falar de nomes que me eram próximos. Estava ainda a Ofélia Tembe antes de atalhar pelos meandros da diplomacia.

O semanário tinha como director o grande jornalista Albino Magaia (Mia Couto fora antes director e no seu tempo tivera Magaia como chefe de redacção) e Luís David era o chefe de redacção. David era um chefe que lembrava as lendas que comandavam, com mão firme, os jornalistas e as redacções. Hoje os vocativos são outros. No meu tempo, um chefe de redacção era a figura mais temida. No caso, ele subscrevia o mito: devolvia os textos quando estes eram medíocres. Por outro lado, Albino Magaia tinha aquela adorável característica de ser assertivo com um sorriso que lhe ampliava os zigomas do rosto. Os dois faziam um belíssimo contraponto. Foi sob a batuta de ambos e tendo o Fernando Manuel e o Kok Nam como as grandes referências que vivi ali tempos jubilosos. O Kok contava histórias hilariantes dos tempos imemoriais da casa. Daria um belo filme a história desta revista e das gerações de jornalistas e histórias que a glorificaram.

Companheiros de redacção: Roberto Uaene, António Elias, Casimiro Sengo, Fernando Victorino, Celestino Jorge, Paulo Sérgio, entre outros. O Castigo Zita, que encontraria o infortúnio da morte numas férias em Harare, em Dezembro de 1988, aos 27 anos, era assíduo frequentador da mesma. Fazíamos uma pequena tertúlia literária no fundo da redacção. O Celestino participava com aquela sua elusiva presença. Fotógrafos: Kok Nam, Naíta Ussene, Alberto Muianga, Jaime Macamo e Jorge Tomé. Muitas destas personagens já não estão no reino dos vivos. O Eugénio Aldasse (outro que emigrou para o Paraíso) e o Sérgio Tique (brilhante caricaturista e que tinha a qualidade superlativa de zombar de todos e de tudo) faziam a maquetização. A saudosa Ana Cubasse era a nossa revisora e enchia aquelas acanhadas salas com a sua soberba e estridente presença. Foi outro tempo aquele, com outras personagens, que estão nos armoriais do nosso jornalismo.

Falo-vos de um tempo em que redigíamos notícias e reportagens em velhas máquinas manuais cujos sons ressoavam daquele sexto andar. Era o tempo das laudas e da composição a chumbo. Também era um tempo em que tudo parecia que estava a desmoronar, a desagregar-se. Tinha acontecido Mbuzine e o prenúncio do fim da I República. Os anos 80 foram extenuantes. Estávamos exaustos das crises cíclicas e do panorama em que tudo nos faltava. Começava a exercer-se sobre nós o cansaço, a desesperança, a descrença e o medo do futuro.

Para mim foram tempos paradoxais – exultantes e esgotantes. Foram dois anos igualmente fugazes, os mais belos anos da minha vida no jornalismo em Moçambique. Intensos e jubilosos. Pouco depois, quase todos saímos da TEMPO. Nos finais daquela década os jornalistas impuseram a liberdade e a democracia através de uma nova Lei de Imprensa. Nos primórdios dos anos 90 o debate e a nova Constituição permitiram que houvesse outros atalhos. A guerra e a paz, o multipartidarismo e a abertura que se experimentaram estiveram na base do início de um novo caminho para o jornalismo.   Entretanto, Albino Magaia foi substituído e o declínio da publicação tornou-se irrefutável. Fernando Manuel estaria no escol dos jornalistas que iriam ser os pioneiros do jornalismo privado.

Carlos Cardoso falou-me desse belo projeto: um grupo de jornalistas que resolvia desfazer-se das amarras que tinham no sector estatal e fundava uma cooperativa da qual sairiam as publicações independentes. Politicamente independentes. Kok, Naíta, entre outros, estarão nesse grupo. Creio que foi um acto de grande coragem. Foi quando fui estudar para fora do país. Não tenho dúvidas de que foi um tempo exultante para o nosso jornalismo, um tempo de mudanças, algumas delas radicais. Esse tempo e o papel dos jornalistas merece estudo e atenção.

Eu aprendi imenso na TEMPO e com aquela nobre gente. Ouvindo-os, contando histórias, muitas vezes tremendas histórias do nosso quotidiano, algumas que atravessavam as colunas da publicação que saía à sexta-feira e que as lia com um sofrido e indisfarçável prazer. A ideia da sociedade, da nossa sociedade, obtive-a ali. Preocupado com as cousas literárias, aprendi a amar o social através daqueles meus brilhantes colegas. Algumas das reportagens eram devastadoras. Lembro uma sobre o Ile que nunca me abandonou. Tínhamos experimentado como país um grau de miséria material e moral sem igual. A guerra no seu esplendor fazia de nós o exemplo (parece paradoxal usar este termo) entre os piores do mundo.

O Fernando Manuel não era apenas jornalista, era também escritor, um bom poeta e contista imaginativo. Não tenho duvidas de que era uma das melhores plumas do nosso jornalismo. A sua pena é de alto coturno e as suas prosas eram impecavelmente bem escritas. Valeria a pena, sobretudo os que debutam na profissão, frequentar os sepulcros e ler aquelas prosas exemplares.

Muita da sua saborosa prosa está reunida em dois dos seus livros de crónicas: “Chá das Sextas” e “Missa Pagã”. A crónica literária foi um género com cultores prestigiadíssimos entre nós. Cito alguns desta linhagem: Areosa Pena, Leite de Vasconcelos, Albino Magaia, Mia Couto e por aí em diante. É um género que, como se sabe, está na fronteira entre a literatura e o jornalismo. Fernando Manuel é tributário dessa nossa nobre tradição.

Felizmente temo-lo lido nas páginas do “Savana”. Para além disso, é autor de um livro de contos, “O Homem Sugerido” e redigiu alguns prefácios a obras de escritores da sua geração – do remoto “Xitala Mati”, do Aldino Muianga, em 1987, é caso paradigmático. Fernando Manuel tem uma língua afiada, por vezes mordaz, finamente mordaz, e é dono de um olhar subtilmente assertivo e subversivo. É um contador de histórias nato, quer sejam histórias que relevam das origens ou aquelas que se inscrevem nos labirintos e na mitologia dos subúrbios em que ele cresceu ou da sua cidade onde se afirmaria e que a viu mudar com todos os seus paradoxos, todas as suas misérias, toda a sua grandeza. Podemos até estar nos antípodas do que pensa, não temos que concordar, mas temos que conceder que estamos diante de uma escrita distinta. Respeito-o por isso. Aliás, demonizou-se entre nós a democrática e saudável divergência, a critica social, a consciência da diferença. Aquela sociedade plural e magnânima que intuíamos nos anos 90 está por cumprir, por assim dizer.

Quando há precisamente 30 anos, Fátima Mendonça e eu, organizamos uma antologia da nova poesia moçambicana, ele foi um dos nomes indubitáveis. Um dos poemas, quase um aforismo, intitulado “Sobre a felicidade” dizia estes três versos: “E pensar / que há gente / que me pensa feliz”. Não me ocorreu este poema quando li, há 5 anos, no semanário “Magazine”, uma entrevista sombria com o Fernando Manuel.

Era uma entrevista de um homem lúcido, acerbo e, fatalmente, desiludido. Dois anos antes ele ficara cego. Fazia uma análise cortante dos nossos dias e do nosso percurso. Não é incomum encontrar na tribo (na melhor acepção do termo) quem esteja desencantado. Sobretudo entre os que estão na profissão há décadas. Os tempos que vivemos, muitas vezes aziagos, tornaram proscritos muitos destes grandes profissionais. E para isso não é necessário exilá-los. Basta o descaso.

Não obstante, Fernando Manuel continua a publicar – para a nossa felicidade e digo isto compungido – as suas crónicas. Dita-as e quem as lê coteja a mesma escrita escorreita que ele nos habituou. Tinha antes lido uma entrevista na qual ele falava dessa experiência, dessa dura experiência da cegueira, mas neste depoimento senti não só essa dureza, mas uma profunda e lancinante tristeza.

Não queria terminar esta breve evocação com um travo amargo. Hoje é um dia de júbilo para o nosso jornalismo e para a nossa literatura. Quero celebrá-lo com parte dos seus melhores versos. Socorro-me, assim, em sua homenagem, destes outros versos, no caso do poema “Ma ensai”, igualmente belo, para encerrar este depoimento.

 

À noite

ouço Otis Redding

falando I´ve got dreams

de tardes de madeira e zinco

esfregando-se por entre o caniço

Tardes de corpos suados

Plásticos na apetência oculta

que fervilha debaixo da pele, to remembre

Anoitecer de salas fumegantes

de candeeiros a petróleo

luz   que se escoa

mergulhado aquele beco sem saída

numa escuridão fru fru

saia que já não esconde

o leve tremor da coxa

antes abrigada

E beijei o silêncio

dos lábios da Guida.

 

Fernando Manuel

 

Poeta, contista, cronista, uma das plumas mais esplendentes do nosso jornalismo e da nossa literatura, autor de algumas das mais belas páginas que, em épocas distintas, se redigiram na “Tempo” ou no “Savana”, comemora, neste dia 20 de Janeiro de 2023, 70 anos de vida. Aqui lhe deixo o meu humilde preito.

 

KaMpfumo, 20 de Janeiro de 2023

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