A urbanização é um fenómeno global. Uma tendência que se acelera desde a revolução industrial, no século XVIII. Foi catapultada pela inovação tecnológica e reformas políticas. É um dos rostos mais emblemáticos do capitalismo industrial, deixando marcas muito profundas nos tecidos económicos, social e ambiental
Actualmente, mais de 50% da população mundial vive em contextos urbanos, mas as projecções demográficas indicam que em 2050 esta cifra poderá ultrapassar os 60%. Estes dados não causam estranheza no mundo ocidental, onde a maioria dos países já vive esta realidade. Porém, nos países em desenvolvimento, particularmente em África, a corrida para os centros urbanos tem sido feita de forma apressada e atabalhoada, fruto do “boom” populacional e da busca desenfreada por oportunidades de emprego e sonhos de uma vida mais iluminada, mais farta e menos sofrida.
Segundo dados recentemente publicados pela UN-Habitat, a população urbana em África duplicou nos últimos 10 anos. Assim, todas as capitais de países africanos estão, literalmente, a “arrebentar pelas costuras”: guetos desordenados, mercados improvisados em esquinas e sombras de árvores, mendicidade generalizada, subemprego galopante, delinquência infantil, desnutrição crónica, epidemias persistentes, poluição ambiental, etc.
Herança colonial
No contexto colonial, a classe dominante habitava as cidades envoltas de luzes, cores, cimento e asfalto. Os colonizados eram mantidos nas suas palhotas tradicionais e precárias, sem acesso à luz, estradas asfaltadas, água canalizada, escolas decentes e hospitais adequados.
Naturalmente, após a descolonização, o primeiro impulso dos descolonizados foi o de conquistar as cidades, com todas as delícias reais e aparentes que lhes eram outrora vedadas. Uns se adaptaram mais facilmente do que outros, mas as marcas da transição forçada são ainda visíveis em muitas cidades africanas. Mesmo quando as condições de vida se tornam difíceis, o regresso ao campo não é a opção mais óbvia.
Mesmo os jovens que migram para as cidades para frequentarem o ensino superior, muito cedo se viciam com os hábitos urbanos, e muito dificilmente optam pelo regresso às suas aldeias de origem. O sonho de ser funcionário público tornou-se quase uma obsessão para a maioria dos jovens recém-formados, como forma de se instalarem em gabinetes climatizados, obterem direito a residências do Estado, disporem de viaturas confortáveis e frequentarem supermercados e centros de lazer.
Concorrendo para o fluxo migratório em direcção às cidades estão também os conflitos armados e sociais que primeiramente obrigam à busca de um refúgio seguro e, posteriormente, à procura de alternativas de sobrevivência.
A questão das infra-estruturas
O primeiro grande choque da onda galopante de urbanização em Africa é a falta de infra-estruturas para responder às necessidades básicas das populações. As cidades são forçadas a acomodar o dobro ou triplo das suas capacidades. O caso da ocupação dos apartamentos urbanos coloniais é emblemático dessa realidade: apartamentos superlotados, sistemas de esgotos não dimensionados para a pressão de utilização, deficiente disponibilidade de electricidade e água, e estradas submetidas a uma utilização não prevista aquando da sua projecção e construção.
De um modo geral, o ritmo de crescimento das novas construções não corresponde, ao crescimento demográfico. Mesmo considerando a superlotação dos prédios habitacionais, muitas pessoas ficam à margem, relegados aos subúrbios, guetos, bairros de lata, em condições extremamente precárias. Dados da UNHabitat indicam que cerca de 60% dos habitantes das cidades vivem nestas condições degradantes e sub-humanas. Em África são cerca de 72%.
Desigualdades sociais
Quando bem geridas, as cidades oferecem oportunidade de desenvolvimento económico e social. O seu papel de centros de produção e consumo, normalmente estimulam a inovação e a criação de oportunidades de emprego. Também oferecem oportunidades de uma boa formação académica, serviços de saúde, e o desenvolvimento de iniciativas culturais (teatro, cinema, literatura, museus etc.). Contudo, a urbanização desordenada é uma das principais causas da pobreza urbana e acentuação das desigualdades sociais em África. Por um lado, as elites detentoras do poder económico e político ostentam riquezas acumuladas, por vezes ilicitamente, e por outro, os habitantes dos subúrbios sujeitam-se a uma vida forçosamente minimalista, em torno de escassas oportunidades de subemprego, negócios informais, mendicidade, delinquência e prostituição.
A escassez de água, electricidade, escolas, hospitais e vias de acesso, forçam o desenvolvimento de mecanismos alternativos de sobrevivência nem sempre recomendáveis, como a delinquência, a superstição, o curandeirismo, o charlatanismo, a prostituição e a venda de bebidas alcoólicas.
O comércio é improvisado e informal. Pequenos mercados pululam como cogumelos e são invadidos por produtos baratos, mas de proveniência duvidosa, vendidos no chão, misturados com a imundície.
A partilha de espaços, latrinas e salas improvisadas de convívio fomenta a promiscuidade. Multiplicam-se os casos de estupro, casamentos prematuros, mães adolescentes, alcoolização, epidemias, tráfico e consumo de drogas.
Problemas ambientais
O sobrepovoamento das cidades aumenta a pressão sobre os ecossistemas e recursos naturais, partiularmente resultantes do abate indiscriminado de árvores para a construção de casas e obtenção de combustível lenhoso, e das construções desordenadas que causam obstrução dos cursos naturais das águas pluviais e erosão nas encostas.
Com a falta de infra-estruturas de saneamento a gestão dos resíduos domésticos, e particularmente os dejectos humanos, torna-se um desafio sem solução aparente e uma ameaça latente à saúde pública. Tudo isto agravado pelo cheiro nauseabundo e a proliferação de ratos, baratas, moscas e mosquitos, poluição atmosférica, sonora e visual.
Anarquia económica
Um dos maiores problemas nas grandes capitais africanas é a coexistência tumultuosa entre a economia formal e a informal. Por um lado, a economia formal tenta impor as suas regras com recurso à lei e à repressão, e a economia informal defende-se através da sua inevitabilidade, resultante da anarquia e a urgência generalizada de sobrevivência.
Os mecanismos institucionais são normalmente frágeis, ou fragilizados por factores sociais, culturais e infra-estruturais. Os próprios agentes da lei e ordem carecem de formação adequada e são muitas vezes forçados a improvisar ou agir emocionalmente perante situações mais delicadas ou complexas. Por exemplo, um agente que cresceu e foi formado graças ao sacrifício da sua mãe vendedora de “badgias”, e que durante a vida estudantil se alimentou de “badgias” com pão, dificilmente terá coragem de confiscar uma peneira de “badgias” de uma vendedeira informal. De igual modo, nenhuma autoridade municipal teria coragem de parar com os transportes municipais, vulgo “my-love”, ou multar a sobrelotação dos transportes semicolectivos de passageiros sem que uma alternativa credível esteja disponível.
Uma particularidade dessa economia informal é a de viver nos limites e não gerar contribuições para o erário público. Por outro lado, a economia formal não progride porque vive atolada em impostos, burocracia e corrupção.
A concluir
O desafio da urbanização em África requer um profundo exercício de reestruturação e um esforço sistemático de planificação e gestão. Isso requer a emergência de uma liderança forte e visionária capaz mobilizar todas as forças vivas para um ideal comum.
Entre as acções mais urgentes, importa destacar a questão fundiária, relativamente à planificação territorial e o parcelamento de terras. As infra-estruturas básicas devem ser parte integrante da planificação e do programa de investimentos públicos.
Importa ainda criar incentivos para a permanência ou regresso ao campo, para descongestionar as cidades, promover o desenvolvimento rural e alargar a base económica. Como a tendência de urbanização é quase irreversível, uma solução viável para evitar o crescimento das megacidades seria a promoção de pequenas cidades, mais condizentes com as políticas de desenvolvimento rural.
É importante também combater a precaridade através de mecanismos institucionais, legais e económicos, de modo a promover a legalização dos negócios informais, o combate ao subemprego e dignificação da condição humana. Uma atenção muito específica deve ser dada ao papel das mulheres e dos jovens, através de políticas de formação e integração, programas de educação cívica, incentivos às boas práticas de convivência urbana, e o envolvimento comunitário em trabalhos de limpeza e preservação ambiental.