O País – A verdade como notícia

SIA-VUMA!

“Ínfimo gajo desajoelhado no que valho.

Olhado de esguelha pelos desiguais a mim.

Ladino na consciência de saber porquê.

Maningue longe da bíblia imagem de Deus.

 

Engravatado velho dândi antítese de santo.

Várias paixões puras aquém de um simples amor.

Quinquagenário magano de bicho-homem.

Até exímio futebolista quando quis.

 

Demo de muitas progenitoras de filhas graciosas.

Antipatizado por diversos maridos frustrados.

Irmão sincero dos mais fiéis amigos.

Concordando com o Basílio do Eça de Queirós.

 

Assim nesta minha artesanal peça de pau

em que escarafuncho elementar auto-efígie

– mesmo heterodoxo filo-marxista –

se não envergo bem talhado smoking

muito mesmo uso lustrosa libré.”

 

(José Craveirinha)

 

Este poema, intitulado “Auto-efígie”, que encerra uma auto-representação, remete-nos, no título, para a ideia de imagem, figura ou retrato. Comumente uma efígie é uma representação de uma pessoa numa moeda, numa pintura ou escultura. Há, no entanto, outras formas de efígies, como aquelas dos monumentos funerários na Idade Média. A despeito, o que me ateve na leitura deste texto é o acabado exemplo de tudo o que me tem suscitado o amiudado reencontro com a poesia de José Craveirinha. Disse-o algures e aqui reitero: muito do que é o melhor de Craveirinha está nos seus poemas menos conhecidos e naqueles onde não se exaltam os povos nem o destino dos oprimidos, mas nos textos onde fala de si próprio. Este texto, arraigadamente autobiográfico, é flagrante nisso.

José João Craveirinha nasceu a 28 de Maio de 1922 em Maputo e morreu em Joanesburgo a 6 de Fevereiro de 2003 – passam hoje 20 anos. É uma efeméride indeclinável e um pretexto para o ler e, sobretudo, alertar os incautos sobre a sua importância. O país anda demasiado entretido com a questiúncula política e distrai-se do que realmente importa. Referir esta infausta data também serve para incitar que o leiam. Sobretudo os neófitos.

O poema que preludia esta evocação denuncia o grande Craveirinha: o mestre da ironia. O vate sarcástico. Sardônico como poucos. Garboso na forma como se emula a si próprio. Não como constrói o seu auto-retrato, que aqui designa por “auto-efígie”. Mas como erige toda a sua obra poética. Para além de poeta, Craveirinha é um prosador primoroso. Contista e cronista. Também polemista. Jornalista de vulto. Como se tudo isto não bastasse: “Até exímio futebolista quando quis”.

É autor de versos que denunciam uma proficiência raríssima. As suas metáforas são inesperadas. As suas imagens inusuais. Leia-se este poema (“Auto-efígie”) e descobrir-se-á o que há de melhor no estro deste Poeta esplendente. A língua em Craveirinha resplandece, rutila, brilha, lustro que é prerrogativa de poucos. De pouquíssimos, digo.

Tenho convivido, assiduamente, com a sua manufactura poética. Para além do iterativo assombro que experimento, rememoro o amigo que me concedeu a láurea de partilhar a sua intimidade. Por isso, o verso “irmão sincero dos mais fiéis amigos” é-me, igualmente, caro. Senti isso do Zé. Sempre. Ao longo dos anos em que fui visita de casa ou companheiro de viagens e conversas e cumplicidades. Sobretudo quando o escutava. Quando partilhava a sua solidão e o seu desapontamento quotidiano.

Quem o conheceu saberá que ele não tinha um génio fácil. Não era apenas por ser “demo de muitas progenitoras de filhas graciosas” ou porque fosse “antipatizado por diversos maridos frustrados”. Ele próprio tinha os seus desafectos figadais. Era corrosivo quando abominava. Defendia intransigentemente quem amasse. Era mesmo um “irmão sincero dos mais fiéis amigos”. Aliás, num livro póstumo (“O Plebiscito”) há matéria bastante quanto aos seus desamores canónicos.

20 anos depois da sua morte não se pode dizer que ele esteja esquecido. Até porque, não raro, há iniciativas editoriais que intentam o contrário. 2022 foi ano do seu centenário. Pessoalmente não vi nada que merecesse o meu gáudio. Pareceu-me tudo exíguo, acanhado, escasso. Íntimo, particular. Gostaria de o ter visto distribuído, partilhado, universal. Como é a sua voz pujante e ecuménica.

A despeito, duvido que o leiamos como a sua importância reivindica. Creio até que o citamos profusamente, somos capazes de o festejar nas solenidades, de que a nossa gleba é particular e mediocremente jactante, mas não o lemos. Mal o conhecemos. Mal nos revemos na sua grandeza e generosidade.

Quem me conhece, sabe que não pratico, em relação à Pátria, expectativas desavisadas. Nem creio que os regozijos que se adivinhavam naqueles seus 100 anos nos instigassem para além do escasso júbilo privativo. Falta-nos o essencial: ler os nossos poetas. Poderíamos estar mais precatados. Não temos solicitude para a leitura, estudo ou reflexão. Como havemos de ler os nossos poetas? Restam-nos a enxúndia.

Leio-o sempre. E sempre que o alcance rejubilo. Retorno aos seus versos. É uma forma de o lembrar, de o celebrar. O esquecimento é a melhor folia da Pátria.

 

José Craveirinha:

 

“Amarrada

a tiras de trapos

minha geleira a prestações

é uma branca figura de retórica

no centro da cozinha.”

 

“Como único privilégio

os poetas usufruem a própria morte

para viverem ainda mais a sua pátria.”

 

“Não sei se existe Deus.

Mas se Deus existe

Ele está com toda a certeza

a comer comigo esta farinha

no mesmo prato.”

 

“E a vida

a injúrias engolidas em seco.”

 

“No febril conluio dos mútuos poros”

 

“e a gostar dos obséquios a soco inchando-nos o sorriso”

 

(Cela 1)

 

“no feitiço viril da insuperstição das catanas”

 

“e na capulana austral de um céu intangível”

 

“Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes”

 

“Eu tenho uma lírica poesia

nos cinquenta escudos do meu ordenado

que me dão quinze minutos de sinceridade

na cama da mulata que abortou

e pagou à parteira

com o relógio suíço do marinheiro inglês.”

 

“E eu sei poesia

quando levo comigo a pureza

da mulata Margarida

na sua décima quinta blenorragia.”

 

 “De cesarianas

do mar

vieram os pálidos navegantes

com espadas

com espingardas

com missangas

e com bíblias cá ficaram.”

 

(Xigubo)

 

“da rua em comissuras de saibro

plagia o azimute das mamanas”

 

“a cada milímetro do teu descaramento”

 

“no meu coração

em estado de sítio”

 

“Estamos sentados.

E nefelibatas bebemos coca-cola

nas públicas cadeiras da praça.”

 

“na madrugada dos meus olhos pardos”

 

“todos ávidos da evolução técnica mas impúbere

do teu ângulo azul-escuro de anjo na cama

namorados que levam de cada idílio contigo

a cosmopolita recordação das tuas gonorreias”

 

(Karingana ua Karingana)

 

Poderia citar, outrossim, “Tâmaras Azedas de Beirute”: “Toda a minha ternura vai inteira para Beirute”. Ou “Babalaze das Hienas”: “Na cabina do Toyota escavacado / espírito de madjone-jone Justino / fincado ao volante / acelera derradeiros / randes / na estrada / nacional / nº1”, “a gula das quizumbas / se baba nas beiças / das catanas, / dos machados”, “Eméritos felídeos à solta / cometem sumárias obstetrícias / variando cesarianas / à facada”, “pândega das metralhadoras”, “Daqueles sagrados palmares da Boror / água dos lanhos zambezianos / ensaguentam opíparos almoços das Donas / em pantuguélicras indisgestões / de chumbo”, “E das levianas rapsódias de bombas”. Poemas resolutos nestes dias ominosos.

 

Dois livros, apetecia-me dizer dois poemas, de uma virulência verbal, imagética e metafórica. Digo poemas porque a sua homogeneidade parece evidente e inquestionável e cada página acrescenta à composição de um mesmo poema imagens e metáforas. É como se estes poemas fossem um “continuum”. Isso acontece nestes dois livros. Como acontece em “Maria”.

Leio “Cela 1”: “Com um inofensivo alfinete mágico / nós os miseráveis sonhadores moçambicanos / de cerrados maxilares invocamos os desejos / e suspendemos os corações nas janelas / donde a lua e o sol quando entram / entram gradeados”. Leio, digo bem. Esta poesia não se relê. Lê-se sempre. Livro pungente. Livro de uma solidão habitada. Livro de um grande sobressalto poético. Livro de um “prestidigitador emérito”. Livro de amor. Livro indignado. Contra as “injúrias engolidas em seco”. Livro de um poeta irresignado: “Mas se é para me vender / vendo-me mas vendo-me muito caro. // Ao preço incondicional / de quanto me pode custar este poema”.

Poderia citar na íntegra o poema “Metamorfose”: “Nas noites / minha mão escultural / é um pensamento despido. // Em dois anos / meus dedos metamorfoses / de Sofia Loren e Claudia Cardinale / voluptuosamente só traíram / a minha ex-querida Ava Gardner / outro nome que não digo / e minha esposa Maria”.

Octavio Paz definiu, de forma sublime, a poesia: conhecimento, salvação, poder, abandono. Numa expressão feliz chamou-lhe “arte de falar de uma forma superior”. Ou, como muitas vezes é citado, como: “Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário”. A obra poética de José Craveirinha é a expressão cabal da definição de poesia que o grande Poeta mexicano inscreveu na pedra angular do tempo em “O Arco e a Lira”.

Num dos derradeiros poemas de “Karingana ua Karingana”, intitulado “Fraternidade das Palavras”, título e texto que me sugere uma aproximação ao Poeta americano Walt Whitman, José Craveirinha escreve:

 

“E eis que num espasmo

de harmonia como todas as coisas

palavras rongas e algarvias ganguissam

neste satanhoco papel

e recombinam em poema.”

 

Num ensaio intitulado “Algumas considerações em torno da poesia de José Craveirinha”, recolhido no volume inicial das suas sulfurosas “Crónicas dos Anos da Peste”, Eugénio Lisboa, conhecido pela sua viperina língua, quando se refere a este Poeta, tem uma expressão feliz: “uma voz virilmente indignada”. A sua poesia é sobretudo isso. A indignação visceral. Rui Nogar, outro grande Poeta moçambicano, dizia-nos sobre o seu companheiro: “Surge-nos então José Craveirinha e a sua poesia. Ambos radicados numa dolorosa experiência quotidiana”. Nogar sabia do que falava.

No aludido ensaio de Eugénio Lisboa este asseverava: “Há em Craveirinha – é mesmo esta uma sua característica nuclear – este gosto, este gozo sensual, esta posse, direi mesmo: esta alucinação, da palavra. Craveirinha morde a polpa das palavras, tacteia-as amorosamente, fá-las vibrar no poema, encoleriza-as…Craveirinha – por isso é poeta – faz amor com as palavras. Faz amor – é bem o termo: se ele nos choca, ainda bem – o objectivo é esse e não outro”.

A poesia do soberbo Poeta americano Whitman (“Folhas de Relva”) é um hino, um hino à vida, um hino ao amor, um hino à humanidade, um hino à fraternidade. Estes poemas de Craveirinha são sobretudo hinos. Belos hinos, digo. Cito estes versos de “SIA-VUMA”: “E deixem em nós gerar-se / irresistível a prole das sementes do beijo / consanguíneo do Grande Dia. SIA-VUMA!”

Este poema é um daqueles textos que fizeram a fortuna do Poeta. O livro “Xigubo” com poemas como “África”, “Hino à Minha Terra”, “Ode a uma carga perdida num barco incendiado chamado Save”, “Manifesto”, ou a colectânea “Karingana ua Karingana” com “Canto do nosso amor sem fronteira”, “Ode à Teresinha”, “Ao meu belo Pai Ex-emigrante”, “Dó Sustenido por Daíco”, “Hino de louvor a Valentina Tereskova”, “Carta para a Mãe dos meus Filhos”, entre outros, para além de “Sia-Vuma”, estão abundantemente carregados deste tipo de poemas, de grande fôlego, de arrebatamento, desse arroubo, que faz de Craveirinha, essa “voz do povo” e faz com que a sua poesia, como queria Paz, revele o mundo e crie um outro.

Mas também ele é, “língua dos escolhidos” e aqui radica sempre o meu reiterado esforço em mostrá-lo: este Craveirinha menos proclamado, que não o ouvimos nos pregões, nas proclamações ou aclamações, e que se revela nos aforismos, nos poemas menos conhecidos, nos versos líricos – de súbito, inopinadamente, abruptadamente, admiravelmente -, e que, quanto a mim, é o melhor Craveirinha. Aquele, outra vez recorrendo a Octavio Paz, que revela a “palavra do solitário”. Como no poema “Auto-efígie”, aliás. E daí ter usado o mesmo para encimar esta homenagem.

Contudo, por onde começar a ler a sua obra? Pela sua lírica, por vezes pungente? Pelos poemas de grande fôlego como “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”? Pela “voz do povo” ou “pela língua dos escolhidos”? Por onde se começa? Como faz um principiante? Começa por ler um poema como “História de Amor”?

 

“Maria de uma canção de amor

liberta minha solidão secular

a salvo-condutos de ósculos da tua boca

e enquanto minhas mãos procuram tua angústia

e cerras outra vez as pálpebras sombreadas de volúpia

ah, Maria, quantas vezes morremos?”

 

Quem escreve isto é um grande poeta: “e enquanto minhas mãos procuram tua angústia”. Isto é de uma beleza desarmante, de um grande conseguimento. Há muitos exemplos destes na poesia deste grande oficiante da língua.

 

 “Minha tão bela esposa Maria

Cinquentenária jovem isenta de frívolos aniversários.”

 

Isto é de uma extraordinária elegância. Aqui também está o grande Poeta Craveirinha. Do mesmo poema cito:

 

“Minha mais amada por mim dos que as frívolas

raparigas de provocantes fémures desnudos.”

 

Ou ainda:

 

“E com meus defeitos e suas qualidades

compúnhamos o mais incongruente invejado casal perfeito.”

 

Craveirinha – disse-o e repito – é um mestre da ironia, é um mestre da metáfora, é um mestre da imagem. A poesia é sobretudo isso. A imagem, a alegoria, o tropo. Este poema está repleto desse arsenal metafórico ou de imagens alegóricas que fazem dele um grande Poeta. Era importante que o lessem. Há para aí pressurosos versejadores que não leram os Mestres, que não se detiveram no Craveirinha. Seriam mais pudicos e menos ufanos. Poupavam-nos do seu priapismo cibernético pretensamente poético. Perdem muito. Perdem sobretudo o assombro de um verso, como este que encerra o poema “Maria. Salmo Inteiro”, que é um verdadeiro achado: “o mais mudo sotaque do último chão”.

Isto só é permitido aos escolhidos! Aos escolhidos pelos deuses! José Craveirinha é um desses pouquíssimos escolhidos e está na condição de um grande Poeta!

 

SIA-VUMA!

 

Cidade do Cabo, 6 de Fevereiro de 2023

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos