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A Metamorfose e Outros Contos: a confusão moral e mortal dos homens[1]

Uma síntese amorosa e (in)suspeita

A narrativa a que Aldino Muianga nos tem habituado inscreve-se no que considero uma tendência estética do idealismo da literatura moçambicana. Se procurássemos um autor que sintetizasse esta tendência, encontraríamos em José Craveirinha, cujo centenário de nascimento celebramos este ano, o seu exemplo acabado. Trata-se de uma tendência que concebe a arte e o artista como entidades comprometidas com uma espécie de melhoramento da sociedade, o que exige do artista uma tomada de posição, que pode ser de natureza politico-ideológica ou cultural, quando não é a síntese de todas estas possibilidades.

A propósito de Aldino Muianga, gostaria de destacar a dimensão cultural e existencial deste idealismo, que faz do artista um incansável revolucionário, um renovador em busca de um bem que se resume na restauração do equilíbrio fundado nos valores da tradição moçambicana e, inclusive, de toda a humanidade. Trata-se, portanto, de um equilíbrio perdido, sobre o qual o autor escreve com foco no nosso presente irónico, ou seja, mirando o nosso desequilíbrio. E não me parece inegável que, para além de ser um facto, o desequilíbrio do nosso destino colectivo tem-se arrastado, insistentemente, despercebido. Ora, é para aqui que são chamados os escritores, para revelarem as enfermidades mortais da nossa época, como diria o poeta Pierre Emmanuel.

A Metamorfose e outros contos não escapa, com efeito, a esse desígnio restaurador. Há nesta obra, e nas outras do mesmo autor – bem como nas de outros narradores moçambicanos –, uma alteridade auto-reflexiva, isto é, um diálogo entre um eu de identidade suspeita, mas revelada nos caracteres das personagens e suas acções, que busca um outro, velado e supostamente perdido e a resgatar na idiossincrasia daquele eu. Esse outro a resgatar é, hoje, o outro da utopia, mas de uma utopia concreta, necessária, urgente. O narrador de Aldino configura-se, portanto, como entidade que, ao narrar histórias, revela-se ou como sujeito múltiplo de memórias, tensões e conflitos, guerras mesmo e pazes, ou constrói personagens com essa condição de entidades ambíguas e ambivalentes.

Em qualquer das hipóteses que acabamos de apresentar, uma análise discursiva à obra haveria de sugerir que, em última instância, quer o narrador, quer as personagens emanam de Aldino e seus conflitos e utopias. Não me vou alongar nesta questão, não é agora o momento. Mas faço a insinuação a pensar que o nosso passado colonial fez dos sujeitos moçambicanos e, por conseguinte, dos artistas que um dia dão à estampa, indivíduos irremediavelmente híbridos culturalmente. De resto, as nossas atitudes ou práticas sociais são, não raras vezes, um sim e um não ao mesmo tempo, geralmente um talvez. Somos uma sociedade de conveniências: para alguns «talvez devêssemos resgatar o melhor do nosso passado», para outros «talvez devêssemos contrui o nosso futuro» ateando fogo à memória, como diria o poeta Andes Chivangue. Enfim, somos mais ou menos assim. Seria justamente por isso que a arte, em Moçambique, poderia ser vista como produto da síntese, amorosa e (in)suspeita, de uma relação entre um sujeito que, no presente da História social, busca definir-se através do resgate de um ente que se encontra aprisionado num passado idealizado e projectado para o futuro. E razões para explicar isto não faltarão: o nosso passado de agressão pode ser uma delas. As guerras criaram sombras de quem somos, sombras que ficaram perdidas num imaginário que, de forma angustiada, os artistas da geração da nossa utopia procuram trazer à luz. Não causa espanto, portanto, que esta narrativa de resgate nos seja dada a conhecer de modo invertido, a partir do que Francisco Noa designa «desagregação do sentido de pertença a um determinado território.»[2]

A desagregação dos territórios

Esta desagregação dos territórios é, portanto, irónica na obra de Aldino, mesmo se considerarmos que a sua prosa é rica em descrições paisagísticas ou em personagens pitorescas, que procuram justamente ancorar o nosso imaginário colectivo. De facto, o espaço preferencial desta estética tem sido, na obra do autor, o subúrbio. Aqui pululam essas personagens modelares, que estruturam os ambientes ricos de tensões e conflitos vários, quantas vezes hilariantes. É, efectivamente, no ambiente suburbano que se inscrevem as narrativas de desagregação. Mas não só, Aldino inscreve essa gramática levando-nos a passear também entre o subúrbio e a cidade, entre o centro e a periferia. De uma forma geral, trata-se de uma estrutura narrativa em que, no início das histórias, o mundo é marcado pela estabilidade das relações, mas dá-se sempre a violação dessa estabilidade, de tal ordem que o desenlace constitua a desagregação da harmonia inicial. Aliás, esta é uma lógica cara aos autores da sua geração, como são os casos de Marcelo Panguana, Suleiman Cassamo e Ungulani Ba Ka Khosa. Nos seus enredos, há uma preocupação obsessiva com o arranjo estrutural do mundo, como diria o esteta Denis Huisman, a propósito da missão do artista.  É, portanto, uma narrativa irónica que nos obriga a repensar o passado e na sua valorização.

Não me parece, entretanto, que A Metamorfose e outros contos seja apenas a confirmação desta gramática, inscrita já na sua primeira obra, Xitala Mati, de 1987. Efectivamente, para além do já referido cenário preferencial das suas histórias ou da função moralizadora da literatura, que se percebe na estrutura dos enredos, gostaria de destacar duas categorias a que o autor recorre de forma apaixonada nestes contos: o tempo e as personagens. Considero particularmente interessante a opção de Aldino pelo tempo da noite e pela figura da mulher para a realização das metamorfoses.

A palavra metamorfose significa mudança de forma. Concordemos que as formas, dependendo do que elas produzem, podem ter estruturas físicas ou ideológicas, de modo que, para além de uma transformação da aparência física de personagens e lugares, possamos esperar uma transformação também ao nível da sua aparência moral. E é o que, de facto, acontece neste livro. São, estas, histórias de transformações. E os temas são vários, passados e actuais. Cito apenas alguns, muito sugestivos das transformações que se podem esperar: são os casos do insólito, do fantástico, da loucura, da infância, da segregação racial, do incesto, da Justiça e da exploração dos recursos minerais, estes dois últimos, como disse, capazes de nos recordarem eventos da actualidade moçambicana.

Dissemos que as metamorfoses acontecem geralmente de noite. Importa agora destacar, tal como referem os estudiosos dos símbolos, que a noite simboliza o inconsciente. Ao longo dos contos, a dimensão da inconsciência é representada por cenas de sonho e de uma ambiguidade ou entre-lugar da realidade e da fantasia, que o autor compõe estrategicamente para criar uma espécie de vertigem para todas as possibilidades. Daí que é à noite que se dão eventos insólitos, metamórficos, pincelados, em alguns casos, com imagens orgíacas e ritualísticas próprias do universo da ancestralidade, a que, geralmente, se vincula o espaço do campo. O teletransporte e viagem no tempo tornam-se eventos cuja origem, afinal, radica nos rituais tradicionais, antes dos físicos modernos a descobrirem. Toda esta atmosfera desafia e convida o leitor a regressar a um tempo e lugar míticos, mas o leitor vai resistir, pois entrará em confronto com uma lógica que não se adequa aos seus princípios cartesianos, onde não há lugar para sonhos reais. Achei, por isso, acertada a opção de Aldino em abrir o livro com o conto “A metamorfose”. É um conto que derruba o leitor, obrigando-o a entrar nos jogos que se seguem sem o temor do desconhecido ou do impossível. O convite à aceitação do desconhecido e até do obscuro ganha particular interesse nos contos em que o narrador é igualmente personagem da história. Seja como protagonista ou apenas personagem secundária, capaz de assegurar a veracidade dos eventos inadmissíveis ou incompreensíveis, o facto de o narrador testemunhar algo que vivenciou acentua o mistério e o enigma que envolvem as tramas, servindo, esta estratégia, para manter o leitor no curso dos acontecimentos. Mas referi, também, que a mulher era outro elemento determinante das transformações que geralmente ocorrem de noite.

As mulheres dos contos de Aldino Muianga recordam-nos as míticas mulheres «“anti-homens”, que procuram eliminar o macho ou reduzi-lo a estados inofensivos, se não subalternos»[3]. Estamos perante o complexo de castração que faz das mulheres as mais fortes, mesmo que sob o véu da fragilidade. É um véu que constrói a aparência de um ser fraco, relegado a um lugar subalterno. Se é também de noite que elas se revelam, nas metamorfoses que ocorrem, essa noite que é o tempo da inconsciência, então sugere a obra que a mulher é o lado inconsciente do mundo, e isto deve-se ao seu papel sedutor, disfarçado sob o véu da fragilidade. Assim se explica um tema caro à obra de Aldino como é o da prostituição, por exemplo. Aliás, os temas da prostituição e do adultério podem funcionar como ressonâncias do mito de pandora, no qual a mulher pode ser vista como a origem do bem e do mal do mundo. Neste livro, esse poder de sujeitar o homem é, por extensão, por assim dizer, o poder da mulher de ordenar o mundo através da acção do homem. Daí a confusão moral e mortal dos homens: de acreditarem que estão na vanguarda das decisões e acções que movem universo. Parece-me, enfim, que Aldino sugere que toda a acção é desencadeada pela mulher. De resto, por ela existem as histórias deste livro, não fosse esse o legado que nos fica d“A lição da avó”, a mulher que confiou a Aldino a arte de contar histórias, que aqui se resume no seguinte: saber ver, saber escutar e saber deixar o coração falar.

Obrigado por terem deixado o meu coração falar!

 

[1] Versão revista do texto de apresentação da segunda edição do livro A Metamorfose e Outros Contos, de Aldino Muianga, no dia 18 de Outubro de 2022, no espaço Boske.

[2] Noa, Francisco. A Letra, a Sombra e a Água: ensaios e dispersões. Maputo, Texto Editores, 2008, p.45.

[3] BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de Mitos Literários. 2.a Ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998, p.745.

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