O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

Quando se domestica um membro da nossa espécie,

diminui-se o seu rendimento

Jean-Paul Sartre

 

Como é que um vivo pode estar morto ou, sendo morto, estar vivo? Esta colocação lembra-nos “O regresso do morto”, texto em que um “finado” deixa de ser isso num ápice, ao ser desenterrado na memória. Aquela narrativa de Suleiman Cassamo tem muita relação com a nova de Lucílio Manjate, A triste história de Barcolino, pois, em ambas há um personagem decadente, a resistir para não morrer de facto. Como calha no personagem Moisés, de Cassamo, em Manjate temos Barcolino que se esgota num trabalho difícil. Mas neste, não é a prospecção do subsolo o ofício, e sim o mar (a pesca). Daí o nome do nosso herói sofredor: Barco+lino.

Semelhanças à parte, em A triste história de Barcolino, Manjate conduz-nos ao Bairro dos Pescadores para encarnarmos os insucessos de um personagem que transporta consigo muita existencialidade. Por via do protagonista, temos a descrição de um certo estrato social, cujos problemas resumem-se na infelicidade de terem uma vida sossegada e abençoada. Brincando de ser cruel, Manjate destrói a vida de Barcolino, um sujeito incompreendido quer pela sua esposa Cantarina, quer pelos moradores do seu bairro.

Escrevendo sobre Barcolino, Manjate assume-se como um escritor sensível aos dramas, fazendo disso um exercício capaz de provocar questionamentos sobre certas atitudes do Homem, que, muitas vezes, prefere julgar ao invés de compreender. A triste história de Barcolino é uma narrativa de incompreensões, de traumas, obsessões, escolhas e propósitos. Esta é uma narrativa sobre a condição humana e sobre como o Homem, em geral, reage quando o seu semelhante encontra-se numa situação desfavorável ou contrária à sua. Para o efeito, o autor combina Barcolino e Cantarina, com suas frustrações e desilusões. 

Mas por que Lucílio Manjate aposta num enredo em que o amor e a felicidade são sentimentos transformados em cinza? Por que, nesta novela, as relações entre personagens são miseráveis? Por que o amor é matéria-prima para sangrar corações de quem ama um e é amada por outro? Podemos responder a estas questões citando o seguinte excerto: porque “ – O mundo precisa de uma bela tristeza”. Entretanto, aí surge uma outra questão: por que o mundo precisa de uma bela tristeza? Talvez, porque as belas tristezas prendem mais do que as belas alegrias.

Até hoje, o mundo chora o fim de Titanic ou de Jesus Cristo. Se o navio tivesse chegado aos EUA e o Messias tivesse morrido feliz numa cama de palha, não haveria história secular. É assim, precisamos chorar para aprender o preço do sorriso. Além disso, há um efeito catártico nas tristezas – sobretudo se forem trágicas –, que, depois, nos levam a investir numa alegria. Na verdade é isso. Ao escrever sobre a tristeza de Barcolino, Manjate retrata o cenário que afecta os incompreendidos, coitados, carentes de amor e de tudo o resto, descrevendo a vida dos que vendem o suor por um abraço, mas, ao invés disso, colhem humilhação. Assim, Manjate revela-se um autor preocupado com a espécie humana, pois, ao partilhar as tristezas enterradas nos seus universos interiores, na verdade, está a criar um mundo bom, tendo como princípio o investimento numa trama sobre do que é feito a nossa realidade. Barcolino somos todos nós a tentar navegar no barco de que fomos feito. Esta história propõe-nos curar o nosso herói, por nele existirmos, e os seus detractores. E curar toda essa “gente”, o medo de perdoar, de voltar a acreditar e a amar, é fazer da literatura parte de um conflito, no entanto como solução.

 

Título: A triste história de Barcolino

Autor: Lucílio Manjate

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 15

 

Estava sentado no mercado Mandela. A minha frente estava uma Torre Eiffel levantada com pilares de batatas bem fritas, o peito mal assado do frango era a Casa de Ferro enferrujada da Cidade de Maputo. A salada de alface sangrando o vermelho do tomate, o arroz pintado pelo batom da cebola e o carril que descaía pelo prato e pelo pano branco da mesa era como água suja dos prédios lutando na entrada dum esgoto com um cadeado de resíduos sólidos; tudo isso dava um ar gostoso ao prato.

Os gatos vigiavam cada osso que minha dentadura não conseguia resmungar. A vendedeira aguardava pela ida da minha mão ao bolso para o quebrar o vaivém dos seus olhos ao meu garfo e faca.

– “Mano, melhor pagar agora para facilitar o troco” – disse ela afogando suas mãos na algibeira do seu avental sujo, com um bordado no fundo, mal escrito: “Quiosque Dona Xperaçinha”. Pena que Mandela não conheceu esse mercado. Este pensamento aconteceu-me quando o gás da coca-cola desbravava os pêlos das narinas.

Um rapaz sem caminha vinha correndo do fundo das bancas. Corria atrás duma borboleta. A borboleta tinha suor de vento nas asas e seu corpinho, minúsculo, carregava um botija de cansaço às costas. O rapaz tinha olhos puxados para cima, a cabeça menor, o nariz pequeno como um amendoim, o corpo coberto por uma tecido de gordura, os seus cabelos lisos voavam no caminho que a borboleta abria e suas orelhas pequenas não captavam o barulho que o mercado fazia; eram como antenas sem altura.

– “Esse aí é maluco”. – “Mentira é doente”. – “O filho é maluco, os pais são ricos; há alguma raiz no meio”. As senhoras do mercado batiam-se tal qual lutam os deputados na Assembleia. Discutiam decretos de preconceitos, leis de estupidez e pequenez. O rapaz com síndrome de Down não parava de correr atrás da borboleta enquanto isso as deputadas do mercado discutiam e aprovavam verdades sobre si nas panelas e faziam das suas colheres de pau martelos de decisão.

A borboleta rasgou o tecto do mercado como vozes muçulmanas rasgam o tecto das mesquitas. Sumiu a borboleta. O rapaz olhou as senhoras deputadas. Seus olhos sobre ele pareciam câmaras de televisões públicas. Chorou. Chorou. As lágrimas desciam como chuva humana dos seus olhos com inclinação lateral. Achegou-se a um lavador de carros que comia à mão e disse:

– “Aquela borboleta é minha. Você pode me levar à sua casa?”

Olhei a estupidez de todos que estão no mercado. Olhei aquele garoto com síndrome de Down. E vi que todos tinham síndromes mais maléficos que a síndrome daquele garoto. Todos tínhamos síndromes e o garoto era o único que via.

Reajustei-me na cadeira. Olhei a Torre Eiffel levantada com pilares de batatas bem fritas, o peito mal assado do frango que era a Casa de Ferro enferrujada da Cidade de Maputo. A salada de alface tesa de vermelho do tomate, o arroz pintado pelo batom da cebola e o carril que descaía pelo prato e pelo pano branco da mesa era como água suja dos prédios lutando na entrada dum esgoto com um cadeado de resíduos sólidos. Olhei tudo aquilo. Paguei o prato e sumi na síndrome da cobardia e do desaparecimento…

 

 

“Cogito, ergo sum” René Descartes

Porque enquanto humanos corremos riscos de sermos seres pensantes mas que não pensam. E o pensar é um exercício espiritual que busca o sentido das coisas compreendidas no tempo e no espaço. Esta actividade é condição sine qua non para o homem salvaguardar a sua consciência e tornar-se o princípio das suas acções.

À toda humanidade é mister filosofar em nome duma contínua actualização da consciência sobre o trajecto do nosso mundo e a preservação da nossa condição humana. Entre filosofar e pensar há uma relação de subordinação, na medida em que filosofar é a forma mais sublime de pensar. Ao invés de pensar o mundo, num sentido vulgar de procurar  o seu significado dentro dum sistema convencionado, o homem deve pensar o mundo, num sentido regenerativo e inconvencionalmente humanitário. Urge o homem aprender a pensar “fora da caixa” e gerar cada vez mais consciências cósmicas e menos locais. O tipo de homem que a filosofia nos pode oferecer quanto mais cultivada ela for é um homem cosmopolita, abolidor das fronteiras e eterno destruidor das cavernas platónicas.

Ainda que se nos afigure onerosa tal tarefa de pensar o onto-existencialismo das coisas do mundo, o desafio é deveras mais nobre em relação à abdicação mental capaz de nos gerar um mundo fantasmagórico. Devemos filosofar como forma de salvaguardar a nossa existência num mundo em que as coisas ainda cooperam entre si numa ordem supra-sensível. Em primeiro lugar, haja o pensamento, depois a acção, de modo que esta seja comedida e racionalmente justificável.

Descartes já havia dado tal aviso: ''para agir bem, basta pensar bem''. Agir bem significa operar uma acção que resulta duma consulta minuciosa da nossa própria faculdade racional. Um indivíduo que não pensa torna-se vulnerável a inadequadas decisões. E se ainda lhe restar a consciência, no fim da sua acção, perguntar-se-á: ''porquê fiz aquilo?'' – uma pergunta a fazer quando se nos escapa o sentido das nossas acções – ''PORQUÊ?'' é a pergunta-mãe de todo o acto de pensar. E o porquê busca exclusivamente o sentido. Em todos os casos, o sentido equivale à direcção, ordem, lógica, coerência, seguimento – elementos que gnosiologicamente nos permite relacionar connosco mesmos e com as coisas à nossa volta. Imagina se nos escapasse essa faculdade de pensar que é sustentada pelo próprio acto de pensar? Restar-nos-ia o pathos, o instinto e o preconceito. E como seria nos mover num mundo guiado pelo pathos, instinto e preconceito? Seria paradoxalmente caótico e automático. O homem agiria em função dos seus desejos imediatos, sem ponderar eticamente os meios e consequências. Doutro lado, ele agiria docilmente sob o comando de correntes ilusórias. A ausência da filosofia nos abre dois mundos: um mundo nihilista em que os homens se permitem todas as loucuras possíveis resultado de estímulo-resposta e outro em que os homens não são mais que ovelhas sob o comando de doutrinas fantasmagóricas.

Estes são os mundos dos quais Sócrates quis nos livrar, quando, em vida, apelava para os atenienses reflectir sobre as coisas que faziam no seu dia-a-dia. Ao longo da caminhada filosófica, ele ia percebendo que as pessoas faziam suas actividades sem pensar nelas, ou seja, ignorando a sua essência, a razão da sua existência e implicações. Sócrates questionou os poetas e eles não souberam dizer-lhe o sentido da sua poesia. Os oradores não souberam comunicar-lhe o sentido da sua retórica. Os juízes não lhe responderam o sentido das leis. Não que estas coisas, per si, não tivessem sentido, mas os homens haviam alienado a sua razão ao sonambulismo da rotina, do hábito e dos preconceitos consuetudinários. Todos eles achavam que sabiam o que, na verdade, não sabiam.

Todavia, não sejamos Sócrates, sejamos uma espécie de Sócrates. Este homem grego foi definido tautologicamente como um pensador, como quando se define alguém como ser falante, ouvinte ou respirante, sem lhe acrescentar nada que esteja fora da natureza humana. Mas porque merceu tal destaque entre os humanos quando  ele apenas exercitou uma faculdade inerente a todos os humanos? Sócrates nem precisou de grandes sacríficios para fazer justiça à sua faculdade racional, ou seja, ele viveu uma vida comum dum homem da polis, chefe da família, rodeado de amigos com quais trocava ideias e copos de cerveja. Sócrates foi o modelo dum homem normal que simplesmente se pôs a exercitar as faculdades que lhe eram intrinsicamente humanas. Por isso, sendo nós homens definidos como animais racionais por natureza temos obrigação de fazer justiça à essa faculdade que nos distingue superiormente de outros seres vivos.  

No séc. XXI, a filosofia vem perdendo espaço na esfera intrapessoal e interpessoal por conta das ideologias em forma da política, religião e moral social. Hoje em dia, pouco questionamos a justiça dos nossos sistemas políticos, a sabedoria dos mandamentos religiosos e o bem dos nossos valores sociais. Andamos preocupados com o imediato e ignoramos o necessário. Como consequência disso, vivemos em tempos de consumo desmedido, desequilíbrio económico, terrorismo ideológico,  insegurança nuclear e torpeza sexual.

Falta-nos o filosofar, condição sin qua non para nos evadirmos da caverna platônica e destruirmos os ídolos baconianos que nos impedem de ser super-homens nietzschianos. Ousemos pensar as coisas em primeira mão, antes de nenhuma teoria ou doutrina alienantes.

Devemos filosofar, pois quanto menos filosofamos, mais propensos a horríveis crimes estamos. O povo hitlerista e o povo stalinista foram, por excelência, a expressão duma humanidade que abdicou da actividade de pensar fora dos sistemas a que se encontravam submetidos ao ponto de permitir que milhares de crianças, mulheres e homens judeus fossem conduzidos a câmaras de gás. Era uma humanidade cujo pensamento estava preso em camisas-de-força da ideologia. A filosofia é necessária para todos os humanos, pois glorifica o que há de mais sagrado no homem: o espírito. O tempo de filosofia é agora. Não há idades para filosofar-se.

Se fôssemos ensinados a filosofar desde criança, ao assistirmos aos desenhos de Cinderella, já nos teriamos perguntado porquê, quando o feitiço da fada madrinha expirou, desfizeram-se o vestido, o cavalo, a carroça, os motoristas, mas os sapatos de cristais de Cinderrela mantiveram-se intactos.
Ao sermos introduzidos à religião, se calhar, indagassemos se Deus é todo-poderoso, porquê não acaba duma vez com o senhor diabo.

Ao passearmos pelo supermercado, talvez, pudessemos questionassemos porquê um anel de diamante custa mais caro que uma bicicleta.
Ao vermos a televisão, provavelmente nos perguntariamos porquê essa senhora que desfila semi-nua é mais rica que meu pai camponês.

Porém, nada disso acontece. Somos nascidos com calhamaços de lições à nossa espera, sem antes termos experimentado o mundo. Nas escolas, somos ensinados as respostas e nunca as perguntas. A ordem da vida é primum vivere, deinde philosophari. Mas se os romanos tivessem dito o contrário, como o mundo seria? O que nos é mais conveniente: viver para pensar bem ou pensar bem para viver?

Filosofar é desconstruir os velhos hábitos mentais.

 

Confesso que foi uma grande surpresa para mim, ter recebido este convite para vir proferir uma aula de abertura do ano académico, na Universidade Pedagógica, mais propriamente na sua Delegação de Massinga.

Em primeiro lugar, a gente considera que quanto mais longe da Capital, menos nos conhecem, por isso foi surpreendente este convite, que muito me honra.

Em segundo lugar, é a primeira vez que me dirijo a académicos e estudantes da Universidade Pedagógica, num Distrito onde, naturalmente os momentos de reflexão como este, são raros e por isso, maior é a exigência de quem tem a ventura de ser chamado para o efeito.

Não é a primeira vez que estou perante académicos e estudantes da Universidade Pedagógica. Já estive em Maputo e na Beira, para o mesmo efeito, mas esta presença em Massinga, tem particular importância, pelo facto de ser Massinga, a minha primeira vez na Pedagógica, na província de Inhambane. Por isso, quero agradecer aos dirigentes desta Delegação e manifestar-lhes a minha emoção por poder estar aqui e partilhar convosco algumas linhas de reflexão sobre o tema que me propõem.

Naturalmente, que não posso deixar de estender o meu cumprimento ao Magnífico Reitor da Universidade Pedagógica, Prof. Doutor Jorge Ferrão, amigo de longa data, companheiro e cúmplice de muitas caminhadas.

O tema que me propõem, exige de mim que entre por ele com algumas notas introdutórias. Logo na primeira expressão “Visão Estratégica da Liderança” , aparecem três conceitos que nos levam a uma percepção de movimento. Visão demonstra uma percepção do olhar à distância para prevenir obstáculos e procurar êxitos. Visão significa que o visionário só pode dar passos seguros que sejam em direcção ao êxito. Estratégica é um conceito que foi retirado do contexto militar, adoptado depois pela Economia e pela Gestão. Falar de Estratégia, significa pensar-se antes de encetar qualquer caminhada, de modo a apetrechar-se, para evitar percalços ao longo do percurso que se vai ter, tendo em conta as probabilidades de obstáculos que podem ser encontrados. Estratégia não é mais do que definir os contornos de um percurso, colocando em cima da mesa, todas as variáveis que podem facilitar ou dificultar a caminhada mais o objectivo definido.

Os militares quando vão para as campanhas bélicas, nunca deixam de se reunir primeiro, para planificar cada passo que vão dar, analisando os prós e contras que possivelmente podem estar no seu caminho e quais as probabilidades de os ultrapassar, tendo como fim último, o êxito da missão.

Finalmente, “Liderança” é um termo que foi retirado da Política e dos Desportos que por sua vez foram buscar estes conceitos aos primórdios da História da Humanidade, sobretudo entre os caçadores, no início da formação dos grupos sociais. Líder significa aquele que melhor sabe conduzir os seus pares para qualquer êxito. Os Romanos chamavam-nos primus inter pares, o primeiro entre iguais.

O conceito Liderança diferencia-se completamente do conceito Chefia. Chefe vem do latim caput, que significa cabeça. Por isso, o Líder conduz de uma forma horizontal e o Chefe conduz de uma forma vertical. Chefe é obedecido pelos subordinados e o Líder é acompanhado pelos seus pares. Nunca devemos confundir estes dois conceitos liderar ou chefiar, duas formas muito diferentes de comandar uma missão.

A segunda parte do tema que me apresentam, “Instrumento para o Desenvolvimento da Comunidade em Tempos de Crise” , o conceito Instrumento, leva-nos a considerar que o homem para alcançar determinados fins, precisa de amplificar as suas capacidades, utilizando elementos que reforçam essas mesmas capacidades. Um guerreiro destemido é muito mais forte com a sua arma. Um orador exímio é muito mais forte com a sua oratória, um músico talentoso é muito mais forte com a sua viola, com o seu saxofone. Todos esses adereços que são usados para reforçar a capacidade de alguém, são elementos importantes e mostram que quando bem usados alcançam resultados seguramente mais vantajosos. Naturalmente que a conjugação de uma visão estratégica de liderança necessita de instrumentos que permitam poder chegar a áquilo que é no fundo a pretensão última do tema que venho aqui desenvolver.

Falar de Desenvolvimento da Comunidade em Tempos de Crise, pode parecer um paradoxo, porque em tempo de crise é suposto não haver desenvolvimento, porém como atrás se referiu, há uma visão estratégica de liderança, o que significa que em tempo de crise é sempre possível aqueles que o são “primus inter pares”  ter a criatividade suficiente para usando das suas diversas capacidades como instrumento, conduzir os seus pares ao encontro de identificação de oportunidades, de modo a que a crise não seja o fim, mas sim o ponto de partida para se começar a caminhar. Como se diz vulgarmente “A crise nunca será um obstáculo, mas sim uma oportunidade” .

 

Minhas senhoras, meus senhores, caros colegas e caros estudantes,

Na proposta do tema a desenvolver não se tipifica o conceito Comunidade. Este facto deixa em aberto a abordagem que vou fazer sobre como contribuir para o Desenvolvimento da Comunidade em Tempos de Crise.

No sentido mais amplo, uma comunidade pode coincidir com a sociedade, isto é, falamos de crise internacional, logo toda a Comunidade Humana sofre efeitos dessa crise. Mas também podemos fraccionar o todo por diversas partes que compõem o expectro, assim, a crise internacional afecta a comunidade de trabalhadores, a comunidade empresarial dos países pobres, a comunidade de agricultores, a comunidade académica e por ai abaixo.

Quer isto dizer que os sintomas da crise não duram para sempre, daí a determinação “Em tempos de crise”. Contudo, todos sabemos que apesar de as crises terem o seu ciclo de vida, quando estas reaparecem de uma forma cíclica, assumem a natureza de síndrome e podem provocar ansiedade e pânico.

Minhas senhoras e meus senhores, caros colegas, caros estudantes

Vivemos em África e temos que olhar o mundo a partir desta realidade. O nosso continente, os nossos países não são pobres, mas as nossas populações são muito pobres e as nossas instituições são demasiado frágeis e pouco funcionais para enfrentar com robustez os desafios globais. A partir deste pressuposto devemos interrogar-nos que tipo de liderança precisamos para enfrentar esses desafios globais. Quero chamar atenção prévia antes de desenvolver esta questão.

Temos um enorme defeito de considerarmos que o Governo do dia é que é o único responsável por tudo quanto de bom ou de mal nos acontece. E que os nossos políticos não se preocupam com os seus povos. Mas esquecemos de que cada povo tem os políticos que merece. É o reverso da medalha.

Desde que os Países Africanos saíram da situação de dominação colonial que vivem permanentemente em situação de alguma crise qualquer, seja ela política, seja ela económica e financeira, seja ela resultante de calamidades naturais, seja ela de golpes de estado, seja ela de conflito de vária ordem e até guerras, umas civis, outras entre estados.

Esta situação tem nos levado a uma percepção de que no nosso Continente, as coisas não estão bem. Quer isto dizer, que os Afro – pessimistas de dentro e de fora, juntam-se em coro para proclamar de que África é um continente inviável por culpa dos próprios africanos. O afro – pessimismo é, não só um preconceito, como também uma ideologia e até está a torna-se sobretudo numa teoria. Qualquer que seja a sua aferição, desde um puro preconceito com base no senso comum, passando por posicionamento ideológico de que falta à África uma escola que produza de uma forma genuína e sistemática uma escola de liderança que verdadeiramente se preocupa com as questões da boa governação, até desembocar nas tentativas de produção teórica de que a África é um continente inviável, devido á falta de reflexão epistemológica verdadeiramente africana, isto é, falta aos africanos um pensamento produzido pelos próprios. Tudo isso entronca directamente no eurocentrismo. Quer isto dizer que, do ponto de vista africano, dada a convicção do fracasso das suas dinâmicas, a solução deve ser encontrada a partir dos pressupostos eurocêntricos, ou seja, a partir dos modelos ocidentais.

O pior é quando são os próprios africanos a pleitarem pela validade dos modelos eurocêntricos para a salvação de África, sem que haja qualquer crivo que permita a indigenação dos pressupostos filosóficos e dos elementos que permitiriam a produção de parâmetros apropriados para o desenvolvimento de África como sujeito no contexto global.

Contrariamente ao que se possa supor o Afro – Pessimismo tem estado a crescer a par do surgimento de cada vez maiores assimetrias que se vão constatando entre a África e os outros continentes. Do ponto de vista político, os dirigentes africanos de uma forma geral não têm merecido um grande apreço junto dos seus pares de outros continentes, mercê de atitudes a eles próprios imputados, nomeadamente a evidente preocupação de se perpetuarem no poder, o descaso que fazem às constituições dos próprios países, o desprezo às Instituições credenciadas que possam monitorar problemas de má governação, a incapacidade de combater com eficácia o fenómeno da corrupção, a fragilidade das organizações da Sociedade Civil, a intolerância e desrespeito pela opinião de quem pensa diferente e o desrespeito dos direitos fundamentais do cidadão, nomeadamente à justiça, à habitação condigna, à saúde, à educação, ao transporte e ao serviço público eficiente e eficaz.

Contudo, devemos considerar que nem sempre foi assim. A África já produziu filhos que foram capazes de reflectir sobre o futuro de África e muitos deles conduziram este continente de uma forma exemplar rumo à erradicação da dominação colonial. Então pergunta-se onde e quando é que perdemos o foco?

 Em 1993, os dirigentes africanos decidiram liquidar a Organização da Unidade Africana – OUA e criar a União Africana – UA, fizeram nessa ocasião uma profunda reflexão sobre as razões porque África desde a década de 60, marco histórico da libertação do continente face ao colonialismo até a década de 90, não havia conseguido perfilar-se de igual para igual no concerto das nações como um continente a respeitar e ter em conta.

Os dirigentes africanos, nessa data, não se ficaram pela reflexão, definiram as linhas da boa governação na área política e democrática, na área económica e empresarial e na importância do desenvolvimento social e humano.

E algum exercício foi feito de 90 até a esta parte, para tornar as Instituições dos países africanos em Instituições mais robustas, de modo a que não seja apenas o Homem, o dirigente, a peça fundamental para o bom funcionamento de uma nação, mas sim a robustez das próprias Instituições.

Por outro lado, o projecto de Muhamar Kadafi, o então Presidente da Líbia, que retomava as teses da geração do Kwame Nkrumah, fundadas nos pressupostos teóricos do Pan Africanismo, mostravam claramente que África só podia ser uma grande potência se fosse capaz de se unir politica, social e economicamente. Portanto, África tem procurado reflectir sobre si própria e tem muitas vezes encontrado fórmulas para definir os pontos de saída para este marasmo.

A História ensina-nos que sempre que África se levanta e tenta reflectir sobre si próprio, por causa da fragilidade das Instituições então criadas, um movimento em contramão faz fracassar estas dinâmicas. Daí que os teóricos do Afro Pessimismo venham ao de cima, defender que de boas intenções África esta cheia, mas não tem capacidade para as pôr em prática. Temo que o Afro – Pessimismo seja uma enfermidade que nos está a enredar a todos nós, de tal forma que facilmente o senso comum que dirige os preconceitos contra África venha a defender que a salvação de África será uma nova colonização. Que no fundo, de uma certa forma sub-reptícia existe na sobrevivência de algumas organizações que lutam permanentemente pela nossa forma de ser e estar, clamam a nossa falta de qualidade, sem reflectir a questão da qualidade, ela própria e sobretudo, esta nossa ânsia permanente de afirmar que o que vem de fora é melhor.

Senhoras e Senhores, Caros Colegas, Caros Estudantes

O nosso País, como País Africano que é não escapa a esta reflexão. Moçambique tornou-se independente após uma Luta Armada de Libertação Nacional de 10 anos, que muito nos orgulha.

Moçambique enfrentou durante os primeiros anos da sua independência poderosos inimigos, a partir das suas fronteiras e aguentou-se, estoicamente com grandes dificuldades de sobrevivência dos seus cidadãos, passando fome e necessidades, mas contribuiu grandemente para a modificação da geopolítica da região. O Zimbabwe tornou – se independente, a África do Sul aboliu o Apartheid e a Comunidade dos Países da África Austral, tornou-se numa respeitável sub-região de toda África, graças ao grande empenho e muito sacrifício de Moçambique. O nosso País produziu ao longo de quase 5 décadas de Independência muitos documentos pensados e elaborados por cidadãos moçambicanos. Quero destacar aqui o Plano Prospectivo Indicativo – PPI, a Agenda 2025 e os Relatórios do Mecanismo Africano de Revisão de Pares – MARP. Todos estes documentos mostram que nós os moçambicanos temos conhecimento profundo das nossas realidades, das nossas dificuldades e dos possíveis caminhos a seguir.

No entanto, a assunção dos métodos correctos para a implementação dos pressupostos enunciados nos tais documentos tem sido problemática.

Torna-se difícil para mim, pegar nestes assuntos todos numa conferência de cerca de uma hora e desenvolvê-los de modo a discutir ponto por ponto os elementos centrípetos e centrífugos, relativamente ao que falta para que o nosso país possa sair das crises cíclicas que tem vivido. 

Desenvolvimento da Comunidade em Tempos de Crise é um pressuposto de que a Crise tem tempos no plural, e isto é um facto. Moçambique desde que se tornou independente tem conhecido crises cíclicas, de natureza política, social, económica, militar ou político – militar, apesar de ter sido até este momento governado continuamente por um só partido. Então o problema não está na continuidade ou descontinuidade de quem governa.

Muitos dos nossos considerados parceiros e amigos têm – nos aconselhado de que a saída das crises para Moçambique seria haver uma alternância governativa. Pessoalmente considero esta posição uma pura falácia, porque parto do princípio de que o que enfraquece a nossa existência, como nação, não são só os partidos políticos que pretendem governar este País, mas também todo o conjunto de Instituições que compõem o Estado Moçambicano.

Por isso, faço aqui uma guinada para falar da nossa Academia. Estou neste momento na Universidade Pedagógica, sua delegação de Massinga. Este acto é um acto formal e solene de abertura do ano lectivo. No entanto, as ideias e o pensamento que me foram solicitados a apresentar como tema, deveria merecer uma reflexão continuada sobre qual a saúde da nossa Academia e qual o seu papel no contexto das Instituições Académicas Moçambicanas, para contribuir positivamente no sentido de tornar o nosso País mais visível na região, no continente e no mundo. Em suma, a pergunta é, será que a Academia moçambicana exerce o seu real papel como centro de formação avançada e produtora do conhecimento e promotor do debate que permite alavancar o desenvolvimento do País e consolidar os valores da cidadania?

A Agenda das Universidades e das Instituições de Ensino Superior é ainda muito difusa e a razão primeira que se coloca, é que a nossa Academia é muito jovem ainda e que neste momento se preocupa mais com a sua expansão territorial e numérica. Mas a História do Ensino Superior em Moçambique remonta de 1962, portanto não devemos apenas olhar só para cada uma das nossas próprias Instituições e preocuparmos – nos apenas com a nossa agenda de crescimento, apetrechamento em infraestruturas e equipamentos e Docentes e mais e mais alunos, mas também olharmos que somos parte de um corpo que se chama Universidade ou Academia Moçambicana. Sejamos nós públicas ou privadas, o nosso objectivo é comum, perseguir a Ciência, o conhecimento e formar cidadãos, mas sobretudo, ter uma voz respeitada na República.

A Academia é o pilar e guardião dos valores de uma nação, por isso, independentemente de quem esteja a dirigir qualquer Instituição de Ensino Superior, esse alguém, deve inserir-se na filosofia da Instituição e não tentar dirigi-la como um Chefe. Por outro lado, quando nos debatemos hoje, com questões de corrupção na Academia, significa que não estamos a ser bons guardiões dos valores da nação. Não podemos desempenhar o papel de Instrumento para o Desenvolvimento da Comunidade em Tempo de Crise quando nós próprios estamos em crise. Muitas vezes, ficamos perplexos quando confrontados com a questão da qualidade e fazemos eco com o senso comum. A Academia Moçambicana não produz quadros com qualidade e nós ficamos calados ou pior, sentimos vergonha por não saber como responder. Nunca fomos capazes de ir buscar elementos que definem claramente os contornos daquilo que é qualidade ou não qualidade. A agenda da Universidade no nosso País não se esgota na questão do ingresso e graduação dos estudantes.

Nós não somos fábrica que produz em série a montagem de qualquer produto. Temos sérias e grandes responsabilidades. Todo o sistema do Estado Moçambicano, todos os órgãos, desde o Governo, passando pelas empresas, organizações, etc são dirigidos por cidadãos que nós formamos. Por isso, se esses cidadãos não estão a cumprir cabalmente as suas obrigações, por causa dos problemas que atrás enumerei, a nós não se deve, em primeiro lugar, atribuir as responsabilidades de não estarmos a cumprir com os objectivos que nos foram entregues. Para que servem as Universidades?

Por isso, Visão Estratégica da Liderança, passa em primeiro lugar, não por criar líderes individuais, mas sim, por sermos capazes de formar pessoas que se integram na liderança das Instituições fortes e capazes de conduzir os destinos de uma nação.

O Presidente do Gana, após tomar posse, numa breve conversa com os jornalistas, falava da sua grande vontade de combater os grandes males, considerados transversais em África, a cabeça dos quais estava a corrupção, o favoritismo e a pouca produtividade do aparelho do estado e desabafava “esta é a minha vontade e grande parte das pessoas que convidei para integrar a minha equipa parecem entusiasmadas com estas ideias. No entanto, meus caros jornalistas, eu próprio não estou certo se ao fim do meu mandato, serei a mesma pessoa, com as mesmas ideias e convicções que aquela pessoa que hoje aqui vos fala” .

Samora Machel afirmava constantemente que o podercorrupto tão docemente como as balas de açúcar. Estes testemunhos dados pelos próprios líderes, face ao temor que sentem quando assumem a direcção de um estado, mostram que ninguém está imune de ser contaminado pela veracidade dos defeitos, que as pessoas acabam por assumir quando se sentem impunes e imunes.

Tendo perguntado eu, para que servem as Universidades, por uma questão retórica, a resposta deve vir de dentro de nós próprios. Sendo este patamar do sistema da educação, o ponto mais alto na formação do cidadão, não podemos de forma nenhuma deixar de exigir que cumpra com as suas obrigações, de modo a que tenha capacidade moral para monitorar os cidadãos que de si saem, a fim de dirigirem os diversos sectores da sociedade.

Colegas, nós não temos a real noção da importância do sistema universitário na vida das nações, porque grande parte de nós faz do espaço universitário, mais um lugar para o exercício das várias profissões que temos, de modo a termos uma vida mais confortável.

Salazar tremeu quando a Universidade de Coimbra se levantou, Suharto, ditador indonésio, caiu quando a Universidade se levantou. Depois de Maio de 68, a França nunca mais foi igual com o levantamento da Universidade. 

Será que a Universidade moçambicana como um todo, tem consciência de que é ela que a comunidade espera, com uma visão estratégica de liderança? Fica esta questão para reflexão futura a todos os colegas de Massinga, de Inhambane e de Moçambique.

Muito Obrigado.

Ao Emílio Manhique

 

A tarde ardia a sua sina de verão. A rua José Mateus conduz-me para um imenso desfiladeiro de gente ocupadíssima. Algumas viaturas passando a um rítmo morno, rebentando ruidosas músicas destes tempos. Estou num espaço comercial apinhado de barracas, compondo o meu sinuoso olhar à multidão que à hora do almoço defronta-se nas mesas, conjugando o verbo. No Alex, a massa esparguete misturada com legumes e peixe, ou carne de porco ou até de vaca, à moda vietnamita é a isca dos clientes. Ao lado, sonoras gargalhas de moças, um arco-íris, com uma naipe de artistas-plásticos, gente do teatro e alguns músicos degustando petiscos variados. Um aroma convidativo rebenta-me os sentidos. Ao chegar ao sítio da Dona Fikirta, a feijoada provocante é disputada por uma congregação de gente feita. Na sua maioria às portas da reforma, entre diplomatas a técnicos de hotelaria, jornalistas, professores universitários e alguns pastores em início de carrreira.

– Adélia vem atender Ti Emílio.– Mamusca Fikirta, sentada num cantinho costurando chama a empregada de mesa,.

A moça serviu um whisky seco ao Jaime Santos e mexeu-se até à mesa do Manhique.

– O que tens para petiscar, Adélia?

– Água-e-sal de galinha e cabeça de peixe.

– Ei, boa! Sirva-me cabeça de peixe.

– Mais um pouco de vinho, ti Emílio?

– Não. Ainda tem algum vinho na garrafa  que está na geleira. – esclareceu o jornalista, prosseguindo.

– Olha Mamusca, estou a recordar-me agora do Timba da embaixada da Tanzânia. Ele gostava muito de sentar-se aqui nesta mesa ao meu lado.

– Xi, ti Emílio. Aquele homem nem sei como Deus le levou, sabe…- lamentava-se a Mamusca.

– E olha aqui, Emílio. – a Dona Elisa, depois de pousar o copo de vinho branco assumia a dianteira. – uma vez estiveram aqui na Fikirta os teus colegas, o Cuembelo, o Magaia, o Macaringue e o Azevedo, lembras-te Emílio?

– E o Vítor José, Emílio! Até sentou-se na cadeira de Ngungunhana – entrou em cena o Duvane da Televisão pública.

– Depois de servir um whisky ao Vitor aviselhei-lhe que essa cadeira era reservada ao Ti Emílio. – esclareceu a Dona Fikirta.

– Ora nem mais, ministro. Já me estava a esquecer do Vítor José, oh Duvane. Eh, pá isto está mesmo a virar um verdadeiro Museu. – rematava Manhique que voltava à carga.

– É pena que não posso levar estas matérias ao café da manhã. Mas bem vistas as coisas se fizermos um inquérito a esta gente que vem para estes lados da cidade de chapa ou a pé. Se perguntarmos, por exemplo a esta miudagem das escolas onde é o museu, de certeza que vai apontar para esta rua das barracas…

– aposto que sim, Emílio. E até virão ter aqui à Fikirta. – entrava em cena o Jaime. – A gente passa horas e horas aqui, como se fôssemos peças de um autêntico museu. Só vamos a casa e ao trabalho, no caso de vocês que trabalham, só para um restauro… Passamos muito tempo aqui. – Eu adoro exibir a minha inutilidade – regozijava-se o Jaime Santos.

– Jaime a tua mãe ligou-me. Já almoçaste? – alertava a Mamusca ao grande declamador.

– Olha, minha gente, depois desta do Jaime pus-me a fazer as contas aos amigos que já morreram e que frequentavam aqui o sítio da Mamusca: o Zeca, o Tinduana, o Marcos, o Albano, o Mendonça, a mulher do Pescoço, aquele tipo da zambézia, a minha malta do jornalismo, diplomatas, e até um tipo que trabalhava na Assembleia da República. Este museu está cheio de relíquias. – rematava Emílio Manhique, carregado de nostalgia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao longo dos meus alongamentos cerebrais, não raras vezes, tenho cruzado com um assunto que é – nada mais nada menos –, o assunto das crónicas sem assunto. Agora, ao arriscar tocar neste assunto, corro o risco de ser considerado como tal. Um tal de autor de texto sem assunto.

Na verdade, predispus-me a escrever em razão de uma aguda e insolente insónia que há dois dias me assola, provavelmente, tendo como causa as exageradas doses de cafeína, mais uns charutansos nas jornadas retrasadas.

São três da matina e rebolando na posição horizontal – claro! –, olho pró lado e contemplo o Bicho numa aparente, saudável e luxuosa soneca. Antes mesmo de me levantar confirmo ser ela muito boa de respiração. Não há rinoceronte que lha enfrenta em caso de desafios a fio. Sinto-me também nas vestes dos Pablos. Primeiro, de Picasso delineando com os olhos os contornos do alheio corpo desnudo. Depois, de Neruda que num instante me incendiou as entranhas inspirando-me estes versos para uma por/suposta:

VERÓNICA. No meio das tuas temperadas coxas/contundente reside um continente com seus mares/de mais intercalares e felinos olhares seculares/onde desaguam incolores os jorros deste jarro.//No seio dos teus seios de divinos paladares/habita o leite ainda não derramado/nas papilas deste faminto andarilho que sou/ nos (uni)versos do teu corpo!

Da janela do quarto, observo uma divinal paisagem nocturna, com o Mussulo e a Ilha Dos Pássaros já bem às escuras, quando num repente tudo ao redor escurece também. Triste. Resta-me a beleza do mar agora envaidecido com o flourescente brilho da lua reflectindo na sua pele ondular. Sevícias da empresa de distribuição eléctrica em Luanda. A EDEL dos nossos hábitos e costumes.

Irritado mas conformado, volto a deitar-me e, logo-logo, minutos depois, é reposta a «legalidade» iluminática. Provavelmente, um qualquer animal (ir)racional ou mesmo um sapateiro matreiro, dado à elétrico-electrónicas aventuraças, por (des)propositado engano, deve ter posto as patas na patilha em que não devia. Então levanta-se (de)novamente o escriba que, espiritualmente e por momentos, deixou de habitar em mim.

Adentro o escritório, pela porta ao lado da porta do quarto da Casa-Museu que me recolhe neste merecido 2º piso, onde me encontro na rua do pôr-do-sol ao Benfica de Belas silhuetas caluandas e, prossigo a aventureira procura de um assunto para então consumar a minha escrita neste texto cujo assunto – sei de antemão! –, reside no facto de inexistir um assunto para redigir, iniciando assim, esta crónica sem assunto.

Sem mais contra-curvas, sento-me na cadeira já a precisar de substituição nos próximos dias e, debruço-me sobre a escrivaninha com tampo de correr, do tipo daquela do poeta Pessoa que o pessoano João Paulo Cavalcanti Filho, juntamente com a Royale máquina de escrever do Senhor Fernando, arrematou por uns míseros noventa e tal mil euros num leilão em Lisboa.

Já sentado e decidido, recupero a inspiração do cronista ainda sem assunto que por culpa da EDEL nossa de todos os dias se havia já passado.

Mentalmente recuperado, pese a chatice da insónia, cá estou à procura do assunto. Primeiro, arrumando a mesa e na sequência, mexendo e remexendo. Papéis pra aqui, papéis pra acolá. Vou ordenando o papelsório e o pensamento, quando – depois de ter avistado o Livro dos Livros –, inesperadamente ataco com os olhos e saltam-me para as mãos as mais importantes cartas que qualquer jovem poeta deve ler e reler.

Refiro-me, sem medo de errar, às «Cartas a Um Jovem Poeta», assinadas por um tal de Maria Rilke que, nascido em Praga, então capital da Boémia integrada no Estado dos Habsburgos, em vida atendia pelo nome de Rainer.

São dez cartas no total, endereçadas para um destinatário concreto. Franz Kappus. Um jovem oficial do exército austríaco autor de algumas experiências poéticas que aos dezanove anitos ousou escrever para o poeta, pedindo opinião sobre aquilo que rabiscava em seus papéis nas horas de lazer.

Segundo o próprio Kappus, «várias semanas passaram até que a resposta chegasse. A carta selada de azul trazia o carimbo de Paris, era pesada e exibia no sobrescrito a mesma caligrafia nítida, bela e segura que compunha o texto da primeira à última linha», tendo assim começado uma troca de correspondência regular que se prolongou até 1908 e cuja importância reside fundamentalmente no facto de serem cartas que podem interessar «também a muitos dos que hoje crescem e aos que ainda estão por vir nos dias de amanhã», pois segundo ainda o discípulo de Rilke em 1929, «quando fala um Grande e Inigualável os pequenos calam-se» e, acrescento, escutam, aprendem e devem agradecer.

É justamente por isso que ainda cá andamos à procura de um assunto para este texto. Acreditem. E não vai este tornar-se, definitivamente, o assunto desta viagem no texto que agora desejo sem assunto até ao fim, mas, tenho na memória também uma outra importantíssima “Carta”. De Virginia Woolf, também “… A Um Jovem Poeta” que, há cerca de trinta anos, o David Mestre me deu para ler com sérias recomendações, que ainda hoje me têm sido úteis e, só agora e tardia mas publicamente, agradeço.

Tanto Rilke como Woolf aconselham jovens principiantes. Diz-se que os seus conselhos vão em sentidos opostos, mas coincidem fundamentalmente no momento em que aconselham os seus correspondentes a não terem pressa de publicar, pois para Virginia, enquanto jovens podemos escrever disparates, cometer até erros gramaticais e inventar seja lá o que for… sendo assim que se aprende a escrever, ficando com a sua liberdade em perigo todo aquele que, em jovem, indiscriminada e apressadamente publicar.

Já Rilke insiste na paciência, no trabalho e na crença na própria vida, pois, para ele a vida tem sempre razão e, «Nessa vida o tempo não é uma medida. Um ano nada é, e dez anos não são nada; ser artista significa: não fazer cálculos nem contas, amadurecer como uma árvore que não força a sua própria seiva e resiste, confiante nas tempestades da Primavera, sem recear que o Verão possa não vir depois …a paciência é tudo!». Até mesmo na vã tentativa de encontrar um assunto para esta crónica que definitivamente terminará por acabar ou acabará por terminar sem o dito cujo assunto.

Finalmente, vem-me à tona uma questão identitária. A questão da idade que, suponho, não deve ser vista sob parâmetros balizados de forma rigorosa, apesar de Ortega Y Gasset – na sua Meditação Del Pueblo Joven –, ter dito ser (mais ou menos) aos trinta anos de idade que os Homens começam a ser fiéis a si mesmo, pois, em jovens sempre preferimos as coisas dos outros em vez das nossas, vivendo sempre em constante imitação.

Assim sendo, com assunto ou sem assunto, apraz-me visitar uma vez mais o pensamento da “lírica” prosadora fascinada por versos que foi Virginia Woolf. Corajosamente disse esta ao seu jovem correspondente: «A maior parte dos defeitos dos poemas que li pode ser explicada, creio, pelo facto de estes serem expostos à luz feroz da publicidade, quando são ainda muito novos para lhe resistirem». Entretanto lhe havia já dito:«…E, por amor de Deus, não publique nada antes dos trinta anos». Ponto & final!

 

 

Aníbal Aleluia: «Da parte paterna, só conheço a genealogia até ao meu bisavô, precisamente Aníbal Aleluia, vindo, segundo me contaram os meus ascendentes, “muito de fora”. Meu avô, Henrique Aníbal Aleluia, e meu pai, Roberto, Roberto, eram naturais de Séui (Inhambane, cidade). Eu nasci na Península de Linga-Linga. Desde o meu bisavô, eu é que quebrei a tradição de construtores barcais.»
 

Henrique Aníbal Aleluia descrevia-me, assim, a sua ascendência. Nascera em Agosto de 1921. Estávamos em Agosto de 1990. Da parte materna registava que a família remontava ao século XVI. Registei esse diálogo para um livro de entrevistas: Os Habitantes da Memória. Naquele dia, como em outras diversas ocasiões em que me atardei a ouvi-lo e a cumpliciar com ele, senti que o tempo que vivera – atravessara dolorosamente o período colonial – deixara marcas vivas e fortes. Também percebi que estava diante de um homem que soubera perseverar. Um homem obstinado. Tinha uma bondade extraordinária. Tinha uma respeitável e caudalosa cultura.

Leitor compulsivo, chegara a ler dez romances por mês quando frequentava a Escola de Professores. Observador atentíssimo da realidade. Os seus escritos nasceriam desse olhar avisado (“os meus contos nascem da observação de factos do quotidiano, um gesto, uma palavra”). Além disso, era um nómada: “calcorreei Moçambique de tal modo que vivi no extremo norte (em Palma), em Angoche (a Leste), a Oeste (Zóbuè e em Espungabera) e aqui no Maputo, que conheço desde 1935” (Aníbal Aleluia).  

Esteve para ser professor indígena (era assim que se designava!), foi enfermeiro, escreveu para jornais, foi escriturário. Palmilhou o país. Tinha um profundo conhecimento do país, eu diria até antropológico. Ainda se matriculou em Direito, contudo as adversidades da vida impediram-no de fazer o curso. Era um homem culto, uma biblioteca ambulante. Falava, com rigor, um português escorreito, culto, sem perder a sua pronúncia de Inhambane. Para além de assinar com nome próprio, Aníbal Aleluia escreveu sob diversos pseudónimos: Roberto Amado, Augusto António e Bin Adam.

Redigi, anos depois, no empolgado lead daquela remota entrevista: “Tinha eu um grande afecto pelo velho Aníbal Aleluia. Tinha igualmente um enorme respeito pela sua trajectória que foi marcada por uma corajosa persistência de um homem que sempre teimou em afirmar a sua dignidade. Era uma lição exemplar a daquele senhor que escondia na sua modéstia uma grande sabedoria porque sabia que não há Faculdade que substitua a vida.”

Não me cansava de ouvi-lo. Tinha uma história de vida exemplar: corajoso, persistente, digno. Escrevera no Itinerário e n'O Brado Africano. Chegou à ficção porque António Caetano Fernandes – uma figura do burgo lourenço-marquino – o informa de que na revista Elo havia quem “asseverasse existir um substracto orgânico que incapacitasse o negro de fazer ficção e a minha recusa é disso prova bastante.” Na época, Aleluia achava a intervenção nos jornais mais adequada ao espírito contestatário que animava a sua geração. A ficção, algo lúdico, não lhe parecia ter essa capacidade reivindicativa, era demasiado “frouxa”. A despeito, esse repto levou-o a escrever um conto. Ainda julgou ser o único. Não o foi. Entre 1955 e 1956 escreveu os contos que iriam constituir Mbelele e outros contos. Os textos permaneceram na gaveta décadas. Publicou-os à beira dos 70 anos. Publicaria ainda O Gajo e os Outros. Estão por editar Contos Avulsos e Contos do Fantástico Litoral.

Tinha um livro a caminho do prelo nos primórdios da década de 60. Retirou-o quando foi preso a 27 de Maio de 1961 pela PIDE, acusado de ser “nacionalista africano”. Diziam que “mancomunava com o Baltazar da Costa a revolta do Norte da Zambézia”, acusavam-no, delirantemente, de se encontrar com o Dr. Banda, do Malawi, atribuíam-lhe filiação ao MUD-Juvenil. Tudo invenções de “bufos do Zóbuè, na sua maioria enfermeiros.” Os contactos que ele tinha: os Democratas. Santa Rita, Soares de Melo, Ricardo Fernandes, Rainho da Silva e Bradeiro de Matos. Ele trabalhava no Foro, praticava para tirar a carta de solicitador.

Aníbal Aleluia: “Eu pertenço ao número dos que não fizeram da detenção crachá nem bandeira e muito menos gazua.”

Do vício da leitura, que lhe vinha da infância, acompanhava o que se escrevia na então emergente literatura moçambicana. Lia José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Knopfli, Rui Nogar, Ruy Guerra, Fonseca Amaral, Augusto Santos Abranches. Lia Sobral Campos, Alípio Rama, António Só, Irene Gil, Glória de Sant’Anna, Augusto Conrado, Rui de Noronha. Lia sobretudo os poetas. “A prosa era monopolizada por um homem que se orgulhava de ser fascista e cuja temática colidia com os meus pontos de vista.”  

Quando eu era miúdo cultivava a prática de estar com os mais velhos. Gostava de ouvir os precatados. Visitava-os, lia-os e interpelava-os. Atraía-me a memória. Sempre me fascinou a memória. O conhecimento, a experiência, a sabedoria, a sagacidade, a inteligência. Ouvir do aviso dos que nos podiam alertar. Ouvir a história, diversa daquela que estava nos compêndios. Sobretudo num contexto em que o passado era uma espécie de oráculo. Aníbal Aleluia disse-me, naquela remota conversa, que andava às voltas com um romance histórico. Isso aguçou a minha curiosidade. Qual era a ideia central do romance? – quis saber.

Aníbal Aleluia: “Que o nacionalismo (chamemos-lhe antes proto-nacionalismo) brotou no Centro e Norte, antes do Sul. Nunca vi esta tese defendida pelas oficinas de História oficiais. O berço da resistência anti-portuguesa não é Gaza, como se convencionou oficialmente por razões que me parecem tribais, mas Angoche, onde, desde o tempo de Mogossurima, no século XVIII, até ao sultanato de Farley, já no limiar deste século, os sultões cotis, de origem quiloana, opuseram o Crescente à Cruz.”

Para mim foi um dos grandes privilégios da minha vida conviver com Aníbal Aleluia. A amizade partilhada com gente da estirpe da do Aníbal Aleluia. E não estou só. O Marcelo Panguana, num livro recente, Os Peregrinos da Palavra, que recolhe velhas entrevistas, ao falar do Aleluia releva o mesmo tipo de sentimento que eu tenho ao enunciar que “tive a honra de conviver com Aníbal Aleluia”, de quem escutava “palavras sábias.”

Marcelo Panguana: “Detentor duma invejável cultura geral, de extraordinária memória e um profundo domínio da língua portuguesa, adicionados à sua coragem e frontalidade, cedo se transformou numa incontornável referência nos meios literários.”

Revejo-me nas palavras do Marcelo: “Infelizmente somos pouco dados à evocação dos nossos mortos, mesmo quando possuem a grandeza que os diferencia dos simples mortais. E penso que será esta uma das razões pelas quais não somos capazes de aumentar os níveis da nossa moçambicanidade e enriquecer a nossa auto-estima. E o que se torna mais grave é a incapacidade de indicar às novas gerações as referências nacionais que escreveram, a seu modo, a história deste país. Aníbal Aleluia quase que deixou de fazer parte da nossa memória colectiva, tal como acontece com outras figuras que se tornaram célebres. Hoje, pouco se fala do poeta Rui Nogar. Recusamo-nos a reconhecer a importância de um Estêvão Macambaco na história da pintura moçambicana. Como alguém dizia, no nosso país, quando uma figura de destaque morre, morre de vez! De resto, incapazes de homenagear os vivos, como seríamos capazes de idolatrar os mortos?”

Quando, em 1984, surgiu a Charrua, fundada por um grupo de jovens irreverentes – Eduardo White, Armando Artur, Juvenal Bucuane, Ungulani Ba Ka Khosa, Hélder Muteia, Filimone Meigos, Marcelo Panguana, entre outros – Aníbal Aleluia haveria de participar activamente naquele projecto e abraçar o seu ideário. Ali estava ele, no meio daquela juventude: escreveu e publicou imenso na Charrua. O Aníbal tinha a juventude e a irreverência da nossa geração. Atrevo-me a dizer, não obstante, o facto de ele ser oriundo de outras décadas, que Aleluia pertencia à nova geração de escritores moçambicanos. Um outro testemunho, o de Ungulani Ba Ka Khosa, num texto do livro Cartas de Inhaminga, numa fabulosa evocação geracional, na qual honra a escrita do Eduardo White, fala de Aníbal Aleluia.

Ungulani Ba Ka Khosa: “Criámos uma revista, a CHARRUA, lutámos pelos nossos ideais literários, formámos uma malta maravilhosa que estendeu os laços de solidariedade até aos dias de hoje, com respeito às idiossincrasias de cada um: Juvenal Bucuane, Pedro Chissano, Aldino Muianga, Marcelo Panguana, Armando Artur, Hélder Muteia, Filimone Meigos, Tomás Vieira Mário, Ídasse Tembe, Nelson Saúte, Pinto de Abreu, o falecido Aníbal Aleluia, o também falecido amigo Ciprian Kwilimbe, e outros. Foi um período fecundo. A poesia, o lugar dos deuses no nosso panteão. E não foi por acaso que a colecção por nós criada na Associação dos Escritores Moçambicanos, a Colecção Início, teve como obra iniciática o Amar sobre o Índico, do Eduardo White. Em White, como dizíamos, nesses tempos de iniciação, estava o vulcão em permanente actividade. Dele são os versos: E hei-de ser o veneno/ o infame selvagem/ o duro seio das rochas/ e moldar no barro a pele que me acolhe.”

Ba Ka Khosa refere-se a factos de 1984. O Aldino Muianga era o mais velho entre nós e tinha 34 anos. O Juvenal Bucuane e o Marcelo Panguana tinham ambos 33 anos. O Pedro Chissano tinha 28 anos. O Ungulani, 27 anos. O Tomás Vieira Mºario estava com 25 anos, o Filimone 24, o Muteia 24, o Armando, 22, o White 21, o Pinto de Abreu 19 e eu, 17. Estávamos nos antípodas do sistema. Acreditávamos que a literatura era o lugar do questionamento, da indagação, da crítica. Por vezes, muitas vezes, éramos severos em relacção ao establishment. Éramos rebeldes. Aníbal Aleluia tinha 63 anos e estava connosco. Isso foi extraordinário. Pode atestar-se aqui a sua juventude. Nos nossos convívios, entre cerveja, coca-cola e muita zombaria, seja no bar da Cindoca, na cave, ou nos bancos do jardim, da AEMO, divertíamo-nos a caricaturar, afectuosamente, o recorte peculiar do português do nosso Mais Velho Aníbal Aleluia.  

Por vezes, perante aquela transbordante sabedoria, perguntava-lhe se não escreveria memórias. Admitia que sim. Mas também lembrava que a sua vida tinha sido marcada por dificuldades e que talvez “a leitura do meu testemunho acordaria em algumas pessoas recordações amargas.” E disse-me, na sequência disso, uma frase brutal: “Tenho um hábito que atrai empatias incómodas.” Dizia-o magoado, de certo modo, por se sentir incompreendido. Creio que ele morreu com essa mágoa. “Chamar as coisas pelos seus próprios nomes sem chamar nomes às pessoas.” Era isso o que ele dizia e praticava.

Em Fevereiro de 1989, fomos a Lisboa, a um congresso de escritores, ele partilhou comigo muita recordação da sua vida sofrida, das suas memórias magoadas, mas falou sempre com candura dos jovens que escreviam à época e foi gratificante ouvi-lo. Estava encantado com aquela viagem e um dia retornou ao hotel, exultante, depois de ter reencontrado Almeida Santos. No ano seguinte, fui-me embora daqui. Deixei de o ver. Continuei a lê-lo e a recordá-lo. Faleceu a 14 de Maio de 1993. À época redigi, para o Jornal de Letras, onde assentara arraiais, um “Elogio de Aníbal Aleluia”. Texto juvenil e ulcerado, comovido e agradecido. Como estou hoje e sempre.

Tenho-me recordado dele, amiúde. A sua bondade, a sua transbordante sabedoria, a sua cultura e a imensidão do seu carácter. O homem probo e generoso, que me aceitou, entre o fim da minha adolescência e o início da minha idade adulta, como seu igual, como seu par. Recordo-me das nossas intermináveis conversas. E estou grato a essa magnanimidade. A antiga Eduardo Noronha, no bairro da Coop, é agora Rua Aníbal Aleluia. Em tempos frequentei idilicamente aquela rua. Continuo a passar por lá. Ontem, divisando o nome na chapa da rua do meu bom amigo Aníbal Aleluia, inclinei ligeiramente a cabeça, em sua honra, agora que passam 25 anos sobre a sua morte, a quem faço esta humílima vénia aqui nestas páginas.

 

O nosso Governo está a dar-nos uma sublime lição de grandeza pela extraordinária forma como está a gerir a morte e velório de Afonso Dhlakama e mesmo algumas vozes ruidosas que tentaram forçar desnecessárias tolerâncias de ponto ou a transladação do corpo do líder da Renamo para Praça dos Heróis, cedo compreenderam a sua própria falta de razão. Não cabemos todos na cripta de Maputo e essa não deve ser bem a nossa meta colectiva nem a condição necessária do nosso reconhecimento.

Um Chefe de Estado adiar visita de Estado ao estrangeiro, mandar cobrir a urna do seu principal opositor com a bandeira nacional e uma guarda militar de honra, é algo incomum nos estados africanos. Louve-se.

Há aqui um pungente simbolismo que deve ser capitalizado no complexo processo da nossa reconciliação.

O Governo dá a Dhlakama um reconhecimento de sua cidadania como moçambicano, simbolizando que todos somos merecedores dessa condição, independentemente do lado que escolhemos no processo de construção do país. Temos que aproveitar esta decisão como o mote para a viragem definitiva.

Obviamente, isso não implica escamotearmos os factos históricos. Afonso Dhlakama é querido por muitos, mas está longe de ter sido um anjo (acaso, há algum do outro lado?). Está profundamente ligado ao lado lunar na nossa história nos últimos 42 anos.

Mas colocar uma pedra gigantesca sobre as fases nebulosas da nossa história não é uma fraqueza. Antes pelo contrário. Afinal, as feridas de um povo também se saram exorcizando os seus próprios tormentos. E, mais do que o passado, há um presente e um futuro importantes para construir para os moçambicanos.

 

 

Parou em frente à ponte. Acendeu um cigarro e pintou com o pincel do seu bafo nuvens de fumo na tela do escuro. Os bolsos das calças estavam fartos de garrafas de pescoços apertados por rótulos. Lançou os olhos para ver as horas no relógio preso no pulso e viu todos ponteiros correndo na circunferência vedada por números enormes. Parecia que as horas escondiam-se dos seus olhos pingando pestana carregadas de sono e cansaço. Gotejou um gole de cerveja sobre a lona de chuinga que cobria o tecto da sua língua. Passou debaixo das pernas da ponte como um gato no meio duma saia feminina. Nenhum carro dava sinal na estrada. Seu corpo, com dobradiças de cansaço, em cada passo parecia um colchão com pilares de casca de coco em rotação.

Antes de engolir, com a tesoura dos passos, a sombra enorme da ponte deitada na estrada fervendo de alcatrão, parou nos pelos de capim da ponte e concentrou as mãos no limite entre o norte e o sul do corpo. Fez momentos rápidos para desfazer o cadeado dos botões e desenhou uma figura estranha com a sua urina. Quando terminou, o desenho respirava e parecia queimar. Para não pôr ao público a sua obra, tampou-a com areia que arrastou com o pé direito.

Numa das pernas da ponte um agente da FIR, hoje UIR, alisava a sua corcunda com a sombra da ponte. Era um agente que tinha mais músculos que qualquer coisa. Na cintura um par de algema disputava espaço com um cinto preto e enorme.

– “Por que não usaste a ponte?”.

– “A ponte demora muito, chefe. Estou manigue apressado”.

O agente tirou a mão do bolso. Uniu os dedos na sua mão como uma família quando se senta à mesa. O polegar parecia um maestro de todos dedos com um casaco de suor; mexia-se sem parar. Os caminhos da palma da mão do agente indicavam a rua do rosto do jovem. O agente deu uma moda bicicleta, em forma de chapada, na bochecha do jovem.

Aquela chapada parecia um drible de Ronaldinho Gaúcho com a camisa 5. Eram 5 dedos. A bochecha era a grande área. E os dentes, brancos e bem quadrados, que logo espreitaram eram as redes da baliza.

O jovem caiu no berço da estrada. As garrafas de pescoços virados, nos bolsos, vomitaram espuma. A chapada criara uma sinfonia de estrelas nos funeis das orelhas do jovem. As marcas dos dedos na bochecha do jovem pareciam uma cadeia de montanhas ou lombas duma estrada de areia vermelha. A chapada parecia um tsunami na boca do jovem. A dentadura do jovem emigrou geograficamente uns centímetros como uma placa tectónica, a saliva parecia um mar invadido por um maremoto, a língua mastigou-se e sangrou nos balões da chuinga. Pode-se dizer que foi uma chapada com diversos ingredientes: dentes finos de bofetada, grãos cortantes de unha e uma dose exagerada de força.

O agente deu uma bengala de pontapé e o jovem organizou-se, recolheu os ossos e levantou-se. Sacudiu os restos de chapada que ainda tinha na bochecha. Cuspiu no chão do seu estômago uma saliva de sangue. O cão que de orelhas esticadas que captava os sinais magnéticos da chapada, latiu. E o jovem equilibrou os pés nos seus New Balance e voltou as escadas da ponte. Uma chapada, apenas, tinha transformado o jovem em uma ruína humana com fendas de embriaguez. Não parecia o mesmo jovem que parou, acendeu um cigarro e pintou com o pincel do seu bafo nuvens de fumo na tela do escuro.

Carlos Queirós, o brilhante técnico nascido no norte de Moçambique e que já brilhou nos cinco continentes, disse-me um dia que não assina contrato com uma equipa de um país que não conhece, se não tiver tempo para estudar, com alguma profundidade, a história e a cultura dessa Nação.

Não entendi à partida, mas ele explicou-se, estabelecendo, com propriedade, exemplos e comparações:
– O jogador africano, de uma forma geral irreverente, é avesso a regras. Isso tem a ver com hábitos histórico-culturais. Daí que os técnicos, respeitando isso, devam libertar à sua criatividade, tirando vantagens rumo ao objectivo comum que é o de ganhar;
– Já o atleta árabe, em regra vive um dia-a-dia de calmaria, tal como recomendam os rituais religiosos. Na sua juventude anda de chinelos e nas suas caminhadas, raramente ultrapassa alguém. Como mentalizá-lo para em campo, ultrapassar os adversários?
– Por seu lado, o japonês nasce com a matemática no berço. Ele recebe as instruções do técnico e depois pensa passá-las à prática, como se se tratasse de um regra de três simples. Se lhe indicam o posicionamento X, a sua reacção é Y. Se falhar, a culpa é do treinador. Mentalizá-lo para improvisos, bem ao gosto do africano, é um bico-de-obra.

Estes e outros elucidativos exemplos, foram-me transmitidos pelo eloquente Professor, numa gratuita aula de sapiência que registei com agrado.

O homem do jogador

A meditação em redor deste assunto, vem a-propósito do despedimento pelo Costa do Sol do técnico argentino Costas e a sua substituição pelo português Horácio Gonçalves, antes do fim do primeiro terço do Moçambola.

Longe de mim equacionar as competências de qualquer deles. O que ponho em causa é o imediatismo do clube, ao despedir um técnico estrangeiro que mal conhecendo os cantos do país, se esforçava ainda por (re)conhecer os da turma canarinha.

A opção foi por alguém que terá de iniciar a sua “aculturação” a partir do zero, o que o coloca claramente em desvantagem em relação aos adversários.

Pensa-se na competência do técnico e do jogador, subestimando o homem que é comandado pela mente, esta por sua vez sujeita a vários factores culturais, influenciados pela sociedade em que vive.

Pode-se vencer, a partir de improvisos. Mas, de facto, a acontecerem sucessos, o princípio de “a vitória prepara-se e organiza-se”, fica esvaziado.
Pensar no futebol apenas como pontapé na bola, subestimando a acção mental sobre a história e os hábitos culturais do cidadão, é pensar curto (e só) no imediato.

 

Houve um tempo em que os humanos eram livres de adorar os seus deuses sem entrar em conflito com outros humanos nem com outros deuses. Nesse tempo, também se tolerava a existência de humanos sem crença divina. Não havia imposições religiosas. Não havia escrituras sagradas. Não havia mandamentos ou fórmulas de como manifestar sua devoção a uma entidade divina.

Havia puramente uma democracia religiosa sob a qual os humanos se relacionavam pacificamente com diversas entidades divinas. Por sua vez, estes deuses venerados por humanos não clamavam monopólio dos céus, ainda que, de quando em vez, se envolvessem em conflitos de diversas ordens entre si. Os deuses politeístas aceitavam o pluralismo da sua existência e não viam nenhum perigo em ser devotados por um povo e ignorados por outro. Os deuses do antigo Egipto, Grécia, Roma, Nigéria, países nórdicos eram, por natureza, democráticos e tolerantes até que um dia emergiram deuses monoteístas prontos a reclamar o monopólio dos céus e da terra.

Nesta nova fase, a convivência entre deuses politeístas e monoteístas tornou-se insuportável ao ponto de despoletar uma guerra fria que envolvia os humanos. Povos abraâmicos e povos pagãos viram-se obrigados a envolver-se em guerras santas, os primeiros lutando pela nova monarquia religiosa e aqueles pela democracia. Foi esta luta que se desenvolveu e terminou com a diabolização dos símbolos e práticas do paganismo.
Com reputação maculada e sem mais o aparato humano para sua contínua influência no mundo, os deuses politeístas resolveram partir com todo o seu legado democrático. Abandonaram a humanidade sob a custódia problemática do monoteísmo. Desde então, a liberdade humana de adorar a múltiplas divindades foi escamoteada pelas escrituras sagradas abraâmicas que preconizam a existência e adoração de um e único deus. Este deus, para os cristãos, é Jesus. Os hebreus chamam-no de Javé. E os muçulmanos consideram-no Alláh.

Eis o novo conflito de supremacia religiosa que semeou ódio e menos paz no seio da humanidade. Os deuses monoteístas não aceitam a existência dos seus homólogos. Os deuses monoteístas são, por natureza, ciumentos cuja palavra de ordem é “amarás somente a mim, teu deus e único deus no mundo”. Nesta ordem ideológica, o sacrilégio capital que possa ser cometido contra um deus monoteísta é a idolatria. E, de modo que sua palavra fosse temida e obedecida, os deuses monoteístas intitularam-se proprietários de paraíso celestial que só e só se abre para os fiéis. Aos ateus, agnósticos e infiéis estão destinados a ser consumidos pelo fogo do inferno.

Ante esta dicotomia sobrenatural, o que se entende é que os crentes monoteístas não nutrem uma paixão moral pelos seus deuses. Eles seguem-nos muito mais pelo medo de inferno e desejo pelo paraíso privado do que pelo amor em si. Sendo assim, os humanos viram-se obrigados a aceitar os deuses monoteístas pelo bem da sua pós-vida. E aceitação é a condição sine quan non para admissão ao “reino dos ceús”, não importando sua dedicação ao bem e seu compromisso com o desenvolvimento da humanidade. Aos céus, não pertencem os virtuosos, mas somente os fiéis.
Sendo assim, o fiel que convencer mais humanos ao monoteísmo, mais se lhe abrem as portas do paraíso. Foi deste modo que a competição em converter humanos ao monoteísmo culminou no terrorismo do séc. XXI. Os infiéis, ateus, agnósticos e ímpios, sob a ditadura monoteísta, passaram a ter duas alternativas: ou convertem-se ou morrem. O princípio da terceira escolha é inválido. Somos nascidos dentro da religião.

Nem sequer nos é dado o tempo de aprendermos diversas religiões para, depois, escolhermos aquela que nos convém ser a palavra de Deus. Muitos de nós somos cristãos, muçulmanos, judeus, hinduístas, budistas, etc, mas não sabemos a razão de ser. Tudo quanto dizemos é que nascemos em famílias religiosas, sociedades religiosas e países religiosos. E, somos obrigados a ver o mundo na perspetiva destas religiões. A conversão religiosa passou a significar a alienação da mente devido à natureza das religiões monoteístas que é dogmática, universal, absolutista e prescritiva.

A democracia religiosa e liberdade do pensamento sobre o sagrado partiu com politeísmo e, tudo quando nos restou, é o terrorismo e a apelos impotentes para laicismo. Todavia, os homens ainda habitam num mundo de possibilidades. Se foi possível a partida dos deuses politeístas, é, também, possível a partida dos deuses monoteístas e suas escrituras plenas de ilogicidade que contribuem para benévolas e malévolas interpretações.
E se pesarmos o impacto empírico-existencial das benignas interpretações com o impacto das malignas interpretações em dois cestos da mesma balança, decerto que o cesto com impacto negativo terá mais peso que o outro. Em poucas palavras, a religião trouxe mais trevas ao mundo que luz. Basta lembrarmo-nos das inquisições da Igreja Católica. Quantas pessoas foram perseguidas e linchadas? Da colonização dos negros e índios, quantos povos foram massacrados e idiotizados em nome de deus? E o que dizer do islamismo que por meio do alcorão proliferou grupos jihadistas que já mataram milhões de almas inocentes e roubaram tranquilidade ao mundo em nome de Alláh?

Das contínuas guerras sangrentas entre cristãos e muçulmanos na República Centro Africana, Nigéria, Chad, Níger, Egipto, Somália, e noutros cantos do mundo, quantas crianças, mulheres e homens serviram de mártir por ideologias mortíferas? Quantos mortos? Quantos dispersados? E quantos fundos gastos que podiam ter sido alocados na educação livre do homem?
Uma educação livre capaz de levar o homem a fazer o bem sem temor a Deus é possível. E um mundo mais seguro, próspero e digno sem influências religiosas é humanamente possível de construir-se. Schopenhauer, Marx, Kant e outros filósofos com tendências iluministas já haviam previsto uma humanidade livre de partidos religiosos. Schopenhauer dissera que, na verdade, o homem quando quer praticar um crime, as primeiras considerações que faz são: há riscos de ser apanhado? E qual é a pena a pagar? Feitas estas perguntas, por última instância, é que se pergunta sobre aprovação do seu acto aos olhos de Deus. Isto nos faz perceber que tudo quanto um Estado precisa para diminuir crimes é a forte segurança e leis justas.

Na ausência destes dois elementos, o Estado torna-se caótico e pobre mesmo aglomerado de crentes. Que fique claro que minha tese não consiste em convidar os humanos a não mais crer em Deus, mas simplesmente a desligar-se de partidos religiosos que se arrogam dispor da verdade absoluta sobre coisa divina. Para crer, não precisamos de associações. Dentro de ideologias, os homens abdicam do seu direito de pensar e guiam-se cegamente por preceitos dogmáticos. Só com liberdade do pensamento é que somos capazes de conceber o verdadeiro Deus que procede em consonância com os valores mais nobres da humanidade: Sabedoria, Justiça, Temperança e Altruísmo.  E, se por acaso, o ser que consideramos Deus nos obrigar a ir contra esses valores, temos de parar e reflectir mais uma vez sobre nossa concepção divina.

 

A urbanização é um fenómeno global. Uma tendência que se acelera desde a revolução industrial, no século XVIII. Foi catapultada pela inovação tecnológica e reformas políticas. É um dos rostos mais emblemáticos do capitalismo industrial, deixando marcas muito profundas nos tecidos económicos, social e ambiental

Actualmente, mais de 50% da população mundial vive em contextos urbanos, mas as projecções demográficas indicam que em 2050 esta cifra poderá ultrapassar os 60%. Estes dados não causam estranheza no mundo ocidental, onde a maioria dos países já vive esta realidade. Porém, nos países em desenvolvimento, particularmente em África, a corrida para os centros urbanos tem sido feita de forma apressada e atabalhoada, fruto do “boom” populacional e da busca desenfreada por oportunidades de emprego e sonhos de uma vida mais iluminada, mais farta e menos sofrida.

Segundo dados recentemente publicados pela UN-Habitat, a população urbana em África duplicou nos últimos 10 anos. Assim, todas as capitais de países africanos estão, literalmente, a “arrebentar pelas costuras”: guetos desordenados, mercados improvisados em esquinas e sombras de árvores, mendicidade generalizada, subemprego galopante, delinquência infantil, desnutrição crónica, epidemias persistentes, poluição ambiental, etc.

Herança colonial

No contexto colonial, a classe dominante habitava as cidades envoltas de luzes, cores, cimento e asfalto. Os colonizados eram mantidos nas suas palhotas tradicionais e precárias, sem acesso à luz, estradas asfaltadas, água canalizada, escolas decentes e hospitais adequados.

Naturalmente, após a descolonização, o primeiro impulso dos descolonizados foi o de conquistar as cidades, com todas as delícias reais e aparentes que lhes eram outrora vedadas. Uns se adaptaram mais facilmente do que outros, mas as marcas da transição forçada são ainda visíveis em muitas cidades africanas. Mesmo quando as condições de vida se tornam difíceis, o regresso ao campo não é a opção mais óbvia.

Mesmo os jovens que migram para as cidades para frequentarem o ensino superior, muito cedo se viciam com os hábitos urbanos, e muito dificilmente optam pelo regresso às suas aldeias de origem. O sonho de ser funcionário público tornou-se quase uma obsessão para a maioria dos jovens recém-formados, como forma de se instalarem em gabinetes climatizados, obterem direito a residências do Estado, disporem de viaturas confortáveis e frequentarem supermercados e centros de lazer.

Concorrendo para o fluxo migratório em direcção às cidades estão também os conflitos armados e sociais que primeiramente obrigam à busca de um refúgio seguro e, posteriormente, à procura de alternativas de sobrevivência.

 A questão das infra-estruturas

O primeiro grande choque da onda galopante de urbanização em Africa é a falta de infra-estruturas para responder às necessidades básicas das populações. As cidades são forçadas a acomodar o dobro ou triplo das suas capacidades. O caso da ocupação dos apartamentos urbanos coloniais é emblemático dessa realidade: apartamentos superlotados, sistemas de esgotos não dimensionados para a pressão de utilização, deficiente disponibilidade de electricidade e água, e estradas submetidas a uma utilização não prevista aquando da sua projecção e construção.

De um modo geral, o ritmo de crescimento das novas construções não corresponde, ao crescimento demográfico. Mesmo considerando a superlotação dos prédios habitacionais, muitas pessoas ficam à margem, relegados aos subúrbios, guetos, bairros de lata, em condições extremamente precárias. Dados da UNHabitat indicam que cerca de 60% dos habitantes das cidades vivem nestas condições degradantes e sub-humanas. Em África são cerca de 72%.

Desigualdades sociais

Quando bem geridas, as cidades oferecem oportunidade de desenvolvimento económico e social. O seu papel de centros de produção e consumo, normalmente estimulam a inovação e a criação de oportunidades de emprego. Também oferecem oportunidades de uma boa formação académica, serviços de saúde, e o desenvolvimento de iniciativas culturais (teatro, cinema, literatura, museus etc.). Contudo, a urbanização desordenada é uma das principais causas da pobreza urbana e acentuação das desigualdades sociais em África. Por um lado, as elites detentoras do poder económico e político ostentam riquezas acumuladas, por vezes ilicitamente, e por outro, os habitantes dos subúrbios sujeitam-se a uma vida forçosamente minimalista, em torno de escassas oportunidades de subemprego, negócios informais, mendicidade, delinquência e prostituição.

A escassez de água, electricidade, escolas, hospitais e vias de acesso, forçam o desenvolvimento de mecanismos alternativos de sobrevivência nem sempre recomendáveis, como a delinquência, a superstição, o curandeirismo, o charlatanismo, a prostituição e a venda de bebidas alcoólicas.

O comércio é improvisado e informal. Pequenos mercados pululam como cogumelos e são invadidos por produtos baratos, mas de proveniência duvidosa, vendidos no chão, misturados com a imundície.

A partilha de espaços, latrinas e salas improvisadas de convívio fomenta a promiscuidade. Multiplicam-se os casos de estupro, casamentos prematuros, mães adolescentes, alcoolização, epidemias, tráfico e consumo de drogas.

Problemas ambientais

O sobrepovoamento das cidades aumenta a pressão sobre os ecossistemas e recursos naturais, partiularmente resultantes do abate indiscriminado de árvores para a construção de casas e obtenção de combustível lenhoso,  e das construções desordenadas que causam obstrução dos cursos naturais das águas pluviais e erosão nas encostas.

Com a falta de infra-estruturas de saneamento a gestão dos resíduos domésticos, e particularmente os dejectos humanos, torna-se um desafio sem solução aparente e uma ameaça latente à saúde pública. Tudo isto agravado pelo cheiro nauseabundo e a proliferação de ratos, baratas, moscas e mosquitos, poluição atmosférica, sonora e visual.

Anarquia económica

Um dos maiores problemas nas grandes capitais africanas é a coexistência tumultuosa entre a economia formal e a informal. Por um lado, a economia formal tenta impor as suas regras com recurso à lei e à repressão, e a economia informal defende-se através da sua inevitabilidade, resultante da anarquia e a urgência generalizada de sobrevivência.

 Os mecanismos institucionais são normalmente frágeis, ou fragilizados por factores sociais, culturais e infra-estruturais. Os próprios agentes da lei e ordem carecem de formação adequada e são muitas vezes forçados a improvisar ou agir emocionalmente perante situações mais delicadas ou complexas. Por exemplo, um agente que cresceu e foi formado graças ao sacrifício da sua mãe vendedora de “badgias”, e que durante a vida estudantil se alimentou de “badgias” com pão, dificilmente terá coragem de confiscar uma peneira de “badgias” de uma vendedeira informal. De igual modo, nenhuma autoridade municipal teria coragem de parar com os transportes municipais, vulgo “my-love”, ou multar a sobrelotação dos transportes semicolectivos de passageiros sem que uma alternativa credível esteja disponível.

Uma particularidade dessa economia informal é a de viver nos limites e não gerar contribuições para o erário público. Por outro lado, a economia formal não progride porque vive atolada em impostos, burocracia e corrupção.

A concluir

O desafio da urbanização em África requer um profundo exercício de reestruturação e um esforço sistemático de planificação e gestão. Isso requer a emergência de uma liderança forte e visionária capaz mobilizar todas as forças vivas para um ideal comum.

Entre as acções mais urgentes, importa destacar a questão fundiária, relativamente à planificação territorial e o parcelamento de terras. As infra-estruturas básicas devem ser parte integrante da planificação e do programa de investimentos públicos.

Importa ainda criar incentivos para a permanência ou regresso ao campo, para descongestionar as cidades, promover o desenvolvimento rural e alargar a base económica. Como a tendência de urbanização é quase irreversível, uma solução viável para evitar o crescimento das megacidades seria a promoção de pequenas cidades, mais condizentes com as políticas de desenvolvimento rural.

É importante também combater a precaridade através de mecanismos institucionais, legais e económicos, de modo a promover a legalização dos negócios informais, o combate ao subemprego e dignificação da condição humana. Uma atenção muito específica deve ser dada ao papel das mulheres e dos jovens, através de políticas de formação e integração, programas de educação cívica, incentivos às boas práticas de convivência urbana, e o envolvimento comunitário em trabalhos de limpeza e preservação ambiental.

 

 

 

A política democrática proporciona, igualmente, um escape para as personalidades ambiciosas

Francis Fukuyama

Há cada vez mais bons livros infanto-juvenis no país, nos quais, crianças e adultos reencontram-se na Humanidade que lhes é comum. Durante anos, tivemos défice daquele tipo de literatura, mas agora, a qualidade acompanhada com a quantidade está a trilhar um percurso assinável. A continuar assim, “Os meninos de Huambo” – e quem diz Huambo sugere Nicuadala, Machipanda, Macanga ou Infulene – resgatarão o calor da fogueira africana no papel. Precisamos muito desse calor que nos mantém imortais na nossa integridade; precisamos de mais páginas brancas e limpas, nas quais possamos realizar o sonho de fazermos das estórias bem contadas um modo de vida.

À parte o exórdio, um dos bons livros infanto-juvenis publicados em Moçambique é Quem manda na selva, de Dany Wambire, título que nos lembra um outro, “Quem manda aqui?”, de Paulina Chiziane. Nesta fábula, como é hábito, com valores a transmitir, Wambire conta, simultaneamente, uma estória divertida e outra grave. Em ambas é descrita uma intensa disputa, feita de artimanhas e vingança. O que move todos esses comportamentos é a ambição na luta pelo poder. Nessa contenda, destacam-se dois grandes amigos: o gato e o leão. “Ambos eram ambiciosos: queriam dirigir uma região. Então, combinaram amavelmente que o leão fosse o rei de lá, e o gato fosse o rei de cá. Ou seja, o leão teria o poder sobre a Selva da Gorongosa, enquanto o gato teria o poder sobre a localidade de Nhambita.” (p. 5). Para o efeito, os mamíferos fizeram uma lista e dividiram os animais que seriam subordinados de cada. Aí criou-se uma política democrática, apenas para o benefício dos reis. Mas, mesmo em democracia, quando existem partes autoritárias, o descontentamento generaliza-se. Foi o que aconteceu, quer na Selva quer em Nhambita. E com o descontentamento popular, a arrogância dos reis leão e gato, misturada com incompetência, aumenta, de tal modo que os protagonistas acabam sendo vítimas do respectivo canibalismo, já sem a amizade de outrora.

Este livro, ao partir daquele eterno “era uma vez…” que embala toda criança, desafia o leitor a lê-lo enquanto estabelece um paralelismo entre o universo fictício e a nossa realidade. Na selva da Gorongosa e Nhambita, mais do que animais, estão representadas atitudes humanas. Na verdade, o leão e o gato são construções metafóricas do que escolhemos ser como país. No livro estamos todos, divididos, ora à procura de uma corrente de água limpa para beber ora à espera que um sacrifício, como o do rato que deu a vida para salvar o gato, tenha um retorno favorável a maioria.

Está claro. Quando Dany Wambire descreve dois regimes, em Quem manda na selva, questiona a força do poder e se nessa força existem alternativas diferentes, genuínas. Quiçá, por se dirigir às crianças, o recurso ao eufemismo – figura estilística aqui sempre acompanhada pela metáfora e personificação – constitui uma maneira de disfarçar a complexidade que a narrativa encerra. Em Quem manda na selva encontramos um Moçambique conflituoso e as causas prévias dessa condição social.

Quem manda na selva possui um forte teor político, vulgariza a inteligência dos governantes que, como o rei leão, aconselham-se mal – por exemplo, o episódio em que o leão manda desviar o rio Púnguè da Gorongosa –, e valoriza as maquiavelices resultantes da sedução do trono. Não para as promover, mas para as inferiorizar. O livro retrata a maldade dos Príncipes, já agora, para mostrar como têm terminado: odiados, isolados e traídos.

 

Título: Quem manda na selva

Autor: Dany Wambire

Editora: Fundza

Classificação: 16

 

 

 

Quando pergunto, aqui em Moçambique, aos que me são próximos e que são leitores contumazes, se já leram Chimamanda Ngozi Adichie, quase invariavelmente dizem-me que não. Há uma literatura pujante no nosso continente que nos passa ao largo. Somos cada vez mais uma ilha isolada. Pouco sabemos do que se faz lá fora. Conhecer os outros tem muitos aspectos positivos: obriga-nos a estar em perspectiva. O exacerbado narcisismo nacional, muitas vezes, ou quase sempre, leva-nos a ter de nós uma imagem que nos parece sempre benevolente. Mal conhecemos o que fazem os nossos confrades aqui do lado, seria muito pedir que estivéssemos a par do que acontece longe do nosso hemisfério.

Esta notabilíssima escritora nigeriana é um dos nomes cimeiros dessa escrita vibrante. Nasceu na Nigéria, em 1977, foi estudar para os Estados Unidos aos dezanove anos, e vive entre a América e a Nigéria. Escreve esplendorosamente sobre estes dois mundos, sendo que a América que ela descreve é a América demandada de certa forma pelos nigerianos, com os seus sonhos e fracassos, a quimera do El dourado. Também descreve, ou escreve, sobre uma África profunda e soberba, África que não está nos jornais, os dramas da guerra civil, a corrupção, as anomias sociais da Nigéria, as sociedades, as tradições, o confronto com a modernidade, as relações.

Chimamanda Ngozi Adichie é sobretudo uma brilhante contadora de histórias, ela conta muito da nossa miséria, das tristes e feias histórias do nosso quotidiano, do nosso destino individual e colectivo, mas também dos nossos sonhos. Creio que será uma das vozes que melhor interpelam o nosso continente. Para além da ficção, ela viaja e fala pelo mundo afora. É uma feminista aguerrida. Uma conferência sua sobre feminismo deu origem a uma publicação: Sejamos Todos Feministas. É uma voz activíssima, não só na Nigéria, na América e nos palcos do mundo. Beyoncé tem uma música na qual aparece um trecho desse texto sobre o feminismo lido pela Chimamanda.

Chimamanda representa também um corte com uma literatura africana marcada pelo passado colonial em África. O boom, por assim dizer, dos notáveis africanos, como Chinua Achebe, como Ngugi Wa Thiong´o, como Sembène Ousmane, como Wole Soyinka, que nos falavam de uma outra paisagem africana. Lembro-me de ler, nos primórdios dos anos 80, Os Intérpretes, do nigeriano Wole Soyinka, que viria a ser o primeiro africano negro a ganhar o Nobel da literatura, em 1986. Lembro-me de ler O Harmatão, de Sembène Ousmane, escritor e realizador senegalês. Ou Um Homem Popular, do nigeriano Chinua Achebe, que talvez tivesse merecido o Nobel, sendo um dos romancistas, contistas, ensaístas e poetas africanos que verdadeiramente marcou o século XX. Achebe morreu em 2013. Há um livro – Chinua Achebe: Tributes and Reflections – no qual grandes nomes da literatura africana prestam homenagem a Chinua, entre eles Wole Soyinka, Chimamanda  Ngozi Adichie  ou o queniano Ngugi Wa Thiong´o. Thing`o, aliás, é um dos nomes na lista dos favoritos do Nobel há anos. O autor de Um Grão de Trigo ou Pétalas de Sangue foi cotado em 2010 quando ganhou o peruano Vargas Llosa. Recentemente voltou a falar-se dele para a máxima láurea literária.

Recordo, nostalgicamente, que lia, naqueles anos, o egípcio Naguib Mahfouz, que ganhou o segundo Nobel para África, dois anos depois de Soyinka. Da África do Sul, antes do J.M. Coetzee (outro Nobel), lia André Brink, Breyten Breytenbach, Alan Paton (Cry, Beloved Country). Lia Alex La Guma, País de Pedra ou Tempo da Morte Cruel. Mais tarde, li e conheci pessoalmente, Nadine Gordimer (outra Nobel). Li, exultantemente, J.M. Coetzee. Bastava ter escrito Desgraça para entrar no panteão dos grandes da literatura mundial. Coetzee é um grande escritor.

Dambuzo Marechera, que morreu prematuramente, aos 35 anos, em 1987, foi escassamente traduzido entre nós, pelo menos recordo-me de ler um conto magnífico seu na “Gazeta”. Escreveu The House of Hunger, conhecido como o seu título mais notável. Conheci em Harare o escritor Chenjerai Hove, que seria o nome mais expressivo depois de Marechera, no Zimbabwe. Recordo-me do seu Bones. Morreu em Julho de 2016, na Noruega. Hoje, NoViolet Bulawayo é uma das vozes mais importantes do Zimbabwe. Da nova geração de escritores zimbabweanos vejo referido, nas antologias do Caine Prize, o nome de Tendai Huchu, Isabella Matambanadzo, Barbara Mhangami-Ruwende, Violet Masilo, entre outros. Uma edição da Granta (The Granta Book of the African Short Story) antologiava, em 2011, textos do moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, do zimbabwiano Dambuzo Marechera, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, da senegalesa Fatou Diome, do zimbabwiano Brian Chikwava, da tunisina Rachida el-Charni, da serra-leonese Aminatta Forna, da marroquina Laila Lalami, da sul-africana Zoe Wicombi, ou do queniano Binyavanga Wainaina. Muitos deles, ou quase todos, premiados com o Caine Prize. O Caine é um prémio que tem revelado muitos bons contistas africanos de língua inglesa.

Recordo-me (retorno assim aos anos 80) também do Remember Ruben do camoronês Mongo Beti e do seu compatriota Ferdinand Oyono, autor de O Velho Preto e a Medalha. Ou Camara Laye, da Guiné. Ou Mariama Bâ do Senegal. Do Mali, a voz de Amadou Hampâte Bâ. O poeta Senghor do Senegal. Lia estes escritores e muitos mais. Refiro-me aqui aos escritores que escreviam originalmente em línguas diversas da portuguesa. Falo da África que escrevia em inglês, francês ou árabe, a África que se exprimia nas suas línguas, ainda que distante, por vezes, e que desaguava aqui. Hoje não são mesmos os afluentes dessa escrita. Outras são as vozes. De Angola, ou Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, ou ainda Guiné-Bissau havia um livre curso que nos permitia ler os seus autores emblemáticos: de Luandino Vieira a Manuel Rui ou Pepetela, ou ainda Sousa Jamba (angolanos); de Baltazar Lopes a Arménio Vieira ou Germano Almeida (cabo-verdianos); de Francisco José Tenreiro a Alda do Espírito Santo ou Conceição Lima (santomenses); de Hélder Proença a Abdullai Silla ou Odete Semedo (guineenses).

Chimamanda Ngozi Adichie é herdeira desta imensa e, provavelmente, desconhecida literatura. Hoje não a vejo referida por aí. Presumo que já não se leiam, entre nós, escritores africanos. Estamos de costas voltadas para o que o nosso continente produz, quer por barreira da língua, quer por outro tipo de fronteiras. Há muito que a literatura no plano geral deixou de ser importante. Não há páginas literárias nos jornais, desapareceu o pouco jornalismo cultural ou o arremedo disso, os dias e os jornais são afadigados com outro tipo de notícias.

Terminei de ler, há dias, esse romance soberbo intitulado Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie. Empolgante história de amor de dois jovens nigerianos (Ifemelu e Obinze), que se apaixonam na adolescência, num país sombrio, mergulhado numa ditadura, onde sonham emigrar. Ela, Ifemelu, consegue ir estudar para os Estados Unidos, onde chegará a ser uma blogger de culto; ele, Obinze, não consegue realizar o sonho americano: irá para Londres onde viverá, até ser deportado, como imigrante ilegal. Mais tarde, numa Nigéria ulterior, Obinze transfigurar-se-á num riquíssimo homem de negócios. A essa nova Nigéria, efervescente, Ifemelu regressará anos mais depois para se defrontar com a memória e reinventar o futuro. A história é caleidoscópica e atravessa a América e a Nigéria, interpela a condição humana, põe em questão a questão da identidade (passe-se a redundância!), da nacionalidade, da raça, da alteridade, do amor, da solidão e da sorte. Este soberbo romance – Americanah – foi aplaudido pela crítica literária e por importantes publicações americanas ou inglesas, como o The New York Times, New York Magazine, The Washington Post, The Guardian ou The Telegraph. O livro é ambicioso, ingente, belo, pungente. Uma escrita luminosa. Uma técnica impecável sob o ponto de vista narrativo. Domínio absoluto da narrativa. Escrita com verve.

Lida e celebrada, saudada e premiada, Chimamanda Ngozi Adichie é hoje uma estrela. Aparece até em importantes revistas de moda. Tem 40 anos e uma obra consistente. Tem traduzidos, para a língua portuguesa, os seus romances A Cor do Hibisco, Meio Sol Amarelo, e o livro de contos A Coisa à volta do teu pescoço. Esta colectânea de contos é surpreendente. O conto que dá o título ao livro é absolutamente comovente. Também fala dessa relação quimérica entre a Nigéria e os Estados Unidos. Tem histórias belíssimas. Também está traduzida a sua conferência sobre feminismo: Sejamos Todos Feministas. Ela é polémica e aguerrida, culta e inteligente. Escreve esplendorosamente. Leiam-na, descubram uma nova escritora, uma nova literatura que se faz em África. Ela é uma das autoras de culto. Uma grande voz. Uma grande autora. Uma grande escritora. Não só o é entre as fronteiras do nosso continente. É uma escritora de renome mundial. Temos o defeito de nos fecharmos no nosso casulo. Sofremos da síndroma do espelho. Não lemos o que vem de fora e nada sabemos o que se escreve lá fora. Devíamos evitar a tentação de narciso. Há escritores notáveis lá fora. Há coisas extraordinárias a acontecer. Há livros belíssimos a serem publicados. Americanah é um deles. Chimamanda Ngozi Adichie talvez  seja a mais notável escritora da nova geração de autores em toda África.

 

 

O velho Bila era cego. Um par de óculos escuros desviava as imagens que lhe chegavam. Era uma porta inválida para imagens. Parecia um soldador de instantes com os raios quentes do sol. Os rostos dos filhos captava-os a partir da rouquidão das suas vozes. Era como se o timbre das suas vozes fosse um corpo palpável e mensurável. Nunca falhava. Os passos eram os seus binóculos à distância e os odores eram os olhos de reconhecer quem se aproximasse.

Era como se o som dos passos, o odor, as vozes transportassem os rostos dos seus donos. Com as mãos, o velho, lia o amarelo da sua bengala, o verde da sua camisa e o vermelho da porta da sua cabana. Pela manhã a sua neta cortava-lhe as unhas enquanto de olhos abertos, mas bem fechados, mirava o escuro do seu interior. O velho Bila sorria sempre que ouvisse ruídos de passos vindo até si. A sua camisa era uma peça que se usava duas vezes: ora era o lado de dentro que ficava de fora, ora era o lado de fora que ficava de dentro, vice-versa.

O velho Bila já não vigiava o mundo, o mundo vigiava a ele. O mundo tinha-lhe como espelho – dizia-me sempre o meu pai. Sentado de olhos tão abertos e fechadíssimos assustava pela sua presença os cães e as galinhas que passavam por ele. Os que não conheciam, o velho, de longe até levantavam a mão para o cumprimentar. Os filhos à hora do almoço lançavam gargalhadas vendo televisão em cores que o velho comprara em tempos. Divertiam-se no interior de casa e por vezes até se esqueciam do velho. Era como um objecto de casa que a sua presença equivalia com a de uma pá ou uma enxada.

“Esquecemos, o pai lá fora” – era sempre normal ouvir isso de madrugada. O velho era depois resgatado pela sua bengala no escuro e puxado para o seu quartinho escuro. Que quarto? O seu quarto era um ensaio a morte. Tinha aspecto de um caixão e tudo cheirava a morte. Entrava de corpo dobrado. Apesar de ter os olhos cegos conseguia pisca-los e contornar as curvas de sujidade…

O velho sentado, com uma mão segurando uma terrina de sonhos, molhava o seu rosto com a chuva dos seus olhos nublados de cegueira. Com a mão esquerda, trémula, desembainhava o seu rapé e cheirava-o com quem bebesse uma taça de oxigénio.

– “Papá quando terminar de comer vai me chamar para trazer água”.

Afastava as moscas do lado que não vinham e ajeitava com dificuldades a blusa feminina que usava. Destilava as horas, mastigava espinhos de pensamentos e por vezes se esquecia dele próprio para não sofrer tanto. Afastava-se dele. Quando se via em sonhos enxergando, medindo com seus próprios olhos a altura do seu corpo, um fogo-fátuo corria-lhe o rosto.

Nas sextas-feiras o velho era aprumado, escovado os dentes, penteado a barba e levado para receber sua cesta básica: um quilograma de arroz, três barras de sabão, um quilograma de sal e duas unidades de leite em pó. O velho sorria. Sorria porque é isso que podia fazer enquanto criatura de pouco interesse na família. O peso da cesta básica era a única coisa que fazia o velho esquecer o peso da carga do mundo que tinha nos olhos.

“Tem açúcar? Hoje deram muito leite?” procurava saber o velho pelos olhos dos netos que lhe acompanhavam.

“O velho Bila não é cego, filho. Ele só não gosta de olhar o mundo com os olhos. Usa o coração” – dizia-me o meu pai.

 

É comum ouvir que o trabalhador merece dignidade, porém esta condição continua uma miragem em Moçambique. Não precisa ser especialista em assuntos laborais para perceber que o patronato rouba descaradamente o trabalhador que garante a economia nacional e fornece pulmões para a respiração da sociedade.

É sabido que 1 de Maio resulta de greve dos trabalhadores secularizados no Sec. XIX submetidos à exploração do homem pelo homem, artefactos dos tempos inglórios inundados pela escravatura. Já dissemos em ocasiões anteriores que a história sempre se repete apenas muda de protagonistas porque os sindicalistas de ontem tornaram-se burgueses de hoje.

Não viemos reproduzir as músicas das décadas passadas sobre a insatisfação da massa laboral num país onde acreditamos que todo mundo deveria fazer um estudo de caso. Isto porque já disseram os filósofos que é impossível agradar a gregos e troianos. A nossa missão é trazer um contributo para resolver problemas passados, presentes e futuros, pois a dinâmica social é irreversível e o presidente Nyusi nos recomenda a antecipar fenómenos. Apenas queremos nos associar aos compatriotas que de tudo fazem para encontrar soluções e ajudar o governo, sector privado e sociedade civil no delineamento de estratégias acertadas e não populistas para garantir dignidade ao trabalhador.

Louvamos o governo por ser o maior empregador apesar das carências que enfrenta nos últimos anos, o que o limita em proporcionar condições mínimas a todos os servidores públicos embora esteja a mimar apenas os professores e profissionais da saúde. Desta feita, deixamos a questão: o que será feito dos polícias, agricultores, comerciantes, desportistas, administrativos, judiciais, jornalistas, entre outros, isto faz do Estado pai e padrasto em simultâneo, será que temos duas repúblicas? Não deixamos para trás o sector privado que mesmo sendo menor empregador continua maior pagador, apesar de se reconhecer que o que se ganha ainda desproporcional ao custo de vida.

É tempo de desconstruirmos o pensamento de palhota de que salário é factor sine qua non para a dignidade do trabalhador, pois a ser assim, especula-se que os trabalhadores moçambicanos pensam com estômago. O patronato também deve abandonar definitivamente a música de que o salário resulta dos níveis de produção, sem explicar o condão desta relação de forças. O presidente Nyusi defende e recomenda de forma recorrente que devemos deixar de brincar com números apenas, é necessário que sejam apresentados argumentos válidos sobre a razão desses números. Isto porque já está claro que este país foi capturado por mafiosos que se digladiam entre si e dão com uma mão mas retiram com duas. Urge igualmente, retirar do nosso vocabulário a expressão de que "é o possível não se pode fazer mais e não é como não dar nada".

Vamos todos trabalhar e usufruir de forma equitativa dos benefícios, pois as justificações apresentadas pelo patronato com relação aos níveis de aumento salarial são infundadas. Isto para dizer que o governo deve ser justo com o trabalhador e com o patronato ao invés de se prostituir com o segundo em nome das mais-valias. Quem não sabe que neste país a Lei do Trabalho e o Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado transformaram-se em instrumentos de exploração. Dizendo de outro modo, estes instrumentos ao invés de amenizar a relação entre os burgueses e o proletariado agrava o sentimento de injustiça e desrespeito à condição humana.

Numa sociedade sã e séria, o mais sensato é elaborar leis de macacos para orientar a relação entre macacos. Agora, o que ocorre nesta selva elabora-se leis de leões para combater gazelas e o resultado e este que assistimos. Vimos gazelas andarem quilómetros e horas a fio, à procura de erva e água com vista a alimentarem-se condignamente, tornando-se gordas e formosas para que os leões comam-nas também condignamente e após a refeição os últimos começam a dizer desaforos (arrotar). 260 Meticais de aumento salarial, consubstancia um crime, insulto e falta de consideração para os moçambicanos descendentes dos libertadores da pátria. A madame Buchili devia agir já, pois as provas deste crime estão na janela do seu quarto e não no estrangeiro.

É comum nesta pátria procurar-se responsáveis de crimes alheios pontapeando o acórdão n° 4/2014 do Conselho Constitucional que acrescenta cordas (amarra) a própria polícia para prender os pilha-galinhas, somente em flagrante delito. A situação do trabalhador moçambicano é deveras preocupante e os ditos cujos armados em experts, sabetudo e faz-tudo (é que fez, é que faz) devem assumir suas irresponsabilidades e não nos ponham arreia nos olhos. Passam a vida a seguir o King Bow, catando mentiras para Guilhermina enquanto está em Maputo com Liloca na Somerchild porque a dependência de Ka-Maxaquene só serviu para o vídeo clip.

Este é o nosso sentimento que não constitui novidade para ninguém, pois há décadas que reclamamos a nossa condição de trabalhadores indignos e para concordar com os patrões, apresentamos como sempre as possíveis saídas deste imbróglio. Entretanto, desta vez documentamos para que fique registado na história a visão da massa laboral actual, porque ouvir dizer não se escreve. Este contributo serve para consciencializar o patronato e as novas gerações de modo a perceberem que o trabalho em Moçambique se assemelha a toponímia do bairro "nobre" da Mafalala, visto que tem mais becos e de águas estagnadas do que estradas e ruas para transitabilidade de ambulâncias ou mesmo de "txovas".

Como se explica que o fórum de concertação social faça passeatas na 24 de Julho durante três meses e meio para discutir e defender interesses de patrões e trabalhadores e chegar a uma conclusão inconclusiva? Senhores ou senhoras, trabalhem. Já que está na moda, visto que neste pais dizer senhores num grupo onde também estão mulheres subentende-se violação de igualdade de género. Quanta infantilidade intelectual! Os que se dizem representantes dos trabalhadores tornaram-se traidores pois tem dificuldades em transmitir fielmente o sentimento dos seus mandantes, sendo assim apela-se a demissão e exílio  desses mafiosos e deixar os trabalhadores dialogarem directamente com seus patrões. Não se justifica que a empresa produtora de tomates e a de tseque aumente na mesma proporção o salário dos seus sequazes sem critérios específicos.

Este tiro vai também para o governo sobretudo o ministério que emite circulares e decretos de meia tigela que mais nada fazem senão retirar direitos constitucionais de bónus especial e subsídios de localização de cerca de 90% de funcionários, roubar 13° vencimento, em detrimento de salário extra e regalias à moda Abu Dabi para os comparsas só por início de funções? É difícil um país jovem compreender a atitude de uns velhos estrangeiros que adquiriram nacionalidade moçambicana debaixo do cajueiro, a justificar pelas perturbações políticas e falta de senso para com os nacionais. Chega de aprovar por encomenda o aumento salarial, sem antes ouvir o destinatário sob o risco de vir a tona o adágio popular "o Estado finge que nos paga e nós fingimos que trabalhamos". Aliado a isto, confirma-se a hipótese de que os níveis de corrupção aumentam 1000% enquanto os níveis salariais aumentam 6%

A pergunta que não quer calar: como se aprova o aumento salarial a uma semana da celebração do dia Internacional do Trabalhador? Alguns súbditos do principado dirão que é óbvio, sem antes perceber a nossa inquietação. Apesar de o Estado pagar a posterior os famosos retroactivos é tempo de transformarmos o discurso do rei do planalto em acções concretas, pois defende que os moçambicanos devem antecipar fenómenos e não remedia-los. Apesar de se pagar retroactivos o que justifica tal acto? Se a análise económica é feita até 31 de Dezembro do ano corrente e já em Janeiro, o mais tardar no final deve-se aprovar o aumento salarial. Ninguém calcula o transtorno e desconforto que ocorre quando em três a quatro meses os trabalhadores acumulem dívidas e sejam desprovidos de bens essenciais para alimentação e saúde.

A nossa proposta é simples e clara, os especialistas em assuntos laborais devem justificar por A mais B a sua actuação e o espírito com o qual actuam em prol dos trabalhadores. Em futebol, não se admite que o árbitro pertença a um dos clubes em campo principalmente nos jogos da final, isto consubstancia prática de ocupação e conflito de interesse. Caros patrões, quando quisermos celebrar 1 de Maio deve-se recorrer a informações sobre as condições de trabalho em Moçambique que se refere a vários aspectos tais como: meios, ambiente, relação entre patronato e trabalhadores, sindicato, transporte, segurança, saúde, alimentação, habitação e por último salário. Alguns patriotas vão nos condenar por ter colocado o salário em último, mas justificamos que fazemos isso porque somos parte de cidadãos e trabalhadores que não pensam com estômago, mas sim com a mente.

Alguns já começaram a publicar nos facebooks, watsapps a sua indignação com os 260 meticais e apelam aos demais a recensearem-se até 17 de Maio de forma a ajustar as contas em Outubro, um sinal de que 260 não é o resultado correcto. Esta visão não má e não faz dos proponentes anti-patriotas, mas revela preocupação em resolver de uma vez por todas o problema, visto que aqueles a quem delegam não percebem nada de matemática do ensino primário. Será difícil, para os economistas e pseudo analistas formados em universidades de gabarito mundial: somar, subtrair, dividir e multiplicar?

 O Estado moçambicano tornou-se nos últimos anos uma terra sonâmbula na gestão dos assuntos laborais e por ironia o aumento salarial só serve à semelhança dos outros anos para se sujeitar a uma "babalaza" por oito meses, fruto de 1 de Maio celebrado com tseque, atum, camarão gigante, pão espiga d´ouro e bebidas Impala, Zed, Doublepunch e Soldado. 1 de Maio Hoyee!

 

 

 

Para se desenvolver o desporto, fica claro que cada passo que damos, tem que ter em conta a situação do país e os avanços dessa actividade no Mundo.

No futebol, não podemos e nem devemos ficar '”embebedados” com os avanços – tecnológicos e não só – que nos chegam e que noutras latitudes permitem aos atletas de alto nível, atingir patamares quase inacreditáveis, graças a um conjunto de meios que não estão ao nosso alcance.

Sonhar não é pecado. Mas a “macaquice de imitação” a que assistimos, só nos tem afundado nos “rankings”.

KMS do Moçambola: os de lá e os de cá

Há exigências da FIFA via CAF, que impõem obrigatoriedade no que toca a campos, equipas da formação, contabilidade organizada e outras, para se fazer alta competição. Entre nós, só um diminuto núcleo dos clubes atingiu.

Mas todos querem estar no Moçambola, chegar ao título para representar o país, sem satisfazer as exigências básicas.

De uma vez por todas, importa que fique claro que para se tomar parte na mais alta competição de qualquer país, não basta querer. É necessário também poder.

Os grandes clubes, que se impõem em de todo o mundo, representam regiões ou associações com tradição e mística, consolidada ao longo de décadas ou mesmo de centenários!

Temos, no nosso país, exemplos mais do que suficientes de clubes que nasceram por geração espontânea, fruto de entusiasmos ou  de endinheirados de momento, que “sobrevoaram” o Moçambola e rapidamente desaparecerem do panorama e da memória dos moçambicanos. Dois exemplos”: Wan Pone e Atlético Muçulmano.
Agora, com culpas repartidas entre clubes, Liga e Federação, após a promessa de um tipo de campeonato, vamos ter um Moçambola terrestre, nas ¾ partes do que falta jogar, mas cada vez mais aéreo. Ninguém pode prever o final desta aventura, num cenário de milhares de quilómetros num vasto território em que as estradas esburacadas e a má condução, são como que o pão nosso…
Previsões?
Os dirigentes de topo da prova, não vão acompanhar os atletas nos cansativos quilómetros, por questão de estatuto e de “outras tarefas inadiáveis”.

A qualidade do futebol, até agora com pouca espectacularidade, poderá ser para os atletas, apenas para “cumprir calendário”. Isto porque, uma vez mais, o artista que é o jogador e que deveria estar no centro das preocupações, será o “bode expiatório” da falta de realismo que ditou tudo isto.

Não faltarão “chicos espertos” a tentar comparar o incomparável: é que Messi e Ronaldo também fazem dois jogos por semana e por vezes percorrem grandes distâncias de autocarro… Tenham dó e, por favor, não se ridicularizem a comparar o incomparável!

 

 

“Nós não morremos na cama”, Rorschach
Se o imperialismo e a descolonização do sec. XX transformaram o mundo num campo de grandes guerras, o terrorismo do séc. XXI veio mergulhar o mundo em tempos sombrios.  A esfera pública, onde é suposto os humanos encontrarem-se e manifestarem seu ser através da palavra e acção, incorre no risco de transformar-se numa esfera de medo e solidão por conta do terrorismo.

A sensação de frequentar lugares públicos em países com mais registos de atentados terroristas é certamente de menos tranquilidade, pois nunca se sabe se o homem que passa por ti na rua não é um jihadista capaz de, repentinamente, tirar uma faca e começar a atacar qualquer indivíduo à sua frente; ou, se calhar, o veículo que segue contra tua direção é conduzido por um fanático capaz de irromper no passeio e atropelar toda gente que puder.

A insegurança também se faz sentir em transportes colectivos, supermercados, praças e outros locais públicos que, por registar maior fluxo de pessoas, se tornam centros estratégicos dos terroristas para detonar explosivos ou abrir fogo contra pessoas indefesas e desconhecidas. Nos tempos que correm, o terrorismo tornou-se, por excelência, um acto de banalização da morte por simplesmente atentar a vida de maior número possível de pessoas que nem sequer têm intimidade com autor do crime.

Ante este mundo que se nos afigura caminhar em direção ao abismo, constitui-nos uma surpresa que, no meio de tanta inércia humana ao sofrimento alheio, surja uma mulher voluntária chamada Aisha Bakari Gombe pronta a resistir ao terrorismo. Aisha Bakari é uma mulher nigeriana que, há três anos, decidiu usar sua espingarda familiar, não mais para caçar elefantes ou búfalos, mas para combater um dos grupos mais mortíferos da África e do mundo (Boko Haram).

Bakari coordena um grupo de sete voluntários de idade entre 15 e 30 anos e, juntos, já resgataram centenas de pessoas sob o domínio de Boko Haram, bem como mandaram para prisão vários militantes deste grupo. Mas o que mais há de formidável nesta mulher é o facto de ela ser desprovida de dotes físico-intelectuais que a possam assemelhar aos heróis de excelente inteligência e porte físico aos quais a história política nos habituou, porém, tampouco ela se sente desabilitada para lutar pelos seus ideiais.

Vendo e ouvindo-a, percebe-se que Aisha Bakari é, por excelência, uma anti-heroína cujo amor pela paz e justiça a faz desconsiderar sua falta de mestria na arte da luta, mas a move a combater pela liberdade dos outros.  Mesmo quando o governo da Nigéria parou de oferecer apoio militar e financeiro aos caçadores de Boko Haram – o que resultou na deserção da maioria – Aisha continuou a combater firme o grupo islâmico.

Enquanto outros são movidos por vingança dos seus entes queridos assassinados brutalmente pelo Boko Haram, ela deixa-se guiar pelos valores mais altos da humanidade: paz e justiça.
Por estas razões, julgo que Bakari perfaz o modelo duma ética de anti-herói digno de inspirar a nossa geração a erguer-se contra ondas de violência que infestam o mundo, não obstante a nossa falta de superpoderes.  

 

Escrevo debulhado em lágrimas. Oiço repetida e obsessivamente “Mamana” de João Cabaço. Uma vetusta gravação, realizada nos exultantes anos 80, em Berlim, na companhia de Hortêncio Langa e de Arão Litsure. Ouvi esta música durante esta tarde e comovi-me até às lágrimas. Oiço-a agora, que já anoiteceu. Choro de novo. Paro para chorar, continuo comovidíssimo. Ouvir o João cantar “Mamana waku hi xicuembo xa misava!”, naquele tom único da sua voz, naquele falsete, depois de um longo assobio, de cerca de um minuto, provoca um terramoto emocional, até em corações precatados, e eu não sou nem tenho, definitivamente, um coração prevenido.

Certamente que a plateia que o aplaude, em Berlim, não percebe o que ele diz, mas percebe aquilo que a música tem de mais universal: o sentimento. Este sentimento que perpassa por esta fissurante interpretação pode traduzir-se em todas as línguas do mundo. O João Cabaço morreu no dia 26 de Abril de 2016, faz, esta quinta-feira, 2 anos. Nunca tive esta música em disco ou em cassete, o que era usual naquela época. Recebia-a, pelo WhatsApp, há dois anos, e quando a ouvi, de novo, diante da comoção da morte do João, tive um grande sobressalto. Foi na rádio, quando só havia Rádio Moçambique, que eu a ouvi pela primeira vez e todas as primeiras vezes que se seguiram. Nunca a ouvi pela segunda vez. Não era possível. Não se ouve pela segunda, terceira ou quarta vez esta música.

Ouve-se sempre pela primeira vez. Cada vez que a oiço colhe-me e tolhe-me de surpresa. A magnífica simplicidade desta música: a letra, a composição e os arranjos sofisticados. A sua altíssima dimensão e densidade, a sua beleza e o seu conteúdo fortíssimo. Vi o João cantar esta música, com o Arão e o Hortêncio, ambos tocando guitarras acústicas, e ele nas congas. O João era um homem alto, bonito, imponente. Simpatiquíssimo. De uma humildade arrebatadora. Quem não o conhecesse, quem não o tivesse visto a cantar, quem não o ouvira, jamais poderia imaginar que estava diante de um músico genial. O João tinha um grande talento e passou ao lado de uma brilhante carreira.

Provavelmente, porque nasceu num país onde não é possível ser-se grande. Provavelmente, porque o génio dele dava para isso mesmo – para descurá-lo. A humildade do João Cabaço até hoje me espanta e aborrece: como ele desperdiçou a voz, o talento? Fui amigo dele. Mais do que amigo – um admirador. Ele era um gigante. O seu talento não desmentia a sua altura. Visitou-nos, algumas vezes, na nossa casa, quando vivíamos na 24 de Julho, em meados dos anos 90.

Passava para conversar. Ficávamos ali, diante de um copo de uísque, a falar. Incitava-o a gravar, a fazer um álbum que merecesse o seu extraordinário talento. Ele sorria. Tinha um sorriso que poderia parecer mefistofélico, mas não o era. Talvez fosse timidez, penso a esta distância.

Brincava com o Irati, um miúdo que mal andava. Vivíamos ali, numa casa despretensiosa, com uma sala ampla, quase desprovida de móveis e recebíamo-lo de braços abertos e ele sentia-se em casa. O João era assim. No entanto, um grande senhor da nossa música. Um imenso senhor, digo. Afável, humilde, discreto. Amigo dos seus amigos. Ali estava, na nossa casa, o cantor moçambicano que eu mais admirava e admiro.

Desde sempre e para sempre. Não havia outro, era ele. “Mamana”, se ele não tivesse composto mais nada, se ele não tivesse cantado mais nada, seria o bastante para ele constar no armorial da música moçambicana. Aquele assobio inicial, de cerca de um minuto, as guitarras do Arão e do Hortêncio, a voz. Aquela voz. Aquela soberba voz. A grande voz de Moçambique. Ouvi-lo cantar era uma dádiva. Tínhamos de estar gratos por ouvi-lo. E chorar de emoção por estar diante de tanta beleza. O João cantava como quem sussurra. Por vezes, fazia aquele falsete, e, depois, aquela voz soberana. Ele falava da figura da Mãe como Deus na Terra, do respeito divino e amor superior pela Mãe, pelas Mães, ele advertia que devíamos amar as Mães, não as esquecermos, que dava sorte temer, venerar, amar as nossas Mães. Oiço esta música e sinto qualquer coisa que não sei descrever que não sinto em mais música nenhuma. Uma força interior, uma força da natureza, uma força telúrica que se expressa contida e numa voz maviosa. Contradição? Não sei. Sinto um apelo. Um fortíssimo apelo. Esta música é uma música de uma grande beleza, de uma elevação, de uma estética e poética improváveis. Temos de temer os grandes, dizia Cabaço. No sentido da cultura africana. Como respeito. Como veneração. Como deferência. Ouvi esta música, em lágrimas, a pensar também na minha Mãe. Estive com a minha Mãe no domingo numa galhofa inesquecível. Aos domingos, quando estou em Maputo, visito os velhos. Falávamos das mulheres que o meu Pai amou, das muitas que amou, e ele, poeticamente, com a resposta na ponta da língua: amei só uma e olhou para ela. A minha Mãe. O José Craveirinha disse-me um dia: um homem, para amar uma, tem de gostar de muitas. Nunca me esqueci. Citei-o e o meu Pai não poderia estar mais de acordo. Exultou. Então, para celebrarmos a vida, abri um vinho e brindámos aos seus belos 81 anos, bebi uma taça e ele persistiu no seu velho uísque. É uma bênção tê-los vivos, penso sempre: a minha Mãe a caminho dos 80, em Outubro, a despeito da doença que a debilita, inexoravelmente. Esta música e esta interpretação, neste registo que oiço e volto a ouvir, está para além do nosso entendimento, do meu entendimento cabal. É algo transcendente. “Ooohhh, Mamana waku hi xicuembo xa misava, wenê!!!” – canta o João. E eu ali, mirando a minha Mãe, e pensando que sim: a Mãe só pode ser isso. Mãe é Deus na Terra, Mãe é sagrada, Mãe dá sorte. A Mãe do João, de nome Hagar John Mfumo, teve muitos filhos. O João era o terceiro, entre os rapazes, o último dos quais é o André, que também é músico. Quer as meninas ou outros dois rapazes não serão músicos. O João era, sem o desprimor dos outros, o filho predilecto da Mamana Hagar. O João Cabaço era um grande cantor, um grande intérprete, um grande compositor. Oiço e volto a ouvir pela primeira vez este “Mamana”, na grande voz, na belíssima voz, do João Cabaço. Ele teve a fortuna que o destino impõe aos músicos moçambicanos – o infortúnio. Agora cobre-se-lhe um manto de esquecimento. É o que está escrito no breviário da moçambicanidade. A morte dele provocou, há dois anos, uma comoção displicente. Dois anos depois, a despeito da família, não o oiço referido. É um homem esquecido. O maior cantor moçambicano teve este destino. Tiveram-no tantos outros. Faz parte do dislate da pátria ocultar os seus melhores. A eles se reserva o opróbrio disjuntivo da indiferença. A mediania impera e ulula, no entanto. Prefiro estar na companhia dos expungidos. Dou-me mal com a enxúndia. Aqui fica este meu parágrafo, inclinado e compungido, para o João Cabaço, enquanto oiço comovido até às lágrimas, pela primeira vez, outra vez, “Mamana”, o mais belo tema da música moçambicana, na mais bela e pungente voz que alguma vez ouvi, entre nós.

 

Há mares e mores;

Há verdades e grandes mentiras;

Constrói-se fama, mas também se difama.

Há muita gente, mas ninguém conhece ninguém…

Há egoísmo, há intolerância, há lobos, há crimes.

Sede prudentes?com a internet.

 

Sala de julgamento…agentes fortemente armados em cada canto do compartimento…o calor era dos infernos…vi suor gotejando/deslizando pelos contornos da cabeça de um dos réus, feito em uma cascata…

Senhor jornalista levante-se! Ordenou aquele juiz. Gelei…senti-me também réu. A sala estava cheia…todos os olhos grudaram em mim. O medo namorou-me em segundos conquistou-me e até quis casar-me. Eu também… porquê não recusei? Haaa…Não tinha como dizer não…foi tão rápido. Foi tiro e queda!

– Senhor jornalista. Algo a comentar?

Um suspiro…"Sim, meritíssimo. Venho cobrindo este caso há meses e sinto-me no dever de levar o seu desfecho aos  leitores e telespectadores!"

– Sente-se! Disse em tom de quem manda aquele juiz que tinha um calhamaço de papéis ao seu lado e o martelo de madeira prontinho…da silva para anunciar o veredicto.

 Uff…rapidamente pousei as traseiras naqueles bancos duros de doer.

– Ministério Público?

– Nada meritíssimo! Respondeu a parte acusatória.

– Como sabeis este é um acto público. A imprensa esteve aqui na leitura da acusação e fez o seu trabalho. Não há nenhum ilícito em permitir que eles o façam novamente hoje. Sendo assim, as vossas alegações não são procedentes.

Respondia assim, o juiz à recusa da defesa dos réus em permitir que nós – a imprensa – cobríssemos a leitura da sentença de um crime de rapto a um cidadão britânico na cidade de Maputo, sob pretexto de que os mesmos gozavam de presunção de inocência…

E o crime cibernético? Aparece como mais uma ramificação do dossier rapto.

Vamos a história…ela trabalha numa instituição do estado com fama de pagar bem aos seus funcionários…E sabe…Nessa coisa da vida, os amores aparecem em locais menos prováveis – e ao que tudo parece quanto mais improvável, mais caliente ele se torna – e foi o que conheceu! Ela conheceu um jovem que o descreveu como sendo elegante numa dessas redes socais. Ele apresentou-se como alguém que lida com pedras preciosas, mas tudo legal?… Sem muito tempo passar, ela teve uma explosão daquela coisa que arde por dentro chamada amor. Já trocava fotos e palavras daqueeelaaas…já sabem né? Sim, de amor…Meses se passaram e aquele sentimento indiscritível…começava a fazer "estragos' no coração dela…e quem nunca sofreu tais estragos, tais abalos, tais…?

Certo dia, ela recebeu uma chamada telefónica de alguém que se identificou como um agente da polícia a dizer que o seu namorado – diga-se virtual – estava detido em Manica e que ela era a única esperança dele. Exigiu que ela tinha que arranjar… tantos dólares para que o seu amado fosse solto.

– Não tinha o referido valor, mas pedi para que me desse provas de que se tratava dele. No primeiro dia disse que não era possível. Só no segundo dia é que consegui falar com ele. Avançou ela em sede do tribunal, perante o olhar e escutar atento daquele juiz, e continuou.

– Na conversa que tivemos ele pediu ajuda e disse que me iria reembolsar o valor logo que chegasse a Maputo…

Movida então pela força (ir)racional do sentimento que a possuía, juntou o que tinha e ainda endividou-se para safar o seu príncipe do covil? E assim foi…combinou-se que o valor seria entregue em mãos a um amigo dele numa dessas ruas da cidade da Matola e tal sucedeu.

– Estranhei como estava vestida a pessoa que veio buscar o dinheiro. Era magra, com aparência estranha e débil, detalhou a senhora ao juiz.

O que ela não sabia, na altura, é que estava feito uma ovelha no meio de lobos.

Dias se passaram… feedback que é bom? Nadaaa!

– Ligava para aquele número…mas ninguém atendia. Recordou…

Noites em branco ela passou – já imagino a angústia e desespero…provavelmente mil e um cenários atravessaram os seus miolos – mas nada!

Eis que num dia…recebeu uma chamada proveniente da PIC (agora SERNIC – Serviço Nacional de Investigação Criminal). É que ela estava embrulhada num conjunto de contactos associados ao rapto, sim o rapto…mas como? Calmem já explico…

É que o seu suposto namorado não trabalhava com pedras preciosas coisíssima nenhuma….era sim um recluso a cumprir pena na BO (Cadeia – Supostamente – de Máxima Segurança). E o seu colega de cela – o polícia aquelee que ligou para exigir aquela quantiaaa a senhora – foi quem ligou para o filho da vítima do rapto a exigir o dinheiro de resgate. Isso mesmo…o resgate foi exigido a partir de uma das celas da BO.

– Não se explica… que num dia como hoje as equipas de fiscalização recuperem todos os telemóveis nas celas, para dias depois voltar a se encontrar mais aparelhos nos mesmos locais. Estranhou o juiz, com semblante de preocupação.

Durante a investigação descobriu-se que o namorado virtual não era quem se mostrava ser no perfil da rede social, não era tão jovem. Era sim… um colombiano de idade avançada.

E o amor incompreensível? Foi o juiz quem denunciou em sede de julgamento.

– Como a senhora foi capaz de fazer isso? Com tantas crianças órfãs desde a Matola até a cidade de Maputo, algumas delas em orfanatos?Como é que foi capaz? Questionou aquele juiz em tom de preocupação e sentimento de incompreensão perante a senhora burlada.

Sucede que depois da ligação feita pela PIC, acabou se concluindo que ela era mais uma vítima. Colocaram-na frente-a-frente com o seu carrasco.

– Porquê fizeste isso comigo? Questionou ela.

– Peço desculpas pelo que fiz, sinto muito. Disse o recluso

Palavras descritas pelo juiz em sede de julgamento.

O estranho é que mesmo depois do sucedido, ela comprou material higiénico e outros produtos para ofertar àquele homem. Uma atitude não encaixava nos parâmetros de lucidez daquele juiz.

– Mas minha senhora, o que pretendia com aquela atitude. É assim…alguém lhe faz tanto mal e ainda tem caridade para com ele? Aquele é um criminoso é um cadastrado. Reiterou o juiz perante um silêncio ingênuo da senhora que parecia não ter a dimensão das palavras do juiz.

E o débil, aquele que recebeu a quantia conseguida pela vítima do golpe? A investigação chegou à sua identidade…tratava-se de um recluso que se encontrava fugitivo da BO desde 2011. Foi quem – na companhia de seus comparsas – executou o rapto na Avenida de Angola. Na altura, eles dispararam contra a vítima – diga-se idosa – e porque até a sentença não se tinha seu paradeiro concluiu-se que não teria resistido aos ferimentos: foi dado como morto. Até a leitura da sentença… o fugitivo ainda vagueava por aí…não se sabia a sua localização. (Qual filme de hollywood? Cenas made in Mozambique.)

– Como é possível que alguém consiga fugir da BO, entre na cidade de Maputo execute um crime à luz do dia e a Polícia não o encontre. Não sei  porque é que a nossa Polícia não copia procedimentos tão simples quanto divulgar fotografias de pessoas suspeitas ou foragidas…Lamentou o juiz

E o martelo? Sim aquelee de madeira… Sentenciou que parte dos réus cumprissem penas de prisão maior por se ter provado o seu envolvimento naquele crime macabro.

Esta é apenas uma parte de várias histórias de um julgamento que cobri em 2015…não me esqueço!

 

 

Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas.

Mateus 10:16

 

 

Sandowana, ao longo de séculos, habitou, muito respeitada e venerada, na garganta do Zambeze, na região de Estima, agora, Cahora Bassa. Por ter sido o animal que abriu o caminho, entre as rochas basílicas, para que as águas, do serpenteante Zambeze, pudessem levar suas bondades e valências para os interiores, matando sedes, verdejando campos e, refastelando  estômagos. Sandowana quer regressar mas não sabe se deve. Vasculha argumentos. Meios e calendários. Quer voltar, para o seu Chicoa para desenterrar os embondeiros da sua magia.

Sandowana  parecia que tinha a cor da sombra da sua própria vida, com a sua cabeça humana, corpo escamado de peixe, asas feitas barbatanas e uma mistura de penas e tranças de modelos Rastafári. Era o espírito de quem se ouviu  falar, mas que ninguém, alguma vez, ousou  ver. Cada movimento resplandecia o descolorido das múltiplas almas que a simbolizavam. Só emergia no final dos rituais ancestrais. Os leitos, exaltadas pelos rufares dos tambores, se transformavam em altares, as ilhas e ondas em museus de artesanato e porcelanas.
 
Quando os portugueses chegaram e, logo, exploraram as possibilidades de lucro, desdobraram-se entre o descaso e os consensos. Antigas crenças, animistas, foram substituídos por novas utopias. Ao povo local foram propostas o bem-estar e novas auroras, para todos sem excepção,  ardósias, giz e cadernos, postos de saúde, estradas e bicicletas, noites de permanente luar e vinho para todas as festas. Riqueza. Chitima ganharia novo rosto desde que Sandowana fosse transferido para outras residências. Só, assim, invasores e engenheiros lograriam remexer as águas e montanhas. Até os colonos faziam fé em Sandowana.
 
Endiabrados e, a custa de muito álcool, suborno, bijuterias e capulanas, incluindo fardas de sipaios, iniciou-se a edificação de Cahora Bassa. Uma espécie de barragem já finalizada mesmo antes de ter iniciado. Fazer jus ao slogan. Cahora Bassa, fim do trabalho. Refazer a parede que Sandowana, com esforço abrira.
 
Sandowana foi transportado, nas violentas águas do oceano índico, dobrou as tormentas e ancorou, na Metrópole. Foi um navio militar que transportou, também, os seus sonhos. Na deslocação, foi acompanhado por Mpondoros e Nyabezis. Curandeiros percorreram milhas no desconforto. Banhou suas penas nas geladas águas do Atlântico.

A chegada recebeu honras militares e populares. Um desajeitado cesto de cordas e palha, permitido que a curiosidade de muitos fosse saciada. Hospedou-se, em definitivo, no actual poluído Tejo. Passou a sobreviver sem as mitologias e importâncias espirituais, que os transcendentais sabiam e faziam valer. Passou a alimentar-se de gaivotas e sobras de bacalhau das águas frias do norte do Atlântico. Nunca mais bebeu pombe, nem se alimentou de farinha de mapira. Nunca entendeu dias de solidariedade prolongada e, muito menos, as noites frias e severas. Chorou, ao longo de anos, suas mágoas e poderes amputados.

No âmago do seu coração nasceu a hidroeléctrica Cahora Bassa. Força da água e engenharia do Homem, que geraram luz para milhões de pessoas. Dos seus longos cabos, quais tranças infinitas, alimentou e próspera as indústrias. Fez a guerra, concentrações militares e estratégicas e milhares de reuniões, de gestores e pseudo empresários. Depois, Cahora Bassa virou nossa. A escuridão ainda atormenta.

Naguib, tetense, também, preenchido de outros espíritos benignos, resgatou os percursos de Sandowana. Pintou e eternizou um dos mais temíveis espíritos das nossas águas fluviais. Nesse deambular entre tradição oral, histórias seculares, contos tradicionais, não houve apeadeiros. As velocidades da descrição, apenas, nos fizeram acreditar que todas as estações e paisagens eram, milimetricamente, iguais. O mural nunca conseguiu perceber as sevícias da transição e o empobrecer daqueles que sempre tiveram tudo e, tudo perderam.

Sandowana quer regressar. Os sinais parecem evidentes. Vila de Chitima mudou. Virou símbolo nacional. Se vencem campeonatos e taças. Só não mudou a sina dos periféricos. Não só não mudou como, até parece, ter ficado mais sombrio.
 

 

Causou, há dias, estupefação e indignação nas inflamatórias redes sociais a imagem de um salão de beleza instalado numa das bilheteiras do Estádio Nacional do Zimpeto, infra-estrutura desportiva cuja licitação para a sua construção foi ganha por uma empresa chinesa e as obras estavam avaliadas em USD 57 milhões. Para mim, nada para arrepiar os cabelos.

Porquanto, em artigos publicados no “O País” entre 2011 e 2014, eu e o Lázaro Mabunda (de)mostrámos com factos e números o quão as infra-estruturas construídas aquando dos Jogos Africanos Maputo-2011 transformar-se-iam em elefantes brancos por falta de ideias claras sobre a sua gestão, manutenção e capacidade de gerar receitas.

Esta série de artigos intitulada “O outro lado dos Jogos Africanos”, aliás, valeu-me o prémio Saíde Omar de melhor reportagem desportiva em 2014. E alguma “mola”, claro.

A transformação de uma das bilheteiras do ENZ em salão de beleza é, na verdade, a demonstração de que estamos “anos-luz” de uma gestão inovadora e criativa de infra-estruturas.

Os dirigentes desportivos são órfãos de ideias sobre processos de rentabilização.

Foi, e está claro, que esta foi uma das medidas tomadas pelos gestores do ENZ na perspectiva de gerar receitas para manutenção do complexo desportivo do Zimpeto. Pura realidade, tão falta de alma com…criatividade. Tal como aconteceu no passado, quando se arrendou uma das áreas para a exploração de um bar que veio a ser afectado, em 2016, com a queda do murro da piscina Olímpica.

Na senda da falta de ideias, veio ao de cima a tragicomédia testemunhada pelo presidente da República que, quando visitou o Complexo Desportivo do Zimpeto, em Fevereiro de 2017, ficou a saber que a pessoa que havia arrendado o espaço no qual estava a ser explorado um bar desaparecera com as chaves!

Não há, e não sei se já houve, uma ideia clara de que como rentabilizar a piscina Olímpica. Gerida directamente pelo Fundo de Promoção Desportiva após os X Jogos Africanos Maputo 2011 e com pouca actividade desportiva até 2013, o espaço passou depois para a gestão da Federação Moçambicana de Natação com o objectivo de se transformar em centro de excelência e de alto rendimento no quadro de parcerias com África do Sul e Brasil. Nunca chegou a ser, tal como avançara a Federação Moçambicana de Natação.

Pelo contrário! Transformou-se, isso sim, num viveiro de sapos que encontraram nas águas turvas o seu “habitat” após as descargas atmosféricas que, em 2014, fizeram com que as águas da piscina Olímpica invadissem a zona de maquinaria e das limpezas. Os danos foram avultados. Não estávamos preparados para um cenário de queda de precipitação acima de normal.

Facto: o sistema instalado no complexo desportivo do Zimpeto, dado o alto teor tecnológico, não se compadece com as oscilações e cortes constantes de energia.

O Estádio Nacional do Zimpeto, esse, esteve encerrado perto de um ano para dar lugar a substituição da relva natural implantada aquando da sua construção em 2010. O estado da relva já se apresentava degradado- acolhia jogos do Moçambola e da selecção nacional-, mas piorou com os estragos provocados durante a celebração do jubileu das Forças Armadas de Moçambique. As obras custaram, ao Estado, cinco milhões de meticais, na altura. Não se materializou, no entanto, o projecto de colocação de relva nos campos de treinos e de aquecimento, o que podia criar menos desgaste na relva do campo principal. Os sistemas sonoros e eléctrico chegaram a operar com falhas. O arrendamento dos espaços no ENZ para casamentos, baptizados e outros eventos revela-se desastrosa em termos de receitas para manutenção da infra-estrutura. Restava, apenas, uma ideia brilhante: instalar um cabeleireiro! Aos amantes de desporto, só lhes resta é chorar “mamawê”! Senão mesmo contemplarem-se com manicure e uma boa juba! Empreendimentos da terra (sobre)vivem de gentes da terra!

 

Sempre tive curiosidade em conhecer Cuba, principalmente depois de ler o livro “O homem que inventou Fidel”, de Antony DePalma, que conta histórias das coberturas de Herbert Matthews, jornalista do New York Times, à revolução cubana, desde a Sierra Maestra até alguns anos depois da revolução. E tive a sorte, ano passado, de finalmente conhecer a ilha numa visita oficial, o que me deu a oportunidade de ter acesso a determinado tipo de informações que em condições normais não teria.

Quando parti para Cuba, tinha a ideia de que ia para um país muito pobre, atrasado em termos de acesso à tecnologia, com a sua capital Havana em ruínas e carros da década de 50 do século passado a circularem pelas estradas, onde o acesso à internet e às comunicações em geral é muito limitado, a par de diversas liberdades, dentre elas de imprensa, de expressão e políticas.

A primeira boa impressão que tive é que os cubanos são sim pobres, mas não há miséria nem fome. Ao mais pobre cidadão cubano não falta comida, entre outros produtos essenciais. A cesta básica para uma família de cinco pessoas – composta por arroz, açúcar, café, pão, leite e batata – custa em Cuba quatro dólares, ou seja, quase 240 meticais. Arrendar uma casa custa 25 a 30 dólares, cerca de 1 800 meticais. A grande diferença connosco é que nós temos tudo o que podemos querer comprar nos mercados à hora que quisermos e os cubanos não. As compras são feitas por escala e com quantidades determinadas para cada comprador.

Há quem diga que entre 70 a 80% de cubanos vivem abaixo da linha da pobreza. Mas quando analisado o Índice de Desenvolvimento Humano, Cuba tem um índice alto, aliás, é o sexto país com melhor Índice de Pobreza Humana, Moçambique está entre os oito piores. As instituições internacionais têm tido dificuldades para analisar a pobreza cubana, porque, em parte, a população não tem acesso livre e abundante a diversos produtos essenciais, mas tem acesso à educação e saúde comparáveis ou até melhor que países mais desenvolvidos, sem ter que pagar nada.

Anos antes da viagem, discuti com um amigo que teria dito que a médio e longo prazo a formação exemplar de médicos cubanos haveria de colapsar, porque não têm acesso à tecnologia. No Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia, eles desmentiram essa percepção. O centro é um dos 15 melhores a nível mundial, produz soluções para diagnóstico, tratamento e prevenção de 29 tipos de doenças e exporta medicamentos para 49 países. Na ocasião, apresentou a Moçambique um tratamento que evita a amputação de doentes com diabetes que tenham contraído o chamado pé diabético. Era único no mundo e evitava a amputação de membros em pelo menos 75% dos casos. Até os países mais desenvolvidos não tinham aquele tratamento, segundo os próprios cubanos.

Aliás, os cubanos gabam-se por ser o único país tropical do mundo que não tem registo de doenças infecciosas, como malária, cólera, dengue, entre outras. Os cubanos morrem por doenças como cancro, diabetes, doenças cardíacas, que são do primeiro mundo. Aliás, o exame de TAC (Tomografia Axial Computarizada), para o qual se fica meses para se fazer no Hospital Central de Maputo, em Cuba, é feito num centro de saúde. Por exemplo, o Centro de Saúde de Marracuene, se fosse em Cuba, teria capacidade para fazer exame de TAC.

Outro local impressionante que visitámos foi a Universidade de Ciências Informáticas. Em 15 anos de existência, formou mais de 14 mil engenheiros informáticos. Desenvolveu um sistema operativo que corre nos computadores produzidos em Cuba e softwares para diversas aplicações também vendidos em diversos países do mundo.

O turismo é uma das principais actividades económica de Cuba. Anualmente, 4 milhões de turistas visitam a ilha e isso representa apenas 50% do potencial que tem. Ou seja, se não houvesse embargo dos EUA, o número de turistas que Cuba recebe haveria de duplicar. 40% dos turistas que visitam a ilha são provenientes da Europa e quase 50% do Canadá, sendo os restantes dos EUA e outros países. Só em 2016, 15 chefes de Estado de diversos países do mundo escolheram Cuba para passar férias.

A cultura é outra actividade económica importante, representando 4% do PIB. gera anualmente receitas avaliadas em 2,2 biliões de dólares e emprega mais de 29 mil pessoas. O governo cubano corre pelo mundo explorando oportunidades para pôr músicos cubanos a tocar nos maiores festivais de música do mundo, coloca os seus artistas plásticos e escultores a exporem e a venderem as suas obras nas maiores galerias de arte do mundo, para além de o fazer a nível nacional. Aliás, nos hotéis e restaurantes por onde passei há sempre uma banda a tocar ao vivo. Isso faz com que a cultura seja rentável.

Este é o legado dos irmãos Castro, que governaram Cuba por quase 60 anos. Fim-de-semana passado, Raúl Castro passou o testemunho a Miguel Díaz-Canela, um presidente que é mais novo em relação à Revolução Cubana. É uma pena que essa mudança aconteça numa altura em que os Estados Unidos da América se afastam cada vez mais de Cuba, depois da aproximação encetada por Barack Obama. Os EUA têm muito a ganhar em ter boas relações com Cuba, e a ilha muito mais.

O exemplo de Cuba é válido para o nosso país. Os cubanos conseguem resistir há mais de 50 anos ao embargo económico da maior economia do mundo, que seria o seu principal mercado e fornecedor, porque apostou no essencial: educação universal e de qualidade. A nível mundial, é reconhecida a qualidade dos quadros formados nas escolas cubanas. Não é por acaso que quase todo o mundo, países desenvolvidos incluídos, mandam os seus quadros formar-se em Cuba. Não é por acaso que cubanos formados nas escolas cubanas têm acesso ao emprego em qualquer parte do mundo.

A educação de qualidade é uma das melhores coisas que um governo pode fazer pelo seu povo, para vencer as principais adversidades da vida. 99,8% dos cubanos sabem ler e escrever, isso é uma obra gigantesca, num país com dificuldades que Cuba enfrenta.

A liderança dos Castro teve certamente os seus pecados, que não são poucos, mas há ganhos concretos para a população local. Educação e saúde de qualidade são essenciais para qualquer povo, a par do mínimo para não passar fome. Oxalá que o novo presidente valorize esses ganhos e avance com reformas que possam permitir que todos os cubanos se sentam em casa naquela ilha e não tenham necessidade de emigrar, pensando que noutros países encontrarão melhores condições de vida, quando tal pode não passar de ilusão.

Uma das reformas que é um desafio para o novo presidente cubano é conceder maior liberdade política aos cidadãos. Não se pode formar intelectuais para depois fazer de tudo para que se mantenham calados e não digam o que pensam sobre como o país deve desenvolver-se. Reprimir vozes contrárias aos ideais castristas é das coisas mais repugnantes na política cubana. Não se pode ter medo de quem pensa diferente, até porque não é possível que duas pessoas pensem igual. É preciso abrir a ilha a ideias diferentes.

Sou dos que defendem e concordam com a política cubana, em que o Estado tem ainda algum papel importante na economia. É o governo que dirige os negócios no turismo, juntamente com as maiores cadeias internacionais no ramo hoteleiro. o mesmo acontece na indústria farmacêutica, assim como na mineração do ferro e níquel. O Estado não pode esperar pelo sector privado para dinamizar a economia.

No caso moçambicano, enquanto não tivermos um sector privado capaz de tirar benefícios da exploração dos nossos recursos naturais, o Estado deve tomar a dianteira, para que esses recursos realmente sirvam os supremos interesses dos moçambicanos. Mesmo no turismo de grande nível, que ainda não temos, o Estado deve entrar e fazer as coisas acontecerem. Com o tempo e à medida que a economia do país vai melhorando, esses projectos podem paulatinamente ser transferidos para a esfera privada, mas sempre com a salvaguarda de que vão continuar a servir os interesses do povo moçambicano.

E Cuba, usando o modelo de “Estado-empresário”, consegue ter uma economia três vezes maior que a nossa e cumprir com distinção as funções de um Estado. Daí que, reitero, se quisermos aprender a melhor governar o Estado moçambicano, temos um exemplo a seguir: Cuba, claro, naquelas coisas positivas e que nos faltam, porque no campo político, a ilha ainda deixa muito a desejar.

Hasta la victoria, siempre!

 

Pela madrugada, King Jota e John Xpila, viram que todas as luzes da zona estavam desmaiadas, então decidiram aterrar o seu voo conjunto na pista da porta da dona Salimina. Pareciam dois tripulantes vindo duma longa viagem. Sem perder tempo saíram da sua avioneta de medo e violaram a tranca da porta. O cadeado atirado ao chão parecia roupa interior feminina e o ferro aberto à força sangrava de ferrugem na areia.  Caminharam no quintal dobrando as colunas. Seus passos eram altos e logos. Eram atletas de salto em comprimento.

Apertaram os cintos dos passos como se estivessem ainda na avioneta. Era uma dupla que por onde passava, pela noite, era aplaudida por gritos de socorro. E como artistas em palco, eram jogados paus, tomates de fúria, bonecos de ferros e cartas de desespero. Actuavam sempre ao vivo. Além artistas e pilotos eram, também, físicos teóricos da desgraça; viram um fio eléctrico, com uma enorme curva no meio, atravessando uma das grades da janela; usaram a teoria electromagnética de Maxwell e calcularam com as suas línguas a radiação da carga eléctrica em movimento.
– “Me deu esticão um pouco. A energia está fraca. Aqui nesta casa acho que não roubam energia, meu bro” – disse John Xpila engolindo a saliva com migalhas de corrente eléctrica nas bolhas.

Pensaram em apropriar-me do fio eléctrico, mas um curto de circuito, interrompeu nas suas mentes, essa missão. Moveram seus corpos carregados de cicatrizes para a capoeira. Vigiaram o seu interior e descobriram um entulho de vazio. Foram a casa de banho e chocaram-se logo a entrada com o cheiro insuportável da latrina aberta. Com o polegar e indicador fizeram uma mola e taparam as narinas. Vasculharam com os olhos a casa de banho que era delimitada por paredes de sacos de arroz em estacas. Uma bacia com uma escova de dentes flutuando, um sabão ainda com bolhas, uma lâmina com pelos e um cinto no chão foi o que produziram naquele espaço.

A janela semiaberta viu crescer em si um buraco do tamanho da porta. Meteram-se pela janela e seus corpos diluíam-se, escondendo, na cortina de capulana. Com as suas camisas fizeram uma arca e encheram-na de bens e utensílios alheios: panelas, pratos, chávenas, sapatos, celulares, moedas, fogões e peneiras. Encheram a sua arca para depois embarcarem no dilúvio da partida.

Dona Salimina sentiu a sua cama movendo-se; pensou que fosse a terra girando, mas quando abriu a fechadura dos olhos viu dois rapazes escuros, com tatuagens de cruzes nos peitos, com dentaduras vestidas de fumo de tabaco, carregando lençóis e o guarda-roupa: – “Socorro! Ladrões. Socorro”. A senhora gritava puxando um pedaço de pano para tapar os pontos dos seios e o litoral feminino sagrado. Os dois artistas viram-se no meio de um palco onde a incerteza tocava a bateria e o medo soava os palitos dum piano.

A voz da dona Salimina cresceu no escuro do bairro. Era como se batesse em todas portas do bairro. Sua voz crescia, crescia e até assustava o vibrar das árvores. O sono fugiu do bairro. Todos acordaram. A vizinhança cercou a casa com pistolas de catanas, bazucas de martelos, granadas de pedras, algemas de cordas, revólveres de paus carregados e AKM’s de ferros. De repente King Jota e John Xpila viram-se no meio dum grande ringue aberto. O espectáculo tinha terminado. O chefe de quarteirão iniciou com a fecundação dos gémeos: esticou o seu cavalo-marinho nas costas dos dois, dona Salimina partiu dois blocos e quatro cadeiras de ferro nas suas cabeças que já vomitavam saliva de sangue. A vizinhança inteira colaborou naquela magia desumana de transformar King Jota e John Xpila em gémeos.

Para acelerar o processo de transformação há quem sugeriu que os dois fossem metidos num forno de pneus, adicionados dentes de lenha seca, guisados com gasolina, regados com petróleo e mexidos a todo momento com paus e ferros. Mas, ninguém aceitou essa receita. Os dois foram transformados em gémeos pelas mãos.

 

Acabo de ler, de reler na verdade, Carta ao Pai, de Franz Kafka, um escrito que me impressionou não só pela virulência implacável com que defronta a relação com o pai, mas também como ele explica a sua personalidade, complexa, marcada sem dúvida pela figura paterna: “Queridíssimo pai, Perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti. Como de costume, não soube responder; por um lado, precisamente pelo medo que tenho de ti, por outro, porque, na base deste medo, existem demasiados pormenores para que possa exprimi-los oralmente, de forma mais ou menos lógica. E se neste momento procuro responder-te por escrito será de forma bastante incompleta porque, também por escrito, o medo e as suas consequências me tolhem diante de ti e porque, enfim, a importância do assunto ultrapassa, de longe, a minha memória e o meu entendimento”.

Franz Kafka: “Parecia que, para ti,  era qualquer coisa do género: trabalhaste arduamente toda a vida, sacrificaste tudo pelos teus filhos, sobretudo por mim, vivendo eu, por isso, “à grande e à francesa”, tive toda a liberdade para estudar o que quisesse, nunca tive de me preocupar com o sustento, nem ter outras preocupações, de resto; nunca exigiste gratidão em troca, sabes como é a “gratidão filial”, mas pelo menos alguma amabilidade, algum sinal de simpatia; em vez disso, desde sempre me escondi de ti, no meu quarto, no meio dos livros, no meio dos amigos loucos, no meio das ideias extravagantes.” 

A primeira vez que li a Carta ao Pai fiquei siderado. Tolhe-nos de angústia este pequeno livro. Sufoca-nos, não raro. Sentimos as tripas amarradas. Tem passagens duríssimas: “Para mim, adquiriste o carácter enigmático que todos os tiranos têm, cujo direito se baseia na sua pessoa e não no seu pensamento. Pelo menos assim me parecia.” Ou antes: “Tu só consegues lidar com uma criança da mesma forma como tu próprio foste tratado, com força, gritos e irascibilidade o que, além do mais, te parecia muito adequado à situação, já que querias fazer de mim um rapaz forte e corajoso.” É brutal!

Franz Kafka: “Claro que não quero dizer que aquilo que sou se deve apenas à tua influência. Seria um grande exagero (e eu até tenho tendência para estes exageros). É bem possível que, mesmo se tivesse crescido completamente fora da tua influência, não conseguisse vir a ser um indivíduo a teu contento. Ter-me-ia tornado, talvez, um indivíduo mais fraco, mais ansioso, mais indeciso, mais inquieto, nem um Robert Kafka, nem um Karl Hermann, mas um ser completamente diferente daquilo que sou, e teríamos conseguido darmo-nos às mil maravilhas. Ter-me-ia sentido feliz por te ter como amigo, chefe, tio, avô, e até mesmo (se bem que com alguma reserva) como sogro. Só que, pai, foste forte de mais para mim, sobretudo atendendo a que os meus irmãos morreram na tenra idade, e que só muito mais tarde viriam as minhas irmãs, pelo que tive de aguentar o primeiro embate completamente sozinho, sendo eu fraco de mais para isso.”

Para além de descrever a relação castradora com o pai, fala da relação com as irmãs, descreve a relação vexatória com os empregados (“inimigos pagos”, como os chamava), com o Judaísmo, com o desejo falhado do escritor, de se casar, etc., etc., etc.: “Mas o principal obstáculo ao casamento é a convicção inexpugnável de que, para a manutenção da família e até para a liderar, é necessário tudo o que reconheci em ti e até tudo em conjunto, o bom e o mau, tal como se encontram organicamente reunidos em ti, portanto, força e desprezo pelo outro, saúde e uma certa imoderação, dotes oratórios e irascibilidade, confiança em si próprio e descontentamento em relação a todos os outros, superioridade e tirania, conhecimento dos homens e desconfiança em relação à maioria, depois também qualidades sem desvantagens, tais como a diligência, a perseverança, a presença de espírito, a intrepidez. Comparativamente, de tudo isso eu quase nada tinha ou tinha só muito pouco. Poderia eu atrever-me a casar ao ver que tu próprio tinhas de lutar duramente no casamento e que até falhavas em relação aos filhos?”

Transcrevi apenas algumas partes, não necessariamente as mais significativas deste texto implacável, mas aquelas que ajudariam, num relance, a ter a perspectiva desta confrontação. Tive hoje necessidade de reler este notabilíssimo livro de Franz Kafka e um outro texto  – A Maleta do meu Pai – do escritor turco Orhan Pamuk. Para além destes dois textos, queria ouvir, obsessivamente, os Buena Vista Social Club. O belíssimo livro de Pamuk abre com um texto homónimo que foi o seu discurso de aceitação do prémio Nobel em 2006 e é uma homenagem sentida ao Pai. O seu pai, um frustrado poeta – tentaria ir viver em Paris para ver se singrava como escritor! -, entrega-lhe, no fim da vida, uma maleta contendo os seus manuscritos todos para que o filho os lesse após a sua morte. Orhan conta o dilema de enfrentar aquela outra pessoa que ele defrontaria, depois de conhecer os poemas e os textos em prosa que este intentou, receando transformar uma pessoa conhecida numa personagem estrangeira, o que geraria uma incómoda distância onde antes houvera proximidade afectuosa. A história é de uma beleza comovente e narra, depois, a trajectória do escritor, que antes fora pintor, e que cumpre, por assim dizer, o sonho do pai, o de ser escritor, no caso dele, um escritor que viria a tornar-se consagradíssimo.

Orhan Pamuk: “Vinte e três anos antes do dia em que meu pai me deixou a sua maleta, e quatro anos depois que decidi, aos 22 anos, me tornar romancista e, abandonando tudo o resto, me recolhi, acabei o meu romance, Cevdet Bey e Filhos; com as mãos trémulas, entreguei ao meu pai os originais dactilografados do livro ainda inédito, para que ele pudesse lê-lo e me dizer o que achava. E não só porque eu confiava no seu intelecto: a sua opinião era muito importante para mim porque ele, diferentemente da minha mãe, nunca se opusera ao meu desejo de me tornar escritor. Àquela altura, meu pai não estava connosco, estava muito distante. Esperei pacientemente pela sua volta. Quando ele chegou, duas semanas mais tarde, corri para abrir a porta. Ele não disse nada, mas na mesma hora me abraçou de um modo que me fez entender que tinha gostado muito. Por algum tempo, mergulhámos no tipo de silêncio desconcertado que tantas vezes acompanha momentos de grande emoção. E então, depois que se acalmou e começou a falar, meu pai recorreu a uma linguagem rebuscada e exagerada para manifestar a sua confiança em mim e no meu primeiro romance: disse que um dia eu ainda iria ganhar o prémio que estou aqui para receber com tanta felicidade”.

Kafka, escritor checo de língua alemã, embora se tenha transformado num escritor influente, dos mais influentes do século XX, não terá alcançado, em vida, o sucesso do turco. A Metamorfose, O Castelo e O Processo são algumas das suas obras emblemáticas, onde avultam os conflitos e as confrontações físicas e psicológicas, que ele próprio viveu, na relação filial, ou os labirintos burocráticos e outros, que tornam os seus textos, por vezes, sufocantes e aflitivos. Ele teve influência decisiva em escritores como Albert Camus ou Jean-Paul Sartre (existencialistas franceses) ou o colombiano Gabriel García Márquez. Aliás, Márquez confessa, num relato, que tanto A Metamorfose, do Kafka, como Pedro Páramo, do Rulfo, estão na origem da sua maior influência e na criação do realismo mágico sul-americano. Kafka é um precursor do realismo mágico.

Orhan Pamuk tem uma vasta e reconhecida obra: A Cidadela Branca, Os Jardins da Memória, Vida Nova, O Meu Nome é Vermelho, A Casa do Silêncio, Istambul: Memórias de uma Cidade, O Museu da Inocência, entre outros livros. A Maleta do meu Pai é uma evocação comovente: “Sou-lhe tão grato, no fim das contas: ele nunca foi um pai cheio de ordens, proibições, controle e castigo, um pai comum, mas sim um pai que sempre me deu liberdade, sempre me tratou com o maior respeito”. Está nos antípodas do pai do Kafka ou daquilo que o Kafka descreve do pai.

Quanto aos Buena Vista Social Club: escrevo ao som do disco gravado ao vivo no Carnegie Hall, em Nova Iorque, em Julho de 1998. Há anos que estas vozes e a história destes músicos longevos, resgatados por Ry Cooder, me comove. Há um documentário, de Win Wenders, absolutamente maravilhoso, que vi e revi ao longo de anos. Vivi na promessa de os ver tocar e cantar. Vi primeiro Omara Portuondo, hoje com 87 anos, em São Paulo, num concerto com Maria Bethânia, em 2008.

Ibrahim Ferrer era a voz mais bela do grupo. Morreu em 2005, com 78 anos. Rubén Gonzalez, que ficara décadas sem tocar um piano, e que neste espectáculo faz uma exibição de outro mundo, morreu antes, em 2003, com 84 anos. No mesmo ano morrera Compay Segundo, com 96 anos. No documentário de Wenders, Compay Segundo desvenda a longevidade: bebia, fumava puros desde os 4 anos, quando os acendia para a sua avó, amava incansavelmente. Era um bon vivant. Ainda tinha esperança de ter filhos para acrescentar à sua extensíssima prole.

Meu Pai faz hoje 81 anos. Pedro Francisco Saúte nasceu a 19 de Abril de 1937. Bebeu e fumou, amou muitas mulheres. Foi, a seu modo, um bon vivant. É-o.  Está rijo. É desta cepa. A nossa geração não tem a mesma fibra. Creio que me lembrei do Compay Segundo hoje e dos seus velhos companheiros porque o meu Pai, salvaguardadas as devidas distâncias, é isso mesmo: um homem daquela (boa) cepa. Admiro-lhe a fibra, para além de lhe admirar – vocábulo hoje em moda – a resiliência. Meu pai é um resistente. Nasceu numa remota zona do país – em Inhambane, em Morrumbene -, nasceu órfão de pai. A mãe, em segundas núpcias, teve outro leito, outro marido, outro lar, diverso dos Guidanga, de onde são oriundos os Saútes. Foi desposada por um outro homem e dessa relação nasceram os meus tios, todos eles mortos. O meu Pai aí está, sobrevive-lhes a todos, não obstante a vida que teve, as noites e madrugadas consumidas no Porto de Maputo, primeiro, e, depois, no Porto de Nacala, e de novo no Porto de Maputo, onde foi conferente de carga.

Como um miúdo abandona o interior e triunfa na cidade? Foi o que lhe aconteceu. Ferro-portuário da antiga geração, só não cumpriu o sonho da faculdade – ainda a frequentou, mas não a concluiu -, e da literatura. Bebi dele o amor pela língua. O meu belo e velho Pai saía do Porto e fazia a ronda dos bares. Chegava a casa embriagadíssimo e acordava-me para discutirmos vocábulos da língua portuguesa. Desconfio que ele era um leitor assíduo de dicionários e de gramáticas. Tem um português correctíssimo e um vocabulário inusual para um homem que andarilhou no cais. Aqui também ele tem a minha indisfarçável admiração. Sei que ele intentou escrever a sua história. Pus-lhe, em casa, dois computadores que foram, sucessivamente, roubados. Ele queria escrever. Ele escreveu, mas sinto o receio do Orhan Pamuk de me defrontar com a outra personagem.

Lembro-me, há remotíssimos anos, de ele ser um homem assertivo e severo. Não era permissivo, era intransigente, sobretudo com a minha irmã Dulce. Mas longe de ser o pai tirano do Kafka. Pertence a uma geração de pais severos, mas contei sempre com a sua bonomia, a despeito das madrugadas etílicas em que tive que discutir clássicos que ele tinha na estante ou os vocábulos de uma língua que ele me incitava a dominar. Devo-lhe essa herança e talvez a vocação para a escrita. Ler a Carta ao Pai permite-me fazer um retrato benévolo do meu e, não obstante, o tormento que o álcool provocou, quando ele bebia sem remissão, visto a esta distância, não me confronto nem com mágoas, muito menos ressentimentos. Divergimos, não raro. Pertencemos a edifícios geracionais diversos, por vezes, adversos.

Ei-lo: sem mácula aparente, para além da idade indisfarçável. A nossa geração não tem a mesma fibra, disse-o e repito-o aqui. Esta gente é de outra galáxia, de outra ordem, tem outra consistência. Ele lembra-me estes belos velhos que encantam a minha noite enquanto redijo este texto: Compay Segundo tinha uma interminável filharada. Meu Pai teve filhos com 5 mulheres. Somos muitos. Nunca sei ao certo, tenho de parar e fazer a contabilidade. Ainda hoje é um homem que não se coíbe das artes e dos mistérios do amor. A minha mãe ainda se queixa das suas empreitadas líricas. Digo-lhe para não fazer caso disso. Oiço o Buena Vista Social Club, que vi tocar e cantar, muitos anos depois, já sem Ibrahim Ferrer, sem Rubén Gonzalez, nem Compay Segundo e redijo, depois de reler Franz Kafka e este (outro) pungente texto de Orhan Pamuk, esta prosa breve mas de incontida emoção, como se fosse um comovido abraço para o meu Pai no dia dos seus anos.

 

O homem é uma criatura tão espantosa que nunca é possível enumerar todas as suas qualidades

Nikolai Gógol

 

A adubada fecundidade e outros contos. Este é o título de um dos livros de Dany Wambire, autor que aposta nas suas narrativas como quem prende, na escrita, a realidade de um território, os dilemas de um povo e suas vaidades.

Como calha em Retratos do instante e Outras coisas, de Clemente Bata, este livro de Wambire é algo fotográfico. Por isso, ao lê-lo capta-se o que vai ao ADN de muitos moçambicanos em determinadas circunstâncias, sobretudo as preenchidas por conflitos individuais e colectivos. Na verdade, aí encontra-se parte do motor deste livro, com estórias contadas num jeito engraçado e, às vezes, com desfechos exageradamente repentinos.

O livro tem na primeira narrativa, “Vítima da rede mosquiteira”, um pouco do que é recorrente, em termos estilísticos, noutros textos: o burlesco, o sarcasmo e a denúncia de atitudes além do razoável. Nesse texto inaugural, a trama envolve um gesto aparentemente benevolente: a doação de redes mosquiteiras a uma comunidade que, mais do que combater os insectos, quer mais é livrar-se da fome. Por isso, ao invés de usar as redes para prevenir a malária, por ser a falta do alimento o principal conflito, Gostavo, um despertador de consciências, pragmático à medida das suas necessidades, faz da doação um instrumento de pesca, para lhe resolver os problemas. Aliás, se, por um lado, os conflitos que as personagens enfrentam dinamizam as narrativas, por outro, à procura da solução é um factor igualmente predominante. Gostavo é um exemplo disso, mas existem mais personagens. É o caso de Josebela, em “O amor de Josebela e a absolvição de Gonsalvo”, menina desiludida pelo seu amor, que se vendo na condição de o perder para a prisão, depois de uma queixa contra ele, subverte a verdade para o salvar e, com isso, tê-lo para si intacto.

A mesma luta contra os conflitos que desaguam na busca da solução atravessam Criminosa, no texto “A adubada fecundidade”. A certa altura, a personagem vê-se casada, enfrentando a pressão de ter que engravidar sem que nada disso aconteça. Depois, Criminosa fica envolvida em mais um problema: o bebé tão aguardado chega, mas não mama, daí caminhar de curandeiro em curandeiro para ultrapassar esse impasse, produto de adultério confesso.

Se o maior conflito de Criminosa é salvar o seu bebé, no texto “Um gueto sem saída” a estória é diferente. Zebadjia, o protagonista, apenas deixa-se levar pela ganância: ser rico. Nisso, tudo o resto é posto em causa: valores morais e éticos, de tal maneira que, estando pobre, resolve vender até seu próprio filho.

Portanto, são os conflitos e essa procura de soluções, não poucas vezes desesperadas, que valorizam as narrativas de Dany Wambire (as tentativas de resolver os problemas ou a busca de soluções também norteiam e muito os protagonistas de Lucílio Manjate. Por exemplo, em Rabhia e A legítima dor da dona Sebastião). Desde a miséria à riqueza, da malandrice astuta à bondade ou das constantes relações entre o fantástico/ maravilhoso vs. ciência, que até constrangem o juiz em “A vítima da rede mosquiteira”, A adubada fecundidade e outros contos faz-se, igualmente, e isso até pode ser a consequência do enredo urdido, com a pretensão de mostrar o que o povo é capaz de fazer quando se sente enganado ou quando as instituições sociais estão desacreditas. O fim do meteorologista Jesustóvão, em “A imprevista previsão de tempo”, traz duas lições claras, precipitadas e fatais: não enganar como quem lida com tolos, mas também não tomar atitudes graves com a cabeça a ferver.    

Ao mesmo tempo, ler Wambire é mergulhar-se no fenómeno da apropriação literária no país. Afinal, em A adubada fecundidade e outros contos há uma intensa reivindicação a um estilo que se assemelha ao de Mia Couto, quer na atribuição dos nomes às personagens (Maventura Campestre, Cantarina, Cristoamo Martírio, Amargarida e Almerda) quer no discurso heterodiegético do narrador. A construção de máximas de belo efeito como “a chuva é Deus dos agricultores e Diabo dos pescadores” (p. 64); “a criança grita, o adulto é que chora” (p. 27) e ainda “muitos têm o problema de insónia. O meu é de insónhia. Sim, não consigo sonhar”, pode ser usado para essa comparação e para se perceber a orientação literária deste autor.

 

Título: A adubada fecundidade e outros contos

Autor: Dany Wambire

Editora: Revista Soletras

Classificação: 12,5

 

Não é muito difícil equacionar as duas grandes motivações que conduziram ao que se passa agora no insustentável Moçambola. Tudo o que está a acontecer foi, por parte do autor destas linhas, previsto e discutido publicamente, sendo na altura catalogado de “adepto da desgraça”.
Primeiro: a “macaquice de imitação”, que nos obriga a fazer o “copy e paste” do campeonato português, sem ter em linha de conta que a Pátria de Camões, com uma robustez financeira bem maior que a nossa, cabe inteirinha na Província do Niassa. E como se isso não bastasse, possui uma rede de transportes que nada tem a ver com a nossa.

Segundo: insistiu-se no “todos-contra-todos”, apesar de que, aquando da campanha da actual Liga, o Moçambola, com 14 equipas, já enfrentava dificuldades de vária ordem. O mais sensato, seria reduzi-lo para 12, mas sobrepuseram-se as questões eleitoralistas e o programa de Ananias Coana só passou no eleitorado, graças à proposta de acréscimo para 16 clubes.

Os números agora divulgados do défice acumulado, provam que a montanha de dívidas não foi parida de um dia para o outro. Estava-se a um passo do precipício… e o que se fez? Deu-se um passo em frente!

Sacrificado? O atleta, sempre ele!

Uma prova de dimensão nacional, que financeiramente deveria fechar a cada ano era, afinal, gerida com pinças, jornada a jornada! Tentando respirar tranquilidade para o exterior, com pompa e circunstância nas galas de abertura, o grande mérito demonstrado pela Liga foi a sua grande capacidade de endividamento.

E agora? A simples atribuição das culpas de tudo à crise, que terá trazido à tona a impraticabilidade de um figurino, não convence, pois há muito anos se mostrava como “um passo maior que a perna”.
Chababe, Calton, Nito, Gil, Semedo, Joaquim João, Frederico, Miguel dos Santos, Almeida e muitos outros, estrelas que permanecem no imaginário de quem os viu jogar, e que teriam lugar em grandes clubes europeus, nunca disputaram por cá um campeonato de todos contra todos, mas nem por isso deixaram de brilhar.

Agora há que buscar remendos. Porém, tentar salvar a época deitando mão à massificação das viagens por terra, é castigar o elo mais fraco – os atletas – claramente os que deveriam ser mais considerados e respeitados, de forma melhorarem o seu rendimento e a corresponderem à história acumulada deste país, provada e comprovada mundialmente no desporto-rei.

O Moçambola deveria ser o ponto mais alto de toda uma movimentação, em que não chega lá quem quer, mas quem pode!

 

 

Tive a felicidade de ser escalado para cobrir o funeral de Nomzamo Winifred Madikizela-Mandela ou simplesmente Winnie Mandela. Cheguei a Joanesburgo quatro dias antes. Em toda a parte por onde andei, no centro da cidade e no Soweto senti que não haviam dúvidas que a única Mãe da Nação sul-africana chama-se Winnie Madikizela-Mandela. Este sentimento podia ser notado entre brancos e negros, idosos, jovens e até crianças.

Todos tinham a clareza de que sem ela talvez Nelson Mandela podia não ter se tornado naquilo que foi e que mais do ninguém ela enfrentou de peito aberto e mesmo nas suas barbas o regime do Apartheid. Winnie esteve sempre ao lado das vítimas da brutalidade do regime, esteve ali com as mães das crianças das Escolas de Soweto vítimas do ataque do regime a 16 de Junho de 1976. Por isso ela sempre disse “eu sou produto do meu país e produto dos meus inimigos”, porque ela sempre esteve em Soweto nos momentos mais sombrós do regime do Apartheid e as lideranças do ANC nunca a compreenderam porque nesses momentos ou estavam na cadeia ou no exílio. Pelo que ouviam falar das brutalidades, quando ela as sentia na pele.

Mas o carinho e compaixão que atravessaram a África do Sul desde o dia 2 de Abril levaram-me a uma profunda introspecção e com a seguinte pergunta a rodar na minha mente: afinal quem é a Mãe da Nação moçambicana? Isso me fez percorrer por diferentes figuras femininas que deram a sua vida pela libertação e construção do Estado moçambicano.

A na minha introspecção esbarrei-me com a figura de JANET MONDLANE. De todas as figuras que me ocorreram, nomeadamente Josina Machel, Marcelina Chissano, Graça Machel, Marina Pachinuapa, Celina Simango, entre outras a que tem uma história que a todos níveis pode ser considerada Mãe da Nação moçambicana para mim é Janet Mondlane.

Apesar de ter nascido norte-americana Janet Mondlane é moçambicana de gema. Ela aceitou casar com um negro de Manjacaze contra a vontade dos seus pais e familiares. Aliás até os missionários suíços que ajudaram Eduardo Mondlane estavam contrários a esse casamento com receio de que este desistisse de regressar a Moçambique para lutar pelo seu povo. Mas Janet contrariou isso, veio a Moçambique pela primeira vez em 1960 com o seu marido e se convenceu de que devia apoiar incondicionalmente Eduardo Mondlane na sua empreitada. Aceitou que seu marido abandonasse o emprego nas Nações Unidas em Nova Iorque e o de professor na Universidade de Syracuse para irem se instalar em Dar Es Salaam juntamente com os seus filhos menores. Abandonou a certeza de uma vida confortável para a incerteza em África.

Aceitou que o seu marido liderasse uma guerrilha contra o colonialismo português contra todos os riscos que isso representava para ela e seus filhos, até porque é branca o que na parte significativa dos guerrilheiros da Frelimo era o inimigo a abater. Dai que houve muitos conflitos dentro da Frelimo no esclarecimento de que o inimigo era o colonialismo português e não os brancos.

Janet teve um papel importante na diplomacia da Frelimo, ajudou a angariar recursos financeiros para a luta, mas sobretudo para a formação dos moçambicanos que depois a independência deviam assumir as rédeas do Estado moçambicano. Exemplo disso é o Instituto Moçambicano, as bolsas de estudos para vários países do ocidente de que se beneficiavam muitos jovens. Aliás numa entrevista que um antigo combatente me cedeu há alguns anos disse que chegados a Dar Es Salaam uma das perguntas que se faziam era se queriam ir aos treinos militares ou continuar os estudos.

Ou seja, enquanto Eduardo Mondlane e seus camaradas dirigiam a luta armada e política, Janet Mondlane e outros lideravam a formação de intelectuais moçambicanos. Mas o patriotismo de Janet foi demonstrado após o assassinato de Eduardo Mondlane.

Ela continuou com a Frelimo e os seus filhos envolvidos na luta até à independência. Mesmo assim ela continuou a ajudar a edificar o Estado moçambicano desempenhando várias funções sempre no âmbito social. A última das quais como Secretária Executiva do Conselho Nacional de Combate ao Sida. Mesmo com idade avançada e seu estado de saúde debilitado ela continua firme entre nós e na nação que ela ajudou a construir.

A Frelimo sempre disse que construiu o Estado Moçambicano tendo como base a experiência de gestão da Luta Armada de Libertação Nacional, assim como das Zonas Libertadas por isso tenho sempre defendido que as bases fundacionais do Estado moçambicano foram criadas a 25 de Junho de 1962. Aquela Frelimo criada naquela data até à independência era o Estado Moçambicano que funcionava no exílio e a 25 de Junho de 1975 apenas tomou posse do seu território e a partir dai transferir o poder para Maputo e redimensionar as suas funções e competências. Por isso a memória das pessoas que deram a vida antes de 1975 são património do Estado Moçambicano e não do partido Frelimo que nasceu em 1977. Dai que nunca entendi porquê tiraram Eduardo Mondlane das notas do Metical.

Por todos estes e outros elementos penso que Janet Mondlane é a nossa Mãe da Nação. Devemos em parte a sua luta e determinação o Estado que temos hoje e devíamos dar a ela esse reconhecimento quando ainda está viva. Infelizmente Winnie Mandela não pôde ver a África do Sul curvar-se perante ela, antes pelo contrário viveu os últimos anos julgada e mal falada e para mim todo aquele carinho soube a pouco porque ela não pôde testemunhar. Mas nós podemos fazer diferente com a Janet e mesmo com Marcelino dos Santos enquanto ainda vivem. Pior porque os jovens de hoje praticamente não conhecem essas figuras importantes. E um povo que não conhece a sua história e não reconhece nem valoriza seus heróis está definitivamente condenada ao fracasso.

Que Deus abençoe Moçambique

 

No chapa há vida, mas também morre-se;

Transporta-se alegria, mas também tristezas;

Há analistas, há sabedoria!

Há lamúrias, mas também soluções;

É onde despes a sua triste realidade…

Os políticos deveriam provar…

Sente-se o pulsar de uma nação.

 

O calor era de fazer escorrer rios de suor… o chapa estava abarrotado. Alguns em pé outros sentados e eu algures suspenso… os corpos mesclavam-se… dançava-se a dança do zigue-zague… zigue-zague dos burracos e do engarrafamento. Os cheiros dos perfumes e das catingas guerreavam por seu espaço… nesta toda luta, sofriam as narinas! Coitadas… ficavam todas atrapalhadas e confusas…

Ouvia-se insistentemente "Você estás me pisar, não vês? Não me pisa mamã heeee!".

– Isto é chapa papá, disse outra voz…

Havia no último assento uma senhora que falava – em emakhuwa – ao telefone aos berros, parecia que pouco se importava com o calor. A cabeça do cobrador estava do lado de fora e as suas traseiras incomodavam a senhora do tipo chique que estava imediatamente à sua atrás. As caretas dela denunciavam o desconforto… mas o seu silêncio era cúmplice… No banco detrás do motorista estava uma outra senhora que transportava peixe, cujo odor era forte. "Mamã… que é isto aqui que está a poluir um mau cheiro aqui!", disse em tom de arrogância um jovem que aparentava não estar lúcido, seus olhos estavam vermelhos, trazia um goro preto, brinco numa das orelhas e chinelos que denunciavam falta de limpeza… Do seu casaco – que não deu para perceber se era branco ou castanho devido à confusão causada pela sujidade – espreitava de forma tímida uma garrafa cujo conteúdo é imaginável. As caretas que a dona dos peixes fazia também denunciavam desconforto em relação a algum odor expelido pelo jovem que fazia questão de falar aproximando-se à face da senhora. Estava uma confusão…

O motorista que se apresentava de uma camisa daquelas famosas na praia de Havai – que estava quase toda ela desabotoada – tentava de forma insistida reparar o rádio que tocava aos soluços o som dos Soul Brothers, no espaço do António Jamal até as 13. Ele queria, porque queria ouvir a emissão… mas o aparelho teimava em soluçar… O homem parecia ficar nervoso.

Nas paragens havia luta dos infernos! Nenhum santo sobrevivia…

Durante o percurso foram descendo e entrando outros passageiros. Entrou em cena uma senhora – de idade avançada – que tinha tudo para ser uma portuguesa. Trazia uma bolsa grande de pano e a agarrava como se nela estivesse sua própria vida. Parecia inexperiente nessa coisa de chapas… o cobra como alguém ousou chamar o cobrador teimava em entulhar, mais e mais. A idosa com sotaque português dizia, de forma insistida, para quem com ela trocasse olhares. "Mas ele não vê que isto está cheio"? Mas parece que ninguém lhe dava ouvidos… Denotava não ter experiência nessa coisa de chapas, mas parecia conhecer bem a má fama dos cobradores… em nenhum momento ousou afrontá-lo.

Entretanto, naquele aperta aqui, aperta acolá, eis que um braço passa por ela com objectivo de ter apoio num dos encostos… e axila do cidadão ficou praticamente no seu rosto… a idosa parecia sufocar. Naquele aperta e amassa tentava a todo custo escapar… o jovem parecia não se importar…

Estava uma sardinha… Então alguém comentou "a culpa é do Governo"… começou um debate. Saiu-se do transporte, atravessou-se a dívida até a questão da paz. Ouviu-se: "Estamos a caminhar rumo ao progresso. Com o alcance da paz duradoira vamos espreitar o desenvolvimento. A crise vai passar… (parecia-me um copy and past de um discurso que ouvira algures)", disse um jovem engravatado, com cabelo organizado e com uma pasta como se fosse a um/seu escritório. "Sabe meu filho tu não sabes o que falas. Os nossos políticos não sentem as nossas dores, não vivem as nossas aflições. Por acaso tu sabes a que horas eu acordei e quantas horas durmo? Sabes dos sacrifícios que faço para alimentar e pôr os meus filhos a estudar? Sabes quanto está cinco litros de óleo? Um quilo de farilha, um quilo…? Você pensa que eles pensam e mim, pensam nisto que estamos a passar?, questionou um senhor que parecia amargurado, perante um silêncio do jovem que, mesmo assim, parecia seguro do que dizia. Não sei como terminou a conversa… porque de repente ouviu-se em tom típico de homem autoritário. "Alguém bufaste aqui na chapa"… Disse irritado um senhor corpulento que estava inundado de suor. A juventude presente explodiu em gargalhadas… os mais crescidos continham a graça. E o homem permanecia sério e com intenções claras de encontrar o "desgraçado". Parecia um investigador à procura de um larápio… entretanto, tal como em muitos casos mais relevantes deste país… a verdade morreu solteira.

 

Albert Einstein desceu dum taxi com faróis colados por adesivo hospitalar, no lugar de retrovisores, o taxi, tinha espelhos domésticos encomendados numa dessas lojas chinesas. O taxi no vidro traseiro tinha a seguinte escrita: “Basta Viver – Serviço de Taxi 24 horas”.

Números e letras escritas num pedaço de papel e colado no vidro da frente denunciavam a matricula do taxi. Poisou os sapatos no chão poeirento de Xipamanine, o físico. Um cobrador, de cuecas sujas, a mostra, com moedas puxando-lhe as calças, convenceu Einstein a subir o seu chapa. Einstein recusou-se. Mirou a bicha de chapas, mergulhou os seus olhos, com pingos de catarata, numa carruagem de pessoas ao sol que aguardava nas bombas para comprar CREDELEC. Toda aquela movimentação aos olhos do velho físico ganhava corpo de simples moléculas que se agitavam pela contracção de força num vácuo amplo.

Pequenos tecidos de poeira coçavam as narinas do físico e balas de espirros caíam-lhe sobre a barba; e cápsulas de saliva enchiam-lhe as palmas das mãos. Viu vendedores de crédito correndo, como macacos pintados de amarelo e vermelho, nos galhos do mercado, crianças que prendiam rios em garrafões de 5L. Pensou parado em frente a um parque de estacionamento sobre a sua teoria estatística do movimento browniano. Aquela toda manada de gente era na sua cabeça minúsculos grãos minerais em suspensão de maneira desordenada.

Avançou o homem gasto pela idade dos números e pelo peso das teorias. Atravessou a estrada com passos diagonais. Motoristas e agentes da polícia lançaram-lho insultos pela desordem que criava. Com uma mochila verde aninhada nas costas, relógio que desistira de dar as horas, casaco com manchas de uma bomba atómica de sono não explodida, jeans Levi com marcas de sujidade nas nádegas, quase inexistentes, desfilou Einstein no Xipamanine.

Os 43 graus, de temperatura, alisavam as ideias que ferviam na cabeça despenteada do velho físico. Dentro dele em silêncio segredou-se: “a velocidade da luz é independente do movimento da sua fonte”. O velho Nobel arrastou o seu corpo, mural de cansaço, para o interior do mercado. Apreciou discos pirateados, pomadas que clareiam a pele, fotografias da queda do muro Berlim em manuais vendidos ilegalmente. Tocou nos manuais escolares com muita intimidade e viu seus postulados explicados duma forma superficial, sem substância; chamou o jovem que os vendia e disse-lho: – “Dois acontecimentos simultâneos num referencial não o são, portanto, necessariamente noutro referencial”. – “Suka daqui Madala! Você não tens dinheiro para comprar esses livros de Fezzica”. Riu-se Einstein por não ter sido entendido e por não ter entendido o jovem. Saltava de prazer sempre que não fosse entendido. “Convém que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, e seja crucificado, e ao terceiro dia ressuscite” refrescou a memória.

Continuou a sua peregrinação. – “Afasta Madala! Quero passar”. Disse um jovem com um enorme fardo às costas. Parecia uma união de todas as corcundas do mundo. Olhando o jovem que desaparecia, como um eco, no meio da multidão, Einstein pensou na equivalência da energia (E) e da massa (m). Em cada passo era como se descrevesse a geometria do Universo à escala cósmica em Xipamanine.

 

É uma frase feita, que entrou na moda e, praticamente, no léxico moçambicano: “já fiz a minha parte”.

A partir daí, vem o jogo de empurra. Os “mais velhos” atiram a toalha ao chão, alegando que já não encontram espaço, pelo que se sentem desenquadrados. E a pergunta é: afinal o espaço é servido numa bandeja, ou (re)conquista-se?
Do lado dos jovens, saídos das academias e que se querem acomodar perante realidades que implicam investigação e trabalho, também surge legitimidade para o mesmo veredicto: “já fiz a minha parte”.

Quem vai, então, fazer… a outra parte?

Madalas: recolham a toalha

É fácil identificar o lado com menor legitimidade: o dos madalas. Numa sociedade como a nossa em que os culpados são sempre os outros, os mais velhos, sobretudo os credenciados, olham para os anos que têm para viver, equacionam as suas reformas – nalguns casos de dois ou três dígitos – e consideram-se felizes com o “pinga-pinga” na conta mensal. Optam por passar só a cuidar dos netinhos, evitando polémicas que possam atrapalhar uma velhice tranquila.

O investimento do país, a sua entrega e militância em muitos e exaltantes anos, viram matéria – útil mas desajustada – na vida dos novos “babás”. E desta forma, “pontapeiam” as atitudes que os seus pais e avós tiveram perante as bem mais duras realidades, nas longas noites coloniais.
O pós-independência proporcionou-nos uma abertura para o mundo e para a modernidade, com oportunidades para  (re)colher experiências irrepetíveis aquando no país nascente, tanto interna como internacionalmente.

Tudo isso é para ser levado para o Lhanguene?

Ser e parecer

No desporto, a situação é paradigmática. Nas direcções das colectividades, associações, federações e por aí em diante, os cabelos brancos escasseiam. Não quer dizer que se abundassem, isso seria por si só, sinal de qualidade. Porém, claramente, da fusão de pensamentos, épocas e experiências resultaria mais credibilidade e grandes debates de gerações, em que todos sairiam a ganhar.
Unir a inovação à experiência representaria uma base segura entre o parecer ao ser. Ganharia o presente a partir do passado, garantindo, sem margem de dúvidas, um futuro com bases bem mais sólidas, de saudade, mas não apenas de saudosismo.

    

 

“Conhecemos um homem pelo seu riso; se na primeira vez que o encontramos ele ri de maneira agradável, o íntimo é excelente”, Fiódor Dostoiévski

À terra, Mauro Vembane, somente irás entregar hoje o teu corpo. Porque, em meio a rostos carregados e lágrimas que escorrem nos olhos, ficará para sempre um retrato de um basquetebolista fiel ao seu “métier”.

Ficará, e porque fizeste disso uma das tuas marcas, a imagem de uma pessoa que espalhava alegria por onde passava! Brincalhão. Um gajo, pah, porreiro! Frontal.

Sempre, e nunca confundiste as estações, disposto a discutir ideias e não pessoas. Imberbe, e ainda à procura de (a)firmação com gravador, bloco e caneta ao punho, cruzámos caminho pela primeira vez. Trocámos ideias, trocámos números e lá marcámos uma sentada.

Falámos, com a paixão que sempre carregaste pela modalidade da bola ao cesto, das tuas expectativas e visão sobre aquilo que devia e deve ser o basquetebol moçambicano. Com um olhar clínico, aliás, diagnosticaste e apontaste o caminho a seguir!

E, pelo meio, nunca deixaste de criticar, de forma aberta e sem cobardia, o papel que os media (não) desempenhavam! Sobretudo, mano, no que diz respeito ao basquetebol. Dizias, lembro-me: “Aristides, melhorem neste e aquele aspecto”.

E, causa- consequência, desenvolvemos uma relação profissional de quase treze anos na qual aprendi muito contigo, Mauro Vembane.

Mesmo depois de te retirares do basquetebol, após passagens pelo Costa do Sol, onde deste os primeiros passos, Desportivo de Maputo, Maxaquene, Ferroviário de Maputo e selecção nacional, continuamos a falar sobre a modalidade.

E um pouco do FC Porto, clube ao qual eras aficcionado. Afinal, o desporto não tem fronteiras!

Ao lusco-fusco, e com brindes à mistura, abordámos o basquetebol. Fizeste, como sempre, observações sobre alguns aspectos em termos de abordagem.

Sem protagonismo e outros “ismos” que fazem escola nos “iluminados” cá da aldeia, deste várias sugestões. E sempre repisaste a necessidade de sermos humildes!

Porque, hoje por hoje, há muitos “corta-matos” que vão dar a Hollywood. Com queima de etapas e qualidade que deixa a desejar, pelo meio.

Não mais nos vimos! Infelizmente, terça-feira, espreitava eu o Facebook quando me deparo com um post de Helmano Nhatitima, teu eterno amigo. E meu amigo também, reivindico. Fiquei estarrecido! Gelei. Esqueci as tiradas do Milton Matsinhe. Caí na real. Não queria acreditar. Tirei lágrimas.

Os homens que choram também são homens. Questionei-me, tal como a Lena d’ Água num dos versos da música Sempre que o amor me quiser: “Porque é que os grandes homens caem e a vida é tão curta? Porque é que a morte arranca lágrimas dos olhos meus? Porque é que não disseste adeus?”.

 

Finalmente, após o tira-teimas que obrigou a segunda volta da eleição intercalar, um facto inédito em Moçambique, encontrou-se o digno representante dos munícipes de Nampula para dirigir nos próximos 5 meses os destinos da autarquia, nada mais, nada menos que Paulo Vahanle. Até então um ilustre desconhecido na arena política moçambicana, apesar de já ter tido uma passagem pela Assembleia da República na qualidade de deputado da perdiz. Um docente de profissão e com humildade suficiente para não prometer céus e mundos aos munícipes. Estes, que viram suas aspirações goradas por água abaixo após uma infantilidade grosseira do MDM na gestão do caso Amurane, cujas consequências ainda se farão sentir nas próximas eleições autárquicas de 10 de Outubro próximo em todo o país. Mas a nossa análise não é essa, o que queremos alertar é a influência que o norte tem ou que pode ter sobre todo Moçambique.

Foi no norte onde se deu o primeiro tiro no início da luta armada segundo a história e foi por lá onde a guerra civil de 16 anos fez estragos incalculáveis da economia e do tecido social. O presidente da república é de lá, os grandes projectos estão lá e tantas outras coisas que já sabemos. Estes factores deveriam convencer aos sulistas de que Moçambique não é só Maputo e que as atitudes dos nortenhos devem ser replicadas e valorizadas, pois aqueles não toleram teatros e palhaçadas dos dirigentes políticos. Não se baseiam em sentimentalismos, camaradagem e não esquecem o tempo que passou, mas baseiam-se nos resultados que os dirigentes apresentam na gestão da coisa pública e sabem dar a César o que lhe pertence. O nosso espanto é que muitos aventureiros em políticos e analistas pro-governo defendem a tese segundo a qual foi um voto contra o glorioso partido e não pelo manifesto apresentado pelo felizardo Vahanle.

A olho nu, ficou claro de que nenhum dos candidatos apresentou um projecto sério de governação para o município de Nampula, mas devia-se eleger um dentre os melhores para assumir o comando. No nosso entender não havia necessidade de uma eleição intercalar, apesar de se ter evocado o imperativo legal, pois a conjuntura económica e o tempo que restava para o fim do mandato, por si só dispensavam a aplicação da lei às cegas, pois não há regra sem excepção. Entretanto, como a ocasião faz o ladrão, pensaram alguns amadores que aquela seria a oportunidade para assaltarem Nampula.

Devemos dar mérito aos que ganham, nos solidarizar e aconselhar aos que perdem para que treinem mais, até Barcelona de Messi perde. Devem ser humildes e não recorrerem a arrogância, extorsão, corrupção moral, ameaças e falsidade para lograr seus intentos, pois quando não conseguem a frustração é imensurável. Alguns minimizaram a vitória da perdiz e chegaram a aventar a hipótese de que o silêncio da sociedade civil resulta do cumprimento de uma agenda externa, será verdade? Outros tentaram manipular as mentes e aliaram-se a família do edil malogrado, prometendo o ouro sobre azul, mas quando aquele estava vivo não apanhavam sono com sua qualidade e integridade na gestão municipal.

O vento sopra do norte e os resultados de Nampula são um balão de oxigénio para uma democracia que estava a se asfixiar. Os órgãos eleitorais tentaram sem sucesso dificultar o exercício do direito de votar, confundindo os eleitores, atrasando a aberturas das assembleias de voto, visto que os observadores internacionais e nacionais tinham a lição bem estudada. Nesta eleição ganhou Nampula e a democracia e de outro lado perderam os ditos cujos que reclamam que são os únicos que fazem e que sempre fizeram. Então, assumam que fizeram brincadeiras desta vez, para perderem a eleição e aceitem aprender com os erros para vencerem futuras batalhas. Talvez a autoconfiança, o relaxamento de que o jogo está ganho, a desatenção na defesa e participação dos maputenses na campanha de Nampula ditou o triunfo da perdiz.

Pensamos que é tempo dos ambiciosos mudarem de táctica, mesmo quando o adversário tenha sido ganho nos campeonatos anteriores, cada jogo é um jogo. Apesar de o futuro ser incerto ele é previsível, a partir do momento que o MDM e outros partidos direccionaram o voto para a RENAMO ficou claro que os galácticos iriam perder o jogo. Deste modo, não havia necessidade de mobilizar buldozares, grandes engenheiros e empreiteiros para uma obra de 5 meses, pois para problemas locais são aconselháveis soluções locais. As elites políticas têm níveis, desde nacionais, regionais e locais.

Ademais, como é que continuam a usar recursos do Estado, com destaque para viaturas de luxo, funcionários e quadros seniores, inclusive do parlamento para fins domésticos? Concordamos com o dono da expressão o "preto nunca muda". Todavia, o moçambicano já está a mudar porque os ventos da mudança estão a surtir efeito e de algum lugar virão as respostas de tantas perguntas e insatisfações antigas. Apelamos aos partidos históricos e os aspirantes que preparem-se para as mudanças e tenham criatividade e mestria na sua actuação, devendo deixar sempre um legado, obra emblemática mesmo que não sejam eleitos para próximos mandatos. Chega de trabalharem hoje para garantirem trabalho amanhã e fazer carreira na política.

Política é ciência e ciência é invenção dos homens para o benefício dos homens. Apelamos ao povo que dê cartão vermelho aos jogadores e multa aos clubes desses jogadores que fizerem jogo sujo e comprarem resultados, tem de haver fair-play. Por outro lado, que compre camisetas dos melhores jogadores e apoie os clubes que mesmo sem recursos financeiros e jogadores de alto nível mas que fazem um jogo bonito e que agrada os adeptos.

Paulo Vahanle hoyee! Democracia hoyee!

 

 

 

Eram 04h50 da manhã quando aterrámos no Aeroporto de Helsínkia. Acolheu-nos uma fresca temperatura matinal de -7 graus centígrados. Vínhamos de uma noite passada a mais de 12.000 metros de altura e a uma velocidade de 860km/h. Depois de cumpridas todas as formalidades migratórias e de alojamento, começámos a nossa jornada as 08h30, num ritmo rigorosamente cronometrado. É fascinante como, na Europa, a noção do tempo e da pontualidade assumem uma dimensão praticamente sagrada, contrariamente ao que nos habituamos no quotidiano africano.

Helsínkia é a capital da República da Finlândia. No passado dia 6 de Dezembro de 2017, este país nórdico celebrou o centenário da sua independência. A Finlândia é também conhecida como o país do Pai Natal (segundo a lenda, o Papai Noel mora nas montanhas de Korvatunturi, na Lapônia-Finlândia), o país da Sauna (calcula-se que existem na Finlândia mais de 3 milhões de saunas – praticamente uma sauna para cada dois habitantes), o país criador do famoso Nokia 1100 (o celular mais vendido na história da telefonia móvel – 250 milhões de exemplares em todo o mundo). Em 2018 foi considerada pelas Nações Unidas o país mais feliz do mundo e o melhor lugar no planeta para se nascer.

No entanto, até a década 50, a Finlândia era uma nação pobre e ninguém podia prever que este país com cerca de 330.000km2 e pouco mais de 5.500.000 de habitantes, ao decidir revolucionar o seu sistema educativo se transformaria num dos países mais prósperos do mundo, ostentando um dos melhores PIB do planeta, sendo o número um em capital humano com base em indicadores como educação, bem-estar e emprego, e ainda reconhecido com várias outras classificações mundiais prestigiantes.

Porém, para a nossa comitiva, de profissionais da educação, a Finlândia é um destino escolhido especialmente pela qualidade do seu sistema de educação, classificado como o melhor do mundo.

Qual é o segredo do milagre Finlandês? Esta era a principal pergunta que a nossa expedição académica levava na bagagem.

Sob a neve macia, cobrindo o solo, as águas e os tectos, qual um manto branco e puro, ficámos a saber que a história da Finlândia – o país dos mil lagos (187.888 lagos exactamente) – mudou radicalmente nos meados do século XX, quando o parlamento tomou a decisão de permitir que todas as crianças pudessem estudar em escolas públicas de qualidade. Desde então, todos os finlandeses têm acesso à educação gratuita da pré-escola até ao ensino superior. Esta filosofia constituiu sem dúvida, a chave do sucesso desta nação.

Creio poder resumir em três ideias fortes os factores determinantes que permitiram situar entre as mais altas do mundo, a qualidade do sistema educativo finlandês e, consequentemente, conduziram este país ao topo do progresso, em pouco mais de 50 anos.

O primeiro elemento assenta no facto de o país ter assumido a educação como uma prioridade nacional.

Os finlandeses compreenderam e souberam, genuinamente, pôr em prática uma velha ideia que sempre fez parte do património pedagógico universal: tudo começa com a escola.

Reconhecendo a educação como uma prioridade nacional, os finlandeses ousaram “pensar fora da caixa” e, ao longo de décadas, experimentaram fórmulas de gestão da educação que nenhum país antes ousara implementar, tendo assim logrado resultados fabulosos.

O sistema educativo finlandês preconiza uma educação gratuita, igualitária e de qualidade para todos os cidadãos nacionais. A forma como a Finlândia materializa o princípio de gratuidade é sui generis. Na prática, toda a educação é financiada pelos impostos e não existe efectivamente no país mercado de educação privada. Impressionou-nos saber que até as instituições geridas por organizações particulares, que se consideram “privadas” recebem do Estado mais de 80% do seu orçamento. Em função do número de alunos que tem, cada instituição recebe do erário público o orçamento correspondente ao custo unitário da formação.

O princípio da educação e igualitária consubstancia-se no facto de o filho do empresário mais bem-sucedido e o filho do modesto empregado de balcão estudarem lado a lado, desde o pré-escolar até a universidade. A educação da criança deixa de depender da condição social ou financeira dos seus encarregados de educação e o Estado chama a si a responsabilidade de oferecer oportunidades iguais para todos.

O sistema finlandês decidiu igualmente considerar gratuito a refeição nas escolas, as actividades extra-curriculares, o material didáctico, porém não considera relevante o uso do uniforme escolar.

O segundo elemento de sucesso tem a ver com a forma como os alunos são tratados. Os alunos não são vistos como clientes, nem como usuários do sistema educativo. Os alunos são tidos como seres humanos e são orientados como indivíduos. A Finlândia não se dá ao luxo de perder uma única criança. Equidade, qualidade e competitividade constituem um menu bem equilibrado na receita da escola finlandesa.

A Educação procura alcançar a realização plena e a felicidade de cada indivíduo. Os alunos finlandeses são os que apresentam índices de desempenho dos mais altos do mundo, no entanto são os que passam menos tempo por dia estudando. A escola ocupa as crianças com actividades que estimulam a criatividade, o raciocínio lógico e o conhecimento do mundo. A opção do sistema finlandês foi de, ao invés de preparar os alunos para as avaliações, prepará-los para a vida, propondo actividades escolares baseadas no seu ambiente quotidiano e adaptadas à sua idade. Uma criança é uma criança e não um adulto em miniatura, por isso deve fazer coisas de crianças.

O objectivo da educação é apoiar o crescimento pessoal como indivíduo e membro da sociedade. A escola ensina o que pode vir a ser útil na vida. Desde cedo, os alunos aprendem coisas do tipo: o que é um contrato, um talão de cheques, como calcular os impostos, e são treinados a fazer escolhas, análises críticas e a tomar decisões. Desta forma, as crianças crescem sem ter saltado etapas da vida da infância, da adolescência ou da juventude e são preparadas para se tornarem adultos responsáveis.

Difícil entender que na Finlândia a escola não é obrigatória, mas a educação sim é obrigatória, e que crianças não têm TPC, nem passam dias estudando antes das provas.

O outro factor de sucesso do sistema da educação da Finlândia mais frequentemente destacado é o estatuto profissional e social da profissão docente. A profissão é altamente respeitada.

A Finlândia adoptou uma política de valorização do professor que consistiu em determinar o nível de mestrado como condição básica para leccionar nas escolas, o que tornou o magistério uma profissão de prestígio criando um novo conceito de dignidade profissional. Existe maior competição para a profissão de professor do que a de médico, economista ou jurista.

Os professores possuem um alto nível de formação, com diplomas universitários e preparação psico-pedagógica, o que confere confiança no seu desempenho de tal modo que não há necessidade de inspectores na educação. A valorização profissional incide também, e obviamente, no reconhecimento salarial. O salário de um professor primário passou a ser quase metade do de um deputado.

O sistema de educação da Finlândia é provavelmente o melhor do mundo. O sucesso do modelo finlandês não é resultado apenas de políticas educativas, mas também de políticas sociais. Os finlandeses entendem que se o aluno está doente, tem fome ou tem medo não vai aprender. Então, as políticas sociais devem concorrer para assegurar um ambiente favorável a aprendizagem, proporcionando alimentação, saúde, amor e segurança a todas as crianças.

Tudo isto é fantástico, impressionante e muito desafiador. Porém não tem nada de ficção científica. E nós moçambicanos não precisamos de reinventar a roda, mas também não nos devemos limitar a importar práticas que podem não ser aplicáveis no nosso contexto. Todavia, podemos aprender da experiência dos outros.

A grande lição que podemos tirar do modelo finlandês é que nós precisamos de determinar que tipo de educação queremos na nossa sociedade e ousar definir as políticas mais ajustadas para levar o nosso país aos patamares que pretendemos alcançar. Temos de compreender que a competitividade de um país não começa na sua indústria, nem na quantidade dos seus recursos naturais ou na capacidade das suas forças armadas. A grandeza de uma nação depende fundamentalmente do que acontece na sala de aulas.

Está neste momento depositado na casa do povo a nova proposta da lei do Sistema Nacional da Educação. É muito importante que esta lei não se limite a actualizar assuntos plasmados na lei anterior, mas que traga inovações substanciais para que realmente ela contribua para a formação de uma nova geração de moçambicanos mais felizes, numa sociedade mais justa e com elevado grau de criatividade para edificar um Moçambique melhor.

Nelson Mandela disse certa vez que “a educação é a arma mais poderosa para mudar o mundo”.

É que, de facto, não há projecto social, político, económico que se estabeleça num país sem investimento na educação. Boa parte do futuro de uma sociedade está assente na educação e o exemplo finlandês indica-nos que, se dermos uma educação de qualidade aos jovens, estes catapultam o país.

A situação da educação em Moçambique é preocupante. Precisamos de uma educação que esteja ao serviço do progresso social e do bem-estar colectivo. Uma educação que não seja uma ferramenta para formatar pessoas. Moçambique precisa de uma educação que devolva a esperança aos jovens, que traga maior qualidade de vida ao cidadão e que dê respostas ao sentido mais profundo do ser humano.

Este desiderato, felizmente, não está fora do nosso alcance. Se soubermos mobilizar o conhecimento e a experiência já existente no país e ousarmos genuinamente pensar “fora da caixa” podemos sim, num espaço de duas ou três décadas proporcionar ao nosso povo uma educação que abra as portas para a felicidade individual e colectiva e que estimule a prosperidade e o bem-estar social.

 

Rui Nogar: “quando fala depois de nove hora/ eu não sabe outra história/ como história de rosalina// foi quando aquele tempo/ chegou noite devagarinho/ pouco qui  pouco lá/ lua começou / lumiar o caminho/ caniço  areia  zinco  gente// dentro / já fosfo cendeu luz/ candeeiro petromax// senhor António mandou fora/ vai lá fora espreitar / jossia quando ouviu/ foi no fora espreitar  espreitou / depois  porta de cantina fechou// agora sim/ todo gente ficou saber  nove hora/ todo gente ficou saber/ porta ficou atrás li no posto/ vai abrir  vai sair cavalo/ vai sair polícia com sipaio-anda-perto

Conheci-a há 30 anos e, desde a primeira vez que a vi no palco, reconheci nela uma força da natureza a representar, uma verdadeira força telúrica, uma actriz jubilosa, versátil, com uma plasticidade e uma capacidade de se transfigurar nas personagens que encarnou. Digo: para mim, foi a melhor actriz moçambicana, a mais espantosa, a mais incrivelmente espantosa. Vê-la a representar mexia connosco, mexia com o edifício dos nossos sentimentos. Não saíamos os mesmos depois de a ver em palco. Era uma mulher soberba no palco. Uma actriz soberana. Foi a fazer o papel inesquecível de Rosalina que se tornaria lendária para mim.

Rui Nogar: “passou tempo assim-assim/ lua subiu mais lumiou mais/ agora lumiou medo lumiou pressa/ lumiou casadela também/ casaquela fica meio de lagoas/ e foi ali que rosalina/ foi lá no fora fazer mijo// gente que passa  que olha/ pode ver rosalina/ fazer mijo assim mesmo/ mas ela não tem culpa/ não tem culpa rosalina

Conheci-a quando conheci os seus companheiros. Quando me demorei nas conversas com o João Manja, que era um brilhante actor e é um admirável senhor.  Conheci-a nessa década de 80. Foi ali, naquele tempo, que percebi o talento impressionante da Lucrécia Paco. Foi quando me defrontei com a grandeza do Adelino Branquinho. Com o Victor Raposo, o Eduardo Gravata, o Evaristo Abreu, a Margarida Muluana, de grata memória.

Rui Nogar: “paga dinheiro no dono/ cada mês dia trinta/ mas dinheiro muito senhor silva// quando quer fica quando não vai/ gente não falta para pagar// senhor silva falou rosalina ficou// paga sempre cada mês cada mês/ mas casa ranjar não ranja/ assim mesmo não pode ficar

Cumpliciei com eles. Fizemos viagens inesquecíveis. A de Pemba, em Janeiro de 1989, sobretudo, quando foram fazer Os governadores de Orvalho, do haitiano Jacques Roumain e Funeral de um Rato, de Mia Couto. Calcorreámos este país, no projecto “Moçambiquero-te”. Acompanhei-os quando andavam a fazer educação cívica em 1994. Parte do nosso país, forçado a emigrar, retornava. Mutarara ou Ilha de Moçambique, entre outros lugares, vivi momentos únicos com o Mutumbela. Fomos a Zurique em 1995 e eu fiquei comovido até às lágrimas perante aquele público electrizado com a brilhante actuação de todos em Os Meninos de Ninguém. Conversei com o Henning Mankell (que merece a nossa lembrança) naquela viagem. Provavelmente, não tanto quanto desejaria. Olhava para ele como se miram os gigantes. Ele foi um grande escritor. Vi-os a representar em Maputo, em Pemba, em Zurique, ou em diversas cidades alemães, vi-os em Lisboa.

Rui Nogar: “foi cacimba outro dia/ com mais chuva que choveu/ foi sapato de mulungo/ com mais bota de soldado/ mas quem pisa  pisou mesmo/ foi os pé  de moleque/ que dinheiro não tem/ mas que passa que olha/ que gosta coisa que vê/ que empurra com mão com perna/ mas que dinheiro é que não tem/ foi também   os dali/ que trabalha no bazar/ outro caminho não quer/ outro caminho mais perto/ foi também cada noite/ quele muchope zapungana/ ah  mas quem foi que foi mais/ foi o tempo que passou/ quando onde passa/ deixa tudo como vôvô// e o tempo  vento  chuva/ bota sapato moleque/ tudo ali passou// foi assim que rosalina/ quando mija fica fora/ gente que passa  que olha/ está ver ela quando quer

O teatro é uma ferramenta indeclinável na construção de um país, de uma identidade, de uma memória colectiva e da pluralidade sócio-cultural. O teatro é indispensável para a educação. Não só em momentos cruciais, como foram aqueles em que votámos pela primeira vez e que o Mutumbela Gogo percorreu o país, mas sempre. Não sei quem se interessa por isso. Já percebi que os poderes públicos na área da cultura divergem do essencial. Vejo-os resolutos a averiguar comportamentos. Não é esse o seu papel. A cultura é o reino da liberdade e eles tem que saber dar livre curso a isso. O teatro e outras disciplinas das artes precisam de uma política cultural inteligente. O teatro é decisivo na formação da cidadania. O teatro deveria ser indispensável num país como o nosso. O Mutumbela transpôs para o palco textos de Mia Couto, adaptou Luís Bernardo Honwana ou Rui Nogar. Esse trabalho é indispensável.

Rui Nogar: “mas agora/ não pode esquecer agora/ quando passa depois de nove hora/ cuidado não pode ali fora//e polícia  e cavalo  a passar/ com sipaio-parece-mesmo-outro gente/ está olhar olhou já viu ela/ e assim viu correu  correu mesmo/ e garrou prendeu lo (…)/ mulher de lagoa  mais moleque/ mais outro preto qualquer/ não pode ficar no fora/ quando passa já nove hora/ pronto cabou  vamos embora”

A Manuela Soeiro percebeu isso e é responsável pelo mais corajoso e inventivo projecto de teatro moçambicano. Eu vi como aquelas actrizes e aqueles actores cresceram nas mãos da Manuela. Não só como profissionais – e foram os primeiros actores profissionais em Moçambique! -, mas como mulheres e homens. E vi como a Manuela sabia harmonizar, num único grupo, tantos talentos, diversas personalidades, umas mais pronunciadas do que outras, umas discretas, outras exuberantes. E vi como eles olhavam para ela e como a amavam e respeitavam.

Rui Nogar: “e rosalina fica assim/ foi no posto número três/ com moleque polícia diz bandido/ com miúdo polícia chama vadio/ só porque passe no bolso não tem/ e bilhete-patrão-sina também/ não vai escola não pode estuda/ que vida moleque é trabalhar trabalho/ e dia todo moleca mesmo/ desde galo canta primeira vez/ até cão começou ladrar/ sozinho ali naquela estrada/ e primeiro agora é quintal/ vai varrer  já varreu/ tira lata de lixo fora/ põe lata de lixo dentro/ foi no talho  na padaria/ no bazar vasco da gama/ cendeu fogo cendeu já/ e quando caba tomar chá/ toda a gente que tomou/ rapaz vai tomar chá/ há muita roupa para lavar/ mas primeiro lava as chávenas/ mais os pires e colherinhas/ só depois é que lá fora/ vai no tanque de lavar/ e lava a roupa passa roupa/ de menino e de patrão/ e de menina e de senhora/ e roupa que vai usar/ outro domingo que deixar/ senhora é que vai mandar/ frega chão cera chão/ sábado sim sábado não

Ainda aqui há tempos – parece que foi ontem –  vi-a no Avenida, em Nove Hora, fazendo o papel de Rosalina, onde de facto ela se agigantou, peça baseada na adaptação do poema homónimo do inesquecível Rui Nogar. Aqui há tempos eu saíra em lágrimas daquele palco onde a vi brilhar. Vi-a em tantas outras peças. Admirava-a, tinha orgulho dela, aplaudia-a. De pé, como se devem aplaudir os gigantes.

Rui Nogar: “e caminho a continuar/ té no posto número três/ foi caminho de entrar/ lá no espada massuingue/ que no preço de um só disco/ tem um mundo a esmagar/ pontapés na louça toda/ sempre sempre está lavar/ tem na cama nos seus braços/ a senhora a espernear/ e a fugir é o patrão/ da navalha do seu riso// ah  o estrado lá no espada/ ah o estrado lá no espada/ twist  twist twist again/ ah o jive no estrado/ yah brothers i´m the king/ of my shadows/ everywere i´m working/ yes brothers  yes brohters  ah  ah  ah ah// ah o estrado lá no espada/ que liberta me liberta/ te liberta  nos liberta

Era e é uma actriz gigante. Disse-o e repito: a mais incrível actriz moçambicana. A mais bela actriz moçambicana. Quem não a viu, quem não foi interpelado pelo seu olhar no palco, pelos seus gestos, pela sua voz, pela sua representação, perdeu o melhor que tivemos no nosso teatro nos últimos quarenta anos. Para mim, a melhor actriz do Mutumbela Gogo, a melhor actriz moçambicana. Admirava-lhe o colossal talento, mas também, ou sobretudo, a imensidão da sua humildade. Foi uma mulher desprovida de todo e qualquer vedetismo. Não era uma diva, era sim uma grande senhora. Foi uma grande senhora do nosso teatro, a grande senhora do nosso teatro.

Rui Nogar: “mas agora é rosalina/ que no posto já chegou/ que sô chefe já chamou/ e a falar está dizer/ estava só fazer mijo/ e era dentro no quintal/ lá no casa não tem culpa/ senhor silva não faz muro/ para mijo ficar dentro/ não tem culpa senhor chefe/ lá meu filho está chorar/ está na esteira me esperar/ já não sabe está sozinho/ como pode sem mamar/ lá meu filho está chorar/ lá meu filho está chorar// e chefe quando ouviu/ diz a ela vai embora/ e outra vez se fores presa/ vais mijar no cangarrão/ e o sipaio agarra braço/ puxa ela ir embora”

Perdoem-me este tom intrépido. Enfático. Definitivo. Eu sou assim com as palavras, eu sou assim com os sentimentos. Ponho neles uma paixão intransitiva. Ela foi e é uma mulher que concitou sempre e continuará a concitar a minha incondicional admiração. Dou-me conta de que passaram trinta anos. E ela esteve sempre na trincheira do Mutumbela. Não sei de notícia que a colocasse fora daquele palco, daquele teatro, daquela vida, porque o teatro, o palco, a representação foram e são a sua vida. Passou a maior parte da sua vida ali. No palco. A sua vida foi o teatro. A devoção pela arte dramática, fê-lo com denodo, entregou-se reiteradamente. Com devoção e paixão. A sua vida foi a representação. No entanto, nunca lhe divisei, nunca consegui perceber nela nenhum sinal de estrela – como os falsos cometas que se guindam por aí e que estão desprovidos de obra e de valor. Ela tem um longuíssimo e profícuo currículo. Ela tem uma história. Ela é parte da história do Mutumbela Gogo, a história do nosso teatro, o melhor que vimos e aplaudimos nos palcos, nos nossos palcos.

Rui Nogar: “rosalina já não guenta/ cai no chão a soluçar/ soca areia chora grita/ quer bater no senhor silva/ que só sabe é explorar/ quer matar sipaio aquele/ que só prende o seu irmão/ quer lutar com força toda/ viu naquele o sopra gaita/ viu ali  lá no espada/ viu ahoje  quando viu/ filho nosso mesmo nosso/ mais sozinho já não fica/ já não pode mais ficar// rosalina rosalina/ rosalina está sentir/ que nós  todo mesmo/ vai um dia juntar raiva/ que precisa é rebentar// rosalina rosalina/ rosalina está sentir/ esta hora de nove hora/ é preciso vai cabar/ é preciso vai cabar/ para ninguém vais mais chorar/ para ninguém vai mais sofrer”

Ela fez este papel – e tantos outros – com garbo, com elevação, com elegância, com panache, com inteligência, com brilho, como uma grande actriz, como uma imensíssima intérprete. Pôs tudo o que era naquilo que fazia e por isso foi uma actriz extraordinária. O talento não é tudo, é preciso trabalho. Muito trabalho. As suas imagens que me ocorrem no palco, nas suas interpretações inesquecíveis, são, algumas, muitas, quase todas, arrepiantes. Morreu no dia 16 de Abril de 2017.  Há precisamente um ano, as mensagens sucediam-se numa manhã usual de domingo. As mensagens sentidas, de ocasião e outras. As mensagens sinceras. Inundavam as redes sociais. Chegaram-me por interposição. Não sou afeito à rede. Nem às redes. Permaneço obscuro e intransigente na idade do livro, sou relapso em tecnologia e desconfiado do conhecimento instantâneo. Desconfio, por conseguinte, das redes. Mas recebi screenshots: tudo parecia ter sido tão rápido naquela madrugada, tão brutalmente rápido, naquela infausta madrugada, a que nos subtraiu deste reino – onde os néscios contumazes persistem – uma belíssima mulher, uma belíssima actriz, que será sempre, para mim, sobretudo, a inesquecível Rosalina, do Nove Hora: Graça Silva.

Rui Nogar: “rosalina rosalina/ rosalina está sentir/ que outro dia lá no espada/ aquele disco vai tocar/ nunca mais vai parar/ nunca mais nunca mais/ nunca mais vai parar/ nunca mais nunca mais/ nunca mais vai parar”.

 

Uns vencem pelos seus crimes, outros fracassam pelas suas virtudes

William Shakespeare

Mbate Pedro é daqueles autores que acredita, de forma peremptória, que a poesia é a mãe de todas as artes. Verdade ou não, esta crença faz sentido, afinal aquela manifestação literária está além do verso e da palavra proferida. Devido a essa omnipotência, encontramos resquícios da poesia na música, nas artes plásticas, no cinema ou num modo de vida. Isto toda a gente sabe. Mas o que faz de um texto poético isso mesmo e da poeticidade um percurso para encanto? Já houve infinitas discussões sobre o assunto e não é nossa pretensão retornar a essa discussão. Não hoje. Ainda assim, acreditamos que “a gravata preta do corvo albino”, secção referente a Mbate Pedro, na obra Os crimes montanhosos, constituída por uma outra, “o branco colarinho dos corvos”, de António Cabrita, é uma perfeita desculpa para quem julgar agradável o mergulho nas letras fazê-lo sem adiamentos.

Logo no princípio, a escrita de Mbate Pedro, neste livro, revela ânimo poético do autor, cuja característica fundamental encontra-se na tessitura de um enunciado que sugere muito e nada, simultaneamente. Há, no mínimo, duas formas de ler “a gravata preta do corvo albino”. Primeiro, buscando e medindo o significado de cada palavra invocada. Quem fizer isso, poderá cair na tentação natural de querer absorver os sentidos possíveis dos versos e das estrofes como se isso funcionasse como barómetro do que moveu o poema. Na verdade, a partir desse exercício introspectivo fica-se com a percepção de que a enunciação não é feita sobre um objecto, numa direcção temática a que um Sangare Okapi (em Os poros da concha) ou Hélder Faife (em DESdENHOS) nos revelam. Os sujeitos de “a gravata preta do corvo albino”, tão intrigantes quanto esse título, navegam em imensas marés, até onde não existe o sabor salgado da água. Então, nessa onda, numa única estrofe, são recorrentes elementos que activam sentidos, por exemplo, na segunda estrofe do poema inaugural: o olfato, a imaginação (chamaríamos a isso o sexto sentido?), a visão e outra coisa, o desejo. “multiplica e exala o aroma de Minkadjuine/ sobre a flor resplandecente do copo  como/ corpo esfacelando o beijo (…) (p. 55)”.

Este é daqueles livros em que, permanentemente, nos perguntamos sobre o que se exprimem os sujeitos, os quais, fôssemos impressionistas, diríamos que não passam de uns altos vagabundos da palavra. Até podem ser, todavia, acima de qualquer adjetivação, está em causa, na segunda secção de Os crimes montanhosos, uma versificação consequência, quiçá, de uma vontade incalculável de se abraçar o mundo por via de predicados incríveis, a pasmarem-nos tanto quanto nos mantém em interrogação.  

Segundo, podemos ler a escrita de Mbate Pedro, cuja cadência da métrica não cabe excessivamente no tamanho dos versos, sem darmos relevância aos valores semânticos. Com isso ganha-se o universo do poema na sua íntegra, sem a escolha de desconstruir o eu poético rumo à construção de um entendimento particular.   

Como ocorre em “o branco colarinho dos corvos”, de António Cabrita, em “a gravata preta do corvo albino”, de Mbate Pedro, o valor da expressão está para além do universo interior do sujeito de enunciação, assenta numa dimensão feita de pormenores fragmentados: som, luz, escuridão, tesão e adeus.

 

Título: Os crimes montanhosos

Autor: António Cabrita e Mbate Pedro

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 15

 

Pela Antena da Rádio Moçambique [RM] sempre ouvi os Galtons. A voz adestrada de Abílio Mandlaze [vocalista falecido] servia-me de ponte para atravessar as ondas radiofónicas, do rádio, e chegar à música. A marrabenta dos Galtons sempre me encantou pela forma que é reinventada e tocada com brio. “Khoma la”, “Ulava ni tisunga”, “Juro sinceramente” e “Papaiane” eram execuções que faziam de mim hóspede deste grupo. Foi sempre uma marrabenta madura, talvez porque carrega(va) em suas letras e notas a soma do fardo das idades dos seus executantes. Diz-se que o seu nome foi inspirado na marca de uma guitarra; se assim for não há dúvidas para dizer que esse grupo é uma guitarra que se toca, a si mesma. Uma guitarra feita por cordas humanas de carnes.

Os Galtons são uma invenção de António Marcos em 1963. Ele inventou o grupo e o grupo inventou a sua marrabenta. Ximanganine é o velho que põe dentes de nostalgia, em cada música, com o seu bandolim; aquele bandolim não toca, raspa sentimentos para podermos tomá-los em forma de pó em cada música. A marrabenta com esse grupo vira uma verdadeira bola de futebol: é cabeaçada pelos dedos, rematada pela voz bem afiada, passa através de um drible único pelos ouvidos abertos e é pedalada, como uma bicicleta, para entrar esteticamente na baliza da perfeição e beleza. 

A simplicidade na forma, a mestria na execução, a harmonia no encadeamento das vozes e a retaliação do social e a sua construção no conteúdo são algumas marcas vivas desse grupo. A reinvenção e a execução própria da marrabenta por esse grupo deixa transparecer, no fundo, uma lição: o conhecimento profundo possibilita a reinvenção e a renovação e tentar reinventar sem conhecer as origens leva a desvios e deformações.

“Khoma la” [segure aqui] e ao fazê-lo compreenderá que os Galtons, quando localizados no tempo, são duma marrabenta formalmente “castiça”. A sua originalidade no estilo é um caminho para chegar à êxtase extensa e confundível com um orgasmo interior. Os Galtons são epígonos dum estilo que só eles possuem.

A fluidez técnica dos instrumentos é um outro detalhe que nos permite transpor as fronteiras da marrabenta habitual. A sua maneira, os Galtons, fazem-se poetas.

“A kufa yiku durumira” [Morrer é dormir] Descobriram cedo e por isso proporcionaram-nos e ainda proporcionar-nos um ritmo que resistente à morte. A marrabenta dos Galtons tem vigas firmes de experiência, pilares que seguram o velho com a força do novo. Os que vivem do presente rotulam esses mestres de relíquias da Velha Guarda; eu que sobrevivo reinventando o passado chamo-os mestres do instante ininterrupto.

Há cerca de trinta anos desde que, em 1989, aquando da realização do primeiro congresso de escritores de língua portuguesa em Lisboa, iniciamos as nossas reflexões em torno das ações e propostas das novas gerações artístico-literárias que –então- se apresentavam em Angola e Moçambique.   

Continuamos reputando este assunto de importância bastante para as literaturas dos Países de Língua Oficial Portuguesa. Angola e Moçambique  são, pelo que nos é dado a conhecer, dois casos em que a actualidade literária é mais vivamente marcada pela intervenção da geração post-independência, apesar das especificidades de cada caso em razão dos contextos e textos realçáveis dentre os que podemos conhecer.

Foi um facto indesmentível, nos anos oitenta, o surgimento e a afirmação de uma geração nova nos nossos países e nunca é demais repetir, na esteira do Professor Mário de Andrade, que ela/geração soube, apesar dos pesares como a escassez de bibliografia e a falta de contactos literários com o exterior por um lado, e também pelas guerras sangrentas que vivemos somadas as tentações da vida material, – dizíamos -, ela/geração soube enfrentar e ultrapassar as barreiras do seu tempo imprimindo na continuidade selectiva a ruptura que moldou a sua presença afirmativa face à História.

Em Angola, o que com certeza não é o caso de Moçambique, simplesmente de 1980 em diante poderá ser tomado em conta o surgimento da  jovem geração de escritores porquanto, em nosso entender, disse bem David Mestre na sua carta de Angola sobre a poesia nacional de 75 a 80 publicada a pags 67, 68, 69 e 70 da revista Colóquio/Letras n.º 89, ao referir que neste período em que constam os primeiros cinco anos de independência, apesar de carência económica (aqui referenciaríamos também a vivente degradação de valores…) a atenção primeira dos programas editoriais foi para a difusão daquelas que devemos considerar gerações anteriores cujo lastro vinha da década de 40 porque «a divulgação de autores angolanos durante o período colonial foi sempre, na melhor das hipóteses, editorialmente episódica e subalterna». A poesia, e não só, nesse primeiro período de liberdade, «passou da clandestinidade e da guerrilha aos prelos que a disponibilizaram para o encontro com o seu público…» pelo que, só na década de 80 aos novos/jovens/autores surgiu a abertura, que nunca lhes havia sido retirada, já no âmbito do movimento das brigadas apoiado pela União dos Escritores Angolanos, acontecendo ser Carlos Ferreira o primeiro a ver-se editado pela UEA em 1982 na prestigiada colecção de cadernos Lavra & Oficina. Refiro-me ao Projecto Comum, livro de débil pesquisa morfológica, considerado também «cheio de confessionalismo e improvisações rudes, duma retórica linear e sem recursos estilísticos» que em nosso “presunçoso” augúrio, a história – parafraseando Eugénio Lisboa – há-de ter o  meticuloso cuidado de o esquecer.

Em Julho de 88, para nós o ano da afirmação de novos escritores em Angola, em conferência por nós orientada na sede social da UEA em Luanda, dissemos que os jovens produtores de textos literários, uns mais do que outros, inevitavelmente, vinham já demonstrando graças ao seu audacioso autodidatismo um indubitável traquejo no domínio das mais distintas disciplinas de exercitação literária, sendo entre nós a poesia e o estudo (ensaio e critica) as que mais seguros indicadores nos presenteiam, ao contrario do que vem (vinha) sendo coisa por exemplo em Moçambique e mesmo em Cabo-Verde ou S. Tomé onde à distancia, e na medida dos nossos escassos conhecimentos, vimos acompanhando um sério desenvolvimento da ficção literária.

As nossas sociedades são ainda híbridas e cheias de indecisões. É um autor clássico quem nos diz que a juventude é a melhor maneira de enganarmo-nos a nós mesmo. Fernando Pessoa, alerta-nos poeticamente para a extensão da alma, e vai muito mais além quando nos diz que todo começo é involuntário/Deus é o agente.

Entretanto, assumida a complexidade das praticas artísticas e da própria vida literária, os novos sentiram-se deuses de si mesmo e só o seu empenho nos permite aqui apontar nomes que reconhecidamente lúcidos tem interferido e dinamizado a actividade literária das nossas nações e com os quais a literatura joga e jogará papel cada vez mais importante para o desenvolvimento sócio-espiritual dos nossos países:

– Luís Kandjimbo, José Luís Mendonça, Paula Tavares, António Fonseca, João Maimona, António Panguila, Jacinto de Lemos e Norberto Costa que injustamente raras vezes é referenciado dentre os mais representativos em Angola ou, os Moçambicanos: Armando Artur, Eduardo White, Panguane, Filimone Meigos, Paulina, Chissano, Suleiman Cassamo, Luís Cezerilo, Ungulani, Juvenal Bucuane,  Nelson Saúte e mais um ou outro de referencia obrigatória e cujo nome agora me olvido,  são autores de obra já conhecida e homenageada , conscientes de que só a operatividade textual das suas produções os consagra.

A arte literária da actualidade, embebida na secular tradição, basicamente oral, dos nossos povos apresenta-se tematicamente diversificada e tende para uma cada vez maior diversificação dado o dinamismo característico dos nossos “provincianos” universos sócio-económicos.

De referir que o Professor Pires Laranjeira, em razão da multiplicidade das nações e diversidade cultural dos países africanos, havia já considerado tornar-se cada vez mais difícil a um crítico europeu debruçar-se sobre as literaturas africanas. Entretanto, para bem delas, vimos surgir nos nossos países nomes dispostos a estudar, a analisar e a opinar sobre as produções locais. Sérios, descomplexados, despidos do vicio da complacência e da cobardia e sem compromissos com as instituições do poder.

Um exemplo categórico da opinião local entre os Cinco é sem duvidas o de Luís Kandjimbo, autor que se estreou com Apuros de Vigília, um conjunto de ensaios de meditação genérica a volta da coisa literária no continente africano.

Outro exemplo de actuação literária que a nós africanos orgulha, reside em Ualalapi de Ungulani. A nossa ficção ficou indubitavelmente enriquecida com a publicação desta prosa com momentos de primor poético e de suave densidade lexical, contrabalançada a transgressão conteudística e formal.

Se a nova poesia moçambicana traz bem acentuada uma inconfundível e natural carga lírica distanciada do telurismo característico da poesia anterior, em razão até da visão e concepção do mundo da juventude inevitavelmente assombrada pelo timbre do momento e da paixão de que falava Rilke à Kapus seu discípulo, aceitamos que ainda assim intervêm socialmente, mesmo porque, focalizado no corte estrutural o plano linguístico, anota-se certa subversão influenciada por autores clássicos portugueses e brasileiros, alguns até ainda vivos.

Ao contrário, folheadas as páginas dos poetas de 80 em Angola, veremos consolidar-se (dentre tantas) uma proposta de cariz antropológico. Vivas reflexões em torno da condição da vida humana, das relações que estabelece com a própria sociedade em que se sente inserida e não só.

É visível um constante recurso à intensidade simbólica de imensos motivos da realidade africana exaltando-se até elementos da (fauna e flora outrora ofuscados pelo colonialismo por exemplo) cultura angolana, pelo que não raras vezes assistimos também a uma ligeira interpenetração idiomática sugerindo um bilinguismo metafórico que ilustra invenção, criação e integração, das quais resulta a transgressão.

Em ambos os casos, o panfletarismo de outrora caiu em desuso, o cantalutismo sente-se desnecessário, a cor da pele não é mais motivo para recurso. Em ambos os casos rasga-se e subverte-se a linguagem e ao contrário do que se fazia no princípio, hermetiza-se cada vez menos acentuando aberto intimismo. Denotam-se saudáveis preocupações académicas e a marcha de um amplo processo de investigação estética cuja sentença aí está, pois o juiz/tempo ditou, reafirmando que um ano não conta e dez são o mesmo que nada.

Termino com uma breve referência, afirmando a necessidade crescente dos novos autores laborarem no campo fértil e aberto que é o da produção de textos dramáticos. Trata-se de uma área que herdamos das anteriores gerações, formal e substancialmente virgem e para a qual pobres esforços se tem concentrado.

 

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

Luís Vaz de Camões

Que arde… é… bem que arde! Já o disse e bem o conceituado escritor português Luís Vaz de Camões. Tanto que arde que pode queimar e até matar… Matar? Sim, matar! Mas será um doce veneno? Eis a história… Conheceram-se em Setembro passado num convívio… até aí tudo bem! Só para contrastar com a realidade de vários relacionamentos que nascem/nasceram apadrinhados pelo Facebook e seu compadre WhatsApp – que excelentes padrinhos heim conhecem bem as suas fraquezas e sabem o que tu precisas – enfim um assunto para uma outra ocasião!

Voltemos à história… Ela trabalha e tem filhos, ele não! O envolvimento foi se intensificando… tanto que o jovem começou a frequentar a casa dela e ao que tudo indica o fogo do amor já fazia das suas… e porque não há bela sem senão nem sempre a balança do amor produz equilíbrios. "Desocupado" e vivendo na casa dos seus pais, conta ela que ele a contactava a todo momento, não a deixava respirar… E fogo dela ia abrandado, pois ele ia "metendo água".

Diz ela que a situação era tão incómoda que decidiu pôr fim à relação, mas o lume dele era muito forte que estava impossível controlar… Depois da rejeição, o jovem não se convenceu e continuava a fazer chamadas frequentes: "vamos namorar a sério", dizia o jovem, mas ela diz que nunca disse sim (verdade?)… Certo dia, ela chegou a casa e encontrou o jovem no interior da sua residência… conta que era o que não esperava. Aquela foi a última gota que apagou qualquer indício de fogo nela, fez transparecer! "Eu disse que ele não deveria estar ali e pedi-lhe para sair e voltar à sua casa"…

Para o jovem, aquele cenário era o combustível que faltava para que o seu fogo deixasse de ser um elemento que meramente alimentava a chama do amor para se tornar num incêndio capaz de queimar e destruir o seu juizo. Nasceu daí um amor suicida. Será doce veneno? O que é certo é que o incêndio aconteceu… gasolina foi o combustível usado pelo jovem para numa madrugada untar a casa dela para a matar, conta ela. Será amor? "Ele andava estranho e obsecado", disse a mulher já no leito do hospital à equipa da Stv. Como tudo aconteceu? "O que sei é que durante a madrugada despertei do nada… e comecei a sentir cheiro de gasolina. Depois me apercebi de movimentos estranhos no pátio. Levantei-me e espreitei pela janela e vi ele no interior do meu quintal. E porque estava próximo à porta, só senti fogo nos pés – de certeza não era aquele descrito por Camões – pois havia gasolina no chão. A minha preocupação foi de salvar os meus filhos, pois o fogo tendia a alastrar-se", descreveu a mulher que até este momento encontra-se hospitalizada no Hospital Central de Maputo, com queimaduras nas duas pernas. Amor ou obsessão: será um doce veneno?

 

Madala estava irrequieto. De cócoras. Não tirava os olhos do chão, onde buracos disciplinados alinhavam-se e formavam o tabuleiro do n'txuva.

Madala levantou-se para esticar as pernas. Ouviu estalos ruidosos. Eram as engrenagens do corpo a reclamarem. Ficou de pé. Mãos na cintura. Depois cruzou os braços num gesto brusco, denunciado nervosismo. Testa franzida. Olhos no chão. Dobrou o tronco. Apoiou as mãos nas coxas. A cabeça afundou-se entre os ombros. Sempre atento ao chão.

O adversário, um mufana, terminou de distribuir os dados pelos buracos do n'txuva, suscitando murmúrios da assistência que os rodeava, e olhou para Madala, desafiadoramente, dizendo, com os olhos: é tua vez de jogar.

Madala agachou-se. Coçou a calvície grisalha. A cabeça parecia fumegar. Cotovelo no queixo, acariciou as barbichas brancas, ao jeito kasparov de rebuscar ideias. A assistência que os rodeava estava silenciosa. Comunicavam pelos cotovelos, segurando a gargalhada maldosa para o final do jogo, quando se confirmasse a inimaginável derrota de um madala diante de um mufana, contrariando os manuais orais da sabedoria popular que garantem que o n'txuva é um jogo de madodas. Nunca se vira antes um mufana derrotar um madala, até porque, regra geral, os mais novos jogam entre si e nunca com os mais velhos.

Estavam à sombra fresca de uma frondosa árvore. Pelas irrequietas folhas, minúsculas mas capazes de filtrar a luz do sol, adivinhava-se um canhoeiro. À mesma sombra alguns vendedores ambulantes repousavam, um cão dormitava e uma mamana que espantava insectos nos legumes que vendia, berrava insultos aos meninos que lhe atiravam poeiras com a traquinice dos futebóis.

Numa barraca com as cores berrantes  da telefonia móvel, um televisor falava sozinho.

Madala levou a mão calejada em décadas de n'txuva, a um dos buracos que parecia o encovado das suas bochechas desdentadas. Sentiu os calos rasparem os dados feitos de caroços de canhu, da safra de fevereiro último. Distribuiu os dados pelos buracos sem convicção. O derradeiro calhou numa casa que não lhe dava vantagem. O mufana, num salto fez-se ao jogo e gritou sem respeito: "pah!", quando lhe capturou alguns dados.

— Eish! — ouviu-se na plateia.
— Schhh!!! — mandaram-no calar para não interferir no jogo.
Uma gota de suor desceu pelo rosto do madala e pendurou-se na ponta do nariz. Pensava. Pensava. Pensava. Não sabia onde jogar.

— Se fosse no xadrez — ouviu-se baixinho em tom gabarolas — se fosse no xadrez era só mover um peão. Um peão é  capaz de derrubar um rei.

Madala continuava por engendrar uma jogada. Não podia perder com um mufana.

— Xadrez é  um jogo organizado — continuou a voz gabarolas –, cada dado sabe a sua função e respeita a do outro. Agora, no n'txuva, os dados saltam desordenadamente, assaltam os buracos uns dos outros…

De cócoras, com experiência de décadas de n'txuva, o madala percebia, as conversas da assistência pelo movimento dos pés.

— É por isso que as nossas instituições não funcionam como deveriam — o gabarolas enrolava o sotaque e falava agora no tom sábio dos comentadores de TV –, vivemos como n'txuva, em buracos, no chão, em vez de nos civilizarmos num tabuleiro.

O jogo estancou. Madala hesitava a jogada. O mufana zombava com risinhos.
— Se fosse no xadrez, era só mover um peão. No xadrez, um peão pode derrubar um rei.

Na barraca ao lado, a tv que falava sozinha anunciou o noticiário. Uma  fulana com a maquilhagem a pesar-lhe o rosto,  fez cara de contar novidades nos cabeleireiros e atirou a notícia. Alguém gritou "epa!" e tentou aumentar o volume. A fulana referia-se a um jornalista. Enfatizou as palavras "sequestrado" e "espancado" como se as pronunciasse em maiúsculas. Madala suspendeu o mão cheia de caroços de canhu e olhou para a televisão. As pessoas distraíram-se do jogo e viraram-se também, com as bocas a desenharem um "ooohhh" redondo. O fulano gabarolas, insistia:
 
— Se fosse no xadrez, era só mover um peão. No xadrez, um peão pode derrubar um rei.

 

Talvez começasse por vos contar uma história da escritora e dramaturga francesa Marguerite Duras e que foi o tema para uma curta-metragem.

A história tem como personagem principal um rapazinho, o Ernesto, que um dia fugiu de casa. A aldeia inteira foi procurá-lo no bosque que circundava a povoação e ao cabo de três dias de busca, três dias, lá o localizaram, numa barraquita construída no ramo de uma árvore. Mas ele recusa-se a descer da árvore. Nada o convence. Nem a família chorosa, nem o professor que lhe pede. Por fim o Ernesto lá aceita explicar que fugiu de casa porque não queria mais ir à escola. Reage o professor:

– Mas Ernesto, foi alguma coisa que eu falei? Alguma coisa que fiz? Explica-nos por favor.

E responde o Ernesto:

– Não quero ir à escola porque o professor só me quer ensinar o que eu não sei!

Ora, por muito “surpreendente” que isso possa parecer, é esta a missão das universidades, uma instituição que frequentamos para, exactamente, nos ensinar o que não sabemos! E a atitude do Ernesto é um mau exemplo para não se repetir.

Dizem-me que esta história do Ernesto é infelizmente actualíssima e que reflecte uma atitude espalhada entre muitos alunos e que muitos jovens só vão à universidade para obter os diplomas em vez de lá irem para consolidar os conhecimentos. O que é evidentemente o contrário do que seria desejável. A esta atitude junta-se outro perigo: hoje os jovens têm a ilusão de confundir comunicação com transmissão, e a net com o conhecimento, e por isso, ao julgarem-se apetrechados com um poderosíssimo instrumento de divulgação de conteúdos, que é o computador ou o ipad ou o cell inteligente, às tantas acham que podem ter menos empenho nas aulas que depois recuperarão pela net, fugindo de terem atenção aoque lhes é ensinado presencialmente. Como se a experiência de ter sarampo se pudesse explicar pelo telefone.

E se juntarmos essa atitude, à impressão de uma certa saturação de conteúdos que nos dá a internet, acabamos por ver estragada também outra qualidade essencial ao crescimento humano e cognitivo: a curiosidade.

Daí que muitos jovensacabem por dar mais importância, na cultura que absorvem por esses meios, às marcas de reconhecimento e só queiram assimilar o que é parecido ao que já sabem em vez de se abrirem ao questionamento que lhes podia chegar do encontro com o diferente.

Os jovens não deviam perder de vista o que dizia o pintor Picasso e que a vida nos ensina ser verdadeiro: que a juventude não é uma coisa que se tenha mas algo que se conquista.

Há certamente um terreno comum entre as universidades e o teatro, tal como eu o entendo.

O teatro é também uma escola de questionamento, e de sacudidelas nos hábitos adquiridos. É assim há dois mil anos e julgo que na sua expressão mais viva continuará a sê-lo.

E para ilustrar isto, vou contar outra história, que desta vez se passou com o dramaturgo Ionesco, um dos mais famosos do século XX.

Ora, uma vez este dramaturgo franco-romeno recebeu o telefonema de um encenador americano, de Nova Iorque, que lhe comprou os direitos sobre uma das suas peças mais representadas, O Rinoceronte, para uma produção a ser feita de imediato. (1)

O Ionesco ficou todo contente e convidou logo os seus melhores amigos em Paris para uma festa de celebração.

A peça de Ionesco conta a história de uma pequena comunidade, uma aldeia cujos habitantes estranhamente se vão transformando em rinocerontes.

Porque se transformavam as pessoas nestes paquidermes tão desajeitados? O rinoceronte é o mamífero com a pele mais espessa, e por isso nessa comunidade as pessoas iam-se metamorfoseando em rinocerontes por isso simbolizar o desinteresse crescente que manifestavam em relação ao que se passava com os outros(a sua pele tão rija já não permitia o contacto e a empatia faceaos outros), o que acabava por transformar-se em alienação, ou seja as pessoas acabavam por ficar indiferentes ao que se passava consigo mesmo.

Ora, neste Rinoceronte da peça de Ionesco vemos o contrário do espírito doUbuntu, do qual retiramos dois lemas para a vidae para o nosso relacionamento com a comunidade a que pertencemos e são eles: "Humanidade para os outros" ou "Sou o que sou pelo que nós somos". Já veremos o que tal implica em termos éticos e na importância que isso tem para a nossa prática teatral.

Por enquanto, realcemos como nesta peça as pessoas estavam tão egoisticamente isoladas na sua concha, tão absorvidas pelos seus pequenos interesses ou crenças que os outros e a comunidade deixavam de interessar-lhes. E o corno do rinoceronte ajudava a manter os outros à distância.Esta fábula faz todo o sentido em todas as comunidades cujos membros passaram a manifestar um alheamento ou umadesvinculação com o meio ambiente social que os rodeia.

Num mundo como o de hoje, que em alguns aspectos deu tais passos atrás que inclusive passou a caracterizar-se por uma grande intolerância religiosa, um aspecto que julgávamos afastado de todo, a peça do Ionesco, pode funcionar como um despertador, levando as pessoas a capacitarem-se de que para além dos ritos e dos credos à superfície há problemas comuns e insolúveis a todos os homense que isso é que afinal os une no núcleo problemático da existência: a morte, a dor e a fugacidade do tempo estão para além dos pequenos ganhos ou derrotas parcelares. Isto é, a peça podia ajudar os espectadores, fechados na concha das suas diferenças, a darem o passo obrigatório no caminho da abertura e do “senso comum”, enveredando pelo que é mais rico na humanidade: Pensar colocando-se no lugar de outro ser humano.

E é este um dos valores da arte: reforça a empatia (que é esta qualidade de nos identificarmos com aquilo que o outro sente), que é igualmente um dos valores do crescimento segundo o Ubuntu.

Mas prosseguindo, como contei, na peça O Rinoceronte assistimos ao drama de uma personagem, o Béranger, que vê que a todos os seus amigos nascem pequenos cornitos na testa antes de se transformarem em rinocerontes. E o susto dele é o de todo o humano que vê que a dimensão humana em seu redor começa a rarefazer-se e que em vez disso impera um comportamento bestial e uma quebra dos valores humanitários.

Daí que a fábula de Ionesco seja uma peça do século XX mas também uma peça de sempre.

Porém, aconteceu outra coisa inesperada durante a encenação da peça de Ionesco em Nova Iorque.

Está um dia o Ionesco a tomar um cafezinho com o seu amigo Beckett, outro grande dramaturgo, e o seu amigo Cioran, um filósofo, e recebe um telefonema do encenador americano, que começou com grandes rodeios.

O Ionesco percebeu imediatamente que havia ali milando e incitou o outro, Desembuche homem! E o americano lá contou que estava enrascado. Mas qual é o seu embaraço, esteja à vontade!, vociferou o Ionesco. E lá gaguejou o americano para explicar que na transição do segundo acto para o terceiro acto, na peça, o Béranger, preocupado com o silêncio do seu melhor amigo ia a casa deste sem o avisar previamente que lá iria ou pedido autorização para o fazer…Ao princípio Ionesco não compreendia qual era a confusão do americano até que se lhe fez luz e qual era a razão pela qual o encenador americano havia tido de contratar um escritor para reescrever a transição do segundo para o terceiro acto da peça segundo os costumes americanos.

É que para um americano, era inaceitável, absolutamente impossível que alguém fosse a casa do seu melhor amigo de modo espontâneo, de surpresa, digamos, sem telefonar antes a perguntar se podia lá passar.

O Ionesco enquanto ouvia a explicação do americano bebeu ao balcão um copo de vinho, para digerir aquele completo absurdo.E quando chegou à mesa dos seus amigos, Beckett e Cioran, desabafou, Estes americanos são doidos, para eles é normal, faz parte da ordem das coisas, que haja uma comunidade onde crescem chifres de rinoceronte aos seus membros, isso está dentro da razão poética da peça, mas que alguém possa ir a casa do seu melhor amigo sem avisar é inconcebível! E muito riram os três!

Esta incrível história do Ionesco, do enredo da sua peça, e do modo como esta foi recebida na América permite-nos perceber as várias dimensões que uma peça de teatro possa ter.

O teatro é em primeiro lugar uma escola de questionamento, ou seja, o teatro sempre agiu como um espelho face à sociedade em que se movimenta, mas é um espelho muito próprioque interpreta o mundo e interroga os seus hábitos e fundamentos.

Por exemplo, as culturas costumam naturalizar coisas e práticas que são apenas convenções mas que o hábito transformou em dogmas e valores tradicionais inquestionáveis. Como se pode ver por essa convenção americana de que uma pessoa não pode ir a casa do seu melhor amigo sem o avisar primeiro. É uma convenção, que não existe noutros países, entre nós e nos latinos, por hipótese, mas que os americanos naquele momento transformaram em lei. Ou o modo como os moçambicanos vêem a coruja e o mocho, criaturas eternamente associadas à feitiçaria e ao mal. Mas que na Grécia são símbolos de sabedoria ou em certas zonas de Espanha símbolos da sorte. Bastou mudar de geografia e os mochos e as corujas saíram da alçada do mal e deixa de fazer sentido termos receio dessas aves.

Lembramo-nos aqui de um episódio passado com o mimo Marcel Marceau em Moçambique, quando cá veio fazer um espectáculo. A mímica é a arte de representar só com gestos e em silêncio. E o Marcel Marceau, naquela peça, queria significar que o homem que ele representava ia crescendo e ia colocando a mão na horizontal e em escadinha para indicar que o homem ia crescendo. Diz-me um popular no fim, no átrio do teatro, Gostei muito, mesmo quando ele esticou a mão na horizontal, para nosir dizendo que o cão ia crescendo… é que aquele cão parecia mesmo um homem. À noite eu contei esta observação ao Marcel Marceau, e expliquei-lhe que aqui o código era diferente e que para se indicar que um homem cresce se coloca a mão na vertical. O mímico fartou-se de rir com esta diferença entre as duas culturas e no dia seguinte, ao repetir o espectáculo colocou a mão na vertical para indicar que o homem ia crescendo. E foi uma explosão de palmas porque havia um europeu que compreendia que um homem só pode crescer na vertical. 

Ou seja, como se diz num ditado chinês, o problema que atribuímos às coisas não está nas coisas mas no que pensamos sobre elas.

Hábitos. O teatro ajuda a quebrar hábitos, porque leva as pessoas a interrogar-se sobre as regras que a mentalidade de cada momento convencionou e transformou em hábitos, em leis, em não-ditos. E na extensão disto, o teatro é, sempre foi, um lugar para a crítica e a liberdade de pensamento.

Nesse aspecto é um discurso sobre o mundo e muitas vezes entra em choque com os dogmas e as maneiras de ser dominante ou contra os poderes. Como dizia o Bertolt Brecht, ao teatro cabe divertire esclarecersobre o que está oculto atrás das aparências que regem a dinâmica da vida social, mas nenhuma destas duas dimensões pode amputar ou anular a outra.

Esclarecer, ou seja traduzir através de situações dramáticas os males que fazem adoecer a vida colectiva, ou que nela entravam, estorvam,o sentimento da humanidade.

Todas as peças importantes no vastíssimo repertório do teatro têm características idênticas à peça O Rinoceronte, i.é, reflectem situações e conflitos que são comuns a todas as épocas e lugares e daí a sua universalidade.

Ainda o ano passado estreámos uma peça de um autor do século XIX,Ibsen, e que se chama Os Pilares da Sociedade. A acção da peça passa-se na sociedade norueguesa de há 150 anos mas o seu problema central, os malefícios que nascem quando a mentira e o segredo ou a falta de transparência se tornam constitutivos do Estado, era tão próximo dos nossos problemas actuais e de tudo o que padecemos por causa das célebres “dívidas ocultas”, que apresentar esta peça tornou-se obrigatório para nós. Nem precisámos de a adaptar aos dias de hoje, as pessoas faziam imediatamente a relação. Era o nosso diagnóstico como membros empenhados da sociedade civil. 

O teatro já conheceu muitas épocas de obscurecimento e de repressão. Na Idade Média,

o condicionamento religioso sobre os homens era tão grande que inclusive os plebeus eram proibidos de contar os seus sonhos, pois consideravam-se os sonhos uma espécie de canal privilegiado para a comunicação com Deus e então contar os sonhos estava reservado às altas figuras do clero. No teatro só se podia adaptar as parábolas bíblicas. Mas mesmo então havia o Carnaval, que era um período de excepção e no qual o povo podia dar azo à necessidade que tinha de mascarar-se e de fazer do mundo um teatro, onde as hierarquias eram subvertidas e se podia ser o mais crítico possível para com as classes dominantes. E nessa época havia igualmente a figura do bobo, um histrião, que assumia o seu papel para, no meio das piadas, dizer na corte tudo aquilo que era proibido aos outros mortais. O bobo, como se estivesse no palco, tinha o seu traje especial que o projectava imediatamente num espaço de fantasia, para além do real, sendo, como quem não quer a coisa, o mais críticoobservador dos costumes e o mais sarcástico “conselheiro” do rei.

Esta passividade face ao poder, foi mudando com o período da Renascença e, no século XVIII, o pensamento social tornou-se mais irrequieto e começou a impor-se uma necessidade de reformas. Então nasceu uma ideia que galvanizou o pensamento humanista,acabando por determinaras mudanças sociais nos últimos três séculos.E o franco-romeno TzvetanTodorovdefine assim essa ideia:“desde essa época – diz ele -pensamos que a vocação do ser humano exige que ele aprenda a pensar por si mesmo, em lugar se contentar com as visões do mundo previamente prontas, encontradas em seu redor”. (2) Por isso estamos aqui hoje na universidade, se vivêssemos há três séculos atrás seríamos pastores e não sairíamos dessa condição.

Ou seja, desde então as dinâmicas sociais perseguiram três vectores de desenvolvimento humano: uma melhor educação que faça o homem superar-se, uma maior dignidade resumida numa igual liberdade e oportunidade para todos, e uma racionalidade que não secundarize a emoção e que permita ao homem tornar-se adulto e autónomo. Com mais ou menos pincelada à esquerda e à direita, este acabou por se revelar um projecto irrenunciável para o homem e por permitir grandes conquistas na esfera social.

Este fundamento político acabou igualmente por ter uma enorme influência na evolução da arte e também na do teatro. Toda a arte que ao colo das Vanguardas artísticas abalou todos os conceitos durante século e meio, depois da segunda metade do século XIX, bebeu ainda dessa fonte que se chamou O Iluminismo, e onde até se inventou um antepassado para a internet: as enciclopédias.

Se acrescentarmos  a este movimento do espírito que o teatro se define pela prevalência de personagens e pelo modo como apresenta no palco experiências singulares que pela força do seu drama ou conflito se tornam universais, compreendemos o papel político e mesmo ético que o teatro ganhou nestes últimos dois séculos.

Porém, ao perseguir este ideal muitas vezes o teatro chocou com as forças do poder e com os limites que a censura lhe impunha.

Os membros do teatro, que são sempre utópicos e sonhadores, viram-se muitas vezes censurados nas suas realizações e viam o poder mesquinho a distorcer as suas produções, impondo-lhes cortes e destruindo as mensagens das suas peças. Porque o poder estava consciente da capacidade de propaganda do teatro e sempre procurou abafá-lo ou servir-se dele para impor mensagens menos nobres eque só tinham por intuito perpetuar sem mudanças o estado das coisas.

E esta censura camufla-se de muitas maneiras. Na Inglaterra do século XVIII havia um censor oficial, chamado Lorde Chamberlain, que tinha o poder de proibir “quantas vezes ele considerasse pertinente” qualquer peça dramática que se “apresentasse para fins lucrativos”, censura económica que conduzia rapidamente ao fim das companhias de teatro que fossem críticas em relação à conduta de quem governava o estado das coisas. E assim se fechavam teatros, ou se apoiavam outros que só se dedicavam ao divertimento mundano e ingénuo, que vive do trocadilho e da piada fácil.DaríoFo, um grande dramaturgo italiano e prémio Nobel, conta-nos como a ETI, o organismo de Estado que geria, e gere ainda, o circuito das companhias pelas principais salas italianas excluía a sua companhia dessas salas de teatro, sem uma palavra de explicação. Salvou-o da penúria o dinheiro do Nobel. (3)

Esta camuflagem da censura pode adoptar outras máscaras e exercer-se em nome de princípios religiosos ou morais (ou antes moralistas, porque o moralismo é um abcesso da moral, que é uma coisa sã e necessária); censura-se em nome de supostos costumes ou por a peça melindrar certos dogmas políticos e religiosos.

Ou podíamos falar também de outro prémio nobel, o dramaturgo nigeriano YoleSoyinca, perseguido por causa das suas peças e quase morto. E não devemos deixar de fora uma menção ao sul-africano Atole Fugart,encenador, dramaturgo e escritor que fustigou sem descanso o regime do Apartheid, através do Teatro, o qual, pelo seu lado, encarcerava os seus companheiros e os actores negros da sua companhia.

Ao mesmo tempo, nesta guerra, os grupos de teatro também multiplicavam as estratégias para fugir à censura. Quantas vezes, para que as peças não fossem censuradas, muitos grupos recorreram ao artifício das fábulas e usavam animais no lugar dos personagens e assim as peças conseguiam passar sem receber os chamados "cortes", ou serem mesmo submetidas ao cancelamento das peças. Outros grupos usaram e usam máscaras para caracterizar elementos do governo, das elites políticas e religiosos, e como com as máscaras o trabalho de representação que se faz é sobretudo sobre o tipo ninguém se sente melindrado pessoalmente.

E às vezes os poderes são cegos na sua sanha de exercerem a censura. Em Espanha, no período da ditadura do Franco, havia argumentistas e dramaturgos de direita contratados para mudarem as falas dos filmes e de algumas cenas teatrais mais incómodas. E havia situações que estavam proibidas de serem mostradas no palco ou nos filmes, que vinham da América. Aí, com muito profissionalismo os censores mudavam então a história e a condição das mulheres adúlteras que eram convertidas em irmãs dos amantes. Para censurarem a menção ao adultério, em Espanha multiplicavam-se os incestos nas salas de teatro e nos cinemas de um dos países mais beatos do mundo. (4)

E outros exemplos podiam-se dar da perseguição da censura, das suas contradições e até da sua loucura.

Raramente, mas também acontecem surpresas inesperadas, com os censores. O Czar da Rússia, que fazia parte da comissão de censura, achou muita graça a uma peça do Gogol, que nós representamos o ano passado O Inspector, e que aborda o problema da corrupção que contaminava de forma transversala sociedade russa. O Czar, para horror dos outros censores, sentiu que a peçaretratava de forma verdadeira os seus subordinados e o Inspector acabou por inspirá-lo a fazer algumas reformas que minimizaram o problema da corrupção.  

Vê-se assim que o teatro tem sidoatravés dos tempos um laboratório onde se examina e se faz o diagnóstico dos sintomas sociais e os seus temas são como os andaimes que ajudam a construir um caminho. Mas é nosso dever nunca nos esquecermos que dramaturgos importantes como AlfredHutchinson ou Lewis Nkoski foram obrigados a fugir da África do Sul para não serem mortos pelo regime do apartheid e que a censura teatral é sempre fundamentalmente um acto político contra os indisciplinados e os elementos criativos da sociedade, que usam o teatro como instrumento para a mudança.

Porém, é indiscutível que se o Teatro tem um poderoso impacto como correia de transmissão – quer para os valores, quer na crítica a  comportamentos, inspirando ao mesmo tempooutras formas de resolução dos problemas -, isso se deve à sua própria pertinência antropológica. Não é por acaso que nos grandes momentos de abertura ao humanismo no mundo, na Antiguidade Clássica, como na Renascença, ou em todo o século XX, e também aqui ao lado na África do Sul, o teatro foi um meio de expressão privilegiado.

Repare-se, quer na Atenas de Péricles, na Renascença do Século de Ouro espanhol ou na do período do teatro isabelino em Inglaterra, que nos deu Shakespeare, ou na Paris de todas as artes da primeira metade do século XX e onde começou a germinar a queda do colonialismo, verificava-se a mesma preocupação, o desejo de saber até onde o humano podia ir no bem e no mal, na poesia ou na denúncia, no sofrimento, na submissão ou na revolta, face aos poderes que esmagam o homem ou que o ameaçam.

Por isso o teatro é imperecível e retorna sempre, mesmo que por vezes seja abafado.

Entre as qualidades, quase se diria hipnóticas, do teatro está a sua capacidade para produzir uma identificação entre as personagens e o público. Como se as personagem encarnassem as espectativas, as emoções e as decepções do público presente, e igualmente as suas ilusões.

Quando se realizaram as primeiras eleições democráticas no país, o Mutumbela Gogo produziu uma peça de teatro com o título "Vestir a terra". Essa peça foi traduzida nas várias línguas nacionais e apresentada em todo o País, nos distritos, nas línguas mãe de cada província, e foi apresentada em português sobretudo nas cidades capitais e nos países que faziam fronteira com Moçambique, aos refugiados moçambicanos que lá se encontravam para os persuadir a voltarem para Moçambique porque não haveria mais guerra.

Na peça havia várias cenas em que o público, empolgado, reagia de uma forma entusiástica como se aquela acção que se passava no palco fosse verdade.

Vou dar exemplos: 

A Albertina e o José (marido e mulher), e os personagens principais da peça, decidiam voltar a Moçambique. Eles viviam num campo de refugiados na Africa do Sul em Gazankulo. O José tinha uma bicicleta, onde transportavam parte dos seus bens. Durante o caminho, apareceu um indivíduo que reparou que eles os dois eram novos  naquela região e prontificou-se a ensinar-lhes o caminho, ajudando a carregar a bicicleta. Durante a viagem o individuo, que afinal era um ladrão, fugiu com a bicicleta.

O José pôs-se a correr atrás do ladrão. Aqui aconteceu o seguinte, tínhamos mais ao menos entre 300 a 350 espectadores, e sobretudo os homens, embora algumas mulheres também,puseram-se a correr atrás do ladrão aos gritos, apanhando pedras, paus para bater nele. Foi preciso  levar um jipe que ali estava para apanhar o actor que era o Evaristo Abreu, senão este poderia ser morto!

Outra cena interessante na mesma peca: “Vestir a terra":

A peça falava sobre o regresso dos refugiados e informava que todas as crianças que não tivessem documentos ao regressarem a Moçambique poderiam requerê-los, aos documentos, para ficarem legais.

No final da peça, vimos uma fila enorme com as mães segurando os seus filhos ainda pequenos e perguntámos  o porquê da fila. Então elas diziam que queriam registar as suas crianças para voltarem para Moçambique!

Quando falámos que não podíamos ser nós a registar, a população começou a ficar agitada e tivemos mesmo, em combinação com as autoridades do campo de refugiados, de simular uma lista com o nome dos pais das crianças e a localidade de onde eles eram oriundos, para, quando chegássemos a Moçambique, entregarmos essa lista às autoridades, como se esta servisse de um censo rudimentar, pois naquele tempo começava a fazer-se o registo dos refugiados que estavam fora, de modo a que as pessoas participassemnas primeiras eleições democráticas.

Como explicou há dois mil anos o Aristóteles, no primeiro manual desta nossa tradição de teatro, aquilo que é verosímil pode ser tomado por verdadeiro e o teatro vive desse jogo do “e se…”, é o jogo do “faz de conta”. E em nós africanos, por uma questão cultural, isso é inato. Aliás, refere-o Peter Brook, um dos grandes magos do teatro do século XX e que nos anos setenta fez com a sua companhia uma digressão pela África bantu, sobretudo pelas zonas campestres da Nigéria. E explica ele: «O Africano que foi criado nas condições do modo de vida em África tem uma compreensão altamente desenvolvida da dupla natureza da realidade. O visível e o invisível, e o livre trânsito entre ambos, são para ele, de modo muito concreto, dois modos de ser da mesma coisa. Algo que constitui a própria base da experiência teatral – aquilo que chamamos de faz-de-conta – é simplesmente uma passagem do visível para o invisível, retornando no sentido inverso. Na África isto é considerado não como fantasia, mas como dois aspectos da mesma realidade.

Foi isso que nos levou a África, diz ele, para termos a possibilidade de testar o nosso trabalho com o que se poderia considerar um público ideal».(5)

O Peter Brook intuiu aqui algo do nosso Ubuntu, mas voltaremos a isso depois. O que interessa agora salientar é que o teatro vive da verosimilhança das suas situações e da necessidade que as pessoas têm de ilusões. Da ilusão e mesmo de se auto-iludirem.

A este propósito há uma história deliciosa que se passou nos anos cinquenta com o dramaturgo de Nápoles,EdoardoFillipo, um autor muito popular na Sicília. E ele um dia a passear pelos bairros pobres de Nápoles viu que se fazia uma fila para se ir visitar uma certa casa, a pagar. E reparando que as pessoas riam muito enquanto estavam na fila, perguntou o que se passava. Explicou-lhe um popular que queriam ver todos o bebé que havia nascido naquela casa, que era muito diferente dos outros. Mas não lhe disseram porquê. E o EdoardoFillipo, curioso, embarcou também na visita. À porta eram recebidos pelo pai da criança, que cobrava 20 liras pela entrada. E afinal o que era o objecto de tanta curiosidade? Um bebé que os pais enfarruscavam de carvão para parecer que tinha nascido negro. O dramaturgo achou aquiloum acto pouco digno e foi perguntar ao pai, Mas tu não tens vergonha de quereres convencer toda a gente que és “cornuto” e que a tua mulher teve um filho com os estivadores do porto? Naquela época a maior parte dos estivadores do porto de Nápoles eram emigrantes negros. E o que é facto é que toda a gente saía da casa muito excitada por que o pai da criança eramesmo“cornuto”. E explica-se o pai da criança ao dramaturgo, SiñorFillipo, esteja descansado que nós todos os dias damos banho ao bebé!

Eis a necessidade de ilusão que é comum a todas as pessoas, ao ponto de não ser invulgar que as pessoas vejam não aquilo que os seus olhos vêem ou os seus ouvidos ouvem mas antes aquilo em que querem crer. O teatro também se serve deste ilusionismo e às vezes nos seus efeitos sobre o público de teatro não está distante do efeito placebo nos remédios, que funciona como um indutor psicológico para que o sistema imunológico reaja pelos seus próprios meios.

Assim age o teatro sobre a consciência do espectador, fazendo-o aceder a um novo ponto de vista sobre a realidade que o cerca de modo a que aja sobre ela de um modo mais lúcido.

Não vejam nisto qualquer arrogância, mas é de novo uma necessidade antropológica que nos move. Talvez nos ajude a pensar o que li há pouco tempo numa escritora portuguesa, a Silvina Rodrigues Lopes. Dizia ela: «Embora possa haver uma tendência das pessoas para lutarem pela sua servidão, o pensamento é uma força de resistência a isso, uma força de mudança. E as mudanças não decorrem de projectos globais e a longo prazo. Elas começam sempre “agora”, em tudo o que se faz, um agora que torna as memórias vivas, que nasce delas.» (6)

O que me agarrou neste parágrafo foi a frase inicial que diz o contrário do que é habitual. Lembremo-la: «Embora possa haver uma tendência das pessoas para lutarem pela sua servidão, o pensamento é uma força de resistência a isso, uma força de mudança.» Por muito que nos custe admitir, infelizmente, e misteriosamente para mim, a maioria das pessoas quer servir em vez de desejar ser autónoma. A única explicação é que a liberdade é um estado que dá muito trabalho. Contudo, o texto também nos lembra que devemos porfiar, insistir, na resistência.

E as mudanças – tal como esta autora preconiza, e issosentimo-lo na prática do teatro e constitui, de resto, uma das nossas maiores motivações – são conquistas a conta-gotas da seriedade e do empenho que colocamos em tudo o que fazemos.

Há uma tensão própria à actuação no palco que nos faz viver como actores não um tempo vulgar, amorfo, e ordinário mas um tempo de autenticidade e que se nos torna vital tanto no teatro como na vida. Um bom actor habitua-se a esta tensão e depois quer transportá-la para a vida, no sentido de em cada “agora”, em cada instante da sua vida procurar ser, como no palco, o melhor de si e não uma réstia de si.

É aqui que nós militamos, perseverando diariamente contra todas as dificuldades que se colocam às nossas produções mas obstinando sempre em dar o melhor de nós em cada instante.

Entretanto, o teatro é uma actividade cara e onde se tem de ser pragmático – isto é, o teatro obriga-nos a uma atitude ecológica, no sentido de em cada momento termos de adequar a nossa imaginação aos recursos que temos. Nós não fantasiamos coisas impossíveis de realizar, somos um caso de estudo sobre o qual os senhores da política se deviam debruçar, pois sabemos o valor da economia dos recursos e a nossa prática é uma actividade anti-perdulária. Mas é uma actividade cara, pois mobilizamos muita gente e muitos técnicos diferentes. Piora esta situação num país novo que não fez ainda o devido trabalho na formação de públicos ou de leitores, e onde não existe um circuito para a itinerância do teatro, uma das maiores urgências neste momento no nosso ramo. E assim fica mais difícil a uma companhia auto-sustentar-se. Nós criámos uma padaria e temos de bater a muitas portas estrangeiras para conseguirmos prosseguir a nossa actividade e temos tido algum apoio porque em todo o mundo desenvolvido se compreende que o teatro é uma ferramenta essencial para a formação dos valores de uma comunidade.

Quanto a apoios internos, em Moçambique não existem estes subsídios e criou-se em alternativa uma lei do mecenato em cima do joelho e com dificuldadesem ser aplicada, porque não está devidamente regulamentada. O que dá azo a episódios caricatos e que denotam como persiste ainda uma mentalidade antiga e que acha que as artes devem ser controladas ou serem cavalgadas por outros interesses mercantis.

Posso contar-vos alguns episódios caricatos.

Seria obrigação, das grandes empresas partilharem os seus lucros no desenvolvimento das artes e de outras actividades como o desporto, até porque pela tal "Lei do mecenato" as contribuições que as empresas fazem, os apoios em dinheiro ou em géneros contabilizáveis, são-lhes descontadas nos impostos. Há muitas formas de mostrar quem deu esse apoio de uma forma mais discreta, por exemplo,  nos programas, nos agradecimentos feitos pelos apresentadores, enfim, existem mil e uma maneira simples para  agradecer. Contudo, acontece, quando vamos assistir a um espectáculo, ou a uma exposição de pintura, cerâmica, escultura e outros eventos artísticos patrocinados, depararmos à entrada do evento com um festival de "banners", ou de bandeiras de grandes empresas, e nesse reclame tão aparatoso muitas vezes o artista que produziu a obra nem aparece num cartaz. Esqueceu-se quem ali é verdadeiramente o sujeito da acção artística, como se o artista fosse a cereja dispensável no bolo e não ao contrário.Esta agressividade, esta arrogância é constante, como se estivessem a fazer um favor quando afinal são os artistas que lhes dão oportunidade para deduzirem dos impostos.

Dois exemplos de arrogância: um patrocinador, sem avisar, quis entrar no teatro no decorrer de um ensaio e o porteiro do teatro disse-lhe que não podia entrar porque os artistas estavam a ensaiar. O porteiro ainda disse, educadamente, que os artistas precisavam de concentração e não podiam ser interrompidos, mas o senhor insistia em que ele era o patrocinador. O nosso guarda, pediu "o papel" que justificasse isso, e ele, patrocinador, disse que não tinha. O guarda, maroto, disse-lhe então, E como o senhor não tem carimbado na testa: Patrocinador, eu não o posso deixar entrar! Esta cena desnecessária, teve depois como efeito um certo atrito que teve de ser desmanchado. Uma inútil perda de tempo derivada da arrogância.

Um outro caso deu-se quando foi do lançamento de um livro que reunia a obra poética de Noémia de Sousa, uma empresa patrocinou e como sempre trouxe os seus banners, aliás com fotografias de uma jovem lindíssima, bem apetitosa como dizem hoje os jovens, promovendo assim deste modo inoportuno o lançamento do livro da percursora da poesia feminina neste país. Não admira que durante a sessão, um convidado da plateia tenha perguntado se aquela menina nos banners era a Noémia de Sousa quando jovem! Vejam o equívoco!

O que os patrocinadores deveriam fazer,  era comprar livros para as várias bibliotecas espalhadas pelo país e comprar espectáculos para os trabalhadores da sua empresa poderem assistir, ou para as suas crianças, ou peças infantis para as escolas com difícil acesso. É o que acontece nos países nórdicos, nos quais o Estado ou as empresas compram à cabeça 400 exemplares de todos os livros saídos para as bibliotecas e escolas do país, ou patrocinam a itinerância de espectáculos para crianças e assim promovem o desenvolvimento e as indústrias culturais. Mas aí acredita-se que a cultura, os livros e o teatro, são formas de transmissão dos valores societários, e não coisas apenas de lazer periférico. E além disso não perdem tempo a gastar dinheiro em armas que aplicam nos bens culturais. Questão de escolhas.

O que é facto é que para que finalmente possa ter lugar uma verdadeira indústria cultural é necessário massificar o gosto pela leitura, pelo teatro, o gosto de ver exposições de pintura, cerâmica, escultura, artesanato, é necessário assistir a filmes e outras actividades, e tudo isto com uma consciência estética que só pode constituir-se se houver vontade política, escolas de arte com uma cultura de debate instalada, uma imprensa especializada e uma distribuição nacional para os bens culturais – condições que infelizmente estão por realizar. De novo, uma questão de escolhas.

Aquilo que, entretanto, nunca se perde, em relação ao teatro é a sua inegável magia. O teatro tem um aspecto mágico e lúdico.

Uma vez na peça adaptada do conto As mãos dos pretos, do escritor moçambicano Luis Bernardo Honowana, havia uma cena em que os actores imitavam os macacos, e desciam em cordas e faziam alguns malabarismos. Quando fomos apresentá-la numa província e num distrito, as pessoas juravam que eles, os actores,  não eram pessoas de verdade. E teimavamem que aquilo que estavam a ver era cinema, de tal forma aquelas actuações dos actores lhes tinham parecidoincríveis, mais próprias dos “efeitos especiais” do cinema do que das possibilidades físicas de actores reais!

E a magia no teatro também é palpável nos seus processos de trabalho. Como encenadores e produtores também nós às vezes ficamos pasmados quando uma série de ideias descosidas que perseguiam uma visãoainda imberbe para o espectáculoganham uma inesperada conexão e tudo de repente se encaixa, quando minutos antes tudo parecia disperso e à beira de desmoronar. É uma coisa maravilhosa e não é raro que um espectáculo seja a soma impossível de muitas parcelas de improvisos falhados, de sismos emocionais e de dúvidas, que no momento exacto adquirem coerência, ritmo e unidade.

Há um desenhador e pintor japonês antigo, o Hokusai, e que tem um desenho que representa um pintor trabalhando. Este pintor maneja cinco pincéis ao mesmo tempo, um na mão esquerda, outro na mão direita, o terceiro entre os dedos de um pé, o quarto fixa-se nos dedos do outro pé, e ao quinto agarra-o com os dentes. Cada um dos pincéis faz um desenho por conta própria como se cada um dos seus membros vivesse num mundo paralelo. O pintor mostra-nos aqui o seu próprio método de trabalho, a sua agitação interna, uma espécie de desorganização voluntária e da qual podem nascer nós, tramas, tensões, encontros imprevistos? Não se sabe, mas o Hokusai foi autor de trinta mil quadros e gravuras e cultivou muitos estilos, tantos, que até assinava com múltiplos nomes. E como ele escrevia também, no fim da vida escreveu, com 89 anos, escreveu um haiku, que é um tipo de poema japonês que só tem três versos, e que dizia assim: “Escrevo e risco, rasuro/ Reescrevo e risco, rasuro/ E eis que desabrocha uma papoila” (que é uma flor). (7)

Este poema assemelha-se ao que acontece muitas vezes nos ensaios de teatro. Levamos dias a ensaiar numa direcção, depois apagamos o que foi escrito, ensaiamos noutra direcção, voltamos a ficar descontentes, e de repente desse chão cruzado de tentativas falhadas brota uma flor, quase sempre a certa, que é uma terceira situação que não tínhamos imaginado à partida mas que não surgiria se não tivéssemos ensaiado primeiro os“erros”.

E isto, que acontece em todas as actividades criativas, tem realmente algo de mágico, de assombroso e de inefável. Mas ao mesmo tempo só resulta como fruto do trabalho, é inútil ficar à espera da suposta inspiração. Esta só surge da intensidade do trabalho, do seu esforço. O que nos obriga a uma grande humildade e a um respeito disciplinador pelo método que afinal acrescenta ao jeito que possamos ter uma técnica que só pela insistência dominamos. O talento sem trabalho definha. E à medida que a qualidade do nosso trabalho aumenta também aumenta o nosso elo com o público e a transmissão da nossa energia funde-se com a do público que nos assiste.

No seu primeiro significado SÍMBOLO era uma espécie de anel que se partia em duas metades, uma parte ficava com o anfitrião que havia recebido alguém em sua casa, e a outra metade ficava com o hóspede, e quando se voltavam a encontrar as duas metades do anel voltavam a ligar-se e o anel ficava uno, selava aquela estima mútua. É uma ligação deste tipo que sentimos com o público, e não podemos defraudar a sua estima.Como se diz no Ubuntu que é, em suma, “uma forma ética de conhecer e de ser em comunidade”, como diz o seu lema,“eu sou porque nós somos”. Ou seja: eu existo para o outro, e só ganho identidade no reconhecimento mútuo. Tem de haver um respeito mútuo, não cego mas activo.

Esta consciência define uma ética, que é a análise do comportamento moral humano enquanto este se manifesta na prática. E oUbunturealça a importância vital do reconhecimento e respeito mútuos, complementado pelo cuidado e partilha recíprocos na construção de relações humanas.

O trabalho de teatro é um trabalho colectivo e ensina-nos, desde cedo, que dependemos uns dos outros e que um espectáculo é tanto melhor quanto, como se diz no futebol, a equipa se mostrar melhor do que a soma dos seus elementos.

Por isso nós, na nossa companhia de teatro, comungamos deste ponto de vista e achamo-lo vitalna formação do indivíduo em qualquer actividade, mesmo não sendo artística. A ética a que o Ubuntu nos conduz valoriza o homem, tornando-o íntegro, porque participativo, humano e justo, no rigor que coloca na sua participação da vida colectiva da sua comunidade. Não esqueçamos queno Ubuntu não coloca o indivíduo no cen­tro da concepção de ser humano: “A pessoa só é humana – explica – por meio de sua pertença a um colectivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros” (8).Foi esta a ética que permitiu a Nelson Mandela encetar a “longa marcha da reconciliação” que impediu que houvesse uma guerra civil na África do Sul. A prioridade tornou-se o interesse colectivo, na sua expressão mais ampla. 

Contudo, isto não deve ser lido como uma obediência cega e deve prevenir-se que ao indivíduo não são retiradas a autonomia e a iniciativa.O Ubuntu não contraria as coisas boas que nos chegaram de outras tradições, como a razão crítica, a qual não devemos descurar e que é um dos sentidos porque vocês estão na universidade, para adquirirem os instrumentos de uma razão crítica; o Ubuntu  acrescenta a estas virtudes a dimensão holística da espiritualidade africana e uma maior atenção à comunicação interpessoal.

Daí que oUbuntu“seja uma expressão viva de uma alternativa eco-­política” e também a antítese do materialismo e do cínico sistema capitalista em que nos mergulharam. A nossa maneira de ver mais íntegra está em maior consonância com a Terra, as suas criaturas e as suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte, e além disso respeita a uma Tradição que nos dignifica e que sem descurar o novo não deita fora o que nos tornava seres de partilha e de respeito mútuo, com o vivo e o morto e o não-nascido, que é o mesmo que dizer que nós crescemos a meio de um processo e que não devemos romper os elos.

Respeitar o público, dar-lhe o melhor de nós, para que uma corrente comum nos faça crescer conjuntamente é o “ethos” que nos guia no teatro. Nós temos obrigações para com a nossa comunidade social e se melhorarmos como actores sociais isso faz crescer também o nosso público.

Julgamos que esta nossa lição como actores face ao público não está distante das obrigações de um aluno para com os milhares de anos de investigação e de conhecimento acumulados que agora lhe são transmitidos na universidade.

É preciso respeitar o sacrifício, o esforço aturado desses ancestrais, nossos mentores, e não fazer batota com isso, tornando-nos efectivamente melhores, issoé o que nos garantirá o futuro.

É este o nosso apelo.

 

  1.  Históriacontada no livroEntre la Vie et le Rêve/ Entretiens avec Ionesco, de Claude Bonnefoy, Paris, Éditions Pierre Belfond, 1966
  2. Todorov, Tzvetan, O Espírito das Luzes, Barcarolla, 2008
  3. Fo, Dario, Le monde selon Fo/ Conversations avec Giuseppina Manin, Paris, Fayard, 2008
  4. Informação colhida em Jean-Claude Carrière, A linguagem secreta do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2006
  5. Brook, Peter, Ponto de Mudança, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995
  6. in Lopes, Silvina Rodrigues, A Anomalia Poética, Lisboa, Vendaval, 2006
  7. Parágrafos inspirados num artigo de Eugénio Barba sobre o trabalho do encenador
  8. Extraído de IHU/ONLINE, n. 353, de 2010, revista do Instituto HumanitasUnisinos; número dedicado ao Ubuntu

 

Nelson Mandela: “Uma tarde, durante um intervalo da audiência preliminar, levei um amigo de carro de Orlando até à escola médica da Universidade de Witwatersrand e passei pelo Hospital Baragwanarth, o principal hospital negro de Joanesburgo. Ao passar por uma paragem de autocarro ali perto, reparei, pelo canto do olho, numa jovem lindíssima que estava à espera do autocarro. Fiquei impressionado pela sua beleza e voltei a cabeça para a ver melhor, mas o meu carro tinha andado demasiado depressa. A imagem do rosto desta mulher permaneceu comigo – até cheguei a pensar em dar a volta para passar outra vez por ela na direcção contrária, mas continuei.”

Nomzamo Winnifred Madikizela, o nome da jovem descrita neste impressivo relato de Nelson Mandela, no seu belo e pungente Longo Caminho para a Liberdade, era conhecida como Winnie. Acabara os estudos na Escola de Assistentes Sociais Jan Hofmer, em Joanesburgo, e era a primeira assistente social negra licenciada a trabalhar no Hospital Baragwanath.

Nelson Mandela é, então, um advogado estabelecido, tem escritório com Oliver Tambo e está comprometido com a luta contra o apartheid. Está casado com Evelyn Notoko Mase, com quem tem três filhos. A morte precoce da filha Makaziwe e os problemas causados pela acção política do marido transtornam, irremediavelmente, Evelyn. Ela junta-se às testemunhas de Jeová.

Algumas semanas mais tarde, Nelson ao procurar pelo seu sócio, no escritório, defronta-se, de novo, com aquele deslumbramento: a jovem da paragem de autocarros, ali está sentada diante da secretária de Oliver, na companhia de um irmão. Ficou, naturalmente, espantado. Contudo, disfarçou a surpresa. Oliver apresenta-lhe a bela Nomzamo e explica-lhe que ali estavam em busca de assistência jurídica.

O pai, Columbus K. Madikizela, que fora director de uma escola, era um homem de negócios. Tem onze filhos. Nomzamo é a sexta. O seu nome tem um significado como muitos dos nomes africanos. No caso, significa alguém que se esforça – que luta, se quisermos – ou passa por provações. Nascera em Bizana, Pondoland, no Cabo Oriental, a 26 de Setembro de 1936. É uma zona adjacente ao Transkei, onde Mandela também foi criado. Como o futuro marido, tinha um nome profético. Rolihlahla, o nome de Nelson, significaria “o que causa problemas”.

Nelson, apaixonado perdidamente pela jovem Nomzamo, cogitará subterfúgios para se encontrar com ela. Telefona-lhe para o hospital, no dia seguinte, e pede-lhe ajuda para fazer uma recolha de donativos na Escola Jan Hofmer para o Fundo de Defesa do Julgamento por Traição, a cujas audiências iniciais está submetido. Era um pretexto mais do que perfeito para convidá-la para almoçar. Foi buscá-la e levou-a a um restaurante indiano, dos poucos que admitiam negros, e onde ele almoçava frequentemente, perto do seu escritório.

Nelson Mandela: “A Winnie era estonteante, e até mesmo o facto de nunca ter comido caril e beber copos de água uns atrás de outros para acalmar o seu palato lhe acrescentava o encanto”.

A seguir ao almoço, levou-a a passear pelos arredores de Joanesburgo, num planalto aberto, com vegetação que lhe lembrava o Transkei, onde ambos tinham crescido. Falou-lhe do Julgamento por Traição, das suas esperanças e receios e não escondeu, naquele primeiro encontro, a certeza que tivera desde que a vira na paragem: queria casar com ela: “O seu espírito, a sua paixão, a sua juventude, a sua coragem, a sua força de vontade – senti todas estas coisas no momento em que a vi pela primeira vez”, escreverá ele na autobiografia.

Nos tempos ulteriores a esse encontro, ver-se-ão sempre que possível. Nomzamo conhecerá os filhos de Nelson: Thembi, Makgatho e Makaziwe (filha com o mesmo nome da que falecera). Ia vê-lo ao escritório. Ia vê-lo a treinar no ginásio. Também comparecia nos encontros e discussões políticas. Ele aproveita para a politizar nos cortejos que lhe faz. Quando estudava, a jovem andara próxima do Movimento de Unidade Não-Europeu, em cujo partido militava um dos seus irmãos.

A firma de Oliver Tambo e Nelson Mandela, entretanto, definhava. O Julgamento por Traição durava há dois anos e isso tirava-lhes tempo para se dedicarem aos clientes e à firma. Se antes haviam recusado clientes, agora mendigavam por eles.

Nelson, que se separara de Evelyn, entretanto, por absoluta incompatibilidade – ela era devota dos Testemunhas de Jeová, para além de não concordar com a sua luta -, explica à Winnie que está inadimplente e ela aceita assumir os encargos da futura família, com o seu parco salário de assistente social. “A Winnie compreendeu e disse que estava preparada para correr o risco e partilhar a sorte comigo. Nunca lhe prometi oiro nem diamantes, e nunca lhos pude dar.” Casam-se a 14 de Junho de 1958. Mandela está à beira dos 40 anos. Winnie tem 21, e em três meses terá 22 anos.

A despeito, o noivo providenciara o vestido e a indumentária das damas de honor, e conseguira cumprir o compromisso indeclinável do lobolo, pago ao pai da noiva. Consegue, outrossim, que a interdição lhe fosse abrandada e que ainda lhe fosse permitido ausentar-se de Joanesburgo por seis dias para Bizana. Muitos dos companheiros do ANC, abrangidos pela interdição, não conseguem deslocar-se ao local do casamento. São recebidos com euforia, sob o olhar vigilante dos guardas do regime. O carro dos noivos seria coberto com as cores do ANC. Não faltarão os coros das mulheres da aldeia, a sua vibrante e ululante alegria, a envolver os noivos, e as danças tradicionais. A avó de Winnie dançará em honra dos noivos. No centro cívico de Bizana acontece a recepção. Fazem-se discursos de ocasião. Como é usual.

Nelson Mandela: “O discurso de que me lembro melhor foi o do pai da Winnie. Reparou, como todos aliás, que entre os presentes não convidados para o casamento se encontravam vários polícias de segurança. Falou do seu amor pela filha, da minha dedicação ao país e da minha carreira perigosa de político. Quando a Winnie lhe comunicara pela primeira vez que ia casar, ele exclamou: “Mas tu vais casar com um engaiolado!” Na cerimónia, disse que não estava optimista quanto ao nosso futuro, e que um casamento destes, em tempos tão difíceis, seria implacavelmente posto à prova. Disse à Winnie que casava com um homem que já estava casado com a luta. Desejou boa sorte à sua filha, e acabou o seu discurso dizendo:

– Se o teu homem é um feiticeiro, tens de te tornar bruxa!

Era uma forma de dizer que tinha de seguir o seu homem no caminho que ele tomasse.”

Columbus K. Madikizela lançara a profecia. O resto da história prescreve o anátema que iria marcar a vida daquela jovem: duas filhas, uma vida conjugal improvável, 27 anos de prisão do marido, uma longa e duríssima vida de provação, a sua luta intrépida, as prisões e banimentos, o isolamento, o sofrimento, a confrontação com a polícia e a repressão, o facto de ter erguido, sempre, com punho levantado e firme, o nome de Mandela. A coragem. A sua longa biografia não está, porém, isenta de contradição. A controvérsia, o necklacing (os pneus em chamas no pescoço de supostos traidores), os raptos, o assassinato de Stompie Moeketsie, de 14 anos, e o declínio inexorável do casamento.

A bela e intrépida mulher, que se tornara um ícone, estava agora a viver no anverso da História. Recordo-me de ver, antes desse período sombrio e outonal da sua vida, as suas fotografias e das filhas, sobretudo Zindzi, e de me deslumbrar com a sua lendária beleza. Isto nos anos 70. Peter Magubane, que a fotografou nesses longos anos de luta, releva-lhe essa singular beleza, para além da sua entrega à luta. Os heróis também se contradizem. Por isso, é preciso esperar para os glorificar. A vida de Nomzamo, entre os finais da década de 80 e a década de 90, está cheia de contradições e contrariedades. Algumas, obviamente, insanáveis. Desmond Tutu, grande figura moral, foi certeiro: “Houve qualquer coisa que correu terrivelmente mal”.

A 13 de Abril de 1992, Nelson Mandela anunciou que se separava da sua mulher e companheira de luta, a Camarada Nomzamo, como lhe chamará. Não chegaria a ser primeira-dama como se alude, por aí, enganosa e insistentemente. Foi dos momentos mais dramáticos da longa vida de Mandela. Transcrevo, a seguir, trechos dessa declaração de um homem dilacerado:

“Durante as duas décadas que passei em Robben Island, ela foi para mim um pilar de apoio e amparo indispensável… A Camarada Nomzamo aceitou o oneroso fardo de criar as nossas filhas sozinha… Suportou as múltiplas perseguições lançadas sobre ela pelo governo com fortaleza exemplar, e nunca vacilou na sua dedicação à luta pela liberdade. A sua tenacidade reforçou o meu respeito pessoal, o meu amor e o meu afecto crescente. Também atraiu admiração em geral. O meu amor por ela permanece igual.”

“A minha acção não foi motivada pelas alegações que andam a ser feitas contra ela nos meios de comunicação… A Camarada Nomzamo tem o meu apoio incondicional, e pode continuar a contar com ele, durante estes momentos difíceis da sua vida.”

“Pessoalmente, nunca lamentarei a vida que a Camarada Nomzamo e eu tentámos partilhar. Circunstâncias que nos ultrapassam, porém, ditaram-nos um outro rumo. Separo-me da minha mulher sem recriminações. Abraço-a com todo o amor e a afeição que nutri por ela dentro e fora da prisão, desde o primeiro dia em que a vi. Senhoras e senhores, espero que compreendam o sofrimento por que passei.”

“Talvez estivesse cego a certas coisas devido à dor que sentia por não ter podido desempenhar a minha função de marido para a minha mulher e de pai para os meus filhos. Mas, assim como estou convencido de que a vida da minha mulher enquanto estive na prisão foi mais difícil do que a minha, também o meu regresso foi mais custoso para ela do que para mim.”

Na cerimónia de casamento da filha Zindzi, afirmou que o destino dos lutadores pela liberdade era terem vidas pessoais instáveis: “Quando a vida de uma pessoa é a luta, como a minha foi, sobra pouco espaço para a família. Essa foi a minha maior pena, e o aspecto mais doloroso da escolha que fiz.” (Mandela dixit.)

Os filhos tinham sido claros: “Pensámos que tínhamos um pai, e que um dia voltava. Mas, para nosso desânimo, o nosso pai voltou e deixou-nos sozinhos, porque se tornou o pai da nação.”

Nelson Mandela: “Ser pai de uma nação é uma grande honra, mas ser pai de uma família é uma alegria maior. Porém, foi uma alegria de que desfrutei muito pouco”.

Agora, enquanto termino, ouço “Until When”, de Hugh Masekela (ouvi, antes, “Bring Him Home”: “Bring back Nelson Mandela/ Bring him back all to Soweto. / I want to see him walking down the street/ with Winnie Mandela” -, ouvi todo este disco Hope). Pungente. Como comovente são aquelas palavras, imprescritíveis, de Nelson Mandela, que rememoro no dia do adeus à Camarada Nomzamo. Hoje, fala-se dela com benevolência, chamam-na Mama Winnie, a mãe da África do Sul. Parece-me justo. Ela foi uma bela lutadora pela liberdade. A luta de Mandela foi a vida sacrificada que teve e a luta dela. O seu pai, Columbus. K. Madikizela, proferira, naquele longínquo ano de 1958, sábias e proféticas palavras. Nelson Mandela foi, sem dúvida, o feiticeiro da nação Arco-íris que ele, miraculosamente, fundaria; Winnie, a sua bela filha Nomzamo, acabaria por ser, fatalmente, a bruxa.  

 

 

 

 

 

 

 

Uns vencem pelos seus crimes, outros fracassam pelas suas virtudes

William Shakespeare

 

Os crimes montanhosos é o título mais recente da editora Cavalo do Mar. Esta colecção de poemas é dividida em duas situações, designadamente: “o branco colarinho dos corvos”, escrita por António Cabrita, e “a gravata preta do corvo albino”, com autoria de Mbate Pedro. Porque cada uma destas partes é uma obra em si, dentro de um livro, hoje resolvemos dar atenção aos versos do poeta português, que os do moçambicano merecerão a nossa reflexão em uma semana.  

“o branco colarinho dos corvos” é uma proposta poética bem notável, na qual predomina textos abundantes, com a susceptibilidade de colorirem a imaginação do leitor. Em geral, a escrita de António Cabrita, neste Os crimes montanhosos, é preenchida por uma impressão narrativa, no entanto, sem ser o que a prosa poética nos habituou em termos de mancha gráfica ou do ritmo de enunciação. Aqui, o verso, predominantemente curto, desliza por quatro, seis, oito estrofes, e revela a percepção de que o poeta, de facto, tem muito por exprimir, mesmo sem um egocentrismo exacerbado a acabar-se no eu poético. A partir da impressão narrativa, Cabrita sabe dar-nos a dimensão do “ele”, vertendo a preferência de os seus sujeitos de enunciação falarem de si também por via de outras entidades aludidas nos textos (uma dessas entidades é Deus, que O encontramos no poema inaugural, “Incipit”, e em tantos outros como “Recordação de uma miúda da Mafalala nunca mais entrevista”, “Bazar dos ofícios”, “A via herética” e “As más companhias”). Por exemplo, no texto “Os poemas do meu pai”, há uma passagem que, se calhar, justifica essa tendência do “eu e ele” coabitarem pacificamente: “A minha veia é da dele/ simétrica mas pelo positivo” (p. 33). Duas páginas depois, há um trecho ainda melhor: “Gosto é de espreitar à socapa no espelho/ a ver se alguém que não eu, em gestos/ e expressões que me não pertencem, me perscruta” (p. 35).

Quer numa quer noutra passagem acima, prevalece essa decisão, digamos, de realçar que a existência do sujeito é garantida pela de mais alguém, que pode ser um pai, Pessoa, Krishna, Fellini ou uma jovem bailarina.

À parte esse traço contínuo, em “o branco colarinho dos corvos” os versos parecem traduzir o produto da constatação do poeta, misturado com as suas convicções e não o que necessariamente sente, embora o sentimento não esteja desvinculado disso. Tal evento coloca-nos num contacto com o poeta por via do que a poesia sugere, ou seja, ao contrário do que acontece com muita poesia lírica, em Cabrita não vamos buscar directamente do sujeito de enunciação o que nos mantem cativo no texto, mas nessa alusão falsamente desligada de quem a exprime. O poeta não se importa em anular o protagonismo do sujeito de enunciação, pois interessa-lhe mais tornar a subtileza da subjectividade algo verosímil, muito perto de nós. “o branco colarinho dos corvos” é também uma forte aposta em projecções quase tangíveis, como estas: “Um cão à volta da cauda. Outro. /Um terceiro à volta da cauda do primeiro” (p. 19).

É possível ver esses cães, reconhecê-los até, na mesma proporção que nos reencontramos com uma cidade, lembrada com um desabafo: “é isto, até me dá vontade de urinar. /É uma coisa de miúdo./ Mas em Maputo farta o cheiro a urina” (p. 36).

Exprimidos os versos nesse estilo aparentemente narrativo (como calha bem na poesia de José Craveirinha, de Rui Knopfli e Luís Carlos Patraquim), com nomes de seres animados, acções e lugares, a cumprirem uma função simbólica e não aquela da narração, que garante a narratividade propriamente dita, como efeito, o centro do universo deixa de ser os sujeitos de enunciação, evitando-se que a poesia aqui seja pensada a partir de quem a revela, mas pela referencialidade dessa expressão. Muitas vezes, Cabrita anula os holofotes ao eu poético para, em troca, oferecer-nos uma atmosfera que nos merece.

 

Hoje escuto “bazobuya”, dos Soul Brother’s, repetidas vezes porque nenhuma pilha gasto e nenhuma fita vou rebentar. A cassete dos Soul Brother’s tinha um espaço muito especial no estojo do meu pai. Debaixo da fotografia do grupo, na capa, vinha bem bordada a assinatura, em caneta de filtro, do meu pai e seis números divididos por duas barras anunciavam a data da compra.

A cassete era aberta com um password  de delicadeza e cuidado que só cabia nas mãos do meu pai. O velho tirava a cassete da caixa como quem tira a vida da caixa do tempo para vivê-la. Depois de tirar a cassete, elevava-a um pouco acima da cabeça e vigiava o seu interior; certificava-se, sempre, se havia entre os dois rolos de fita algum insecto ou poeira. Ali no meio da sala grande os Soul Brother’s soavam sem parar. E o velho, que ainda era jovem, costurava o passo que nunca saía pedalando o pé e acompanhava o grupo musical com seu saxofone feito de pequenos sopros de assobios.

Enquanto o “bazobuya” ressoava a sua esperança distante, o meu pai era como se lesse as barbaridades do apartheid no seu copo de vinho. De gole em gole o velho reconstruia sobre a minha total atenção os espectáculos dos Soul Brother’s, as origens de cada membro e as loucuras que alguns seguidores do grupo faziam na África do Sul. A narração do velho ganhava força em cada garrafa de vinho, vazia, que saía pela janela.

Escutar os Soul Brother’s ao lado do meu pai, era viajar no tempo que fazia esse grupo; era ter de lado uma máquina humana que traduzia cada palavra, cada suspiro, cada timbre e cada mágoa que preenchia o bater da nota. Meu pai, de quando em quando, pisava no grande botão azul escrito “Pause” e tecia uma explicação detalhada. Quando o homem, extraordinário, do piano punha-se a manusear a esperança que o seu grupo cantava, meu pai seguindo a sua velocidade, recitava a sua biografia e todas as suas técnicas em espectáculos…
“Bazobuya” é a canção que me resta de tudo isso. Sempre que quero economizar as memórias sobre o meu pai, coloco essa canção. E o que mais impressiona nessa canção é que oiço, dentro dela, o assobio do meu pai vibrando nas mãos dos seus lábios grossos e pintados de vinho. Essa canção é um ode ao regresso. Um pulsar vivo de quem espera e aguarda o regresso. E dói-me a alma ouvir essa canção sabendo que quem ensinou-me a vivê-la já não está aqui para juntos esperarmos o regresso dos outros; oiço essa canção e espero o regresso de duas pessoas: eu e o meu pai à sala grande de casa.

É doloroso como os insectos do tempo roem-nos as coisas mais queridas que temos. Quando ouvia “bazobuya”, com o meu pai, o tempo era apenas aquele espaço fixo e bem limitado: meu pai e música. Naquela altura aprendi a sonhar os sonhos do meu pai. Meu pai tinha o sonho de fazer uma fotografia com os Soul Brother’s e pela distância inexistente entre nós absorvi esse sonho. Também queria tirar uma fotografia com o grupo. E eu no meio para equilibrar a minha altura e deixar o flash da máquina brilhar em meu sorriso vedado por uma dentadura branca e incompleta nos cantos.

Tudo, hoje, pesa-me a memória. Os Soul Brother’s seguiram o mesmo caminho que o meu pai seguiu: foram à nascente do tempo. Cá estou sozinho, neste RELÓGIO DI ORO, órfão de tudo. Na sala grande de casa já não há concertos dos Soul Brother’s. O silêncio é o único piano amargo que se esconde nos cantos da casa. O escuro inunda a sala e tudo cheira a luto. Na parede a fotografia do meu pai é como se observasse, sem parar, a cassete dos Soul Brother’s cheia de poeira na estante…

 

Fevereiro de 1974. Fim de tarde. Abel Faife, um dos poucos jornalistas negros, que se conseguiu “infiltrar” em razão das suas capacidades na Redacção do Notícias, entre profissionais com a “cor adequada de então”, acompanhado de um amigo, sentaram-se no Restaurante Abadia em Lourenço Marques (situado por detrás da Casa da Sorte) e pediram dois copos de cerveja. Mas porque os serventes, todos negros, tinham orientações para seleccionar os clientes a partir da cor nunca mais os atendiam, foram reclamar junto do proprietário.
Condescendentemente, o visado indicou um espaço escondido, junto à cozinha, onde poderiam ser atendidos. Isto porque ele não queria que a presença de negros na esplanada “afugentasse” a clientela.

RECRUTADORES DA FRELIMO

Faife, lutador e contestatário contra uma discriminação que apesar de absurda era ainda uma prática corrente, decidiu usar a única arma de que dispunha: a escrita. Dirigiu-se à redacção e passou o episódio para o papel.
Foi então que Guilherme de Melo, então Director adjunto do jornal, que aos domingos ocupava um espaço de alto a baixo, na 1.a página, muito lido e respeitado, designado “Folhas Dispersas” decidiu pegar no assunto. Com a sua pena incisiva e cheia de originalidade, catalogou os donos do Restaurante Abadia de “recrutadores da Frelimo”.
O assunto chegou ao Governador-Geral, que de imediato mandou fechar o Abadia. Seguiram-se outros procedimentos como multa e publicitação do caso, como exemplo.

FEITIÇO CONTRA O FEITICEIRO

Posto isto, o Governador-Geral mandou um emissário transmitir ao Abel Faife as medidas tomadas e, simultaneamente, procurar saber o que é que ele gostaria de obter, para se ressarcir do episódio de que fora vítima.
Muito embora o então jornalista do Notícias se tivesse manifestado feliz com o desfecho, a verdade é que Sua Excelência queria “ganhar” para o seu lado, um dos mais criativos e prestigiados “escribas” dessa altura em Moçambique. Daí que…
Sem margem de escolha, ao jornalista foi dado um prémio: passar a pertencer à ANP (Acção Nacional Popular), o Parlamento de então, que a todo o custo o regime tentava encontrar formas de “colorir”, com negros e mulatos dóceis. Repórter com vocação para assuntos da cidade, amigo de toda a gente, o Abel viu-se envolvido em política, que não era o seu forte.
Veio a Independência Nacional. Com poucos meses de “Parlamento”, sem nunca ter usado da palavra, passou a constar da lista dos comprometidos. O que dizer e o que fazer?
No meio de Comandos, PIDES e outros que tais, o Abel Faife teve que dar explicações sobre o seu envolvimento na ANP, enfrentando o duro olhar do então Presidente Samora Machel.
Falecido a cerca de três décadas, Abel Faife (cujo filho, Hélder, herdou a veia jornalística) merece ser visto como uma referência, pois a sua imaginação e capacidade, num tempo em que a um não branco as exigências eram redobradas, tem uma história de vida que merece ser (re)conhecida pelas novas gerações de jornalistas moçambicanos.

 

 

 

Albino Magaia tem 40 anos e é um reputadíssimo jornalista e escritor moçambicano. É prócere director da prestigiada e prestigiosa revista TEMPO. O semanário, proveniente dos anos 70, aquando da primavera marcelista, pela mão de excelentes profissionais, é para mim, ainda ou sobretudo, o retábulo do sonho. Já lá não oficiam muitos dos seus míticos nomes, mas o nome retém a proeminência. Remanesce, na editoria de fotografia, o Kok Nam. O director talvez seja o jornalista mais conceituado do seu quadro redactorial. Conhece-se-lhe um percurso ligado ao nacionalismo. Pertencera ao NESAM – Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique -, fora prisioneiro político. Dessa dura experiência nascera, aliás, Yô Mabalane, livro de ficção narrativa publicado na emblemática década de 80. Antes, em 1982, publicara na colecção Autores Moçambicanos, do INLD (Instituto Nacional do Livro e do Disco), Assim no Tempo Derrubado. Desse livro de poesia avulta o poema “Descolonizámos o Land-Rover”.

Albino Magaia: “Já não é carro cobrador de impostos/ Nós descolonizámo-lo. /Já não é terror quando entra na povoação/ Já não é Land-Rover do induna e do sipaio. / É velho e conhece todas as picadas que pisa. / É experiente este carro britânico/ Seguro aliado do chicote explorador. Mas nós descolonizámo-lo/ No matope e no areal/ Sua tracção às quatro rodas/ Garante chegada às machambas mais distantes/ Às cooperativas dos camponeses. / Entra na aldeia e no centro piloto/ Ruge militante nas mãos seguras do condutor/ Obedece fiel a todas as manobras/ Mesmo incompleto por falta de peças. / – Descolonizámos o Land-Rover/ Com nossos produtos/ Comprámos combustível que consome/ Com nossa inteligência/ Consertámos avarias que surgem/ Com nossa luta/ Transformámos em amigo este inimigo. / Nós, descolonizadores/ Libertámos o Land-Rover”.

Releio este poema, a esta distância, e não deixo de pensar na profissão de fé nele impregnado. Éramos então outro país, tínhamos outra energia e outros sonhos, comungávamos outros valores. Havia valores que eram partilhados. Penso na bonomia do futuro que o Albino Magaia inscrevia ao efundir este entusiástico texto. Isto parece ter sido noutra vida. Hoje vivemos nos antípodas. Muitos jovens com a idade deste poema devem ficar irresolutos perante a sua linguagem e as metáforas persentidas. Poema de uma certa época, poema de um tempo histórico, metáfora de um país que se libertara e que o fizera na transfiguração de um instrumento de colonização tornando-o libertador. Poesia de um contexto e com conteúdo que se funda nele. O Land Rover aqui é a metonímia dessa transfiguração.

Outros poemas de que eu gostava particularmente do Albino Magaia: “Eduardo Mondlane” e “No Sul nada de novo”. A um dos filhos, deu o nome de Eduardo. Parece óbvia a devoção. O outro poema é dedicado a Nelson Mandela: “Lá para o Sul/ Mandela/ continua a sonhar com uma estrela/ Violas electrónicas do Soweto/ vomitam notas de sangue/ sobre os céus de Johannesburg/ enquanto Miriam Makeba/ curte o exílio na Guiné/ Há jovens que morrem/ suicidando-se em Smandje-Mandje/ num contraste de preto e branco/ com a sumptuosidade multinacional/ nos lupanares do Transkey”.

Posto isto, será despiciendo falar da magnificência da figura que me receberá – eu com pouco mais do que 20 anos – naquele ínclito semanário. Quero ser repórter. Sonho em ser grande repórter. Trago no bornal a reportagem, o género dos géneros;  a entrevista, a grande entrevista; a crónica. Sou leitor do repórter Gabriel García Márquez; tornar-me-ei indefectível da Oriana Fallacci, a jornalista italiana de Entrevista com a História; pratico a chamada crónica literária, tenho uma coluna semanal no “Notícias”. Cultuo os mestres brasileiros: Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Mas entrei ali como quem atalha um templo. Eu terminara o curso médio de jornalismo e pediria para ser colocado na TEMPO. Albino Magaia é extremamente afável. Depois de me falar da revista e dos seus valores, indica-me o trabalho que me espera: ler as cartas dos leitores, que não são publicadas, e a partir dali redigir um texto (uma espécie de reportagem) sobre aquilo que versavam aquelas epístolas que, de outro modo, permaneceriam no anonimato.

– Vais aprender a conhecer o país – avisa-me.

Foi, vejo-o a esta distância, uma poderosa lição de vida. Foi um banho de humildade. Ele ensinou-me muita coisa com aquele gesto. Que o percurso se faz de baixo. Refreou os meus exacerbados ânimos. Todos os dias, durante meses, li, anotei, pensei e vivi as angústias, sobretudo as angústias, relatadas pelos leitores, naquelas cartas, muitas delas ilegíveis. No final, produzi o texto que haveria de ser publicado. Isto aconteceu há 30 anos. Entre finais de 1987 e princípios de 1988.

Mantinha, a despeito, a minha colaboração literária na revista. Desde 1985, pela mão do Luís Carlos Patraquim, eu escrevia na “Gazeta de Artes e Letras”. Começara por publicar versos, fazia à época algumas recensões críticas, iniciara o repto das entrevistas e intentava algum ensaio, canhestro, certamente. Quando o Gilberto Matusse assumiu, diligentemente, a coordenação da “Gazeta”, manteve a minha colaboração. Foi uma época empolgante para mim. Publicavam-se livros – os primeiros livros da minha geração – e nós noticiávamos isso e o discutíamos ali. O Gilberto vinha com uma licenciatura da Europa e acrescentava referências inéditas.

Não muitos meses depois, Albino Magaia chamou-me para o seu gabinete e designou-me editor da “Gazeta”, o suplemento literário e cultural da revista TEMPO. Eu que chegara ali para ser repórter, era agora editor. Rui Knopfli, muitos anos antes, Luís Carlos Patraquim (com Gulamo Khan e Calane da Silva), num tempo ulterior, Gilberto Matusse, eram nomes que eu tinha que honrar. Não sendo um prestidigitador, arregacei as mangas e fiz o que sabia. Foram dois anos frenéticos. Para além da “Gazeta” eu estava na redacção. O chefe da redacção era o Luís David. Ele personificava os velhos chefes de redacção, irascíveis, coléricos, que rasgavam ou devolviam textos, que vituperavam a mediocridade. Um dia, passados muitos anos, disse-lhe do muito que estava grato.

Aprendi muito naquela época. Aprendi tudo naquela revista. Em finais de 90, eu estava exausto e queria mudar de vida. O Albino Magaia, no entanto, deixara de ser director da revista. Um tempo menos iridescente adivinhava-se no parco horizonte. No entanto, ele era também o secretário-geral da AEMO. Para além da TEMPO, convivíamos na AEMO. O Albino era um conversador apaixonado. Animava-lhe o passado. Escolhe para a revista que iria editar na AEMO um título evocativo do precursor Rui de Noronha: Quenguêlêquezê – Lua Nova. Um homem culto, tinha um riso contagiante e apostava na juventude. Os seus saberes não se circunscreviam à literatura. Mas já lá vamos.

Albino Magaia incumbiria ao Castigo Zita uma ciclópica tarefa: compilar os textos de João Abasini. Albasini fundou e dirigiu importantes jornais como O Africano e O Brado Africano. Dedicado e paciente, o Castigo recolheu textos, copiou-os dos jornais O Africano, O Brado Africano, tanto nas colecções em papel do Arquivo Histórico como nos micro-filmes que encontrara no Centro Cultural Português em Maputo. Este trabalho árduo e minucioso iria emperrar na fase da composição do livro projectado – na época a composição de textos era feita a chumbo na Tempográfica – e não chegou a ser editado na colecção “Cadernos Tempo”, como Magaia pretendia. Quando a morte surpreendeu o jovem Castigo, em 1988, aos 27 anos, ele preparava-se para fazer o mesmo trabalho em relação a outra grande figura do nosso jornalismo – Estácio Dias, pai do escritor João Dias, autor de Godido e outros contos.

Um outro jovem contista talentosíssimo, Isaac Zita, que também morreu prematuramente, aos 22 anos, a 17 de Julho de 1983 (nascera a 2 de Fevereiro de 1961), teve o amparo e o inequívoco apoio do Albino Magaia. O prefácio que Magaia redigiria para o livro póstumo do Isaac Zita, Os Molwenes, é um dos raros documentos sobre a vida efémera e fulgurante daquele jovem professor que lhe aparecera com uns textos que tanto o entusiasmaram e que publicou na revista TEMPO. Fernando Couto também se entusiasmou com o talento de Zita e publicou-o no jornal Notícias. O Albino era um homem bom, generoso. Um excelente conversador. Um sábio. Tinha uma ampla e sofisticada cultura. Um homem probo, um grande jornalista. Não se furtava a uma polémica ou a discutir ideias. Era, no entanto, de uma grande humildade. Abominava a injustiça. Foi das pessoas que mais me marcou. O seu exemplo, a sua correcção, a sua postura. A falta de soberba.

Conto um episódio que releva a sua personalidade. Em Março de 89, em pleno DC-10, íamos a caminho de Lisboa para um congresso de escritores. Iam na delegação, entre outros, o José Craveirinha, o Sérgio Vieira, o Ungulani Ba Ka Khosa, o Eduardo White, a Fátima Mendonça. O Rui Nogar estava em Lisboa, como o Luís Carlos Patraquim. Foi quando reencontrámos e celebrámos Noémia de Sousa, Rui Knopfli, Eugénio Lisboa, Glória de Sant´Anna. O Albino indagou-me sobre o título que eu dera à peça que anunciava a reunião e a nossa viagem: “Congresso de Lisboa”.

– Congresso de Lisboa? – interrogou-me ele, meu director.

Sim, eu argumentei. Disse-lhe que ele estranhava, provavelmente, por se tratar de Lisboa, se fosse uma outra capital, talvez não se tivesse revelado a mesma perplexidade. Disse-lhe mais: que ele se abstivesse de pensar Lisboa com aquela carga “afectiva” e política que Portugal representava, chegaria à conclusão do acerto do título. Ele olhou para mim e sorriu. Deu-me uma palmada nas costas e reconheceu:

– Tens razão. – disse-me e soltou a sua bela gargalhada.

Voltei daquela viagem carregado de entrevistas e de reportagens com escritores. Escrevi abundantemente sobre alguns deles então proscritos, por assim dizer. Albino Magaia em nenhum momento censurou fosse o que fosse, deu-me toda a liberdade. Falar, como fiz, de um Rui Knopfli, naquele contexto, provocava urticária a alguns. Não faltariam diatribes pelo facto de ele ser adido na embaixada portuguesa e eu, entre outros, o reivindicarmos como poeta moçambicano. Magaia actuou sempre com lisura. A Fátima Mendonça, devo sublinhar, também me haveria de defender. Vivíamos uma época de exacerbados sentimentos patrióticos. Era tempo de todas as exabundâncias e o Albino Magaia sabia, isso custara-lhe a saúde precária que tinha, pagara o preço dos exageros dos prosélitos por estar do lado da justiça. Essa homenagem ele merece-a e temos de, um dia, ter a coragem de a fazer.

Outro episódio aconteceria nos finais dos anos 90. Eu saíra da TEMPO, fora estudar jornalismo em Lisboa, retornara à Pátria. Tendo abandonado o jornalismo activo, fazia comentário, sobretudo político, na Rádio e na Televisão. Vivíamos uma primavera democrática à época e ser crítico não era prática catalogada de nenhum delito. Albino Magaia, Carlos Cardoso, Inácio Chire, Tomás Viera Mário, Salomão Moyana, eram alguns dos meus companheiros nessa demanda. Um dia fui escalado para fazer comentário de uma sessão parlamentar na companhia do Albino Magaia e estivemos intermináveis horas na Assembleia da República em directo. Foi uma experiência estafante e exultante. Quando a terminámos, o Albino Magaia levantou-se para me cumprimentar e proclamou:

– Mestre!

Confesso: fiquei aturdido, estarrecido. Em dez anos eu ganhara o seu reconhecimento, a sua alta estima e a sua consideração. Ouvir aquilo do meu verdadeiro Mestre foi muito estranho. Esperava dele indulgência e não aquele reconhecimento. A sua humildade revelou também, ou sobretudo, grandeza. Devo o pouco que sou ao muito que ele era, que ele foi, que ele será sempre. O Albino Magaia foi um verdadeiro Mestre e gostava de ensinar e aprender. Recordo-me de que tínhamos aos sábados – a revista saía às sextas – reuniões de redacção para discutir as matérias que informavam a edição pretérita, bem como avançar com ideias e propostas para posteriores edições. Às vezes, vinham convidados. Esse magistério do Albino Magaia foi decisivo para mim. Naquele momento, naquela emoção – eu diria comoção até! -, naquele abraço envolvente, recordei-me desse Mestre inolvidável, que ali me saudava e eu estava compungido com aquela sua bondade impagável.

Albino Magaia publicaria Trilogia do Amor (poesia, em 1999), tinha publicado Malungate em 1987, um texto de ficção, e na época dera à estampa Informação em Moçambique – A Força da Palavra (1994). Ele era, indubitavelmente, um dos luminosos nomes do nosso jornalismo. Não viu o seu porfiado Moçambique: raízes, identidade, unidade nacional publicado. Numa belíssima entrevista do João de Sousa para o programa “O Fio da Memória”, que está na origem de um livro homónimo, Albino Magaia revela a intenção de biografar o músico Eusébio João Tamele. Não sei se chegou a trabalhar nesse projecto. Quisera cartografar, antes, a vida de um outro vulto – o escultor Chissano -, mas este morreu antes de ele concretizar o objectivo. Nessa entrevista soberba, Albino Magaia fala com competência e surpreendente conhecimento da música moçambicana. Ele cultiva o gosto pela música moçambicana, pelo jazz, pela música clássica. É um homem eclético. O melómano Albino Magaia escrevia enquanto ouvia Georg Friedrich Handel. Um dia ele fechar-se-á, em casa, num sábado, a ouvir Haendel durante 5 horas, o que dura a celebérrima obra O Messias do famoso compositor germano-britânico.

Por algum capricho da memória, lembrei-me hoje do meu saudoso Mestre Albino Magaia e quis fazer-lhe esta humílima evocação. Acontece que redijo este texto numa segunda-feira, dia 26 de Março, quando passam justamente 8 anos sobre o seu desaparecimento. Albino Fragoso Francisco Magaia nascera a 27 de Fevereiro de 1947, na então Lourenço Marques, faleceria a 26 de Março de 2010. Muitas referências na Internet ditam um erro para a posteridade e falam do seu óbito a 27. É preciso exercer vigilância sobre esses avatares da pós-modernidade.

Na sua Trilogia do Amor há um belo e inacabado (acautela-nos o autor) poema, intitulado “M´Pezi”, no qual Albino Magaia escreve na primeira estrofe: “…e depois quando eu partir/ as ervas dos caminhos e carreiros/ continuarão tecendo confidências aos búzios/ às pedras e grão de areia/ cúmplices e amigas sempre/ de cada grama-força de vento”. O longo poema termina com quatro espantosos, pungentes e ulcerados versos: “Quando eu partir/ quem me dera levar comigo/ o teu corpo de capulana/ embrulhado em meus braços”.

 

– Marrria. Me chamo-me Marrria.

Pronunciou assim mesmo. Com a língua tremelicar no céu da boca, pondo os muitos erres da descontração tsonga no sotaque. Tinha a cabeça timidamente inclinada até ao ombro. As longas mechas descaíam e cobriam o espetáculo da beleza à meio rosto, como cortinas de um teatro que se intrometessem à meio da sessão. Ele olhou para ela. Pronunciou qualquer coisa que a deixou descontraída. Ela sorriu. Estendeu o braço e fechou a porta do carro, por dentro. O veículo arrancou, entremeou-se a outros e desapareceu como uma formiga no meio do  tráfego de um formigueiro intenso.

Foi de manhã. Antes do Sol espreguiçar. À hora da classe operária. O semáforo, ainda sonolento, bocejou e autorizou, com a luz verde, os veículos que rosnavam ansiosos. À beira da estrada, improvisando uma paragem de transporte público informal, um enxame de gente subjugada aos livros de ponto aglomerava-se ao jeito operário de insectos trabalhadores. Alguns veículos abrandavam. As pessoas corriam desesperadas por uma boleia. As viaturas tentavam, com alguns  fretes, conseguir algum que compensasse o custo insípido do combustível.

Foi aí que um sedan, importado do Japão, abrandou, hesitou, por fim parou,  quando viu a Maria lampejando no meio da multidão. As pessoas correram como sardinhas desesperadas por um lugar na boleia de um enlatado. O homem ao volante baixou o vidro de elevador automático e abanou o dedo  indicador a dizer "não". Acto contínuo, apontou com o mesmo dedo para Maria, parada no meio da multidão, deixando claro que  o  frete não seria para todos mas sim para ela. Maria desviou o olhar, recolheu-se à timidez.

– Menina! Estão a chamar ali – gritavam alguns, procurando, com a simpatia, conseguir um lugar naquela boleia.

Maria fingia não ouvir. Num soslaio fortuito percebeu, sob os reflexos do vidro do carro, os dedos da mão do homem ao volante a dobrarem-se num claro "anda cá'. Ignorou, orientada pelo bom senso que recomenda as mulheres mais novas a não ceder ao chamado de estranhos. O homem esperou, ao jeito paciente dos predadores. Um toque  na buzina. Maria olhou sem olhar. Imaginou-o a fazer " anda cá" com os dedos.

– Vai, menina! – Incentivavam os caçadores de boleia.

Os chapas não vinham. Na paragem, a enchente crescia. O tempo corria. Maria pensou nos transtornos  do atraso e cedeu. Olhou de soslaio para o carro. Baixou o olhar. Arrastou o olhar caído e deu um passo para o lado como um caranguejo envergonhado. Deu outro. Devagar, como quem não vai a lado nenhum. A consciência pesava-lhe as pernas.

Na traseira do veículo, as luzes de retaguarda acenderam. O carro recuou, facilitando a distância, as coisas. Ela parou. Esperou, cabisbaixa,  como  se tivesse  perdido  os olhos no  chão.

Viu-se, da paragem, a silhueta do homem a inclinar-se no carro para falar à menina. Maria dobrou o corpo, realçando o arsenal e aproximou-se da janela. As mechas penderam. Ele disse algo açucarado  (percebeu-se no sorriso dela) e abriu a porta. Maria recolheu o olhar caído, ainda com a consciência a pesar-lhe os gestos, e entrou para o carro. Foi ali que, em curta conversa ele perguntou algo e os lábios dela pronunciaram "Marrria, me chamo Marrria", com a cabeça reclinada e as mechas a cobrirem meio rosto. O homem pronunciou algo que a deixou descontraída. Ela olhou para ele, desviou o olhar, sorriu, fechou a porta do carro por dentro, o carro desapareceu no meio do tráfego deixando espencados os fulanos que tentavam lugar na boleia.

Nos dias seguintes Maria dobrou, na saia, alguns centímetros da bainha, deixando exposto o espetáculo dos joelhos roliços. Com as celulites à mostra já não havia crise de transportes para a Maria. Percebeu que se a saia, já sem pano para bainha, subisse mais um pouquinho, prosperaria também as finanças.  Hoje, com a saia do tamanho da economia nacional, faz sucesso nas paragens, desde cedo, até à hora em que os mosquitos e os pássaros nocturnos lhe escoltam o corpo.

 

Leco! Sabes com quantos pés descalços se faz um Solo Pátrio? O solo é uma grandeza física composta por milímetros infinitos de passos. Os passos gastam o solo como uma mão aberta que apaga a cor dos bolsos vazios; o solo serve-se nas ruas e avenidas para ser consumido, como pão, pela boca do sol e espumar, como cerveja, na garganta do vento.

E o Solo Pátrio? Leco Nkululeco! O Solo Pátrio cabe num funil de jornal e tem matéria suficiente para deslizar na língua enjoada de uma mulher grávida? Leco, meu poeta, não tenho nenhuma Elegia de Amor para ti. E se te amasse duas vezes no sono que que escorre as paredes sujas de preto de um caixão? Seria isso uma Elegia de Amor II? O Solo Pátrio que boceja, alto, as acácias malnutridas de urina e com os ramos amputados por um serrote eléctrico? Cabe em ti?

Tu sabes que o mar engole sem mastigar migalhas de solo, ali, na nossa praia. O mar não é um Solo Pátrio. É como uma banheira, enorme, engasgada de água, onde o Solo Pátrio, o verdadeiro Solo Pátrio lava-se; às vezes o Solo Pátrio desaparece no mar, como as curandeiras que vão em busca dum certificado espiritual, e volta para novamente ser chão dos nossos passos. O Solo Pátrio é casa, é cama do mendigo que arrasta sua manta pelas esquinas e mata o roncar do estômago metendo a cabeça, toda, despenteada num contentor de lixo. Ninguém sabe que o Solo Pátrio às vezes é a primeira senha para morrer. Onde vão os cadáveres gelados que pelo carro preto da funéria saem, em macas, das morgues dos hospitais?

E quem sabe o sabor da chuva além do Solo Pátrio? A chuva é o único bálsamo que lava as feridas deste solo. Ah! O Solo Pátrio é aquele milagre de pedras que tropeça nos depósitos nocturnos de desejos na Rua Araújo; ali onde as nossas irmãs equilibram suas ancas que servem de cabides de saias curtas. Ali o Solo Pátrio sua, sua no seu movimento velozmente estático.

O Solo Pátrio, também, caminha dentro de si. Caminha não para chegar a algum sítio, mas sim para inventar caminhos e deixar os outros caminharem. Leco, meu caro, tu sabes como é quente o passo descalço sobre o nosso Solo Pátrio; aquece como um jacto de chá de Five Rose sobre a língua descalça de saliva. E quem caminha descalço sobre o Solo Pátrio inventa movimentos de um canguru com o eixo do estômago apertado pela fome.

Há carga pesada nas costas do Solo Pátrio. Há corcundas de contentores de lixo, há pilhas rectas de prédios excitados de cimento, há igrejas cercadas por recibos de dízimos, há empresas onde máquinas mastigam matéria-prima e cospem fumo pelas chaminés, há escolas onde crianças sentam-se ao chão e cosem letras e números, há txopelas que gaguejam passos nos passeios, há taxistas que sonecam no banco de frente e há seguranças com armas amaradas na cintura.

O Solo Pátrio tem muita carga nas costas. E nas suas costas estamos nós: eu e tu, Leco. E há poetas de barba grande, que leem livros obesos e declamam poemas paralelos como tu, Leco.

A ideologia não é uma religião. A ideologia é uma ideia lógica, que pode ser derrubada, quando estiver errada

José Luis Zapatero

 

Para esta semana, propus-me partilhar, neste espaço, uma leitura à obra Os crimes montanhosos, da autoria de António Cabrita e Mbate Pedro. Na verdade, até pensei em escrever um artigo em duas partes, uma dedicada a cada autor. No entanto, eis que, com muita satisfação, participo no segundo Seminário de Jornalismo Cultural, programa organizado pela Soarte Media e Associação IVERCA, e que termina esta quarta-feira, no Camões. Logo no primeiro dia do Seminário, chamou-me atenção a discussão sobre jornalismo cultural, no painel subordinado “Media e cultura: caminhos para desenvolvimento e maior cidadania”, e, sobretudo, a intervenção do meu camarada Júlio Manjate, quem defendeu que o jornalista cultural deve ir além de cobrir eventos como espectáculos ou lançamentos de livros. Para o Director do Notícias, cobrir essas cerimónias é bom, mas é preciso que se faça mais, por exemplo, desbravar hábitos e costumes ligados à tradição, como é o caso da circuncisão. Nesse momento, ocorreu-me uma pergunta, lembro-me de cor: será que o jornalismo confiado à área cultural não cumpre o seu dever na íntegra ou os termos “jornalismo cultural” é que não se adequam à nossa realidade? Manjate respondeu como pôde, de acordo com a sua longa experiência e convicções. Mas não satisfez à minha vontade de aprender, por isso, volto à carga para um diálogo mais abrangente, com ele e com todos interessados no assunto.

Sempre fui céptico em relação aos termos “jornalismo/ jornalista cultural”. De há uns anos para cá, vou-me convencendo a cada dia que falar de jornalismo cultural, no país, é uma fraude. Na minha percepção, temos, sim, um jornalismo artístico, esse que, bem ou mal, cobre eventos de arte. Bem dito, parece-me haver uma tentativa de reduzir a cultura às artes, ou seja, muitas vezes chamamos cultura às manifestações que cabem neste campo, o que me parece grave, pois, por isso, exigimos ao jornalista que faça o que, na verdade, se calhar, nem é a orientação que tem ou que se pretende.

Se assumirmos que a cultura é um conjunto de património que envolve Desporto, Sociedade ou mesmo Política – algumas editorias dos jornais –, e não apenas artes, então o jornalismo cultural é feito a vários níveis diariamente. Mas não me parece que seja este o assunto em causa. Logo, estamos a discutir o quê, afinal? O que pretendemos, quando exigimos da media um bom jornalismo cultural?

Não poucas vezes, os maiores críticos do profissional que apelidamos “jornalista cultural” são os artistas. Os argumentos que eles trazem, amiúde, têm que ver com a fraca cobertura dos eventos artísticos. De facto, isto é aborrecido para os que enlevam a cultura por via da arte. Eu entendo-lhes e aceito que há muitas batalhas por vencer até erguermos uma indústria artística forte. O que repudio é essa tentativa de se colocar toda culpa atinente à fraca divulgação/ cobertura dos assuntos artísticos aos jornalistas. Se o nosso teatro está fraco, em termos de visibilidade, por exemplo, não é responsabilidade da media. Se o nosso teatro está fraco em termos de projecção interna deve-se a alguma coisa que os actores, encenadores e etc. não conseguem fazer, que Gilberto Mendes consegue. Atenção: não estou a sugerir que todos os grupos façam um teatro à moda Gungu. Nada disso. Até seria terrível. Diria apenas que os grupos devem fazer muito mais para se imporem sem pieguices. Não digo isso porque estou consciente das dificuldades que lhes afectam, tal como estou consciente do que restringe a cobertura de eventos artísticos a um alto nível (temos de falar destes boicotes). Melhor dizendo, do mesmo jeito que os artistas que tanto criticam os jornalistas têm dificuldades (por exemplo, de lançar um livro), estes também têm. E não são poucas. Para começar, as redacções que conheço não têm jornalistas culturais, na prática, mas jornalistas, que podem cobrir escultura, cinema, literatura, futebol, basquetebol, discussões na Assembleia da República ou um acidente. Tudo depende de prioridades e penso que devemos aprender a lidar com isso sem que nos aborrece. As redacções não estão obrigadas a ter as mesmas prioridades que os artistas e nem o inverso.

Melita Matsinhe, à imagem de muitos, no painel subordinado ao tema “Conteúdos de arte na mídia: estética vs recepção”, no Seminário de Jornalismo Cultural, condenou e bem o facto de muitos jornalistas “chaparem” nos jornais tal e qual o comunicado de imprensa que recebem. Há quem chama isso de preguiça. Aliás, a quem chama ao facto de se publicar um comunicado de imprensa no jornal um acto de preguiça, ainda que o jornalista reescreva. E se eu acrescentasse: é um acto de cansaço? Pensemos num jornalista que cobriu um incêndio logo cedo, depois, à tarde, um acidente, e, no fim do dia, um briefing da polícia. Deve ser condenado se, almejando divulgar um evento, já exausto, apenas insira na sua página o comunicado de imprensa sem contactar os artistas? Se o jornalista em causa, exausto, nem publicar esse comunicado, será menos criticado por isso? O que mais vale para o artista, é o comunicado divulgado ou é o texto bonito que fica por sair?

Antes de condenarmos os jornais ou os “jornalistas culturais” devemos nos preocupar com um problema maior. Primeiro, devemos aprender a fazer este tipo de pergunta: que tipo de jornalistas artísticos (e se for cultural também podemos dizer) precisamos? Segundo, como fazemos para os ter? Temos, nas diferentes instituições de ensino, a formação de “jornalistas culturais”? É necessário ter?  Qual é a base do problema, afinal?

Como disse uma vez, antes de uns e outros atirarem-se pedras, devem aproximar-se e discutir o problema com debate sério. E o ponto de partida até pode ser com pergunta: como podemos, juntos, reverter o cenário que nos abala? O Seminário de Jornalismo Cultural é um princípio, mas não será suficiente se de lá não saírem ecos. A discussão deve continuar fora, e é preciso envolvermos escolas de jornalismo e aqueles que na Tempo, n’O País Fim-de-semana ou no Notícias conseguiram contornar todas as dificuldades e marcaram épocas. Um eterno reconhecimento a Albino Magaia, Luís Carlos Patraquim, Calane da Silva, Gulamo Khan, Mia Couto, Nelson Saúte, Marcelo Panguana e tantos outros.

Devemos envolver mais pessoas, permanentemente, nesta discussão, de peito aberto; devemos continuar a produzir arte até que o Ministério da Cultura deixe de ser apenas uma instituição política, para passar a ser o pilar das manifestações artísticas do país; devemos continuar a produzir mais pessoas cultas, amantes das artes. Se a Gazeta de Artes e Letras da Tempo foi o que foi, em grande parte, deveu-se ao facto de os artistas terem-se apropriado da revista, com mérito, talento, paixão e pujança, inclusive, como jornalistas. Nós, os artistas de hoje, estamos a fazer o mesmo? Ou confiamos a função a qualquer Remédios que nos aparece pela frente? Se eles não conseguem fazer o que gostaríamos que fizessem, então que sejamos nós próprios a fazer o que deve ser feito.

Estamos numa sociedade de trocas de favores: materiais, de influência política, promocional e por aí fora. 

Daí que…

As empresas e instituições de referência na praça, vão empilhando sucessivos pedidos de patrocínio, solicitados pelos mais variados motivos. Jornadas de limpeza, edição de revistas, encontros desportivos ou culturais, comemoração de datas, homenagens a personalidades e por aí fora. Grande parte das cartas, apenas são lidas no sector de marketing ou na secretaria, antes de engrossarem a pilha que nem resposta formal merece.

Há casos de corrupção, nua e crua. O interessado tem um padrinho no marketing de uma grande instituição, faz uma aproximação com o sector que “aconselha” o chefe (quando este não está no esquema) e envia um pedido que representa o dobro ou triplo do que necessita. Escusado será dizer que nestes casos o patrocínio, após ser concedido, reentra para alguns dos bolsos dos que autorizaram.

Mas o notório é que a aquiescência depende mais de quem pede do que se pede. A assinatura da carta ou um telefonema, pesam mais do que o “móbil” do pedido.

Está claro que há acções, por exemplo na área literária, que não podem avançar, devido a uma cada vez maior ausência de hábitos de leitura. Dinheiro para o frango assado ou a cerveja média, rebuscados os bolsos, vai aparecendo. Mas para adquirir um livro ou mesmo uma revista…

 

O drama de vender um monstro… sagrado

Um episódio que consubstancia o que atrás digo, nunca mais me saíu da memória. Foi em 2005 quando lancei o Livro “O Monstro Sagrado” em homenagem a Mário Coluna. Cerimónia no Cine África, com a presença do então Presidente da República Joaquim Chissano.

Imprimi 5 mil exemplares, levei mil para a cerimónia. A sala estava cheia. Venderam-se apenas 40 exemplares, a maioria a partir do ciclo de dirigentes que rodeavam o Chefe de Estado e que queriam ser vistos a pedir o autógrafo ao Monstro Sagrado.

Veio então um verdadeiro dilema: como e onde colocar os outros? Fez-se a distribuição de uma porção pelas papelarias e pelo país fora. O resto?

Aconteceu então o inimaginável. Fiz um telefonema para um dirigente que tinha estado no lançamento, o qual confirmou que comprou a obra, “mas que ainda só tinha dado uma vista de olhos”. Porém, disse que a sua instituição poderia adquirir uma boa quantidade para ofertas, de forma a que os jovens passassem a conhecer a vida de um dos maiores desportistas desta terra.

Tudo acordado, recebi o cheque e fui entregar as obras no local indicado. Semanas depois, com certa mágoa, constatei que os livros “O Monstro Sagrado”, apesar de já pagos, continuavam nas caixas, intactos.

Não sei se ainda lá permanecem…

 

A morte do curandeiro

Bava Mugubuzi. Assim chamavam o grande curandeiro da aldeia Gubuzi. Homem cheio de dinheiro, esposas, hortas, gados e empresas, mas tudo era diabólico. O homem

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