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João Cabaço

Escrevo debulhado em lágrimas. Oiço repetida e obsessivamente “Mamana” de João Cabaço. Uma vetusta gravação, realizada nos exultantes anos 80, em Berlim, na companhia de Hortêncio Langa e de Arão Litsure. Ouvi esta música durante esta tarde e comovi-me até às lágrimas. Oiço-a agora, que já anoiteceu. Choro de novo. Paro para chorar, continuo comovidíssimo. Ouvir o João cantar “Mamana waku hi xicuembo xa misava!”, naquele tom único da sua voz, naquele falsete, depois de um longo assobio, de cerca de um minuto, provoca um terramoto emocional, até em corações precatados, e eu não sou nem tenho, definitivamente, um coração prevenido.

Certamente que a plateia que o aplaude, em Berlim, não percebe o que ele diz, mas percebe aquilo que a música tem de mais universal: o sentimento. Este sentimento que perpassa por esta fissurante interpretação pode traduzir-se em todas as línguas do mundo. O João Cabaço morreu no dia 26 de Abril de 2016, faz, esta quinta-feira, 2 anos. Nunca tive esta música em disco ou em cassete, o que era usual naquela época. Recebia-a, pelo WhatsApp, há dois anos, e quando a ouvi, de novo, diante da comoção da morte do João, tive um grande sobressalto. Foi na rádio, quando só havia Rádio Moçambique, que eu a ouvi pela primeira vez e todas as primeiras vezes que se seguiram. Nunca a ouvi pela segunda vez. Não era possível. Não se ouve pela segunda, terceira ou quarta vez esta música.

Ouve-se sempre pela primeira vez. Cada vez que a oiço colhe-me e tolhe-me de surpresa. A magnífica simplicidade desta música: a letra, a composição e os arranjos sofisticados. A sua altíssima dimensão e densidade, a sua beleza e o seu conteúdo fortíssimo. Vi o João cantar esta música, com o Arão e o Hortêncio, ambos tocando guitarras acústicas, e ele nas congas. O João era um homem alto, bonito, imponente. Simpatiquíssimo. De uma humildade arrebatadora. Quem não o conhecesse, quem não o tivesse visto a cantar, quem não o ouvira, jamais poderia imaginar que estava diante de um músico genial. O João tinha um grande talento e passou ao lado de uma brilhante carreira.

Provavelmente, porque nasceu num país onde não é possível ser-se grande. Provavelmente, porque o génio dele dava para isso mesmo – para descurá-lo. A humildade do João Cabaço até hoje me espanta e aborrece: como ele desperdiçou a voz, o talento? Fui amigo dele. Mais do que amigo – um admirador. Ele era um gigante. O seu talento não desmentia a sua altura. Visitou-nos, algumas vezes, na nossa casa, quando vivíamos na 24 de Julho, em meados dos anos 90.

Passava para conversar. Ficávamos ali, diante de um copo de uísque, a falar. Incitava-o a gravar, a fazer um álbum que merecesse o seu extraordinário talento. Ele sorria. Tinha um sorriso que poderia parecer mefistofélico, mas não o era. Talvez fosse timidez, penso a esta distância.

Brincava com o Irati, um miúdo que mal andava. Vivíamos ali, numa casa despretensiosa, com uma sala ampla, quase desprovida de móveis e recebíamo-lo de braços abertos e ele sentia-se em casa. O João era assim. No entanto, um grande senhor da nossa música. Um imenso senhor, digo. Afável, humilde, discreto. Amigo dos seus amigos. Ali estava, na nossa casa, o cantor moçambicano que eu mais admirava e admiro.

Desde sempre e para sempre. Não havia outro, era ele. “Mamana”, se ele não tivesse composto mais nada, se ele não tivesse cantado mais nada, seria o bastante para ele constar no armorial da música moçambicana. Aquele assobio inicial, de cerca de um minuto, as guitarras do Arão e do Hortêncio, a voz. Aquela voz. Aquela soberba voz. A grande voz de Moçambique. Ouvi-lo cantar era uma dádiva. Tínhamos de estar gratos por ouvi-lo. E chorar de emoção por estar diante de tanta beleza. O João cantava como quem sussurra. Por vezes, fazia aquele falsete, e, depois, aquela voz soberana. Ele falava da figura da Mãe como Deus na Terra, do respeito divino e amor superior pela Mãe, pelas Mães, ele advertia que devíamos amar as Mães, não as esquecermos, que dava sorte temer, venerar, amar as nossas Mães. Oiço esta música e sinto qualquer coisa que não sei descrever que não sinto em mais música nenhuma. Uma força interior, uma força da natureza, uma força telúrica que se expressa contida e numa voz maviosa. Contradição? Não sei. Sinto um apelo. Um fortíssimo apelo. Esta música é uma música de uma grande beleza, de uma elevação, de uma estética e poética improváveis. Temos de temer os grandes, dizia Cabaço. No sentido da cultura africana. Como respeito. Como veneração. Como deferência. Ouvi esta música, em lágrimas, a pensar também na minha Mãe. Estive com a minha Mãe no domingo numa galhofa inesquecível. Aos domingos, quando estou em Maputo, visito os velhos. Falávamos das mulheres que o meu Pai amou, das muitas que amou, e ele, poeticamente, com a resposta na ponta da língua: amei só uma e olhou para ela. A minha Mãe. O José Craveirinha disse-me um dia: um homem, para amar uma, tem de gostar de muitas. Nunca me esqueci. Citei-o e o meu Pai não poderia estar mais de acordo. Exultou. Então, para celebrarmos a vida, abri um vinho e brindámos aos seus belos 81 anos, bebi uma taça e ele persistiu no seu velho uísque. É uma bênção tê-los vivos, penso sempre: a minha Mãe a caminho dos 80, em Outubro, a despeito da doença que a debilita, inexoravelmente. Esta música e esta interpretação, neste registo que oiço e volto a ouvir, está para além do nosso entendimento, do meu entendimento cabal. É algo transcendente. “Ooohhh, Mamana waku hi xicuembo xa misava, wenê!!!” – canta o João. E eu ali, mirando a minha Mãe, e pensando que sim: a Mãe só pode ser isso. Mãe é Deus na Terra, Mãe é sagrada, Mãe dá sorte. A Mãe do João, de nome Hagar John Mfumo, teve muitos filhos. O João era o terceiro, entre os rapazes, o último dos quais é o André, que também é músico. Quer as meninas ou outros dois rapazes não serão músicos. O João era, sem o desprimor dos outros, o filho predilecto da Mamana Hagar. O João Cabaço era um grande cantor, um grande intérprete, um grande compositor. Oiço e volto a ouvir pela primeira vez este “Mamana”, na grande voz, na belíssima voz, do João Cabaço. Ele teve a fortuna que o destino impõe aos músicos moçambicanos – o infortúnio. Agora cobre-se-lhe um manto de esquecimento. É o que está escrito no breviário da moçambicanidade. A morte dele provocou, há dois anos, uma comoção displicente. Dois anos depois, a despeito da família, não o oiço referido. É um homem esquecido. O maior cantor moçambicano teve este destino. Tiveram-no tantos outros. Faz parte do dislate da pátria ocultar os seus melhores. A eles se reserva o opróbrio disjuntivo da indiferença. A mediania impera e ulula, no entanto. Prefiro estar na companhia dos expungidos. Dou-me mal com a enxúndia. Aqui fica este meu parágrafo, inclinado e compungido, para o João Cabaço, enquanto oiço comovido até às lágrimas, pela primeira vez, outra vez, “Mamana”, o mais belo tema da música moçambicana, na mais bela e pungente voz que alguma vez ouvi, entre nós.

 

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