Talvez começasse por vos contar uma história da escritora e dramaturga francesa Marguerite Duras e que foi o tema para uma curta-metragem.
A história tem como personagem principal um rapazinho, o Ernesto, que um dia fugiu de casa. A aldeia inteira foi procurá-lo no bosque que circundava a povoação e ao cabo de três dias de busca, três dias, lá o localizaram, numa barraquita construída no ramo de uma árvore. Mas ele recusa-se a descer da árvore. Nada o convence. Nem a família chorosa, nem o professor que lhe pede. Por fim o Ernesto lá aceita explicar que fugiu de casa porque não queria mais ir à escola. Reage o professor:
– Mas Ernesto, foi alguma coisa que eu falei? Alguma coisa que fiz? Explica-nos por favor.
E responde o Ernesto:
– Não quero ir à escola porque o professor só me quer ensinar o que eu não sei!
Ora, por muito “surpreendente” que isso possa parecer, é esta a missão das universidades, uma instituição que frequentamos para, exactamente, nos ensinar o que não sabemos! E a atitude do Ernesto é um mau exemplo para não se repetir.
Dizem-me que esta história do Ernesto é infelizmente actualíssima e que reflecte uma atitude espalhada entre muitos alunos e que muitos jovens só vão à universidade para obter os diplomas em vez de lá irem para consolidar os conhecimentos. O que é evidentemente o contrário do que seria desejável. A esta atitude junta-se outro perigo: hoje os jovens têm a ilusão de confundir comunicação com transmissão, e a net com o conhecimento, e por isso, ao julgarem-se apetrechados com um poderosíssimo instrumento de divulgação de conteúdos, que é o computador ou o ipad ou o cell inteligente, às tantas acham que podem ter menos empenho nas aulas que depois recuperarão pela net, fugindo de terem atenção aoque lhes é ensinado presencialmente. Como se a experiência de ter sarampo se pudesse explicar pelo telefone.
E se juntarmos essa atitude, à impressão de uma certa saturação de conteúdos que nos dá a internet, acabamos por ver estragada também outra qualidade essencial ao crescimento humano e cognitivo: a curiosidade.
Daí que muitos jovensacabem por dar mais importância, na cultura que absorvem por esses meios, às marcas de reconhecimento e só queiram assimilar o que é parecido ao que já sabem em vez de se abrirem ao questionamento que lhes podia chegar do encontro com o diferente.
Os jovens não deviam perder de vista o que dizia o pintor Picasso e que a vida nos ensina ser verdadeiro: que a juventude não é uma coisa que se tenha mas algo que se conquista.
Há certamente um terreno comum entre as universidades e o teatro, tal como eu o entendo.
O teatro é também uma escola de questionamento, e de sacudidelas nos hábitos adquiridos. É assim há dois mil anos e julgo que na sua expressão mais viva continuará a sê-lo.
E para ilustrar isto, vou contar outra história, que desta vez se passou com o dramaturgo Ionesco, um dos mais famosos do século XX.
Ora, uma vez este dramaturgo franco-romeno recebeu o telefonema de um encenador americano, de Nova Iorque, que lhe comprou os direitos sobre uma das suas peças mais representadas, O Rinoceronte, para uma produção a ser feita de imediato. (1)
O Ionesco ficou todo contente e convidou logo os seus melhores amigos em Paris para uma festa de celebração.
A peça de Ionesco conta a história de uma pequena comunidade, uma aldeia cujos habitantes estranhamente se vão transformando em rinocerontes.
Porque se transformavam as pessoas nestes paquidermes tão desajeitados? O rinoceronte é o mamífero com a pele mais espessa, e por isso nessa comunidade as pessoas iam-se metamorfoseando em rinocerontes por isso simbolizar o desinteresse crescente que manifestavam em relação ao que se passava com os outros(a sua pele tão rija já não permitia o contacto e a empatia faceaos outros), o que acabava por transformar-se em alienação, ou seja as pessoas acabavam por ficar indiferentes ao que se passava consigo mesmo.
Ora, neste Rinoceronte da peça de Ionesco vemos o contrário do espírito doUbuntu, do qual retiramos dois lemas para a vidae para o nosso relacionamento com a comunidade a que pertencemos e são eles: "Humanidade para os outros" ou "Sou o que sou pelo que nós somos". Já veremos o que tal implica em termos éticos e na importância que isso tem para a nossa prática teatral.
Por enquanto, realcemos como nesta peça as pessoas estavam tão egoisticamente isoladas na sua concha, tão absorvidas pelos seus pequenos interesses ou crenças que os outros e a comunidade deixavam de interessar-lhes. E o corno do rinoceronte ajudava a manter os outros à distância.Esta fábula faz todo o sentido em todas as comunidades cujos membros passaram a manifestar um alheamento ou umadesvinculação com o meio ambiente social que os rodeia.
Num mundo como o de hoje, que em alguns aspectos deu tais passos atrás que inclusive passou a caracterizar-se por uma grande intolerância religiosa, um aspecto que julgávamos afastado de todo, a peça do Ionesco, pode funcionar como um despertador, levando as pessoas a capacitarem-se de que para além dos ritos e dos credos à superfície há problemas comuns e insolúveis a todos os homense que isso é que afinal os une no núcleo problemático da existência: a morte, a dor e a fugacidade do tempo estão para além dos pequenos ganhos ou derrotas parcelares. Isto é, a peça podia ajudar os espectadores, fechados na concha das suas diferenças, a darem o passo obrigatório no caminho da abertura e do “senso comum”, enveredando pelo que é mais rico na humanidade: Pensar colocando-se no lugar de outro ser humano.
E é este um dos valores da arte: reforça a empatia (que é esta qualidade de nos identificarmos com aquilo que o outro sente), que é igualmente um dos valores do crescimento segundo o Ubuntu.
Mas prosseguindo, como contei, na peça O Rinoceronte assistimos ao drama de uma personagem, o Béranger, que vê que a todos os seus amigos nascem pequenos cornitos na testa antes de se transformarem em rinocerontes. E o susto dele é o de todo o humano que vê que a dimensão humana em seu redor começa a rarefazer-se e que em vez disso impera um comportamento bestial e uma quebra dos valores humanitários.
Daí que a fábula de Ionesco seja uma peça do século XX mas também uma peça de sempre.
Porém, aconteceu outra coisa inesperada durante a encenação da peça de Ionesco em Nova Iorque.
Está um dia o Ionesco a tomar um cafezinho com o seu amigo Beckett, outro grande dramaturgo, e o seu amigo Cioran, um filósofo, e recebe um telefonema do encenador americano, que começou com grandes rodeios.
O Ionesco percebeu imediatamente que havia ali milando e incitou o outro, Desembuche homem! E o americano lá contou que estava enrascado. Mas qual é o seu embaraço, esteja à vontade!, vociferou o Ionesco. E lá gaguejou o americano para explicar que na transição do segundo acto para o terceiro acto, na peça, o Béranger, preocupado com o silêncio do seu melhor amigo ia a casa deste sem o avisar previamente que lá iria ou pedido autorização para o fazer…Ao princípio Ionesco não compreendia qual era a confusão do americano até que se lhe fez luz e qual era a razão pela qual o encenador americano havia tido de contratar um escritor para reescrever a transição do segundo para o terceiro acto da peça segundo os costumes americanos.
É que para um americano, era inaceitável, absolutamente impossível que alguém fosse a casa do seu melhor amigo de modo espontâneo, de surpresa, digamos, sem telefonar antes a perguntar se podia lá passar.
O Ionesco enquanto ouvia a explicação do americano bebeu ao balcão um copo de vinho, para digerir aquele completo absurdo.E quando chegou à mesa dos seus amigos, Beckett e Cioran, desabafou, Estes americanos são doidos, para eles é normal, faz parte da ordem das coisas, que haja uma comunidade onde crescem chifres de rinoceronte aos seus membros, isso está dentro da razão poética da peça, mas que alguém possa ir a casa do seu melhor amigo sem avisar é inconcebível! E muito riram os três!
Esta incrível história do Ionesco, do enredo da sua peça, e do modo como esta foi recebida na América permite-nos perceber as várias dimensões que uma peça de teatro possa ter.
O teatro é em primeiro lugar uma escola de questionamento, ou seja, o teatro sempre agiu como um espelho face à sociedade em que se movimenta, mas é um espelho muito próprioque interpreta o mundo e interroga os seus hábitos e fundamentos.
Por exemplo, as culturas costumam naturalizar coisas e práticas que são apenas convenções mas que o hábito transformou em dogmas e valores tradicionais inquestionáveis. Como se pode ver por essa convenção americana de que uma pessoa não pode ir a casa do seu melhor amigo sem o avisar primeiro. É uma convenção, que não existe noutros países, entre nós e nos latinos, por hipótese, mas que os americanos naquele momento transformaram em lei. Ou o modo como os moçambicanos vêem a coruja e o mocho, criaturas eternamente associadas à feitiçaria e ao mal. Mas que na Grécia são símbolos de sabedoria ou em certas zonas de Espanha símbolos da sorte. Bastou mudar de geografia e os mochos e as corujas saíram da alçada do mal e deixa de fazer sentido termos receio dessas aves.
Lembramo-nos aqui de um episódio passado com o mimo Marcel Marceau em Moçambique, quando cá veio fazer um espectáculo. A mímica é a arte de representar só com gestos e em silêncio. E o Marcel Marceau, naquela peça, queria significar que o homem que ele representava ia crescendo e ia colocando a mão na horizontal e em escadinha para indicar que o homem ia crescendo. Diz-me um popular no fim, no átrio do teatro, Gostei muito, mesmo quando ele esticou a mão na horizontal, para nosir dizendo que o cão ia crescendo… é que aquele cão parecia mesmo um homem. À noite eu contei esta observação ao Marcel Marceau, e expliquei-lhe que aqui o código era diferente e que para se indicar que um homem cresce se coloca a mão na vertical. O mímico fartou-se de rir com esta diferença entre as duas culturas e no dia seguinte, ao repetir o espectáculo colocou a mão na vertical para indicar que o homem ia crescendo. E foi uma explosão de palmas porque havia um europeu que compreendia que um homem só pode crescer na vertical.
Ou seja, como se diz num ditado chinês, o problema que atribuímos às coisas não está nas coisas mas no que pensamos sobre elas.
Hábitos. O teatro ajuda a quebrar hábitos, porque leva as pessoas a interrogar-se sobre as regras que a mentalidade de cada momento convencionou e transformou em hábitos, em leis, em não-ditos. E na extensão disto, o teatro é, sempre foi, um lugar para a crítica e a liberdade de pensamento.
Nesse aspecto é um discurso sobre o mundo e muitas vezes entra em choque com os dogmas e as maneiras de ser dominante ou contra os poderes. Como dizia o Bertolt Brecht, ao teatro cabe divertire esclarecersobre o que está oculto atrás das aparências que regem a dinâmica da vida social, mas nenhuma destas duas dimensões pode amputar ou anular a outra.
Esclarecer, ou seja traduzir através de situações dramáticas os males que fazem adoecer a vida colectiva, ou que nela entravam, estorvam,o sentimento da humanidade.
Todas as peças importantes no vastíssimo repertório do teatro têm características idênticas à peça O Rinoceronte, i.é, reflectem situações e conflitos que são comuns a todas as épocas e lugares e daí a sua universalidade.
Ainda o ano passado estreámos uma peça de um autor do século XIX,Ibsen, e que se chama Os Pilares da Sociedade. A acção da peça passa-se na sociedade norueguesa de há 150 anos mas o seu problema central, os malefícios que nascem quando a mentira e o segredo ou a falta de transparência se tornam constitutivos do Estado, era tão próximo dos nossos problemas actuais e de tudo o que padecemos por causa das célebres “dívidas ocultas”, que apresentar esta peça tornou-se obrigatório para nós. Nem precisámos de a adaptar aos dias de hoje, as pessoas faziam imediatamente a relação. Era o nosso diagnóstico como membros empenhados da sociedade civil.
O teatro já conheceu muitas épocas de obscurecimento e de repressão. Na Idade Média,
o condicionamento religioso sobre os homens era tão grande que inclusive os plebeus eram proibidos de contar os seus sonhos, pois consideravam-se os sonhos uma espécie de canal privilegiado para a comunicação com Deus e então contar os sonhos estava reservado às altas figuras do clero. No teatro só se podia adaptar as parábolas bíblicas. Mas mesmo então havia o Carnaval, que era um período de excepção e no qual o povo podia dar azo à necessidade que tinha de mascarar-se e de fazer do mundo um teatro, onde as hierarquias eram subvertidas e se podia ser o mais crítico possível para com as classes dominantes. E nessa época havia igualmente a figura do bobo, um histrião, que assumia o seu papel para, no meio das piadas, dizer na corte tudo aquilo que era proibido aos outros mortais. O bobo, como se estivesse no palco, tinha o seu traje especial que o projectava imediatamente num espaço de fantasia, para além do real, sendo, como quem não quer a coisa, o mais críticoobservador dos costumes e o mais sarcástico “conselheiro” do rei.
Esta passividade face ao poder, foi mudando com o período da Renascença e, no século XVIII, o pensamento social tornou-se mais irrequieto e começou a impor-se uma necessidade de reformas. Então nasceu uma ideia que galvanizou o pensamento humanista,acabando por determinaras mudanças sociais nos últimos três séculos.E o franco-romeno TzvetanTodorovdefine assim essa ideia:“desde essa época – diz ele -pensamos que a vocação do ser humano exige que ele aprenda a pensar por si mesmo, em lugar se contentar com as visões do mundo previamente prontas, encontradas em seu redor”. (2) Por isso estamos aqui hoje na universidade, se vivêssemos há três séculos atrás seríamos pastores e não sairíamos dessa condição.
Ou seja, desde então as dinâmicas sociais perseguiram três vectores de desenvolvimento humano: uma melhor educação que faça o homem superar-se, uma maior dignidade resumida numa igual liberdade e oportunidade para todos, e uma racionalidade que não secundarize a emoção e que permita ao homem tornar-se adulto e autónomo. Com mais ou menos pincelada à esquerda e à direita, este acabou por se revelar um projecto irrenunciável para o homem e por permitir grandes conquistas na esfera social.
Este fundamento político acabou igualmente por ter uma enorme influência na evolução da arte e também na do teatro. Toda a arte que ao colo das Vanguardas artísticas abalou todos os conceitos durante século e meio, depois da segunda metade do século XIX, bebeu ainda dessa fonte que se chamou O Iluminismo, e onde até se inventou um antepassado para a internet: as enciclopédias.
Se acrescentarmos a este movimento do espírito que o teatro se define pela prevalência de personagens e pelo modo como apresenta no palco experiências singulares que pela força do seu drama ou conflito se tornam universais, compreendemos o papel político e mesmo ético que o teatro ganhou nestes últimos dois séculos.
Porém, ao perseguir este ideal muitas vezes o teatro chocou com as forças do poder e com os limites que a censura lhe impunha.
Os membros do teatro, que são sempre utópicos e sonhadores, viram-se muitas vezes censurados nas suas realizações e viam o poder mesquinho a distorcer as suas produções, impondo-lhes cortes e destruindo as mensagens das suas peças. Porque o poder estava consciente da capacidade de propaganda do teatro e sempre procurou abafá-lo ou servir-se dele para impor mensagens menos nobres eque só tinham por intuito perpetuar sem mudanças o estado das coisas.
E esta censura camufla-se de muitas maneiras. Na Inglaterra do século XVIII havia um censor oficial, chamado Lorde Chamberlain, que tinha o poder de proibir “quantas vezes ele considerasse pertinente” qualquer peça dramática que se “apresentasse para fins lucrativos”, censura económica que conduzia rapidamente ao fim das companhias de teatro que fossem críticas em relação à conduta de quem governava o estado das coisas. E assim se fechavam teatros, ou se apoiavam outros que só se dedicavam ao divertimento mundano e ingénuo, que vive do trocadilho e da piada fácil.DaríoFo, um grande dramaturgo italiano e prémio Nobel, conta-nos como a ETI, o organismo de Estado que geria, e gere ainda, o circuito das companhias pelas principais salas italianas excluía a sua companhia dessas salas de teatro, sem uma palavra de explicação. Salvou-o da penúria o dinheiro do Nobel. (3)
Esta camuflagem da censura pode adoptar outras máscaras e exercer-se em nome de princípios religiosos ou morais (ou antes moralistas, porque o moralismo é um abcesso da moral, que é uma coisa sã e necessária); censura-se em nome de supostos costumes ou por a peça melindrar certos dogmas políticos e religiosos.
Ou podíamos falar também de outro prémio nobel, o dramaturgo nigeriano YoleSoyinca, perseguido por causa das suas peças e quase morto. E não devemos deixar de fora uma menção ao sul-africano Atole Fugart,encenador, dramaturgo e escritor que fustigou sem descanso o regime do Apartheid, através do Teatro, o qual, pelo seu lado, encarcerava os seus companheiros e os actores negros da sua companhia.
Ao mesmo tempo, nesta guerra, os grupos de teatro também multiplicavam as estratégias para fugir à censura. Quantas vezes, para que as peças não fossem censuradas, muitos grupos recorreram ao artifício das fábulas e usavam animais no lugar dos personagens e assim as peças conseguiam passar sem receber os chamados "cortes", ou serem mesmo submetidas ao cancelamento das peças. Outros grupos usaram e usam máscaras para caracterizar elementos do governo, das elites políticas e religiosos, e como com as máscaras o trabalho de representação que se faz é sobretudo sobre o tipo ninguém se sente melindrado pessoalmente.
E às vezes os poderes são cegos na sua sanha de exercerem a censura. Em Espanha, no período da ditadura do Franco, havia argumentistas e dramaturgos de direita contratados para mudarem as falas dos filmes e de algumas cenas teatrais mais incómodas. E havia situações que estavam proibidas de serem mostradas no palco ou nos filmes, que vinham da América. Aí, com muito profissionalismo os censores mudavam então a história e a condição das mulheres adúlteras que eram convertidas em irmãs dos amantes. Para censurarem a menção ao adultério, em Espanha multiplicavam-se os incestos nas salas de teatro e nos cinemas de um dos países mais beatos do mundo. (4)
E outros exemplos podiam-se dar da perseguição da censura, das suas contradições e até da sua loucura.
Raramente, mas também acontecem surpresas inesperadas, com os censores. O Czar da Rússia, que fazia parte da comissão de censura, achou muita graça a uma peça do Gogol, que nós representamos o ano passado O Inspector, e que aborda o problema da corrupção que contaminava de forma transversala sociedade russa. O Czar, para horror dos outros censores, sentiu que a peçaretratava de forma verdadeira os seus subordinados e o Inspector acabou por inspirá-lo a fazer algumas reformas que minimizaram o problema da corrupção.
Vê-se assim que o teatro tem sidoatravés dos tempos um laboratório onde se examina e se faz o diagnóstico dos sintomas sociais e os seus temas são como os andaimes que ajudam a construir um caminho. Mas é nosso dever nunca nos esquecermos que dramaturgos importantes como AlfredHutchinson ou Lewis Nkoski foram obrigados a fugir da África do Sul para não serem mortos pelo regime do apartheid e que a censura teatral é sempre fundamentalmente um acto político contra os indisciplinados e os elementos criativos da sociedade, que usam o teatro como instrumento para a mudança.
Porém, é indiscutível que se o Teatro tem um poderoso impacto como correia de transmissão – quer para os valores, quer na crítica a comportamentos, inspirando ao mesmo tempooutras formas de resolução dos problemas -, isso se deve à sua própria pertinência antropológica. Não é por acaso que nos grandes momentos de abertura ao humanismo no mundo, na Antiguidade Clássica, como na Renascença, ou em todo o século XX, e também aqui ao lado na África do Sul, o teatro foi um meio de expressão privilegiado.
Repare-se, quer na Atenas de Péricles, na Renascença do Século de Ouro espanhol ou na do período do teatro isabelino em Inglaterra, que nos deu Shakespeare, ou na Paris de todas as artes da primeira metade do século XX e onde começou a germinar a queda do colonialismo, verificava-se a mesma preocupação, o desejo de saber até onde o humano podia ir no bem e no mal, na poesia ou na denúncia, no sofrimento, na submissão ou na revolta, face aos poderes que esmagam o homem ou que o ameaçam.
Por isso o teatro é imperecível e retorna sempre, mesmo que por vezes seja abafado.
Entre as qualidades, quase se diria hipnóticas, do teatro está a sua capacidade para produzir uma identificação entre as personagens e o público. Como se as personagem encarnassem as espectativas, as emoções e as decepções do público presente, e igualmente as suas ilusões.
Quando se realizaram as primeiras eleições democráticas no país, o Mutumbela Gogo produziu uma peça de teatro com o título "Vestir a terra". Essa peça foi traduzida nas várias línguas nacionais e apresentada em todo o País, nos distritos, nas línguas mãe de cada província, e foi apresentada em português sobretudo nas cidades capitais e nos países que faziam fronteira com Moçambique, aos refugiados moçambicanos que lá se encontravam para os persuadir a voltarem para Moçambique porque não haveria mais guerra.
Na peça havia várias cenas em que o público, empolgado, reagia de uma forma entusiástica como se aquela acção que se passava no palco fosse verdade.
Vou dar exemplos:
A Albertina e o José (marido e mulher), e os personagens principais da peça, decidiam voltar a Moçambique. Eles viviam num campo de refugiados na Africa do Sul em Gazankulo. O José tinha uma bicicleta, onde transportavam parte dos seus bens. Durante o caminho, apareceu um indivíduo que reparou que eles os dois eram novos naquela região e prontificou-se a ensinar-lhes o caminho, ajudando a carregar a bicicleta. Durante a viagem o individuo, que afinal era um ladrão, fugiu com a bicicleta.
O José pôs-se a correr atrás do ladrão. Aqui aconteceu o seguinte, tínhamos mais ao menos entre 300 a 350 espectadores, e sobretudo os homens, embora algumas mulheres também,puseram-se a correr atrás do ladrão aos gritos, apanhando pedras, paus para bater nele. Foi preciso levar um jipe que ali estava para apanhar o actor que era o Evaristo Abreu, senão este poderia ser morto!
Outra cena interessante na mesma peca: “Vestir a terra":
A peça falava sobre o regresso dos refugiados e informava que todas as crianças que não tivessem documentos ao regressarem a Moçambique poderiam requerê-los, aos documentos, para ficarem legais.
No final da peça, vimos uma fila enorme com as mães segurando os seus filhos ainda pequenos e perguntámos o porquê da fila. Então elas diziam que queriam registar as suas crianças para voltarem para Moçambique!
Quando falámos que não podíamos ser nós a registar, a população começou a ficar agitada e tivemos mesmo, em combinação com as autoridades do campo de refugiados, de simular uma lista com o nome dos pais das crianças e a localidade de onde eles eram oriundos, para, quando chegássemos a Moçambique, entregarmos essa lista às autoridades, como se esta servisse de um censo rudimentar, pois naquele tempo começava a fazer-se o registo dos refugiados que estavam fora, de modo a que as pessoas participassemnas primeiras eleições democráticas.
Como explicou há dois mil anos o Aristóteles, no primeiro manual desta nossa tradição de teatro, aquilo que é verosímil pode ser tomado por verdadeiro e o teatro vive desse jogo do “e se…”, é o jogo do “faz de conta”. E em nós africanos, por uma questão cultural, isso é inato. Aliás, refere-o Peter Brook, um dos grandes magos do teatro do século XX e que nos anos setenta fez com a sua companhia uma digressão pela África bantu, sobretudo pelas zonas campestres da Nigéria. E explica ele: «O Africano que foi criado nas condições do modo de vida em África tem uma compreensão altamente desenvolvida da dupla natureza da realidade. O visível e o invisível, e o livre trânsito entre ambos, são para ele, de modo muito concreto, dois modos de ser da mesma coisa. Algo que constitui a própria base da experiência teatral – aquilo que chamamos de faz-de-conta – é simplesmente uma passagem do visível para o invisível, retornando no sentido inverso. Na África isto é considerado não como fantasia, mas como dois aspectos da mesma realidade.
Foi isso que nos levou a África, diz ele, para termos a possibilidade de testar o nosso trabalho com o que se poderia considerar um público ideal».(5)
O Peter Brook intuiu aqui algo do nosso Ubuntu, mas voltaremos a isso depois. O que interessa agora salientar é que o teatro vive da verosimilhança das suas situações e da necessidade que as pessoas têm de ilusões. Da ilusão e mesmo de se auto-iludirem.
A este propósito há uma história deliciosa que se passou nos anos cinquenta com o dramaturgo de Nápoles,EdoardoFillipo, um autor muito popular na Sicília. E ele um dia a passear pelos bairros pobres de Nápoles viu que se fazia uma fila para se ir visitar uma certa casa, a pagar. E reparando que as pessoas riam muito enquanto estavam na fila, perguntou o que se passava. Explicou-lhe um popular que queriam ver todos o bebé que havia nascido naquela casa, que era muito diferente dos outros. Mas não lhe disseram porquê. E o EdoardoFillipo, curioso, embarcou também na visita. À porta eram recebidos pelo pai da criança, que cobrava 20 liras pela entrada. E afinal o que era o objecto de tanta curiosidade? Um bebé que os pais enfarruscavam de carvão para parecer que tinha nascido negro. O dramaturgo achou aquiloum acto pouco digno e foi perguntar ao pai, Mas tu não tens vergonha de quereres convencer toda a gente que és “cornuto” e que a tua mulher teve um filho com os estivadores do porto? Naquela época a maior parte dos estivadores do porto de Nápoles eram emigrantes negros. E o que é facto é que toda a gente saía da casa muito excitada por que o pai da criança eramesmo“cornuto”. E explica-se o pai da criança ao dramaturgo, SiñorFillipo, esteja descansado que nós todos os dias damos banho ao bebé!
Eis a necessidade de ilusão que é comum a todas as pessoas, ao ponto de não ser invulgar que as pessoas vejam não aquilo que os seus olhos vêem ou os seus ouvidos ouvem mas antes aquilo em que querem crer. O teatro também se serve deste ilusionismo e às vezes nos seus efeitos sobre o público de teatro não está distante do efeito placebo nos remédios, que funciona como um indutor psicológico para que o sistema imunológico reaja pelos seus próprios meios.
Assim age o teatro sobre a consciência do espectador, fazendo-o aceder a um novo ponto de vista sobre a realidade que o cerca de modo a que aja sobre ela de um modo mais lúcido.
Não vejam nisto qualquer arrogância, mas é de novo uma necessidade antropológica que nos move. Talvez nos ajude a pensar o que li há pouco tempo numa escritora portuguesa, a Silvina Rodrigues Lopes. Dizia ela: «Embora possa haver uma tendência das pessoas para lutarem pela sua servidão, o pensamento é uma força de resistência a isso, uma força de mudança. E as mudanças não decorrem de projectos globais e a longo prazo. Elas começam sempre “agora”, em tudo o que se faz, um agora que torna as memórias vivas, que nasce delas.» (6)
O que me agarrou neste parágrafo foi a frase inicial que diz o contrário do que é habitual. Lembremo-la: «Embora possa haver uma tendência das pessoas para lutarem pela sua servidão, o pensamento é uma força de resistência a isso, uma força de mudança.» Por muito que nos custe admitir, infelizmente, e misteriosamente para mim, a maioria das pessoas quer servir em vez de desejar ser autónoma. A única explicação é que a liberdade é um estado que dá muito trabalho. Contudo, o texto também nos lembra que devemos porfiar, insistir, na resistência.
E as mudanças – tal como esta autora preconiza, e issosentimo-lo na prática do teatro e constitui, de resto, uma das nossas maiores motivações – são conquistas a conta-gotas da seriedade e do empenho que colocamos em tudo o que fazemos.
Há uma tensão própria à actuação no palco que nos faz viver como actores não um tempo vulgar, amorfo, e ordinário mas um tempo de autenticidade e que se nos torna vital tanto no teatro como na vida. Um bom actor habitua-se a esta tensão e depois quer transportá-la para a vida, no sentido de em cada “agora”, em cada instante da sua vida procurar ser, como no palco, o melhor de si e não uma réstia de si.
É aqui que nós militamos, perseverando diariamente contra todas as dificuldades que se colocam às nossas produções mas obstinando sempre em dar o melhor de nós em cada instante.
Entretanto, o teatro é uma actividade cara e onde se tem de ser pragmático – isto é, o teatro obriga-nos a uma atitude ecológica, no sentido de em cada momento termos de adequar a nossa imaginação aos recursos que temos. Nós não fantasiamos coisas impossíveis de realizar, somos um caso de estudo sobre o qual os senhores da política se deviam debruçar, pois sabemos o valor da economia dos recursos e a nossa prática é uma actividade anti-perdulária. Mas é uma actividade cara, pois mobilizamos muita gente e muitos técnicos diferentes. Piora esta situação num país novo que não fez ainda o devido trabalho na formação de públicos ou de leitores, e onde não existe um circuito para a itinerância do teatro, uma das maiores urgências neste momento no nosso ramo. E assim fica mais difícil a uma companhia auto-sustentar-se. Nós criámos uma padaria e temos de bater a muitas portas estrangeiras para conseguirmos prosseguir a nossa actividade e temos tido algum apoio porque em todo o mundo desenvolvido se compreende que o teatro é uma ferramenta essencial para a formação dos valores de uma comunidade.
Quanto a apoios internos, em Moçambique não existem estes subsídios e criou-se em alternativa uma lei do mecenato em cima do joelho e com dificuldadesem ser aplicada, porque não está devidamente regulamentada. O que dá azo a episódios caricatos e que denotam como persiste ainda uma mentalidade antiga e que acha que as artes devem ser controladas ou serem cavalgadas por outros interesses mercantis.
Posso contar-vos alguns episódios caricatos.
Seria obrigação, das grandes empresas partilharem os seus lucros no desenvolvimento das artes e de outras actividades como o desporto, até porque pela tal "Lei do mecenato" as contribuições que as empresas fazem, os apoios em dinheiro ou em géneros contabilizáveis, são-lhes descontadas nos impostos. Há muitas formas de mostrar quem deu esse apoio de uma forma mais discreta, por exemplo, nos programas, nos agradecimentos feitos pelos apresentadores, enfim, existem mil e uma maneira simples para agradecer. Contudo, acontece, quando vamos assistir a um espectáculo, ou a uma exposição de pintura, cerâmica, escultura e outros eventos artísticos patrocinados, depararmos à entrada do evento com um festival de "banners", ou de bandeiras de grandes empresas, e nesse reclame tão aparatoso muitas vezes o artista que produziu a obra nem aparece num cartaz. Esqueceu-se quem ali é verdadeiramente o sujeito da acção artística, como se o artista fosse a cereja dispensável no bolo e não ao contrário.Esta agressividade, esta arrogância é constante, como se estivessem a fazer um favor quando afinal são os artistas que lhes dão oportunidade para deduzirem dos impostos.
Dois exemplos de arrogância: um patrocinador, sem avisar, quis entrar no teatro no decorrer de um ensaio e o porteiro do teatro disse-lhe que não podia entrar porque os artistas estavam a ensaiar. O porteiro ainda disse, educadamente, que os artistas precisavam de concentração e não podiam ser interrompidos, mas o senhor insistia em que ele era o patrocinador. O nosso guarda, pediu "o papel" que justificasse isso, e ele, patrocinador, disse que não tinha. O guarda, maroto, disse-lhe então, E como o senhor não tem carimbado na testa: Patrocinador, eu não o posso deixar entrar! Esta cena desnecessária, teve depois como efeito um certo atrito que teve de ser desmanchado. Uma inútil perda de tempo derivada da arrogância.
Um outro caso deu-se quando foi do lançamento de um livro que reunia a obra poética de Noémia de Sousa, uma empresa patrocinou e como sempre trouxe os seus banners, aliás com fotografias de uma jovem lindíssima, bem apetitosa como dizem hoje os jovens, promovendo assim deste modo inoportuno o lançamento do livro da percursora da poesia feminina neste país. Não admira que durante a sessão, um convidado da plateia tenha perguntado se aquela menina nos banners era a Noémia de Sousa quando jovem! Vejam o equívoco!
O que os patrocinadores deveriam fazer, era comprar livros para as várias bibliotecas espalhadas pelo país e comprar espectáculos para os trabalhadores da sua empresa poderem assistir, ou para as suas crianças, ou peças infantis para as escolas com difícil acesso. É o que acontece nos países nórdicos, nos quais o Estado ou as empresas compram à cabeça 400 exemplares de todos os livros saídos para as bibliotecas e escolas do país, ou patrocinam a itinerância de espectáculos para crianças e assim promovem o desenvolvimento e as indústrias culturais. Mas aí acredita-se que a cultura, os livros e o teatro, são formas de transmissão dos valores societários, e não coisas apenas de lazer periférico. E além disso não perdem tempo a gastar dinheiro em armas que aplicam nos bens culturais. Questão de escolhas.
O que é facto é que para que finalmente possa ter lugar uma verdadeira indústria cultural é necessário massificar o gosto pela leitura, pelo teatro, o gosto de ver exposições de pintura, cerâmica, escultura, artesanato, é necessário assistir a filmes e outras actividades, e tudo isto com uma consciência estética que só pode constituir-se se houver vontade política, escolas de arte com uma cultura de debate instalada, uma imprensa especializada e uma distribuição nacional para os bens culturais – condições que infelizmente estão por realizar. De novo, uma questão de escolhas.
Aquilo que, entretanto, nunca se perde, em relação ao teatro é a sua inegável magia. O teatro tem um aspecto mágico e lúdico.
Uma vez na peça adaptada do conto As mãos dos pretos, do escritor moçambicano Luis Bernardo Honowana, havia uma cena em que os actores imitavam os macacos, e desciam em cordas e faziam alguns malabarismos. Quando fomos apresentá-la numa província e num distrito, as pessoas juravam que eles, os actores, não eram pessoas de verdade. E teimavamem que aquilo que estavam a ver era cinema, de tal forma aquelas actuações dos actores lhes tinham parecidoincríveis, mais próprias dos “efeitos especiais” do cinema do que das possibilidades físicas de actores reais!
E a magia no teatro também é palpável nos seus processos de trabalho. Como encenadores e produtores também nós às vezes ficamos pasmados quando uma série de ideias descosidas que perseguiam uma visãoainda imberbe para o espectáculoganham uma inesperada conexão e tudo de repente se encaixa, quando minutos antes tudo parecia disperso e à beira de desmoronar. É uma coisa maravilhosa e não é raro que um espectáculo seja a soma impossível de muitas parcelas de improvisos falhados, de sismos emocionais e de dúvidas, que no momento exacto adquirem coerência, ritmo e unidade.
Há um desenhador e pintor japonês antigo, o Hokusai, e que tem um desenho que representa um pintor trabalhando. Este pintor maneja cinco pincéis ao mesmo tempo, um na mão esquerda, outro na mão direita, o terceiro entre os dedos de um pé, o quarto fixa-se nos dedos do outro pé, e ao quinto agarra-o com os dentes. Cada um dos pincéis faz um desenho por conta própria como se cada um dos seus membros vivesse num mundo paralelo. O pintor mostra-nos aqui o seu próprio método de trabalho, a sua agitação interna, uma espécie de desorganização voluntária e da qual podem nascer nós, tramas, tensões, encontros imprevistos? Não se sabe, mas o Hokusai foi autor de trinta mil quadros e gravuras e cultivou muitos estilos, tantos, que até assinava com múltiplos nomes. E como ele escrevia também, no fim da vida escreveu, com 89 anos, escreveu um haiku, que é um tipo de poema japonês que só tem três versos, e que dizia assim: “Escrevo e risco, rasuro/ Reescrevo e risco, rasuro/ E eis que desabrocha uma papoila” (que é uma flor). (7)
Este poema assemelha-se ao que acontece muitas vezes nos ensaios de teatro. Levamos dias a ensaiar numa direcção, depois apagamos o que foi escrito, ensaiamos noutra direcção, voltamos a ficar descontentes, e de repente desse chão cruzado de tentativas falhadas brota uma flor, quase sempre a certa, que é uma terceira situação que não tínhamos imaginado à partida mas que não surgiria se não tivéssemos ensaiado primeiro os“erros”.
E isto, que acontece em todas as actividades criativas, tem realmente algo de mágico, de assombroso e de inefável. Mas ao mesmo tempo só resulta como fruto do trabalho, é inútil ficar à espera da suposta inspiração. Esta só surge da intensidade do trabalho, do seu esforço. O que nos obriga a uma grande humildade e a um respeito disciplinador pelo método que afinal acrescenta ao jeito que possamos ter uma técnica que só pela insistência dominamos. O talento sem trabalho definha. E à medida que a qualidade do nosso trabalho aumenta também aumenta o nosso elo com o público e a transmissão da nossa energia funde-se com a do público que nos assiste.
No seu primeiro significado SÍMBOLO era uma espécie de anel que se partia em duas metades, uma parte ficava com o anfitrião que havia recebido alguém em sua casa, e a outra metade ficava com o hóspede, e quando se voltavam a encontrar as duas metades do anel voltavam a ligar-se e o anel ficava uno, selava aquela estima mútua. É uma ligação deste tipo que sentimos com o público, e não podemos defraudar a sua estima.Como se diz no Ubuntu que é, em suma, “uma forma ética de conhecer e de ser em comunidade”, como diz o seu lema,“eu sou porque nós somos”. Ou seja: eu existo para o outro, e só ganho identidade no reconhecimento mútuo. Tem de haver um respeito mútuo, não cego mas activo.
Esta consciência define uma ética, que é a análise do comportamento moral humano enquanto este se manifesta na prática. E oUbunturealça a importância vital do reconhecimento e respeito mútuos, complementado pelo cuidado e partilha recíprocos na construção de relações humanas.
O trabalho de teatro é um trabalho colectivo e ensina-nos, desde cedo, que dependemos uns dos outros e que um espectáculo é tanto melhor quanto, como se diz no futebol, a equipa se mostrar melhor do que a soma dos seus elementos.
Por isso nós, na nossa companhia de teatro, comungamos deste ponto de vista e achamo-lo vitalna formação do indivíduo em qualquer actividade, mesmo não sendo artística. A ética a que o Ubuntu nos conduz valoriza o homem, tornando-o íntegro, porque participativo, humano e justo, no rigor que coloca na sua participação da vida colectiva da sua comunidade. Não esqueçamos queno Ubuntu não coloca o indivíduo no centro da concepção de ser humano: “A pessoa só é humana – explica – por meio de sua pertença a um colectivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros” (8).Foi esta a ética que permitiu a Nelson Mandela encetar a “longa marcha da reconciliação” que impediu que houvesse uma guerra civil na África do Sul. A prioridade tornou-se o interesse colectivo, na sua expressão mais ampla.
Contudo, isto não deve ser lido como uma obediência cega e deve prevenir-se que ao indivíduo não são retiradas a autonomia e a iniciativa.O Ubuntu não contraria as coisas boas que nos chegaram de outras tradições, como a razão crítica, a qual não devemos descurar e que é um dos sentidos porque vocês estão na universidade, para adquirirem os instrumentos de uma razão crítica; o Ubuntu acrescenta a estas virtudes a dimensão holística da espiritualidade africana e uma maior atenção à comunicação interpessoal.
Daí que oUbuntu“seja uma expressão viva de uma alternativa eco-política” e também a antítese do materialismo e do cínico sistema capitalista em que nos mergulharam. A nossa maneira de ver mais íntegra está em maior consonância com a Terra, as suas criaturas e as suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte, e além disso respeita a uma Tradição que nos dignifica e que sem descurar o novo não deita fora o que nos tornava seres de partilha e de respeito mútuo, com o vivo e o morto e o não-nascido, que é o mesmo que dizer que nós crescemos a meio de um processo e que não devemos romper os elos.
Respeitar o público, dar-lhe o melhor de nós, para que uma corrente comum nos faça crescer conjuntamente é o “ethos” que nos guia no teatro. Nós temos obrigações para com a nossa comunidade social e se melhorarmos como actores sociais isso faz crescer também o nosso público.
Julgamos que esta nossa lição como actores face ao público não está distante das obrigações de um aluno para com os milhares de anos de investigação e de conhecimento acumulados que agora lhe são transmitidos na universidade.
É preciso respeitar o sacrifício, o esforço aturado desses ancestrais, nossos mentores, e não fazer batota com isso, tornando-nos efectivamente melhores, issoé o que nos garantirá o futuro.
É este o nosso apelo.
- Históriacontada no livroEntre la Vie et le Rêve/ Entretiens avec Ionesco, de Claude Bonnefoy, Paris, Éditions Pierre Belfond, 1966
- Todorov, Tzvetan, O Espírito das Luzes, Barcarolla, 2008
- Fo, Dario, Le monde selon Fo/ Conversations avec Giuseppina Manin, Paris, Fayard, 2008
- Informação colhida em Jean-Claude Carrière, A linguagem secreta do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2006
- Brook, Peter, Ponto de Mudança, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995
- in Lopes, Silvina Rodrigues, A Anomalia Poética, Lisboa, Vendaval, 2006
- Parágrafos inspirados num artigo de Eugénio Barba sobre o trabalho do encenador
- Extraído de IHU/ONLINE, n. 353, de 2010, revista do Instituto HumanitasUnisinos; número dedicado ao Ubuntu