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O que move “A adubada fecundidade”

O homem é uma criatura tão espantosa que nunca é possível enumerar todas as suas qualidades

Nikolai Gógol

 

A adubada fecundidade e outros contos. Este é o título de um dos livros de Dany Wambire, autor que aposta nas suas narrativas como quem prende, na escrita, a realidade de um território, os dilemas de um povo e suas vaidades.

Como calha em Retratos do instante e Outras coisas, de Clemente Bata, este livro de Wambire é algo fotográfico. Por isso, ao lê-lo capta-se o que vai ao ADN de muitos moçambicanos em determinadas circunstâncias, sobretudo as preenchidas por conflitos individuais e colectivos. Na verdade, aí encontra-se parte do motor deste livro, com estórias contadas num jeito engraçado e, às vezes, com desfechos exageradamente repentinos.

O livro tem na primeira narrativa, “Vítima da rede mosquiteira”, um pouco do que é recorrente, em termos estilísticos, noutros textos: o burlesco, o sarcasmo e a denúncia de atitudes além do razoável. Nesse texto inaugural, a trama envolve um gesto aparentemente benevolente: a doação de redes mosquiteiras a uma comunidade que, mais do que combater os insectos, quer mais é livrar-se da fome. Por isso, ao invés de usar as redes para prevenir a malária, por ser a falta do alimento o principal conflito, Gostavo, um despertador de consciências, pragmático à medida das suas necessidades, faz da doação um instrumento de pesca, para lhe resolver os problemas. Aliás, se, por um lado, os conflitos que as personagens enfrentam dinamizam as narrativas, por outro, à procura da solução é um factor igualmente predominante. Gostavo é um exemplo disso, mas existem mais personagens. É o caso de Josebela, em “O amor de Josebela e a absolvição de Gonsalvo”, menina desiludida pelo seu amor, que se vendo na condição de o perder para a prisão, depois de uma queixa contra ele, subverte a verdade para o salvar e, com isso, tê-lo para si intacto.

A mesma luta contra os conflitos que desaguam na busca da solução atravessam Criminosa, no texto “A adubada fecundidade”. A certa altura, a personagem vê-se casada, enfrentando a pressão de ter que engravidar sem que nada disso aconteça. Depois, Criminosa fica envolvida em mais um problema: o bebé tão aguardado chega, mas não mama, daí caminhar de curandeiro em curandeiro para ultrapassar esse impasse, produto de adultério confesso.

Se o maior conflito de Criminosa é salvar o seu bebé, no texto “Um gueto sem saída” a estória é diferente. Zebadjia, o protagonista, apenas deixa-se levar pela ganância: ser rico. Nisso, tudo o resto é posto em causa: valores morais e éticos, de tal maneira que, estando pobre, resolve vender até seu próprio filho.

Portanto, são os conflitos e essa procura de soluções, não poucas vezes desesperadas, que valorizam as narrativas de Dany Wambire (as tentativas de resolver os problemas ou a busca de soluções também norteiam e muito os protagonistas de Lucílio Manjate. Por exemplo, em Rabhia e A legítima dor da dona Sebastião). Desde a miséria à riqueza, da malandrice astuta à bondade ou das constantes relações entre o fantástico/ maravilhoso vs. ciência, que até constrangem o juiz em “A vítima da rede mosquiteira”, A adubada fecundidade e outros contos faz-se, igualmente, e isso até pode ser a consequência do enredo urdido, com a pretensão de mostrar o que o povo é capaz de fazer quando se sente enganado ou quando as instituições sociais estão desacreditas. O fim do meteorologista Jesustóvão, em “A imprevista previsão de tempo”, traz duas lições claras, precipitadas e fatais: não enganar como quem lida com tolos, mas também não tomar atitudes graves com a cabeça a ferver.    

Ao mesmo tempo, ler Wambire é mergulhar-se no fenómeno da apropriação literária no país. Afinal, em A adubada fecundidade e outros contos há uma intensa reivindicação a um estilo que se assemelha ao de Mia Couto, quer na atribuição dos nomes às personagens (Maventura Campestre, Cantarina, Cristoamo Martírio, Amargarida e Almerda) quer no discurso heterodiegético do narrador. A construção de máximas de belo efeito como “a chuva é Deus dos agricultores e Diabo dos pescadores” (p. 64); “a criança grita, o adulto é que chora” (p. 27) e ainda “muitos têm o problema de insónia. O meu é de insónhia. Sim, não consigo sonhar”, pode ser usado para essa comparação e para se perceber a orientação literária deste autor.

 

Título: A adubada fecundidade e outros contos

Autor: Dany Wambire

Editora: Revista Soletras

Classificação: 12,5

 

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