Houve um tempo em que os humanos eram livres de adorar os seus deuses sem entrar em conflito com outros humanos nem com outros deuses. Nesse tempo, também se tolerava a existência de humanos sem crença divina. Não havia imposições religiosas. Não havia escrituras sagradas. Não havia mandamentos ou fórmulas de como manifestar sua devoção a uma entidade divina.
Havia puramente uma democracia religiosa sob a qual os humanos se relacionavam pacificamente com diversas entidades divinas. Por sua vez, estes deuses venerados por humanos não clamavam monopólio dos céus, ainda que, de quando em vez, se envolvessem em conflitos de diversas ordens entre si. Os deuses politeístas aceitavam o pluralismo da sua existência e não viam nenhum perigo em ser devotados por um povo e ignorados por outro. Os deuses do antigo Egipto, Grécia, Roma, Nigéria, países nórdicos eram, por natureza, democráticos e tolerantes até que um dia emergiram deuses monoteístas prontos a reclamar o monopólio dos céus e da terra.
Nesta nova fase, a convivência entre deuses politeístas e monoteístas tornou-se insuportável ao ponto de despoletar uma guerra fria que envolvia os humanos. Povos abraâmicos e povos pagãos viram-se obrigados a envolver-se em guerras santas, os primeiros lutando pela nova monarquia religiosa e aqueles pela democracia. Foi esta luta que se desenvolveu e terminou com a diabolização dos símbolos e práticas do paganismo.
Com reputação maculada e sem mais o aparato humano para sua contínua influência no mundo, os deuses politeístas resolveram partir com todo o seu legado democrático. Abandonaram a humanidade sob a custódia problemática do monoteísmo. Desde então, a liberdade humana de adorar a múltiplas divindades foi escamoteada pelas escrituras sagradas abraâmicas que preconizam a existência e adoração de um e único deus. Este deus, para os cristãos, é Jesus. Os hebreus chamam-no de Javé. E os muçulmanos consideram-no Alláh.
Eis o novo conflito de supremacia religiosa que semeou ódio e menos paz no seio da humanidade. Os deuses monoteístas não aceitam a existência dos seus homólogos. Os deuses monoteístas são, por natureza, ciumentos cuja palavra de ordem é “amarás somente a mim, teu deus e único deus no mundo”. Nesta ordem ideológica, o sacrilégio capital que possa ser cometido contra um deus monoteísta é a idolatria. E, de modo que sua palavra fosse temida e obedecida, os deuses monoteístas intitularam-se proprietários de paraíso celestial que só e só se abre para os fiéis. Aos ateus, agnósticos e infiéis estão destinados a ser consumidos pelo fogo do inferno.
Ante esta dicotomia sobrenatural, o que se entende é que os crentes monoteístas não nutrem uma paixão moral pelos seus deuses. Eles seguem-nos muito mais pelo medo de inferno e desejo pelo paraíso privado do que pelo amor em si. Sendo assim, os humanos viram-se obrigados a aceitar os deuses monoteístas pelo bem da sua pós-vida. E aceitação é a condição sine quan non para admissão ao “reino dos ceús”, não importando sua dedicação ao bem e seu compromisso com o desenvolvimento da humanidade. Aos céus, não pertencem os virtuosos, mas somente os fiéis.
Sendo assim, o fiel que convencer mais humanos ao monoteísmo, mais se lhe abrem as portas do paraíso. Foi deste modo que a competição em converter humanos ao monoteísmo culminou no terrorismo do séc. XXI. Os infiéis, ateus, agnósticos e ímpios, sob a ditadura monoteísta, passaram a ter duas alternativas: ou convertem-se ou morrem. O princípio da terceira escolha é inválido. Somos nascidos dentro da religião.
Nem sequer nos é dado o tempo de aprendermos diversas religiões para, depois, escolhermos aquela que nos convém ser a palavra de Deus. Muitos de nós somos cristãos, muçulmanos, judeus, hinduístas, budistas, etc, mas não sabemos a razão de ser. Tudo quanto dizemos é que nascemos em famílias religiosas, sociedades religiosas e países religiosos. E, somos obrigados a ver o mundo na perspetiva destas religiões. A conversão religiosa passou a significar a alienação da mente devido à natureza das religiões monoteístas que é dogmática, universal, absolutista e prescritiva.
A democracia religiosa e liberdade do pensamento sobre o sagrado partiu com politeísmo e, tudo quando nos restou, é o terrorismo e a apelos impotentes para laicismo. Todavia, os homens ainda habitam num mundo de possibilidades. Se foi possível a partida dos deuses politeístas, é, também, possível a partida dos deuses monoteístas e suas escrituras plenas de ilogicidade que contribuem para benévolas e malévolas interpretações.
E se pesarmos o impacto empírico-existencial das benignas interpretações com o impacto das malignas interpretações em dois cestos da mesma balança, decerto que o cesto com impacto negativo terá mais peso que o outro. Em poucas palavras, a religião trouxe mais trevas ao mundo que luz. Basta lembrarmo-nos das inquisições da Igreja Católica. Quantas pessoas foram perseguidas e linchadas? Da colonização dos negros e índios, quantos povos foram massacrados e idiotizados em nome de deus? E o que dizer do islamismo que por meio do alcorão proliferou grupos jihadistas que já mataram milhões de almas inocentes e roubaram tranquilidade ao mundo em nome de Alláh?
Das contínuas guerras sangrentas entre cristãos e muçulmanos na República Centro Africana, Nigéria, Chad, Níger, Egipto, Somália, e noutros cantos do mundo, quantas crianças, mulheres e homens serviram de mártir por ideologias mortíferas? Quantos mortos? Quantos dispersados? E quantos fundos gastos que podiam ter sido alocados na educação livre do homem?
Uma educação livre capaz de levar o homem a fazer o bem sem temor a Deus é possível. E um mundo mais seguro, próspero e digno sem influências religiosas é humanamente possível de construir-se. Schopenhauer, Marx, Kant e outros filósofos com tendências iluministas já haviam previsto uma humanidade livre de partidos religiosos. Schopenhauer dissera que, na verdade, o homem quando quer praticar um crime, as primeiras considerações que faz são: há riscos de ser apanhado? E qual é a pena a pagar? Feitas estas perguntas, por última instância, é que se pergunta sobre aprovação do seu acto aos olhos de Deus. Isto nos faz perceber que tudo quanto um Estado precisa para diminuir crimes é a forte segurança e leis justas.
Na ausência destes dois elementos, o Estado torna-se caótico e pobre mesmo aglomerado de crentes. Que fique claro que minha tese não consiste em convidar os humanos a não mais crer em Deus, mas simplesmente a desligar-se de partidos religiosos que se arrogam dispor da verdade absoluta sobre coisa divina. Para crer, não precisamos de associações. Dentro de ideologias, os homens abdicam do seu direito de pensar e guiam-se cegamente por preceitos dogmáticos. Só com liberdade do pensamento é que somos capazes de conceber o verdadeiro Deus que procede em consonância com os valores mais nobres da humanidade: Sabedoria, Justiça, Temperança e Altruísmo. E, se por acaso, o ser que consideramos Deus nos obrigar a ir contra esses valores, temos de parar e reflectir mais uma vez sobre nossa concepção divina.