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O assobio do meu pai cantando “bazobuya” dos Soul Brother’s…

Hoje escuto “bazobuya”, dos Soul Brother’s, repetidas vezes porque nenhuma pilha gasto e nenhuma fita vou rebentar. A cassete dos Soul Brother’s tinha um espaço muito especial no estojo do meu pai. Debaixo da fotografia do grupo, na capa, vinha bem bordada a assinatura, em caneta de filtro, do meu pai e seis números divididos por duas barras anunciavam a data da compra.

A cassete era aberta com um password  de delicadeza e cuidado que só cabia nas mãos do meu pai. O velho tirava a cassete da caixa como quem tira a vida da caixa do tempo para vivê-la. Depois de tirar a cassete, elevava-a um pouco acima da cabeça e vigiava o seu interior; certificava-se, sempre, se havia entre os dois rolos de fita algum insecto ou poeira. Ali no meio da sala grande os Soul Brother’s soavam sem parar. E o velho, que ainda era jovem, costurava o passo que nunca saía pedalando o pé e acompanhava o grupo musical com seu saxofone feito de pequenos sopros de assobios.

Enquanto o “bazobuya” ressoava a sua esperança distante, o meu pai era como se lesse as barbaridades do apartheid no seu copo de vinho. De gole em gole o velho reconstruia sobre a minha total atenção os espectáculos dos Soul Brother’s, as origens de cada membro e as loucuras que alguns seguidores do grupo faziam na África do Sul. A narração do velho ganhava força em cada garrafa de vinho, vazia, que saía pela janela.

Escutar os Soul Brother’s ao lado do meu pai, era viajar no tempo que fazia esse grupo; era ter de lado uma máquina humana que traduzia cada palavra, cada suspiro, cada timbre e cada mágoa que preenchia o bater da nota. Meu pai, de quando em quando, pisava no grande botão azul escrito “Pause” e tecia uma explicação detalhada. Quando o homem, extraordinário, do piano punha-se a manusear a esperança que o seu grupo cantava, meu pai seguindo a sua velocidade, recitava a sua biografia e todas as suas técnicas em espectáculos…
“Bazobuya” é a canção que me resta de tudo isso. Sempre que quero economizar as memórias sobre o meu pai, coloco essa canção. E o que mais impressiona nessa canção é que oiço, dentro dela, o assobio do meu pai vibrando nas mãos dos seus lábios grossos e pintados de vinho. Essa canção é um ode ao regresso. Um pulsar vivo de quem espera e aguarda o regresso. E dói-me a alma ouvir essa canção sabendo que quem ensinou-me a vivê-la já não está aqui para juntos esperarmos o regresso dos outros; oiço essa canção e espero o regresso de duas pessoas: eu e o meu pai à sala grande de casa.

É doloroso como os insectos do tempo roem-nos as coisas mais queridas que temos. Quando ouvia “bazobuya”, com o meu pai, o tempo era apenas aquele espaço fixo e bem limitado: meu pai e música. Naquela altura aprendi a sonhar os sonhos do meu pai. Meu pai tinha o sonho de fazer uma fotografia com os Soul Brother’s e pela distância inexistente entre nós absorvi esse sonho. Também queria tirar uma fotografia com o grupo. E eu no meio para equilibrar a minha altura e deixar o flash da máquina brilhar em meu sorriso vedado por uma dentadura branca e incompleta nos cantos.

Tudo, hoje, pesa-me a memória. Os Soul Brother’s seguiram o mesmo caminho que o meu pai seguiu: foram à nascente do tempo. Cá estou sozinho, neste RELÓGIO DI ORO, órfão de tudo. Na sala grande de casa já não há concertos dos Soul Brother’s. O silêncio é o único piano amargo que se esconde nos cantos da casa. O escuro inunda a sala e tudo cheira a luto. Na parede a fotografia do meu pai é como se observasse, sem parar, a cassete dos Soul Brother’s cheia de poeira na estante…

 

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