Uns vencem pelos seus crimes, outros fracassam pelas suas virtudes
William Shakespeare
Mbate Pedro é daqueles autores que acredita, de forma peremptória, que a poesia é a mãe de todas as artes. Verdade ou não, esta crença faz sentido, afinal aquela manifestação literária está além do verso e da palavra proferida. Devido a essa omnipotência, encontramos resquícios da poesia na música, nas artes plásticas, no cinema ou num modo de vida. Isto toda a gente sabe. Mas o que faz de um texto poético isso mesmo e da poeticidade um percurso para encanto? Já houve infinitas discussões sobre o assunto e não é nossa pretensão retornar a essa discussão. Não hoje. Ainda assim, acreditamos que “a gravata preta do corvo albino”, secção referente a Mbate Pedro, na obra Os crimes montanhosos, constituída por uma outra, “o branco colarinho dos corvos”, de António Cabrita, é uma perfeita desculpa para quem julgar agradável o mergulho nas letras fazê-lo sem adiamentos.
Logo no princípio, a escrita de Mbate Pedro, neste livro, revela ânimo poético do autor, cuja característica fundamental encontra-se na tessitura de um enunciado que sugere muito e nada, simultaneamente. Há, no mínimo, duas formas de ler “a gravata preta do corvo albino”. Primeiro, buscando e medindo o significado de cada palavra invocada. Quem fizer isso, poderá cair na tentação natural de querer absorver os sentidos possíveis dos versos e das estrofes como se isso funcionasse como barómetro do que moveu o poema. Na verdade, a partir desse exercício introspectivo fica-se com a percepção de que a enunciação não é feita sobre um objecto, numa direcção temática a que um Sangare Okapi (em Os poros da concha) ou Hélder Faife (em DESdENHOS) nos revelam. Os sujeitos de “a gravata preta do corvo albino”, tão intrigantes quanto esse título, navegam em imensas marés, até onde não existe o sabor salgado da água. Então, nessa onda, numa única estrofe, são recorrentes elementos que activam sentidos, por exemplo, na segunda estrofe do poema inaugural: o olfato, a imaginação (chamaríamos a isso o sexto sentido?), a visão e outra coisa, o desejo. “multiplica e exala o aroma de Minkadjuine/ sobre a flor resplandecente do copo como/ corpo esfacelando o beijo (…) (p. 55)”.
Este é daqueles livros em que, permanentemente, nos perguntamos sobre o que se exprimem os sujeitos, os quais, fôssemos impressionistas, diríamos que não passam de uns altos vagabundos da palavra. Até podem ser, todavia, acima de qualquer adjetivação, está em causa, na segunda secção de Os crimes montanhosos, uma versificação consequência, quiçá, de uma vontade incalculável de se abraçar o mundo por via de predicados incríveis, a pasmarem-nos tanto quanto nos mantém em interrogação.
Segundo, podemos ler a escrita de Mbate Pedro, cuja cadência da métrica não cabe excessivamente no tamanho dos versos, sem darmos relevância aos valores semânticos. Com isso ganha-se o universo do poema na sua íntegra, sem a escolha de desconstruir o eu poético rumo à construção de um entendimento particular.
Como ocorre em “o branco colarinho dos corvos”, de António Cabrita, em “a gravata preta do corvo albino”, de Mbate Pedro, o valor da expressão está para além do universo interior do sujeito de enunciação, assenta numa dimensão feita de pormenores fragmentados: som, luz, escuridão, tesão e adeus.
Título: Os crimes montanhosos
Autor: António Cabrita e Mbate Pedro
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 15