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Queriam linchar King Jota e John Xpila

Pela madrugada, King Jota e John Xpila, viram que todas as luzes da zona estavam desmaiadas, então decidiram aterrar o seu voo conjunto na pista da porta da dona Salimina. Pareciam dois tripulantes vindo duma longa viagem. Sem perder tempo saíram da sua avioneta de medo e violaram a tranca da porta. O cadeado atirado ao chão parecia roupa interior feminina e o ferro aberto à força sangrava de ferrugem na areia.  Caminharam no quintal dobrando as colunas. Seus passos eram altos e logos. Eram atletas de salto em comprimento.

Apertaram os cintos dos passos como se estivessem ainda na avioneta. Era uma dupla que por onde passava, pela noite, era aplaudida por gritos de socorro. E como artistas em palco, eram jogados paus, tomates de fúria, bonecos de ferros e cartas de desespero. Actuavam sempre ao vivo. Além artistas e pilotos eram, também, físicos teóricos da desgraça; viram um fio eléctrico, com uma enorme curva no meio, atravessando uma das grades da janela; usaram a teoria electromagnética de Maxwell e calcularam com as suas línguas a radiação da carga eléctrica em movimento.
– “Me deu esticão um pouco. A energia está fraca. Aqui nesta casa acho que não roubam energia, meu bro” – disse John Xpila engolindo a saliva com migalhas de corrente eléctrica nas bolhas.

Pensaram em apropriar-me do fio eléctrico, mas um curto de circuito, interrompeu nas suas mentes, essa missão. Moveram seus corpos carregados de cicatrizes para a capoeira. Vigiaram o seu interior e descobriram um entulho de vazio. Foram a casa de banho e chocaram-se logo a entrada com o cheiro insuportável da latrina aberta. Com o polegar e indicador fizeram uma mola e taparam as narinas. Vasculharam com os olhos a casa de banho que era delimitada por paredes de sacos de arroz em estacas. Uma bacia com uma escova de dentes flutuando, um sabão ainda com bolhas, uma lâmina com pelos e um cinto no chão foi o que produziram naquele espaço.

A janela semiaberta viu crescer em si um buraco do tamanho da porta. Meteram-se pela janela e seus corpos diluíam-se, escondendo, na cortina de capulana. Com as suas camisas fizeram uma arca e encheram-na de bens e utensílios alheios: panelas, pratos, chávenas, sapatos, celulares, moedas, fogões e peneiras. Encheram a sua arca para depois embarcarem no dilúvio da partida.

Dona Salimina sentiu a sua cama movendo-se; pensou que fosse a terra girando, mas quando abriu a fechadura dos olhos viu dois rapazes escuros, com tatuagens de cruzes nos peitos, com dentaduras vestidas de fumo de tabaco, carregando lençóis e o guarda-roupa: – “Socorro! Ladrões. Socorro”. A senhora gritava puxando um pedaço de pano para tapar os pontos dos seios e o litoral feminino sagrado. Os dois artistas viram-se no meio de um palco onde a incerteza tocava a bateria e o medo soava os palitos dum piano.

A voz da dona Salimina cresceu no escuro do bairro. Era como se batesse em todas portas do bairro. Sua voz crescia, crescia e até assustava o vibrar das árvores. O sono fugiu do bairro. Todos acordaram. A vizinhança cercou a casa com pistolas de catanas, bazucas de martelos, granadas de pedras, algemas de cordas, revólveres de paus carregados e AKM’s de ferros. De repente King Jota e John Xpila viram-se no meio dum grande ringue aberto. O espectáculo tinha terminado. O chefe de quarteirão iniciou com a fecundação dos gémeos: esticou o seu cavalo-marinho nas costas dos dois, dona Salimina partiu dois blocos e quatro cadeiras de ferro nas suas cabeças que já vomitavam saliva de sangue. A vizinhança inteira colaborou naquela magia desumana de transformar King Jota e John Xpila em gémeos.

Para acelerar o processo de transformação há quem sugeriu que os dois fossem metidos num forno de pneus, adicionados dentes de lenha seca, guisados com gasolina, regados com petróleo e mexidos a todo momento com paus e ferros. Mas, ninguém aceitou essa receita. Os dois foram transformados em gémeos pelas mãos.

 

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