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ARTIGOS DE OPINIÃO

“Hoje não há crónica de jogo, porque não houve jogo”! Assim começava o texto do saudoso jornalista Boavida Funjua, encarregue pelo Jornal Desafio de ir a Tete, reportar a partida entre o Chingale e o Costa do Sol. Resultado final? 0-12, para os canarinhos! Entretanto, em Maputo, o Ferroviário derrotava, também copiosamente, por 7-0!

O Costa do Sol acabou por se sagrar Campeão, com pouca honra e diminuta glória. Terá sido, até hoje, a prova máxima mais “mafiada”, e em que o Ferroviário de Maputo, também “entrou na onda”.

 

MAFIA EM ACCÃO

O campeonato começou com uma disputa zonal. Apuraram-se à Fase final do Nacional de 1991, quatro equipas: Costa do Sol, Ferroviário de Maputo, Chingale e Clube de Gaza. O campeão sairia dos jogos, no sistema de todos contra todos, aos pontos, em duas mãos.

Nas partidas entre os candidatos mais fortes – canarinhos e locomotivas – o mesmo resultado: 1-2, com uma vitória para cada lado. Tudo ficou em aberto para a ronda final, em que só o número de golos definiria o campeão.

Para o Costa do Sol, diante do Chingale, ambos integrados na EDM, o número de golos teria que suplantar o da partida entre Gaza e Ferroviário, estes também “feitos” um com o outro. Quem iria golear, mais do que o outro?

Em Tete, propositadamente, o jogo iniciou-se com 15 minutos de atraso, para se poder “monitorar” o resultado da Machava. A “mafia” tinha sido orquestrada em ambas partidas.

Assim sendo, quando os canarinhos entraram em campo, já o outro resultado era de 3-0. A resposta não se fez esperar, com os golos a aparecerem de imediato. A dúvida quanto ao vencedor, permaneceu até depois do intervalo.

A partida da Machava terminou em 7-0. Com 15 minutos por jogar, os canarinhos foram alargando a sua vitória, até ao escandaloso número de 12-0. Tudo monitorado de parte a parte pela rádio, com um “ora-agora-marcas-tu, ora-agora-marco-eu”.
O Costa do Sol foi declarado Campeão Nacional, mas…

Após uma grande polémica, os resultados e pontos das partidas que referimos foram retiradas da classificação, por corrupção. Chegou a aventar-se a possibilidade de aquela época ficar sem campeão, mas as máquinas calculadoras acabaram por conferir um “golito” a mais ao Costa do Sol, no confronto com os adversários não candidatos.

O DIA EM QUE NÃO TROQUEI JORDAN POR 2 MIL USD

Setembro de 1992, Barcelona. O “dream-time” ia entrar em acção, pela primeira vez, naquela competição planetária. A melhor selecção do mundo de basquetebol iria exibir a sua classe, em Jogos Olímpicos. Eu tinha o “crachá”, ofereceram-me 2 mil dólares, recusei. Porquê?

Oportunidades para estar “dentro” de uma Olimpíada não surgem todos os dias, para ver estrelas como Michael Jordan, Scotie Pipen, Larry Bird, Magic Jonhson ou Charles Barkley.
Conferência de imprensa, sala cheia. Alguém pergunta a Barkley como se sentia nas vésperas de fazer parte da estreia do “dream-team” na Olimpíada.

Responde o ala norte-americano, em jeito de provocação:
– Quem é o nosso primeiro adversário?
– Angola – respondem-lhe!
– Estão lixados – diz o craque dos yanques.

Expectativa tremenda. O estádio comportava 6 mil espectadores. Muita gente iria ver lá de fora o jogo, através dos écrans, espalhados por todo o lado. Uma autêntica “guerra”, aceder ao papelinho mágico que permitiria a entrada. Sobretudo entre os jornalistas, indigitados a cobrir o evento. Havia quotas por país, por influência, pelo poder de cada um…

Pelos OI's moçambicanos, por eu ser o único presente, chegou-me a credencial mágica. Guardei-a, junto ao peito, mas no fundo do coração. A luta entre os principais OI's internacionais era tenaz. Com valores à mistura. Até que…

Um colega espanhol, que não tinha conseguido o acesso, estava inconsolável. Aproximou-se e argumentou tudo o que lhe veio à mente. Foi dizendo:
– Que eu vinha de um país pequeno, onde poucos se interessavam pelo acontecimento;
– Que poderia assistir a tudo através dos écrans gigantes;
– Que ver e reportar Jordan e companhia para Moçambique nada mexia com a minha terra;
– Que me oferecia 2 mil dólares pela cedência do lugar!

Proposta tentadora, em tempo de restrições na nossa terra. Daria para adquirir uma TV e deixar de ir ver a novela Roque Santeiro, que então “estava a bater”, à casa do vizinho; equivalia a algumas visitas à Intefranca de então, onde só com dólares se podiam comprar coisas que não existiam no mercado normal.

Porém:
O tempo também era outro, o do patriotismo. O termo “bolada” não existia, nem na acção, nem no espírito dos moçambicanos.
Daí que:
Com a maior naturalidade, rejeitei a proposta, sem pensar muito, na certeza de que não me iria arrepender.

 

O JOGO, AO VIVO

Foi, na realidade, um espectáculo para nunca mais esquecer. A “meta” de Angola, era perder por menos de 50 pontos. Quando a partida começou, até esteve a ganhar por por 4-3, nos primeiros segundos. Depois, o “placard” chegou aos 7-7. Fixei-me nos fotógrafos, que iam registando o andamento do marcador, pois eram números que ficariam para a história.

Depois…

As “bestas basquetebolistas” americanas começaram a acelerar e foi o fim. Os nossos kambas não conseguiram atingir a sua meta – que era perder por 50 pontos – acabando derrotados por 48-116 (68 pontos). Nas restantes partidas, os americanos venceram todos os jogos, tendo sido a menor diferença a seu favor, antes de chegar ao ouro, diante da Croácia por 32 pontos.

Um moçambicano, que assistia ao jogo ao meu lado, sentenciou:
– Afinal, a comunicação não mente. Estes são, na realidade, o “dream time”.

Pela minha parte, ficou a felicidade de assistir, ao vivo, um espectáculo inolvidável, apesar da não recolha dos 2 mil dólares. Não vivíamos o tempo das comissões, portanto não restou espaço para comichões! Até porque, naquela altura, os bons exemplos vinham do topo.

Todo o poder humano é composto de paciência e de tempo.

Honoré de Balzac

O disco com oito músicas já não é assim tão recente, no entanto, é como se fosse, afinal, tendo sido lançado em 2018, no formato digital, desde deste já velho 2019 é que está disponível no formato físico. Eleven é o título e traduz uma criatividade da cantora que extrai dos números substantivos possíveis e talvez inimagináveis.

Tégui é o nome, a voz para ouvir, sonhar e, certamente, vaticinar um futuro a afirmar-se mediante paciência e tempo. Balzac disse tudo nesse muitas vezes citado Eugénia Grandet. E Tegui, como se tivesse lido o romance, vai fazendo do poder dos seus silêncios o eco do seu talento. Logo, quem a ouve à partida compreende o real valor estético da música moçambicana.

26 anos apenas, e nela já se sentem as vibrações de grandes artistas. Tégui é voz, emoção, sedução, simplicidade, ternura, energia, léxico, poesia e promessa. No seu Eleven (aproximadamente 30 minutos de música), ouvem-se, desde o primeiro tema que intitula o disco, uma sonoridade ao nível R&B/ Soul, muito além do que fazem os cantores quotidianos nacionais.

A propósito dos números, o título do disco de Tégui resulta do somatório de cada algarismo que compõe 2018, ano do lançamento das músicas. Então Eleven também é isso: tempo e adição de vários fragmentos que suportaram o percurso da cantora até ao disco. Há-de ser por isso que uma das músicas é intitulada “Kaleidoscópio” (com participação de J.Mc.Edwins), a metáfora da combinação da cor, da absorção da luz e da beleza. Não obstante, nessa música em particular sente-se qualquer coisa de música electrónica, próximo a um timbre vocal brasileiro. Influências ou apropriações? Seja qual for a resposta, uma coisa é certa, Tegui assimila na roda criada a originalidade de como a pretende movimentar.

De facto, nesta apresentação musical Tégui estampa muito de si, desse seu universo feminino, delicado, todavia sem nunca resumir a música a isso. “Mais eu” (com participação de Guto), segunda música do disco, a lembrar +Eu, álbum de estreia de Assa Matusse, é uma narrativa sobre a superação da mulher, determinação e, com efeito, motivacional. Mesmo assim, em muitos casos, o disco é carregado de melancolia. Facilmente se observa essa marca em “Nungungulo” (do bitonga, uma das línguas faladas em Inhambane, significa Deus), em “Au revoir” (com participação de Iron Br11) ou “Open for you”.

Com Eleven Tégui coloca hipoteticamente a música moçambicana num patamar elevado, dando-a uma dimensão universal, longe dessa tendência muito circunstancial. Considerando esta assunção, então, não admira que a suavidade da sua voz seja, a certa altura, uma aproximação a tão apreciável Eefje de Visser, cantora holandesa autora de títulos como “Er is”, “Scheaf”, pkl“Nee Joh”, “Naast me” ou “Verdriet”. Evidentemente, a cantora e compositora moçambicana ainda terá de crescer e superar-se. Para o efeito, na longa estrada adiante, não lhe faltará talento, tempo e paciência.

 

Título: Eleven

Autora: Tégui

Classificação: 15

Acidentes de Viação!

A minha percepção sobre os acidentes na nº 4, têm a ver com as manobras perigosas, caracterizadas pela inversão de marcha e não de excesso de velocidade, repare que nenhum acidente foi reportado em consequência de a viatura a frente não ter acelerado o suficiente. Mais: na nº 4, é normal os camiões de grande tonelagem usarem a faixa de rodagem do meio, no lugar da faixa lateral, aliado à velocidade com que andam. quando se cruzam com viaturas pequenas, bastará estremecer um pouco para se registar colisão, pior, estes camiões não têm restrição de tempo de circulação!

Em Moçambique, os acidentes de viação tornaram-se um problema de saúde pública, tal é a frequência e seus impactos na economia e na sociedade, di-lo a vice-ministra dos Transportes e Comunicações, todavia, as causas dos acidentes de viação, muitas vezes, não são estudados com profundidade, sempre que há um acidente grave multiplicam-se acções de vigilância sobre o automobilista, fiscaliza-se a inspecção periódica e faz-se o controlo de velocidade.

Há um caso louvável que, infelizmente, aconteceu durante uns dois dias, que foi a operação “carta na mão”. parecendo que não, naquela operação, cidadãos que foram apanhados a conduzir sem carta foram muitos, não porque esqueceu, mas porque não possui carta alguma, porque nunca esteve na escola de condução, alguns até a conduzirem chapas, que é um nível de carta profissional. Essa operação, sim, ia de encontro com a limpeza dos que conduzem de forma ilegal e não respeitam as regras de trânsito.

Nesta reflexão, pretendo olhar para os acidentes na nº 4, nas cidades de Maputo e Matola e na estrada nacional nº 1. As outras estradas não tenho o domínio sobre os acidentes e tão pouco frequento com regularidade, por isso, para não passar por equívocos, deixo a outros interessados abordarem. As minhas reflexões não são infalíveis, por isso, não as tomem como algo irrefutável ou imbatível. Trata-se das minhas percepções em relação ao fenómeno que tem criado luto nas famílias moçambicanas.

Estrada nacional nº 4, vulgo TRAC, os acidentes nesta estrada estão um pouco associados ao que se passa na nº 1. Na verdade, a maior parte dos automobilistas que usam esta via desde a África do Sul prolongam pela nº 1, aproximadamente até à província de Inhambane ou mesmo Sofala, estes concidadãos nossos, se conseguirem fazer a nº 4 sem percalços, os terão quase sempre na nº 1, mais pela fadiga do que propriamente por razões da viatura ou outras, estes utilizadores têm no consumo de bebidas energéticas a aparente “solução” para o sua fadiga ou cansaço, por isso, se formos a observar com atenção, a partir de Marracuene, nas paragens, privilegiam-se estas bebidas.

Mas é na nº 4 entre Malhampsene e Maputo que há muitos problemas, por exemplo, com a reabilitação da nº 4 neste troço, vieram acidentes em catadupa, muitos utentes pediram separadores e alguns concidadãos ridicularizaram esse pedido, alegadamente porque não são os separadores que irão criar bases para não acidentes, apelando à consciência dos automobilistas. Ao nível oficial, a resposta foi a colocação de postos de controlo de velocidade e a questão que se pode colocar é: a origem destes acidentes é a velocidade? Creio que não, a maior parte dos acidentes na nº 4 foram originados por inversão de marcha, aquilo a que se apelida de manobras perigosas nas regras de trânsito.

Ora, resolve-se a manobra perigosa através do controlo de velocidade? Não, resolve-se multando de forma gravosa e de acordo com a legislação aplicável aos prevaricadores. As multas devidamente aplicadas desencorajam qualquer um, com o agravante de apreensão da carta de condução, isso sim, pode ajudar a minimizar os acidentes, até porque não consigo ver um acidente na nº 4 de viaturas seguindo para a mesma direcção, com a gravidade que se tem reportado, não digo que não existam, mas haja ponderação, não é certamente, por aí.

O mais curioso é que a nº 4 é uma estrada concessionada. Perante a subida do número de acidentes, o Governo devia exigir segurança na via, no entanto, ninguém exige nada à TRAC e as coisas acontecem com quase indiferença desta concessionária. Recordo-me que, num dos casos, a TRAC responsabilizou o Governo por não existência de separadores naquela via, por isso, não é verdade que a velocidade seja a causa de acidentes na nº 4, sobretudo acidentes referidos, após a reabertura pós-reabilitação.

Estrada nacional nº 1, como referi na abordagem da nº 4, uma das causas de acidentes nesta estrada é a fadiga, as pessoas percorrem centenas de quilómetros, por exemplo, de Joanesburgo para as províncias de Gaza e Inhambane, até Sofala, não se dão ao tempo de repouso, muitas vezes confiam nas bebidas energéticas para “espantar” o cansaço, mas nem sempre funciona, quando dão por ela, estão debaixo de um camião em movimento ou estacionado, a estrada nacional nº 1 é estreita para o tipo de viaturas que circulam, os camiões avariados estacionam de qualquer maneira e dão poucas chances de esquivarem das outras viaturas em circulação, aliado a isso, a má sinalização cria problemas graves ao trânsito.

Outra razão, nesta via, tem a ver com o ordenamento, repare que as lojas e casas de cidadãos muitas vezes encontram-se a poucos metros da via pública, que é a nº 1, a circulação de pessoas, aliada a grandes movimentos de viaturas, muitas vezes cria embaraços aos automobilistas, que acidentam, nestes casos, por se tratar de zonas de muita circulação de pessoas, quando isso acontece muita gente morre. Mas existe a causa humana, por exemplo, os transportes de pessoas que fazem Maputo-Xai Xai e vice-versa, muitas vezes apostam em duas ou mais viagens ao dia, mas não possuem motorista para troca, de modo a descansar o colega, isto aliado à velocidade a imprimir, de modo a conseguir esse feito. Os acidentes, para estes casos, são uma verdadeira tragédia.

Por isso, na minha opinião, o estado da via, estreita para a circulação de viaturas de grande porte e tonelagem, a má sinalização nos casos de avaria, aliado à necessidade de rentabilização dos meios, sem aliar a parte humana (motorista para a troca), tem sido causas de acidentes de viação, adicionalmente, a construção de infra-estruturas comerciais próximo da estrada é outra causa de acidentes de viação. Aprovou-se uma lei que determinava o tempo de condução por parte de profissionais de condução que me parece não estar em uso.

 

Xi-Cau Cau

Parco em originalidade e como única forma de dar nas vistas, os programas de aniversário das empresas acabam por unir o inútil (exercícios de ocasião ao estilo tira-babalaza) ao agradável (o banquete que invariavelmente acontece).

Lá teremos uma mini-maratona em que antes, invariavelmente, haverá distribuição de camisetes e bonés para serem ostentados pelos filmados trabalhadores e dirigentes; em que os habituais papa-léguas suazis ou sul-africanos irão sair com a “mola”, e por fim… uma feira de saúde. Tudo isto, claro, irá culminar no aguardado jantar de gala, em que a babalaza foi tirada de véspera.

Quem fica a ganhar com estes tipo de programas, que entre nós primam pela “macaquice de imitação”? O desporto do país, posso garantir, que em nada se beneficia. A saúde dos cidadãos – salvo os que praticam regularmente caminhadas e outros exercícios físicos – muito menos. E nem as crianças, apenas lembradas a cada 1 de Junho, usufruem dessas oportunidades para uma olimpíada juvenil que poderia representar para elas, uma “injecção” deste vício saudável que é o desporto.

 

RETOMAR CORRIDAS TRADICIONAIS

As Léguas 24 de Julho e do Natal; os Torneios das LAM; as grandes festas dos 25 de Junho e de Setembro, mais as datas comemorativas da OMM, OJM e outras, não seriam os momentos ideais para juntar sinergias e realizar provas recreativas e competitivas – até internacionais – fortes, com o apoio das grandes empresas nacionais?

Foi uma prática em Moçambique durante muitas décadas, de onde se projectaram nomes como Repinga, Fausto Archer, Pedro Mulomo e outros. Acontece em muitos países, em que tudo pára para dar lugar à corrida. Competição à frente, recreação atrás.

A nossa realidade trouxe alguns desfasamentos que urge corrigir. Essa dispersão de meios para realizações “por dá cá aquela palha”, de corridinhas, não leva a lado algum. E como se não bastasse, para trás vão ficando as datas-mãe e os momentos épicos desta nossa querida República.

Em Angola há a São Silvestre, em Portugal a Corrida na Ponte sobre o Rio Tejo, há a Maratona de Boston, para referenciar um pouco do que acontece por todo o Mundo. São provas tradicionais, já com carácter obrigatório, para as quais jovens e velhos se preparam.

Estamos a falar de atletismo, mas poderíamos referir modalidades em que a mescla competitiva e recreativa, comemora datas, projecta o país e cria “vícios” salutares, porque regulares, da prática do desporto.

 

Andam muitos homens nestas páginas, quando chegar a vez das pitas continuem no mesmo silêncio. Hoje escrevo deitado porque, mais que muitas outras noites, faz demasiado frio. Recuso-me a correr o risco de me deixar vencer pela preguiça, dispo-me a alma com o corpo entre uma cama quente e um par de cobertores. Ouve-se um cão a latir, não tenhas medo, é o Fiel.  Não me vejo longe deles tão já. We are in love, my love. Paras-me para te rires do meu pijama azul?, não tem nada de mais, nem desenho de macaquinhos a baloiçar, nem frases como i am your baby, nem coelhos com os dentes fora, prontos para devorar cenouras, apenas milhares de fios azuis de lã feitos gémeos siameses pelas grandes máquinas de costura para cobrir-me as vergonhas.

Não estou em Lisboa, nesta madrugada de Natal não. Cheguei ao início da noite de ontem à Vila de Rei, esta terra ladeada de pinheiros e eucaliptos, com mais estrelas que a minha menina e moça inteira, sorrisos e couves a colorirem todos os ângulos da pintura. É o centro de Portugal, o marco geodésico que aqui existe não me deixa mentir.

– Já ando por cá há muitos anos, sinto-me em casa…

Não te gastes os olhos se não fores um gato, está tudo às escuras.  Numa outra cama ao lado da minha dorme, – Mas diz, tu acreditas em extraterrestres? o meu irmão português, o David. Já viste que tenho tantos irmãos, nem? Tudo genuíno. A amizade é a porta para tudo. Ainda admiras por que razão te negam. Diz, primeiro, que queres ser amigo dela, bro.

– Sabes como é que se chamava a actual capital de Moçambique? – perguntou-me ele sentado na varanda para qual dava a janela do nosso quarto numa residência universitária que se situava num bairro de Lisboa.

– Lourenço Marques! – respondi eu prontamente.
– Pois é, esse é o meu nome: David Lourenço Marques. – rimo-nos e quebramos o gelo de dois putos que acabavam de se conhecer e partilhariam o quarto nos próximos tempos. Um era de Moçambique, o totozinho que te escreve, e outro era de Portugal, mas de uma terra distante de Lisboa. Esta na qual ao pôr os meus pés fora do autocarro há algumas horas obrigou-me a abrir bem os olhos, ajustar os óculos e procurar pelos edifícios escondidos por detrás do nevoeiro que engole tudo neste mês de Dezembro. O Inverno não anda a brincar de faz de conta, se for para nos metermos nisto que seja a sério, não nesta terra, de faz de conta não brincamos.

– Mas diz, tu acreditas em extraterrestres?
Sempre a mesma pergunta antes de dormirmos, e depois outra, mais uma até ele adormecer e eu ficar a costurar a escuridão. Passaram quatro natais e a amizade cada vez mais forte, desde o primeiro momento abriu-me as portas da sua vida. Acompanhamo-nos todos os dias. O importante disto não é apenas a doutrina jurídica que nos fazem papar ao longo do curso, mas as pessoas, as experiências, os silêncios e sorrisos do dia-a-dia. Concluiu o curso, voltou para sua casa, já não me faz as perguntas da madrugada, mas tudo continua, sua família continua a minha família, somos irmãos de países diferentes, tratam-me todos com tanto carinho, sempre amáveis, sempre queridos. Tudo de forma genuína, sem aquele cheiro no ar de somos bons samaritanos. Tudo genuíno, meu Deus.

– Mano já imaginaste como é que deve ser o Natal para os que combatem na guerra? – eu para ele numa outra altura atordoado por Cabo Delgado. Ele respondeu-me com algo que fingi não perceber para que aquela triste memória do presente que sequestrou Moçambique nos abandonasse. Mas tudo genuíno, meu Deus. A atenção, o carinho, a amizade! Sinto-me em casa, a deixar-me surfar sob o sono, tudo…

 

Muitos homens iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro.

Henry David Thoreau

“Eu vou oferecer algo muito importante ao meu amigo oculto, tão importante que o fará culto, não oculto. E o meu amigo é…. Kanziwelo.”

Manuel Kanziwelo sacudiu a inexistente poera das nádegas que retirou daquela cadeira estofada, levantou-se assim que ouviu o seu nome soar naquele restaurante chique, algures na zona nobre da cidade, onde estavam todos os seus colegas, incluindo os seus superiores hierárquicos.

Tinha um certo entusiamo e um ar de graça no rosto que esbanjou ao encarrar os seus chefes, principalmente ao director-geral que o anunciou como amigo oculto, mas quando voltou a sentar-se parecia um recém-viúvo. Estava em pura agonia e extremamente stressado, faltava-lhe uma lágrima no canto do olho para fechar o cenário de desamparado total, tudo porque, contrário as suas espectativas e na sua forma de ver, o presente que recebeu não era equivalente, nem no preço nem na utilidade, ao que comparou para dar ao seu colega oculto.

Tinha as sobrancelhas aguçadas, testa franzida e tremia tanto de nervos, apesar do ar condicionado estar ligado dos seus poros já se libertavam, ensopado ocorreram-lhe várias ideias, mas não as aderiu, visto que todas elas o aconselham a contestar o presente. Pensou, pensou e repensou, conclui em não prosseguir, como deveria ele, logo ele contestar uma decisão do chefe?

Foi o único que, sem regozijo, contribuiu para aquela ovação incomum com aplausos de fazer doer as mãos, em que todos encontravam-se de pé, empenhados em agraciar as palavras que o chefe acabara de proferir depois de todos trocarem os presentes.

Como era final do mês e do ano, já todos tinham recebido os míseros ordenados, daí que era mais fácil fazer aquele espectáculo de vassalagem, uma vez que já haviam sido libertadas todas as hormonas da felicidade. Apesar das férias colectivas que já tinham sido decretadas a partir daquele dia, estavam todos uniformizados, trajados de uma forma incomum ao habitual. Vergavam camisas e blusas feitas de capulana, todos eles exceptuando o boss, como certos colegas de línguas flexíveis o preferiam chamar, pois é, deve haver sempre alguém que se distingue dos demais, mostrando claramente quem é quem dentro da empresa.

Foi depois da explanação do feche se serviram os comes e bebes, por essa decisão, Manuel Kanziwelo, que era bom de garfo e copo, não se animou com a iguaria, nem o whisky velho conseguiu impor-lhe certo ânimo no rosto. Mesmo quando os serventes de mesa começaram a trazer a picanha, sua comida favorita, trouxe-lhe qualquer arrebatamento na alma.

Por essa razão, entre fragrâncias de capulanas novas e sorrisos esbugalhados de funcionários de escritórios, assistia-se um paradoxo: alguém muito triste numa festa, onde todos os colaboradores conversam, animados execepto Kanziwelo, como é óbvio, que olhava para a sua oferta com todo desprezo, os colegas olhavam-no, mas sem aquela atenção que ele precisava, visto que as comidas e as bebidas haviam roubado a cena.

“Poraaaa!, mas que cena é essa de me oferecem livro?, eu sou mesmo azarado, fogoooo!” Disse para si mesmo, queria que alguém lhe tivesse dito algumas palavras alento, um conforto qualquer que fosse para seu contentamento já que ninguém naquele cenário festivo o daria.

“Mas o que vou eu fazer com um livro?” Disse olhando para o presente como quem olha para um cão sarnento, ou qualquer outra coisa repugnante.

“Quem disse ao boss que eu precisava de Ungungunhana, quem disse que eu precisava de história?, é quem este tal de Ungulani Ba Ka Khosa?, ora bolas, nunca mais entro nessa cena de amigo oculto, sempre me dou mal.”

Voltou a embrulhar o livro no papel de presente que acabara de rasgar, dobrou-o sem qualquer afeição, jogou no saco plástico onde vinha o presente e pendurou na cadeira.

Olhou para todos com seu orgulho ferido, pegou numa das garrafas de Johnnie Walker havidas na mesa e virou toda para o copo e, a seco e num único trago, bebeu. Respirou fundo e fez o mesmo processo novamente. Queria embriagar-se para esquecer o infortúnio de receber aquilo que não queria, porém, não conseguiu, então, por qualquer razão que nem ele mesmo entendeu, decidiu abrir o livro.

***

Quando todos os seus colegas abandonaram o local, a maioria já embriagada, Manuel Kanziwelo continua ali, de olhares arregalados como quem descobriu uma mina preciosa, perdido nas entrelinhas das peripécias do último império oposto a ocupação colonial em Moçambique; bem ali, sentido o cheiro das paisagens de Gaza, admirado a bravura do jovem Ualalapi e perplexo com traumas de Ngungunhane, um homem cruel e violento, um tirano que não lhe fugiam comparações. Sorria pela forma cómica que certas estórias eram contadas, como a menstruação de Damboia que enchera o rio de sangue, e a mesma a levou a morte e impotência de alguns homens, o vomito de Manua que encheu barco dos tugas; em fim, analisava o “Game of Thrones” do império de Gaza. Fez, ainda que de forma rápida, uma analogia do último discurso de Ngungunhane com alguma realidade que ele viveu e vive, sorriu e sorria de vez em quando, por vez se entristecia pelas desgraças que atravessam a narrativa.

Quando começo a ler as “Mulheres do Imperador”, as concubinas que acompanharam o Imperador ao exílio e retornam à Moçambique após quinze anos, um dos serventes do restaurante veio ter com ele, porém, este precisou bater várias com o copo na mesa para despertar o novo leitor, assim que desgrudou do livro voltou para o servente, o seu semblante era outro, tinha certo brilho e a pele parecia estar rejuvenescida.

“Senhor, já estamos para fechar.”

“Você conhece Damboia?”

“Senhor, está na hora.”

“Tens que ler este livro, mano.”

“Senhor, eu disse que estamos para fechar o restaurante.”

“Uf… não se pode ler sem incómodos nesta cidade?, mas OK.”

Manuel Kanziwelo colocou o livro no saco plástico, voltou a olhar para o servente que mantilha aquele rosto stressado que há bem pouco tempo ele mesmo ostentava.

“Boas festas, para si Mabiau.”

“Não entendi, mas Boas festas também para si, senhor!”

Levantou-se nas calmas, sem qualquer pressa, assobiando, pendurou nos ombros o saco plástico com todo carinho e cuidado do mundo. Mesmo quando olhou para o relógio manteve a impenetrável calma, saiu devagar e perdeu-se nas entranhas da noite.

 

Análise preliminar, perfunctória e generalizada dos principais aspectos inovatórios

O Presidente da República (PR) promulgou e mandou publicar, em simultâneo, o Código Penal (“CP”), o Código do Processo Penal (“CPP”) e o Código de Execução das Penas (“CEP”), consistindo, esse acto tripartido, numa medida que visa conferir uma roupagem homogénea e linear à interpenetração resultante dos três preditos diplomas legais, os quais se unem entre si em virtude de abarcarem a trindade penalista: a prática do crime ou a suspeita da sua prática; o processo-crime; e a execução da pena e salvaguarda da sua finalidade.

Ou seja, naqueles três códigos, confluem o direito substantivo – no CP, definindo-se crimes e estabelecendo-se as respectivas penas/sanções –, o direito adjectivo/processual – no CPP, reflectido nos meios, formalidades e procedimento manuseados em juízo, objectivando o alcance da “verdade material” – e as normas do direito penitenciário – no CEP, aplicáveis à execução efectiva daquele cotejo extraído entre o direito substantivo e o adjectivo/processual, tendo ainda como função mister, regular os aspectos destinados à (sic): reabilitação e reinserção social do condenado, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, bem como a protecção de bens jurídicos e a reparação dos prejuízos causados com a conduta que fundamentou a condenação e a defesa da sociedade.

É publicamente sabido que há muito que a comunidade jurídica reclamava pela aprovação e entrada em vigor simultânea daqueles três diplomas. Designadamente, aquando da entrada em vigor do Código Penal [ainda] vigente, aprovado pela Lei n.º 35/2014, despoletou-se, na comunidade jurídica, um frenesim crítico dirigido à Assembleia da República (“AR”) pelo facto de este órgão soberano não ter curado de assegurar que estes três diplomas fossem aprovados em paralelo com aquele CP.

A título de exemplo e só para se ter uma ideia da envergadura do que aqui se diz, o CP ainda em vigor trouxe as inéditas figuras das “penas alternativas à prisão” e “medidas alternativas à pena de prisão”, sem, no entanto, regulamentar os termos precisos em que algumas daquelas penas alternativas e medidas alternativas seriam tramitadas. A regulamentação que se aduz atrás, deveria ter o seu campo de previsão normativa no CPP (o direito adjectivo), todavia, o facto de o CP [ainda] vigente ter entrado em vigor desacompanhado de um novo CPP que lhe outorgasse natureza instrumental, causou um autêntico vazio legal relativamente ao modo como se manuseariam os mecanismos processuais conducentes a adopção de algumas daquelas penas alternativas e medidas alternativas, como, por exemplo, a figura da “suspensão provisória do processo”. No texto do CPP recentemente promulgado e mandado publicar, esta figura já é merecedora de regulamentação, dando-se, assim, a requerida homogeneidade e linearidade entre o CP e o CPP relativamente a esta matéria.

A abordagem ao processo de revisão de CP não pode principiar sem que manifestemos o nosso veemente juízo crítico pelo facto de um diploma de carácter ultrassensível como o é o CP, ter sido objecto de duas revisões substanciais num diminuto horizonte temporal de 5 anos. É, indesmentivelmente, um sinal eloquente da imperdoável precipitação na qual mergulhou o legislador moçambicano ao ter aprovado, em 2014, um CP clamorosamente deficiente e ineficiente, omisso e lacunoso relativamente a várias temáticas cuja previsão legal já se mostrava [naquela altura] imperiosa, sobretudo tendo em conta a evolução do Direito Penal nos ordenamentos jurídicos edificados sob inspiração dos ditames do sistema jurídico romano-germânico. Prova mais que provada da precipitação que se salienta supra é, irrefragavelmente, o facto de o CP ter sido, agora, precocemente revisto.

Um olhar analítico ao novo complexo de normas corporizadas no CP recentemente promulgado, elucida-nos que o legislador direccionou particular atenção ao capítulo dos “crimes contra reserva da intimidade da vida privada”, tendo introduzido, de forma inédita, os tipos legais de crimes de “devassa da vida privada; “acesso ilegítimo” e “gravações ilícitas”, um triunvirato de crimes cuja divulgação antecipada pela imprensa tem causado uma indisfarçável celeuma e desassossego na opinião pública, surgindo, em crescendo, vozes que asseveram que a intenção do legislador é enfraquecer e/ou cercear os direitos e garantias individuais dos cidadãos, sobretudo no que concerne à respectiva liberdade de expressão e direito de opinar/criticar.  Analisemos se são plausíveis os receios de quem assim raciocina:

À luz do CP recentemente promulgado e mandado publicar, o crime de “devassa da vida privada” pune com pena de prisão até 1 ano e multa correspondente, quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual: (i) interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, imagem, fotografia, vídeo, áudio, facturação detalhada, mensagens de correio electrónico, de rede social ou de outra plataforma de transmissão de dados; (ii) captar, fotografar, filmar, manipular, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos; (iii) observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou (iv) divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa. Salvaguarda-se, ainda, que este último facto não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante.  

Este tipo legal de crime tem, ipsis verbis, previsão normativa no artigo 192 do Código Penal português, de onde foi decalcado para o nosso ordenamento jurídico. Portanto, não se pode considerar que seja uma norma revestida de conteúdo literal escandaloso ou antijurídico ou chocante, pois, bem vistas as coisas, ela excursiona-se no sentido de preservar um bem jurídico protegido pelo Direito Penal: a reserva da intimidade da vida privada, impedindo-se, assim, a respectiva devassa.

A defesa da reserva da vida privada contém, entre nós, dignidade constitucional. Com efeito, resulta do disposto no artigo 41 da Constituição da República (“CRM”) que «todo o cidadão tem direito à honra, ao bom nome, à reputação, à defesa da sua imagem pública e à reserva da sua vida privada». Todos esses valores morais referidos no retrocitado artigo, constituem direitos universalmente consagrados como intimamente vinculados à dignidade da pessoa humana. São direitos inalienáveis e incorporam-se dentro da tipologia dos direitos de personalidade, plasmados no artigo 79 (direito à imagem) e artigo 80 (direito a reserva da vida privada), ambos do Código Civil.

O ponto de discórdia, responsável pela erupção da vozearia instalada na opinião pública, decorre do simples facto de o novíssimo crime de “devassa da vida privada” poder, na nossa óptica, ser cometido através de actos que, em si mesmos, também se traduzem em direitos atribuídos por Lei aos cidadãos, sendo que esses direitos também possuem dignidade constitucional. Referimo-nos, essencialmente, ao direito a liberdade de expressão (n.ºs 1 e 2 do artigo 48 CRM), ao direito de liberdade de imprensa (n.ºs 1 e 3 do artigo 48 CRM), e o direito à informação (n.ºs 1 e 3 do artigo 48 CRM), que, por sua vez, integra o direito de informar e o de ser informado.

Colocada a factologia nestes termos, um cidadão é susceptível de enfrentar um processo-crime por cometimento de actos integrados nos seus direitos constitucionalmente consagrados, pois não pode suscitar dúvidas de que estamos em face de um confronto frontal e antagónico entre princípios constitucionais. Do lado da vítima, assistem-lhe o direito a reserva da vida privada e o direito à imagem (ambos ajustados no artigo 41 CRM); do lado do suspeito/arguido, emergem os direitos a liberdade de expressão, de liberdade de imprensa e o direito à informação (estipulados no artigo 48 CRM).

Logicamente, um dos princípios constitucionais deverá ser postergado ou ver restringido o seu campo de aplicação. Entretanto, assinala-se que os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos nos casos expressamente admitidos pela CRM, sendo que qualquer intervenção restritiva nesse domínio, mesmo que constitucionalmente autorizada, apenas será legítima se justificada pela salvaguarda de outro direito fundamental ou de outro interesse constitucionalmente protegido, devendo respeitar as exigências do princípio da proporcionalidade e não podendo afectar o conteúdo essencial dos direitos.

Se nos focarmos ao preceituado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 79 do Código Civil, perscrutamos que o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem consentimento dela, não carecendo desse consentimento quando assim o justifique a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente, salvo se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.

Nos n.ºs 1 e 2 do artigo 79 do CC acima transcritos, é a própria Lei que, expressis verbis, determina a legitimidade da violação do direito à imagem e do direito a reserva da vida privada, em virtude de militância de circunstências especiais nas potenciais vítimas da devassa, constituindo isto um caso nítido de desprezo, por iniciativa da própria Lei, pelos direitos à imagem e a reserva da vida privada da vítima, em benefício dos direitos a liberdade de expressão e liberdade de imprensa do autor do crime.

É inexpugnavelmente incontroverso, quer na doutrina mais avisada quer na jurisprudência fidedignamente seguida, que, por ex., o exercício de um cargo público é incluído pela lei entre os casos de limitação legal do direito à imagem, já que o interesse público em conhecer a imagem dos respectivos titulares sobreleva, nessas hipóteses, o interesse individual.

Só isto é suficiente para demonstrar que o direito à imagem, protegido pelo crime de devassa a vida privada, pode ser excepcionalmente menosprezado caso entre em colisão com outros direitos possuidores de dignidade constitucional, tais sejam a liberdade de imprensa (por parte dos jornalistas) e o direito a liberdade de expressão (pela banda dos cidadãos), na medida em que o critério definido pela própria CRM para deslindar o confronto de normas constitucionais antagónicas é o principio da proporcionalidade, nos termos do qual, muitas vezes, o interesse público/colectivo (patente na acção do arguido) se sobreleva ao interesse individual/particular (detido pela vítima).

Elemento decisivo na interpretação desta norma é, sem dúvidas, o seu conteúdo literal-semântico-linguístico, pois aí reside a tipicidade. Para haver crime, a lei parte do pressuposto que a acção de divulgação de imagem das pessoas/objectos, tem de ocorrer com a «intenção de devassar a vida privada» de outrem (previsão subjectiva: existência de intenção, do elementos intelectual do dolo – consciência de que o facto é ilícito e censuravel – e elemento volitivo do dolo – vontade em praticar o facto ilícito) para, a seguir, a lei determinar que a divulgação dessas imagens têm de se circunscrever à intimidade da vida familiar ou sexual: (previsão objectiva, sendo irrelevante, para efeitos de incriminação, uma “intenção” autónoma “de devassar a vida privada”).

 

Em que ficamos? Prevalece a previsão objectiva ou a subjectiva?

Aqui chegados e tendo atingido o número limite de caracteres, o presente artigo tem continuidade marcada para as próximas duas sextas-feiras seguintes (“Parte II” e “Parte III”), onde, para além de encerrarmos a abordagem dos crimes de devassa da vida privada e gravações ilícitas, mergulharemos nos novos crimes introduzidos pelo CP, bem como esmiuçaremos as muitíssimas novidades carreadas pelo CPP e ir-nos-emos debruçar de forma pormenorizada sobre o [novo] crime de “aliciamento material de fé”, enquadrado na [também nova] secção “abuso e exploração de fé” que pune com a pena de prisão de 1 mês a 2 anos e multa até 1 ano, quem, por meio de artifícios enganosos ou publicidade, aliciar crentes de uma religião ou culto a alienar ou entregar dinheiro ou bens como contrapartida de sua participação ou promessa para o enriquecimento.

PS: no momento em que se grafa o presente artigo, nenhum dos três diplomas aqui em sindicância foi, ainda, objecto de publicação no BR. Entretanto, a composição final dos três códigos promulgados pelo PR já é publicamente conhecida, e tais documentos não constituem matéria classificada, podendo ser livremente consultados, ao aconchego do princípio da máxima divulgação, do princípio da transparência e do princípio da participação democrática, previstos nos artigos 6, 7 e 8, respectivamente, da Lei n.º 34/2014 (Lei do Direito à Informação).

Email: telio@teliochamuco.com

Ao usarmos da palavra fazemo-lo na plena convicção de que não é fácil falar de um embondeiro da estatura do nosso confrade Sérgio Vieira.

Estamos em crer que nem mesmo o seu extenso “Testemunho” esgota a trajectória fulgurante deste nosso compatriota. Figura multifacetada, inicia a sua longa marcha em 1941 na então pacata cidade de Tete, passando pela cidade da Beira onde faz os seus estudos liceais e o seu desembarque em Portugal onde estuda Direito. O seu percurso, incluindo a sua passagem por Paris onde calcorreia os largos boulevardes, o quartier latin, as instituições académicas que ali frequenta atrás de um sonho e um futuro ainda difusos. Tal como Ernest Hemingway, o jovem Sérgio Vieira também se fascina por essa Paris-festa que é a capital francesa. Mas, o que ele não sabia ao certo é que o caminho era ainda longo e o porto de chegada ainda muito distante.

Por tudo isto, e porque nenhum resumo pode caber nestas parcas folhas de papel, ater-nos-emos, enquanto AEMO, na sua reconhecida militância cultural, na sua sapiência assente numa sólida literacia em diversas áreas do saber.

Sérgio Vieira é Membro Fundador da nossa Associação, cuja criação data de 31 de Agosto de 1982, num acto que não foi nem isolado, nem casual, antes porém CAUSAL.

Influenciado pelos “Ventos da História”, pelos compatriotas mais velhos e outros das antigas colónias portuguesas, Sérgio Vieira abraça a causa nacionalista em associações estudantis e no boletim MENSAGEM da Casa dos Estudantes do Império.

Aqui Sérgio Vieira ganha paulatinamente a maturação que o veio a consagrar, mais tarde, como um dos mais destacados poetas do Povo e da Liberdade. São do confrade Sérgio Vieira as palavras proferidas aquando da Assembleia Constituinte, que a seguir se transcrevem:

 

                    Para alguns de nós, na década 50, o boletim MENSAGEM

                    da Casa dos Estudantes do Império, foi simultaneamente

                    uma actividade política nas condições  que impunha o co-

                    lonialismo e o fascismo, mas também uma actividade de

                    busca da personalidade dos nossos povos de maneira lite-

                    rária. Aí publicamos, aí começamos possivelmente uma

                   nova etapa do trabalho criativo na literatura.

 

 Paris, capital da Cultura como era conhecida, pelo menos, no século xx, consolida-lhe a vocação. Aprofunda contactos com importantes publicações de cariz jornalístico e cultural, mas marcadamente nacionalista, como é o caso da Presence Africaine onde pontificam nomes como Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança. Lê poetas africanos de grande estatura intelectual como Leopold Senghor.

Mas foi em Argel, integrado nas fileiras do Movimento de Libertação, onde concretiza o sonho que o levou a Portugal. E como enfatiza o advogado, político e académico Almeida Santos, o confrade Sérgio Vieira “licenciou-se com distinção no Instituto de Estudos Políticos de Argel em 1967.”

A criação da União dos Escritores Angolanos, escassas semanas após a proclamação da independência daquele país irmão, colocou um desafio aos escritores moçambicanos: a necessidade urgente da criação da nossa Associação que, como referimos, ocorreu em Agosto de 1982.

Apesar das suas inúmeras ocupações na esfera do Estado Moçambicano que ajudou a construir, o confrade Sérgio Vieira e companheiros – Fernando Ganhão, Luís Bernardo Honwana, Rui Nogar, entre outros, engajam-se na empreitada da edificação da AEMO. Armando Guebuza, José Craveirinha, Orlando Mendes criaram uma Comissão Instaladora liderada pelo escritor Luís Bernardo Honwana à qual fixaram as seguintes tarefas:

  • Levar a poesia e o conto às escolas e fábricas para despertar o interesse pela literatura;
  • Identificar um edifício para a instalação física da sede AEMO;
  • Elaborar os Estatutos e Programa da AEMO;
  • Preparar a realização da Conferência Constitutiva e proferir a composição dos órgãos sociais.

Concluídas estas tarefas foi eleita a Primeira Direcção constituída por treze membros.

 

(Note-se que dos treze eleitos, e à excepção do confrade Calane da Silva, docente nesta Universidade, doze já não se acham entre nós.)

Foi na vigência desta Direcção (1982/1987) que se criaram as condições que conduziram à publicação do primeiro livro do confrade Sérgio Vieira TAMBÉM MEMÓRIA DO POVO, com duas cópias na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos da América, em Washington.

Chichorro, Malangatana, Mankeu e Samate ilustraram com a mestria que lhes é peculiar esta obra de referência da nossa poesia de combate.

Anos mais tarde, o confrade Sérgio Vieira viria a publicar o livro PARTICIPEI, POR ISSO, TESTEMUNHO onde narra o seu empolgante percurso de vida. Sobre este “Testemunho” Luís Bernardo Honwana escreveu:

 

                    Fazia falta este livro. Que ele sirva de estímulo a que

                    outros  actores dessa independência ganhem nele ins-

                    piração para repetir a proeza, e cumprir esse dever.

                    O conhecimento pelas novas gerações do heroísmo

                   dessa gesta é um capital precioso para o orgulho de ter

                    nascido em Moçambique, e a consciência do significado

                    da correspondente cidadania.

 

Respeitado Confrade Sérgio Vieira:

 

Nos derradeiros momentos desta nossa intervenção fazemos questão de lhe lembrar uma frase sua no dia da proclamação da nossa Associação. Disse o confrade Sérgio e nós citamos:

 

Hoje nasce a nossa Associação. Como uma criança o é no

momento do nascimento, em potência nela se encontra

O génio e o bandido.

Pois nós temos uma vontade de fazer desta Associação uma grande, forte, nobre, expressão daquilo que é uma grande, forte, nobre expressão daquilo que é aspiração de toda a cultura, de todo o Povo; uma afirmação da grandeza do nosso Povo, da maravilha que é a criação do Povo.

 

Pode ficar descansado caro Sérgio. O seu sonho cumpriu-se. Nestes 37 anos temos:

 

  • Eleições regulares;
  • Centenas de livros publicados;
  • Dezenas de prestigiosos prémios atribuídos aos nossos membros nos mais variados quadrantes do mundo.

E tudo isto é fruto da visão clarividente dos Fundadores para a qual o confrade Sérgio Vieira contribuiu de forma inestimável.

Desta feita, estas homenagens, irão contemplar todos membros  fundadores, tendo iniciado em Junho, com o poeta Kalungano. Pois, levamos sempre connosco as nossas memórias. Concordamos assim que um Ser que se esquece do seu passado, é um Ser ferido de amnésia, não sabe de onde vem, nem para onde vai.

Muito obrigado!

 

Nunca se tem a certeza de nada quando se escreve sobre aquele que escreve. A única certeza que temos é a de que uma das riquezas da literatura são  justamente as múltiplas dimensões que propicia, o que significa, por outras palavras, que cada análise crítica vale pelos seus próprios argumentos. Com todas as suas “certezas” ou fragilidades, com todas as suas “verdades”. Não tenho a certeza de nada neste momento, a não ser o de estarmos diante de um poeta que construiu o seu próprio caminho e deixou ficar a sua marca na história da literatura moçambicana. A única verdade que trago neste modesto texto é a de que Sérgio Vieira se fez reconhecer sem nunca ter assumido a poesia de forma obsessiva, “escrevi como vivi”, disse um dia ao estudioso e saudoso Michel Laban.

Na Casa dos Estudantes do Império ensaia as primeiras incursões literárias. Escreve. Reescreve. Queima. Cresce. Deixa Portugal, percorre outros territórios onde troca ideias e amadurece a sua “poesis”. Depois, mais tarde,  milita ideiais revolucionários nos históricos cadernos da “poesia de combate”, termo que Sérgio Vieira desaprova, porque considera que o critério de avaliação de uma obra não é necessariamente o tema que ela está a abordar. Para ele, uma obra literária, para além dos seus propósitos políticos, é boa ou não é. E cito: “Há péssimas obras líricas, há más obras ditas revolucionárias, e há excelentes obras dos dois lados. Fim de citação. Liberta a pátria, o processo de escrita prossegue, confronta-se com outras propostas literárias preocupadas em apresentar uma nova expressão literária. Mas a “guerra” do Sérgio Vieira prosseguiu apenas com um único propósito: o de se envolver, através da sua poesia, na construção e consolidação de uma obra imponente: uma pátria livre.

Falar de um poeta é, antes de mais nada, um acto de coragem. Significa falar da sua grandeza ou da sua fragilidade. Exige assumir uma posição. Enunciar um veredicto.  Falar de um poeta significa, para mim, aflorar os contornos através dos quais se desenha sua poesia, arriscar vaticínios, sugerir leituras, chamar atenção para os aspectos narrativos. Nada mais que isso. Por essa razão declino afirmar que o Sérgio Vieira é o melhor poeta que a nossa terra viu nascer, o que seria uma pura inverdade, devido a múltiplas razões, e uma delas é porque o Sérgio Vieira nunca teve a pretensão de o ser e tenho a certeza que não procura absolutanete nada com a literatura, contrariamente aos que buscam nela um estatuto social. Para Sergio Vieira, ser poeta é apenas  escrever. É viver. É cumprir a sua responsabilidade como um cidadão a quem o acaso legou o dom da escrita. Apenas isso.

Escreveu “Também memória do povo”, um livro que surgiu num tempo em que se exaltava a pátria e se tentava construi-la. Influências? Talvez Aragon, talvez Senghor, talvez Homero,  talvez o Rilke. Talvez o Jorge Amado do nosso eterno encantamento, ou mesmo o Eça de Queiróis, o Antero e um Urbano Tavares Rodrigues, autores que leu antentamente. Não se tem nenhuma certeza donde terá buscado as suas influências literárias. Talvez das saudades da sua terra nos longos períodos do exílio. Talvez das recordaçoes dos tempos da escravatura. Do amor por uma mulher. Da sua preocupação na construção do homem novo. “Também memória do povo” é, por outro lado, um livro de homengem aos que tombaram no fragor da luta. Um livro de denúncia. Cheio de sangue. De lágrimas. De memórias.

Brindou-nos, não num tempo longíquo, com “Participei, por isso testemunho”,  um livro que saiu-lhe de um jacto, no isolamento de um quarto de hospital em Beijing, sem o arrimo de notas e agendas pessoais, sem a possibilidade de consultar fontes e referências. Um livro que levou Luis Bernardo Honwana a escrever que “notável e refrescante é a capacidade que estas páginas possuem de fazer reviver o drama, o sofrimento, a entrega, a solidariedade à volta do ideal da libertação da pátria e a exaltação dos momentos altos da luta. De reviver ou, mais importante ainda, de descobrir e compreender”. Excusado se torna dizer que se tratou duma obra que suscitou bastante expectativa pelo facto do autor ser polemista, e por via disso ter-se transformado numa figura polémica, controversa, atributos granjeados nos palanques da assembleia da república e nas páginas da imprensa moçambicana, atributos que ele sempre fez questão de pantetear nos variados corredores onde se esgrimiam ideias.
Como muito bem o disse José Luís Peixoto, “não se chega a uma certeza sólida e coerente sem se ter passado pela dúvida”. E a certeza sólida e coerente que neste momento posso transmitir é de que não tenho nenhuma dúvida que o poeta Sérgio Vieira percorreu, enquanto escritor, o caminho que merecia ser percorrido. A sua obra é escassa, se diga, mas torna-se necessário lê-la, para compreender o homem e reconhecer o poeta. Ler o Sérgio Vieira é, em última análise,  viajarmos através da nossa história, uma forma de perpetuar a memória de um povo.
 
19 de dezembro 2019

 

 

Não são portanto os casos isolados que definem o carácter dos indivíduos, mas a harmonia das suas virtudes ou a degradação dos seus defeitos.

Eduardo Paixão

 

 “O terrorista elegante”, “Chovem amores na rua do matador” e “A caixa preta”. Estes são os títulos das três narrativas que compõem o livro O terrorista elegante e outras histórias, de Mia Couto e José Eduardo Agualusa. De um modo geral, a obra literária dos dois autores é preenchida por temas muito concernentes aos factores que movem o mundo e o imobilizam simultaneamente. Entre os factores em causa, estão imensos “ismo”, como o racismo, o machismo, o egocentrismo e o terrorismo. Mas há também o amor, o ódio, o conflito de interesses, o desejo de vingança e, claro, o injusto frequentemente infiltrado no conceito justiça.   

Na primeira história do livro, Mia Couto e José Eduardo Agualusa ficcionam este mundo contemporâneo, feito de dúvidas e repugnância, sobretudo derivada da maneira como uns e outros, de culturas, crenças e latitudes diferentes, lidam entre si, quando há algo maior em jogo: o poder ou manutenção dos benefícios que isso implica.

Esse é bem o cenário de “O terrorista elegante”, de longe a melhor história do livro. Num estilo muito miacoutiano, ao protagonista Charles Poitier Bentinho são-lhe atribuídas feições da dissonância num universo adverso à diferença. Então, porque o mal só pode ser o desigual, ao mesmo tempo que se verificam seis atentados em Londres, Paris, Amesterdão, Bruxelas, Roma e Madrid, contra embaixadas, consulados e empresas ligadas aos Estados Unidos, é preso, no aeroporto de Lisboa, um indivíduo de origem angolana, com reconhecidas ligações ao Estado Islâmico, quando se dirigia ao avião da United Airlines.

Pressionado por um ministro português e pelos interesses norte-americanos, Laranjeira, um comissário da Polícia Judiciária portuguesa, mesmo convencido da inocência do detido Charles Poitier Bentinho, monta-lhe uma artimanha para que este confesse crimes que afinal não cometeu.

Aí, logo se vê, a história entra para um confronto entre o justo e o injusto. Ou seja, muito pela parcialidade que a envolve, em “O terrorista elegante” há essa demonstração dos elementos que, no mundo real, edificam ou corroem a Justiça. Há imensa relatividade nisso, assim como há hipocrisia dos poderosos em relação aos indefesos. Por isso mesmo, a história, muito bem escrita, com humor, intriga e sarcasmo, a certa altura, torna-se também catártica num momento em que o amor é usado como parte de uma estratégia para condenar o tão surreal terrorista elegante.  

Se na primeira história de Mia e Agualusa um personagem é forçado a admitir conspiração para matar, na segunda, por outro lado, há, de facto, um Baltazar Fortuna desafortunado. A causa? Três mulheres com as quais tem assuntos muito mal resolvidos: Mariana, Judite e Ermelinda. Desejando obstinadamente justiça, o protagonista do enredo vai tentar matar a cada uma, olvidando as suas falhas na relação com elas. É igualmente esse sentido de vingança misturado com outras coisas, na história, que faz da justiça e injustiça realidades próximas, deduzidas pelas percepções de quem as busca. Assim, em “Chovem amores na rua do matador” nota-se essa justiça almejada por Baltazar Fortuna e outra do entendimento das suas ex-mulheres. No fundo está ali subentendido um debate sobre que justiça se pretende para o mundo e o que mais move as pessoas na reivindicação desse direito.

Portanto, em O terrorista elegante e outras histórias entende-se por justiça o mecanismo adoptado pelas personagens para se desembaraçarem de um problema, pouco importam os meios, a moral ou ética. Diante de um ladrão, por exemplo, Vitória, em “A caixa preta”, enche-se de fel para matar. Afinal, se um indivíduo assalta a casa para fazer mal a ela e a avó não merece outro fim.

As três histórias do livro são desirmanadas, com estilos e perfis das personagens completamente opostos. Ainda assim, todas têm nos protagonistas os maiores promotores da iniquidade social no contexto da ficção. Isto é, em Mia e Agualusa a equidade é um recurso ao alcance dos mais fortes ou daqueles com destreza na altura de sentenciar o veredito. No fundo, é essa verosimilhança que aproxima as personagens ao plano desencantando da realidade actual.

 

Título: O terrorista elegante e outras histórias

Autor: Mia Couto e José Eduardo Agualusa

Editora: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 14

Manda calar a todos, talvez hoje fale tudo o resto que nos faz renascer e trepar luas a cada noite. Queira Deus que pelo menos desta vez, se necessário, o ridículo seja eu e não esta missiva de amor! Dêmos-lhe tempo, é certo que estamos com os cálices a transbordarem de alegria, a madrugada ainda está no início! Que o ridículo seja eu, meu Deus, e não este amor.

– Tu vais conquistar o mundo

Depois da visita que fizera quando criança com o meu pai à Namacurra, sua terra natal, as minhas últimas férias em Maputo são o fio mais perpétuo que o tempo conserva neste tecido multicolor no qual as lâminas sombrias da crueldade humana e os silêncios incompreensíveis de Deus às vezes teimam em torná-lo um manto de cinzas onde apenas resta tudo o que não somos. Quem resiste àquele sorriso que continua me beijando mesmo longe?, quem resiste aos abraços genuínos que me reconectaram ao essencial desta palhaçada?, quem resiste à amizade a fazer de uma página um céu?

– Hoje caiu-me uma surpresa que pouco esperava
assim inicia a crónica na qual há um ano e três meses desenhaste as memórias da tarde em que nos sentámos no jardim que se situa em frente ao Museu da Moeda para partilhar sonhos e deixar que nossas vidas se dessem o abraço mais profundo do mundo. Eu e tu, dois jovens embriagados pelos sonhos, a nadarmos com toda coragem no oceano da vida.

– Tu vais conquistar o mundo

Custa-me imenso exteriorizar isto. Não sei como são as missivas de amor, mas se eu não estiver a costurar isto como era suposto fazê-lo, apenas continuemos embriagados pelos sonhos, a nadarmos com toda a coragem no oceano da vida tal como fizemos naquela tarde em Maputo, tal como fazemos todos os dias mesmo Lisboa e Maputo estando separadas por milhares de quilómetros.

A alegria causa demasiado ruído no cérebro! Escrevo-te o que sinto neste momento de alegria. São tantas coisas tristes que acontecem no dia-a-dia, tantas injustiças, meu Deus, tantas injustiças que ao ver o trabalho de  quem a gente ama, alguém que vem de muito longe, ser reconhecido, ao ver os nossos sonhos se tornarem realidade nos dá esperança de dias mais justos, mais risonhos.

Dancei no corredor da faculdade como um louco, – Ganhámos, irmão! não sabes que gozo me deu quando me disseste. Naquele momento não ouvia nenhum Divenire que saía de um qualquer piano cujas teclas faziam, cheias de devoção, amor com os dedos de Ludovico Einaudi para procurar sofregamente em meio à escuridão do quarto os meus ouvidos e ao alcançá-los fazer-me vislumbrar o resumo da vida numa só peça musical, mas a alegria me beijava e me sacudia o espírito. Tu mereces isto e muito mais, não só pelas merdas que sofreste, pelas pedras que vais chutando no dia-a-dia ou mesmo pelo teu talento – Ir até às profundezas da alma e fazer das feridas do mundo as tuas, expô-las e curá-las com limpidez e paciência mas também porque tu és um gajo fixe, de uma humildade e alegria que contagia a qualquer pessoa, honesto e que como um louco repetes e me ajudas a recitar o nosso mantra diário – coragem, génio!

De lá para cá passei todo o dia a ler, com a mesma explosão de alegria do primeiro momento – Sérgio Raimundo vence prémio INCM/ Eugénio Lisboa
e com isto tomo mais consciência desta vitória que não é só tua ou nossa, mas também de toda uma nova geração de grandes escritores que desponta não na Ilha dos Mulatos, mas de poetas, Moçambique.

À esta altura tudo rodopia como acontece quando vamos dizer à baby que estamos apaixonados, nada de jeito consigo falar. Mas por que razão se preocupará em falar um homem cujo espírito transborda de alegria e amizade! Que o ridículo seja eu, meu Deus, e não esta missiva de amor, não este amor…

 

«Algo mais, para além de tudo»

Sua conceptualização, manifestações, natureza e regime jurídicos aplicáveis, tratamento, implicações e consequências

Dando continuidade ao raciocínio vertido na “Parte I” do presente artigo, publicado há precisamente uma semana, fixaremos a nossa atenção microscópica na análise das consequências advenientes para (1) o país em nome do qual se contrai a dívida, (2) para os indivíduos que colocaram o país e seus cidadãos nessa desassossegada situação e (3) para os cidadãos do país em nome do qual a dívida foi consignada.

Como forma de se ir desmanchando o assunto e lançar as bases destinadas a facilitar a respectiva compreensão, é preciso que se tenha presente que, na contracção da dívida pública externa, as partes contraentes assumem, simultaneamente, direitos e obrigações. Paralelamente, e independentemente da clamorosa ilegalidade do acto ou contrato que originam a dívida odiosa, não se pode duvidar que se produzem efeitos, no mínimo práticos (se não os quisermos considerar jurídicos).

É incontornável que partamos deste princípio, pois, por exemplo, a ilegalidade da dívida não impede que valores monetários emigrem, em sucessivas prestações pecuniárias, dos cofres públicos do país que requer o empréstimo para o país/organismo internacional que o concede. E o problema no tratamento deste fenómeno agudiza-se precisamente em virtude da produção desses efeitos, de origem ilegal, sujeitos à declaração de nulidade ou à anulabilidade, implicando que, ainda que se suspenda a execução do contrato, só o simples facto de valores do empréstimo terem sido canalizados de um país para o outro, seguindo-se depois o seu desvio de aplicação/dissipação por parte dos governantes que o solicitaram, ao integrarem sorrateiramente tais valores nas suas algibeiras ou na de terceiros a eles associados, transforma esta questão numa autêntica camisa-de-onze-varas.

O facto de os titulares dos órgãos dos poderes públicos possuírem a prerrogativa que lhes é conferida por Lei de agirem discricionariamente (o que não se confunde com arbitrariedade), dificulta a cognição absoluta, por parte do país mutuante, no sentido de saber se foram observados, no país mutuário, todos os pressupostos formais e substanciais legais idóneos a tornar legítimo o empréstimo, pois, em regra, esses contratos são consignados pelo titular de cargo público com poderes para o consignar. Entretanto, a falta de autorização expressa para que o assine ou o destino ilícito que se dá a tais valores monetários, sendo que se trata de um destino manifestamente contrário aos interesses da população no seu todo é que ilegalizam o acto e o tornam odioso.

Assim, torna-se tarefa dificultosa para o país mutuante controlar, no momento da celebração do contrato de crédito, se os pressupostos formais e substanciais legalmente estabelecidos no ordenamento jurídico do país mutuário, foram, ou não, satisfeitos por este país mutuário em todo o transcurso do processo de contraccão de uma dívida externa. Este controlo deve ser realizado pelos órgãos inspectivos do país mutuário (mundialmente exercidas pelo Parlamento, Tribunal Constitucional e Tribunal Administrativo ou órgãos da mesma estirpe independentemente da denominação que se lhes atribui), no âmbito da fiscalização das actividades do Executivo/Governo.

Por isso, ao país mutuante, após conceder os valores do empréstimo, importar-lhe-á somente a satisfação do seu crédito, o que facilmente se percebe, pois estando este país/organização internacional de boa-fé, não se lhe podem assacar responsabilidades decorrentes da ilegalidade da [e na] contracção dívida, pois aquelas responsabilidades devem somente ser atribuídas ao país mutuário e/ou seus governantes com participação directa no processo ilegal.

Cenário diferente observar-se-ia caso o país mutuante também estivesse de má-fé. A má-fé, neste caso, traduzir-se-ia no conhecimento sobejo (por parte de quem empresta) de que os dirigentes políticos do país que pede o empréstimo, e contrai a dívida externa odiosa, não possuem legitimidade para o efeito, em virtude da existência de um dos elementos que torna a dívida ilegal/nula/anulável, cujos exemplos foram demonstrados na “Parte I” deste artigo e que se reflectem nos vícios do acto administrativo, tais sejam o desvio de poder, a incompetência, a usurpação de poder, a ilegalidade e violação da lei, aos quais se acrescenta outro vício, fruto da laboração da doutrina jurídica brasileira, que é o excesso de poder.

Se o que se disse acima é de percepção relativamente fácil e mediana, o mesmo já não se poderá dizer no que concerne àqueles casos em que um órgão fiscalizador do país mutuário, com poderes para o efeito, declare nula a contracção da dívida efectuada pelos membros do respectivo Governo. Imagine-se que um Tribunal Constitucional declare nula a dívida contraída pelo Poder Executivo, numa circunstância em que se esteja a verificar o pagamento das prestações monetárias que este país está adstrito a realizar, em conformidade com as obrigações assumidas pelo Executivo (em nome do seu país), que opções restariam a esse país?

Antes de responder a pergunta, torna-se míster aclarar que, como princípio universal assente, «O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguirse por mútuo consentimento» (é o que, entre nós, reza o n.º 1 do artigo 406 do Código Civil e é princípio sacrossantamente adoptado na esmagadora maioria dos ordenamentos jurídicos, bem como pelas regras do Direito Internacional).

O contrato não é celebrado entre o governante que o assina e o país/organismo internacional mutuante, mas sim entre o país mutuário (representado pelo governante que o assina) e o país mutuante. Consequentemente, à luz das cláusulas contratuais, os efeitos jurídicos pretendidos com o empréstimo repercutem-se, em princípio, na esfera do Estado e não na esfera da pessoa psico-física que obrigou esse mesmo Estado. À luz do contrato, o devedor é o Estado (e não o governante que assina), sendo, por isso, perfeitamente compreensível que seja a esse Estado à quem o credor exigirá o pagamento da dívida.

A pernície reside no facto de ser uma dívida cuja origem é criminosa e, por isso, o próprio Estado devedor não a reconhece, visto que, no nosso exemplo hipotético, o respectivo Tribunal Constitucional terá declarado a respectiva nulidade. Quid Juris?

Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. É o que dispõe o n.º 1 do artigo 289 do nosso Código Civil, princípio que encontra acolhimento unânime sob o ponto de vista universal, constituindo matéria assente que o efeito retroactivo e a restituição de tudo o que tiver sido prestado são características intrínsecas da declaração de nulidade de um acto. Este artigo tem perfeita correspondência com o internacionalmente legislado sobre a matéria, sem perdermos de vista que, à luz do Direito Internacional, são odiosas as dívidas contraídas por governos que violam princípios fundamentais inculcados na Carta das Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos inumerosos pactos internacionais sobre direitos civis e políticos, económicos, sociais e culturais. Referimo-nos, aqui, às denominadas “jus cogens” – normas vinculativas do direito internacional.

A retroactividade acima mencionada faz com que tudo se tenha de revolver ao momento inicial, ou seja, o país devedor restitui, na íntegra, o valor da dívida odiosa, sendo importante separar duas situações distintas: (1) se o credor concede um empréstimo, estando consciente da sua finalidade odiosa, o Estado devedor pode recusar-se a pagar o valor da dívida, justamente devido ao conhecimento prévio (por parte do credor) do carácter criminoso da dívida. Um Estado não pode ser obrigado a pagar à quem o prejudicou intencionalmente por via criminosa, sendo que esse pagamento, como se não bastasse, seria para cobrir justamente o crime cometido pelo credor contra o Estado devedor. Neste caso, são as pessoas psico-físicas (os titulares do poder público) que oneraram o Estado devedor, que possuem o ónus de restituir o que lhes tiver sido prestado e que deram um destino criminoso; o empréstimo concedido sabidamente para atender a propósitos pessoais ou sem benefícios à colectividade constitui um acto hostil à população, a qual não deve responsabilizar-se pelas dívidas pessoais, individuais, singulares e particulares, incorridas pelo governante que hipotecou criminosamente o seu próprio Estado. Em sentido oposto, (2) os pagamentos restitutivos e retroactivos são devidos nos casos em que o país que concede o emprestimo tenha agido de boa-fé, rememorando-se que a boa-fé traduz-se no desconhecimento da odiosidade da dívida (na “Parte I” do presente artigo, publicado há uma semana, explicitamos o que é uma dívida odiosa).

Se no cenário “(1)” o Estado devedor tem a legitimidade de rejeitar o ónus de pagar a dívida, no último cenário “(2)”, o Estado devedor assume a restituição dos valores mutuados perante o Estado/organismo internacional credor, em termos similares ao tratamento que se dá à figura da “responsabilidade comitente”, que, entre nós, vem definida no n.º 1 do  artigo 500 do Código Civil, que preceitua que aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar, norma que é secundada pelo respectivo n.º 2 que dispõe que a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada. Nesta circunstância, e em consonância com o vertido no n.º 3 do citado artigo, o Estado tem a prerrogativa de accionar o “direito de regresso” contra quem o defraudou, que consiste em ir buscar no património daqueles que embaíram o Estado e seus cidadãos, os valores de que aqueles ilicitamente se assenhoraram, ao enquadrá-los nos respectivos acervos patrimoniais ou nos de terceiros a eles associados.

O que se disse atrás constitui “transplante” do previsto no n.º 2 do artigo 58 da Constituição da República que, sob epigrafe “Direito à indemnização e responsabilidade do Estado”, estabelece que «Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei»   

Conforme resulta do cotejo interpretativo dos artigos precedentemente reproduzidos, e porque não se pode duvidar da natureza criminosa das dívidas odiosas – que atingem uma dimensão de crime lesa-pátria – revela-se imprescindível a instauração de processos-crimes contra os visados, dentro do qual, para além de se apurarem as responsabilidades criminais dos mesmos, ir-se-ão, outrossim, fixar as responsabilidades civis que se consubstanciam no dever de colocar indemne o Estado lesado (por via disso, indemnizam-se também os cidadãos, pois se presume que valores do erário público destinam-se a satisfação das necessidades destes), e ainda as responsabilidades administrativas que podem ir desde a simples multa até a proibição do exercício de determinadas actividades ou cargos de natureza pública. Portanto, nos ordenamentos jurídicos com estruturação similar ao nosso, é ao abrigo do “princípio da suficiência da acção penal”, entre nós estabelecido no artigo 2 do Código de Processo Penal, que as coisas se processam, na medida em que aquele artigo refere que «(…) no processo penal resolver-se-ão todas as questões que interessem à decisão da causa, qualquer que seja a sua natureza».

 

Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

 

No final da cerimónia que acabou elegendo Faizal Sidat Presidente da FMF, Tico-Tico “desceu à terra” e proferiu palavras que dão para registar, pensar e cobrar. Disse o ex-capitão dos Mambas, candidato derrotado ao pleito eleitoral: “Se o novo Presidente conseguir, em quatro anos, pôr em prática metade do que o seu manifesto promete, o futebol moçambicano dará um bom passo em frente”.

 

SHOW SEM OFF

Estão quase generalizadas no nosso país, as promessas em campanhas eleitorais, que nunca terão a necessária cobrança, na hora da verdade. É normal ouvirmos dirigentes, aos vários níveis, dizerem que a meta foi cumprida em… xis por cento! O que deveriam referir – e depois justificar – é, pura e simplesmente, que o prometido, por vezes solenemente, não foi cumprido.

As eleições na FMF terminaram. Espero que tenha ganho o futebol, uma vez que todos disseram na véspera que, independentemente dos resultados, iriam contribuir para os passos em frente que todos ambicionamos.

O que achei negativo desse evento? A excessiva mediatização! Ouvimos falar mais de Tico-Tico em poucos dias, do que em vários anos de goleador; Simango Júnior e Faizal Sidat, foram em poucos dias mais falados do que Eva Nga, Miquissone, Diogo ou Jeitoso; personalidades que habitualmente consideram o futebol assunto de “matrecos”, fizeram-se à cerimónia, ganharam protagonismo. Provavelmente só os voltaremos a ver daqui a quatro anos! E como se não bastasse, jornais e noticiários da nossa praça, fizeram as suas manchetes com os resultados das eleições, subalternizando o bi-campeonato das meninas do Ferroviário, na maior prova continental!

 

REDUZIR AS DEPENDÊNCIAS

Virar para África e acertar o passo em relação ao Mundo, é importante. Mas deverá residir aí o foco das nossas atenções? É tempo de reduzir as dependências do “Estado-papá” e dos parceiros. Sobretudo quando para estes, o retorno é quase nulo.

Nesta altura, fala-se da impossibilidade de participação no próximo Moçambola, do Incomáti e Textáfrica. Outros clubes estarão também na “corda bamba”. Como reverter este cenário para que o futebol, como rei dos desportos, passe a depender de si próprio?

Venda de craques, publicidade, receitas dos campos, quotização dos sócios, são a forma de sustento do futebol, como negócio atractivo que é, em todo o mundo!

 

DIFERENCIADORES SIMPLES

Os três manifestos continham assuntos com que me simpatizei.  Gostaria de me deter nas coisas simples, mas que podem marcar diferenças.

– Depois da edificação do “elefante-branco” que é o Estádio do Zimpeto, fazer o mesmo em Inhambane – ressalvadas as dimensões entre as cidades de Maputo e Maxixe – seria um erro. Dividir a verba e fazer pequenos campos nas províncias, traria mais ganhos e a área da formação agradeceria.

– Reatamento dos jogos entre Selecções provincias, como forma de reactivar orgulhos zonais, iria ajudar a aumentar alguma auto-estima adormecida.
– Incluir, sempre que possível, jogos das camadas jovens – para lhes dar visibilidade – antes das partidas do Moçambola motivaria, dando visibilidade aos talentos em embrião.

A finalizar: tal como concedemos fama às qualidades de Ronaldo, Messi e Neymar, mesmo não entrando em eleições federativas, se tivermos que “endeusar” alguém no futebol da nossa praça, então que isso seja feito aos craques e não aos que os dirigem!

 

 

 

Quem me dera poder ter o pendor empreendedor ou, ao menos, inventivo, para, de forma consistente, divulgar uma plêiade de nomes, ao largo dos quais muitas vezes passamos sem lhes darmos a merecida atenção! Divulgar, isto é, publicar seus feitos literários, pela força emotiva que têm, pela carga de sapiência que transportam, pela erudição que impregna os seus conteúdos, ainda, na plenitude da sua juventude!

São jovens que brotam do nosso chão, não, porém, como cogumelos que espontaneamente nascem aqui, ali e acolá, como erroneamente se pode pensar, mas como jovens que, de tanto ignorados, se levantam, a pouco-e-pouco, com esperança é certeza, do chão, por sua conta e risco, e erguem suas vozes, cujo eco retine nos ouvidos daqueles que,  indiferentemente as ouvem e as subestimam ou, daqueles que, verdadeiramente, se prestam a ouvi-las, mas pouco ou nada podem, por elas, fazer, porque excluídos dos pódios decisórios.

São "Lume Florindo na Forja", como outrora outras vozes assim surgiram, nos primórdios da poesia moçambicana e ao longo do seu percurso temporal, como o autor destas linhas, nas mais profundas dobras da extensão deste país, então de poetas, e fizeram o brilho das suas épocas e hoje, alguns, com firmeza, continuam a lapidar, plenos de conhecimento e experiência, o verbo-sangue da sua alma, nas artérias do seu povo, uns, fazendo jus à continuidade do não vão epíteto: País de Poetas! Outros, sem, porém, espírito minimalista em relação aos confidentes das musa, calcorreiam os passos iniciáticos de  Luis Bernardo Honwana, e tentam, de forma, um tanto descontinuada, entremear a tradição poética, fazendo, assim, amalgamar a poesia e a prosa, num como que cocktail das letras. Quer queiramos, quer não, são todos poetas com diferenças de prurido. Nos tempos modernos, que são estes que correm, os nossos, a poesia diversificou-se ou tornou-se resiliente quanto à sua sua forma clássica. Hoje, ela continua com as suas estrofes, mas já não policiadas pelos gendarmes da classificação estrófica, da rima, da medida do verso, da métrica, enfim, de todos os ingredientes canónicos que sempre a caracterizaram! Ela foi entrado para o domínio comandado pelo texto corrido, pela prosa, adoptando o nome colateral, mas nem por isso, menos vibrante, de prosa-poética; ela foi entrando no romance, no conto, na crônica, na novela, no teatro, na história, enfim, hoje, ela é tudo isso ou, tudo isso veste o manto da poesia! Não há nada melhor que o nome genérico de Literatura, para significar essa fabulosa amálgama de gêneros, pois, qualquer um deles, enverga a roupagem da poesia ou seja, afinal, o nosso país continua a ser um país de poetas distribuídos pelos diferentes ramos ou modalidades da literatura!

Menciono alguns vates novos, selecionados aleatoriamente, de um  vasto leque de confidentes das musas, e prosadores que, para além do já dado a estampa, ainda terão as suas criações largamente divulgadas, não, apenas pela abundância, mas por inequívoca qualidade, fruto de muito talento, do conhecimento, resultante de estudos aturados desta área em que quem fala é a alma, o espírito dos autores literários, esta área, essencialmente, epistemológica.

Nesta menção, não se enverede, pois, nem há lugar para isso, ao julgamento desta iniciativa, pela gratuita via de equidade do gênero, sem a compenetração necessária da realidade literária moçambicana, pois, como anteriormente se frisou, trata-se de um exercício aleatório de trazer à tona escritores e poetas que raramente são mencionados na nossa arena literária, independentemente do que a rifa genética tenha atribuído ao seu estado biológico. Os acontecimentos podem ser únicos, mas sempre se repetem, montados no cavalo do tempo, revestindo, certamente outras roupagens, condicentes, naturalmente, com a sua época, mas surtindo os mesmos efeitos, o apuramento da veia criadora, baseada no que vai na alma dos criadores literários/poéticos.

Pois, esta verve confunde-se com a dos jovens de ontem! Ela é como que uma ressonância do grito antigo, sobre uma escala cromática polida, renovada, sobre o solfejo da mesma pauta, impressa e expressa, para que todos a leiam e interpretem da forma que a evolução das coisas, no espaço e no tempo, exige.

Estas vozes cantam e encantam! 

Não exaustivamente, lança-se, aqui, um feixe deles, apenas para servirem de mostruário que se deseja seja uma carta guia do mundo actual da literatura moçambicana:

Leco Nkhululeko, Marcos Matosse, Ernesto Moamba, Anísio da Conceição, Anísio Buena….., Emmy Xyx, Isa Manjate/Manhique, Predestinada/Amélia Matavele, Japone Arijuane, Heliodoro Baptista Jr., Isa Manhique, Rudencio Morais/ Falso Poeta, Nelson Lineu, Pedro Pereira Lopes, Mbate Pedro, Sangari Okapi, Rinkel, Mauro Brito, Amosse Mucavele, Aurelio Furdela, Sangari Okapi, Chakil Aboobacar, Dionísio Bahule, Dany Wambire, Alex Dau, Mukuda Pinho, Arnaldo Bata, Ivone Soares… (aos mais novos da nossa literatura não mencionados aqui, devem-se sentir, implicitamente citados, pois, este espaço que aqui abri é de todos eles. 

Entenda-se, pois, esta mal traçada prosa, como o motivo que me impele a apelar a quem, por definição oficial ou, ao menos, oficiosa, tutela, promove ou deve promover as letras nacionais, a apurar os seus instrumentos de acompanhamento do nosso desenvolvimento literário, os seus radares devem agir, no sentido de detectar e valorizar, não só as antigas glórias desta área, mas também e sobretudo, as novas vozes que despontam no universo literário moçambicano, pois, estas asseguram não só o presente, a continuidade, como, também, a certeza do futuro das nossas letras. O mesmo apelo vai para os mecenas, para os patrocinadores, para todas as pessoas individuais ou coletivas, de boa vontade.

A erudição no título desta reflexão, é-o na verdadeira acepção do termo, a avaliar, em primeiro lugar, pelos títulos que estes autores atribuem às suas obras e, de seguida o discorrer do verbo que com ele condiz, ao longo dos textos. Sente-se, por vezes, que, todavia, a inexperiência, em alguns, se manifesta, algum lapso de firmeza, próprio dos passos iniciáticos da juventude, sem que isso, contudo, vença ou faça sucumbir o seu estro. Julgo, de toda a maneira que essa trepidação, em alguns, repito, é superável com a perseverança. Literatura é cultura, é, também, voz! É o canto histórico e estóico do povo moçambicano. E, as vozes aqui referidas, são o canto desse povo, são as vozes dos sem voz.

 

Uma breve recomendação

Não esperemos que apenas seja o exterior a reconhecer o nosso talento e trabalho, que aliás, a ventura externa mal nenhum faz, mas, acaba viciando os nossos autores, fazendo com que se sintam "cereja no topo do bolo", em relação aos que ficam por terra, no sentido de que fá-los, primeiro, olharem para fora antes de olharem para si próprios e para as suas origens. A atitude da externalizacao, às vezes, acaba acirrando algumas, se bem que injustificadas, animosidades, incompreensões, ódios, invejas e quejandos, dificultando o regresso à casa, muitas vezes, por má vontade dos que se mantiveram nas raízes e tem algumas influências na área! Falo do que sei! 

Aconselho luta interna, persistência, paciência! A perseverança é a chave-mestra para se angariar reconhecimento pelo meio em que se vive, em que se está inserido, e, assim, com alguma segurança, fazer-se à aventura externa! 

Lá fora, informam-se, primeiro, do desempenho interno dos autores, através das agremiações do tipo, que não são poucas no nosso país, e, depois é que se interessam, de acordo com o impacto da obra de determinado autor! Corta-matos, pelas razões anteriormente referidas, são prejudiciais, muitas vezes, ao autor e à sua obra, no sentido de que a apreciação pode ser falsa em relação à história original que o autor procura expor, pois, os analistas externos, muitas vezes, pouco ou nada sabem da realidade moçambicana! Os leitores externos do original, não tem as lentes da origem da obra! Temos de amadurar o nosso empenho cá dentro e, depois, exportarmo-lo. E não o inverso ou seja: primeiro exportar o não amadurado, não provado e, não aprovado pela escansão da terra!

Não se está, aqui, a negar a universalidade das obras literárias, está-se, apenas, a aconselhar cautelas! O cavaleiro, antes de empreender a sua viagem, aparelha a montada, com o devido requinte, depois é que se faz a pradaria!

Outra contrariedade. porém, é que se encanta leitores de outras paragens que não conhecem a nossa realidade objetiva e, contentamo-nos com o simples impressionar os nossos companheiros do dia-a-dia, com o risco de acarretarmos o que atrás já se disse!

Antes de sairmos de casa revíramo-nos diante do espelho, para apurar a nossa aparência, aquela que queremos seja apreciada lá fora, porque nossa real imagem! 

Alguns autores são, sim, com mérito, reconhecidos fora do país, arrecadam prêmios e comentários de grande valia, que lhes unta o espírito criador. De entre eles, de alguns nunca se ouviu falar, em nosso solo pátrio! Isto quer dizer que "anda marrosca" neste assunto! Ou como diziam os brasileiros do tempo do esclavagismo: "Tem caroço debaixo desse angu!". Há um ditado popular que diz: "Antes de conhecer os outros, conhece-te a ti mesmo!" Ou, simplesmente, antes de te fazeres conhecer fora, faz-te conhecer dentro do teu país, pois, só assim, lá fora poderás contar, convincentemente, aos outros, a história das tuas origens, orgulhares-te de onde és oriundo! Mau grado que a inércia das nossas instituições internas, de tutela, estejam, lamentavelmente, em terrível estado de letargia!

 

Post script:

Um exemplo: 

Apesar de já ser casca velha na literatura moçambicana, em 2017, enviei, instigado, por um amigo, um original meu, a um editor brasileiro que foi, depois, editado, em Janeiro de 2018. Acredite-se, até ao final do ano da edição, o livro não era conhecido em Moçambique, senão, por retalhos informativos encomendados, por mim, a alguns jornais, sem sequer, a referência da própria capa do livro, apesar de o editor o ter colocado, comercialmente, na plataforma Amazôn! Até que decidi reedita-lo em Moçambique, em Abril de 2019 e, apesar de ter sido uma reduzida tiragem, deu no que deu: Um sucesso! A primeira edição, a brasileira, jamais foi conhecida em Moçambique! Dai? Os interesses do meu editor externo eram outros! Ele passou por cima dos meus sentimentos, pois eu dedico a obra a minha mulher e o meu interesse era lançá-la no dia do seu aniversário natalício, em Abril de 2018. A ele não interessavam as minhas emoções, ante o momento eleito para o acto, diante do meu público! 

Nota do editor/Prefácio, pomposo, com níveis comparativos extraordinário: invocou um grande nome lá das terras de Vera Cruz, Vinicius de Moraes, e outro lá das carpas chilenas, Pablo Neruda, colocando-me no meio, como o fiel da balança, igual ao coelho que, nas margens da vereda, pôs dois mastodontes a puxarem a corda sem se verem, ambos a pensarem que estavam a competir com o lapirino e ele a rir-se a bom rir, do resultado da sua engenhosidade. Ainda bem que nem Vinicius nem Neruda estão entre nós, para me pedirem contas! E duvido que todos os escritores e leitores moçambicanos saibam quem, de facto, são, as figuras quase lendárias de que estou a falar!

Nenhum escritor moçambicano, daqueles que realmente sempre me inspiraram, foi invocado?! Que ganho tive nisso, senão a desilusão?!

Estou a falar da obra MEU MAR.

O amigo que me instigou, nada ou quase nada dele se diz aqui no país, apesar de já ter duas obras editadas no Brasil! Por que será?

O exterior pode dar algum brilho às nossas intenções mas, definitivamente, não é a solução das nossas inquietações.

 

 

   

 

 

 

 

“As Palavras”, 1964, de Jean Paul Sartre, é um livro autobiográfico que narra a infância do autor quando tinha a idade compreendida entre os 4 e os 10 anos. Considero, pessoalmente, esta faixa etária como sendo a do deflagrar da consciência e da descoberta do mundo por uma criança. É a fase da fusão entre o real e o imaginário, e também da confrontação entre estas duas dimensões do mundo infantil. É por essa razão que é um livro bem conseguido pela riqueza de memórias e de imaginação.

Filósofo, escritor e ensaísta, Jean Paul Sartre (Paris, 1905–1980), é um dos autores que marcou o decurso do meu processo de leituras e de formação literária. Autor de livros como “A Náusea”, “O Muro”, “A Morte Feliz”, “Entre Quatro Paredes”, “Um Crime Monstruoso”, “A Prostituta Respeitosa”, entre outros, como filósofo conseguiu difundir em grande medida o seu pensamento “existencialista” através da literatura.  

Sou, por opção, um tanto quanto agnóstico em matéria filosófica e religiosa  – esse ser-e-estar confortável na busca da verdade -, já que considero-me um eterno aprendiz. Mas foi lendo Sartre que interiorizei e assumi com alguma paixão a contradição, quer seja intrínseca quer seja aparente, entre a “responsabilidade” e a “liberdade” individuais. Mesmo assim, e nesta mesma senda, continuo avesso a quaisquer tipos de radicalismos e/ou fundamentalismos, principalmente daqueles que decorrem da conceptualização do mundo. E o pensamento Sartriano terá certamente contribuído para a compreensão um pouco mais alargada sobre a minha condição no mundo.

No campo literário, Sartre, com “As Palavras”, levou-me igualmente ao entendimento da natureza das palavras – esses seres mágicos, disfarçados em simples sons balbuciados pelo homo sapiens, seres obreiros do levante humano iniciado com a cognição, comparável somente com a revolução das mãos e da pedra lascada na modelagem corporal do Homem. Para o poeta Eugénio de Andrade,  “são como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio. Secretas vêm, cheias de memória”. E no livro de Sartre elas são efetivamente aquela memória de apelar e embalar. E porque elas podem depender também da vontade de quem as trabalha, diz Sartre “Em todo caso, meu olhar labutava as palavras: era preciso experimentá-las, decidir de seu sentido”. Sartre não só apregoa liberdade à quem as trabalha como também às próprias palavras.

Dono de uma humildade própria de quem se curva perante a humanidade, Jean Paul Sartre declinou receber o prémio Nobel de literatura, a si atribuído em 1964, justificando que “nenhum escritor pode ser transformado em instituição”; seja como for e para todos efeitos ele é um dos “nobelados” em literatura, no século XX.

Tem graça que Sartre numa das suas visitas a então União Soviética prestou um bom serviço aos soviéticos, particularmente aos escritores e outros intelectuais, ao reclamar com repugna e indignação a não publicação e circulação da obra de Kafka no seio daquela sociedade. Note-se que Kafka era considerado um escritor alienado pela burguesia decadente aos olhos do então regime comunista.

Homem de esquerda, anticolonialista e simpatizante do Partido Comunista Francês, Sartre apoiou a luta da Argélia e, usando das prerrogativas de um “Para-si condenado a ser livre”, nunca hesitou em alinhar naquilo que considerava ser as grandes causas, mas sempre consubstanciadas na própria acção.

Como, aliás, todo grande pensador, Sartre tinha inimigos também, alguns dos quais que até festejaram com a notícia da sua morte, mas é igualmente inegável que com o seu “existencialismo” influenciou muitos intelectuais do século XX, e não só, de tal modo que nas suas exéquias participaram cerca de 50 mil pessoas, como reconhecimento de seu contributo para a compreensão da realidade humana.

Um dos problemas com o qual me deparei, quando me foi colocado o desafio de apresentar o livro de Leo Cote, foi naturalmente o título: “Campo de Areia”. Um título que, sob muitos aspectos, encerra, à primeira vista, uma flagrante redundância, qualquer coisa de óbvio e de absurdo. Porque, em princípio, como se caracterizaria a priori um campo? Ou seja, qual seria a primeira condição necessária e indispensável de um campo, a partir da qual todas as outras condições seriam acidentais, prescindíveis em comparação com tal condição?
Contudo, a redundância ganha um outro sentido, quando nos compenetramos mais profundamente na análise da problemática que o título suscita, as possíveis sugestões que ele nos fornece, bem como no conteúdo que ele representa e à luz daquelas que tem sido as grandes discussões polares, eternas e estruturantes em torno da relação entre a Literatura e a sociedade, ou, se quisermos falar em termos gerais, quando nos envolvemos na análise da correlação entre a obra de arte enquanto dimensão de transcendência, isto é, desligada, só para nos expressarmos em termos kantianos, do concurso da experiência, desligada das preocupações dos homens, ao mesmo tempo que precisa de se traduzir de uma forma que seja comunicável aos homens, muito justamente porque é por ironia um produto feito para servir a eles, por um lado, e os materiais que ela decompõe, por outro. Tal sentido é o da metáfora e o do questionamento da condição da poesia, isto é, da obra de arte literária, nomeadamente, o seu carácter ambíguo, na medida em que se insere numa dimensão a que chamaríamos transcendental ao mesmo tempo que recorre ao empírico para representar ou tornar possível essa mesma dimensão transcendental.

Para oferecermos um quadro global sobre esta problemática ao longo da história da tradição literária e mostrarmos como a poesia de Léo Cote se enquadra nelas, tornando-se importante recuar às primeiras tentativas de concepção da produção literária, que se encontram em Platão e Aristóteles e avançarmos até hoje. A conclusão a que este rastreamento nos levará é que o entendimento da natureza e essência da arte na sua relação com a empiria foi sempre um entendimento extremado, no sentido em que ambas são vistas como estranhas uma da outra, e mesmo quando estabelecem algum tipo de relação esta se reduz a uma mútua instrumentalização.  

Este é o entendimento que Platão tinha da poesia, ao denunciar o seu carácter mimético, e submetê-la ao mesmo princípio que remetia todas as coisas, nomeadamente que eram cópias imperfeitas das ideias, e, por essa razão, descrevê-la em termos depreciativos e inautênticos. O que este entendimento nos sugere é que a essência da poesia, se ela quisesse gozar de alguma dignidade e autonomia, não deveria ser buscada na sua dimensão mimética, ou empírica na sua dimensão ideal ou, se quisermos, transcendental. O mesmo se pode dizer relativamente, tanto aos processos da sua produção quanto aos sujeitos que a produzem, neste caso os poetas. Por seu turno, Aristóteles, ao conceber a poesia como imitação, e ao aceitar que a mesma era uma característica intrínseca à natureza humana e que deveria concorrer para a moralização da sociedade, acabando, duma forma ou de outra, por legitimar não apenas a interacção quase que vital e necessária entre a arte e a realidade empírica, isto é, entre arte e os materiais que ela necessita para se tornar possível, mas também e, sobretudo, a primazia e a preponderância da dimensão empírica da obra de arte face a dimensão transcendental, pese embora ele mesmo se reposicione face a essa mesma ideia quando assume a poesia como sendo mais filosófica do que a História.

Como se pode depreender trata-se em ambos os casos de visões polares e extremadas que nos podem fazer perder de vista a obra de arte enquanto uma dualidade sem falhas entre o empírico e o transcendental, visões estas que, aliás, continuariam ao longo da história da reflexão sobre a arte em geral e sobre a literatura em particular a dividir opiniões entre, por um lado, a necessidade de cultivar uma arte desligada dos compromissos sociais, éticos, políticos, ideológicos e uma arte que estivesse ao serviço destes domínios, isto é, uma arte ligada à sociedade por relações instrumentais. O que nunca se admitiu é que tanto a arte quanto a sociedade, socorrem-se uma da outra, não para resolver problemas alheios, mas para resolver os seus próprios problemas, por uma necessidade vital. Mais do que indicar as relações instrumentais, apontar-se-ia as relações de simbiose, com benefícios mútuos, embora não simultâneos. Há neste a encenação de uma relação de simbiose entre a imitação e a coisa imitada.

Será muito provavelmente por causa desta relação de atracão e repulsão entre a arte e a sociedade que levara a prestigiada estudiosa brasileira, Vanessa Riambau Pinheiro a descrever a poesia de Léo Cote como encerrando um carácter fugidio em si. E o carácter fugidio da poesia só se torna possível através do jogo da redundância a partir do qual o poeta constrói o seu edifício poético, como se ignorasse os materiais concretos de que ele se constrói, ocupando-se tão-somente da forma genérica da sua existência.

Nestes aspectos a obra suscita-nos algumas questões tais como: Qual é a essência, se é que podemos falar de essência, da obra de arte literária, como funciona o seu jogo de representação; qual a função ou para que serve a obra de arte literária; qual o estatuto da obra de arte literária face as outras dimensões do saber; pode, a arte, enquanto do domínio do transcendente, gozar de uma plena autonomia face ao empírico em todas as suas múltiplas dimensões. E aqui podemos mencionar uma infinidade de questões e de propostas de respostas, mas todas elas divididas entre uma concepção idealista da obra de arte literária e uma concepção realista ou materialista, sugeridas na oposição entre o princípio de arte pela arte defendido pelos simbolistas franceses, Baudelaire, Guy de Maupassant, Mallaermé, Rimbaud e Flaubert e o princípio de arte pela ética, pela moral, pela ideologia, em suma uma arte com fins utilitários.

E aqui a obra de Leo Cote responde-nos positivamente, que sim, é possível encontrar um meio-termo entre uma concepção idealista da arte e uma concepção materialista, que é possível colocar a arte ao serviço dos homens sem reduzi-la ao mundo da experiência dos homens. E como isso é possível? Através do jogo da redundância, ou seja, a arte da construção da obra de arte literária, ignorando os materiais de que ela se compõe e atendo-se tão-somente nas suas categorias de existência, na sua enunciação. Com o efeito o poeta constrói o seu edifício poético, não com palavras objectivas que facilmente nos reenviem para o mundo específico dos homens, mas com palavras sensíveis, capazes de se adaptarem a qualquer realidade. Neste aspecto a poesia de Léo Cote não é um caso isolado. Há toda uma plêiade de autores moçambicanos, como João Paulo Jorge Coelho, Álvaro Taruma, Macvildo Bonde e outros, cuja estética literária ocorre não ao nível do conteúdo, mas ao nível da enunciação, do discurso.

Esse jogo de redundância ocorre já de partida na construção do título da obra, Campo de areia, pois segundo elemento “areia” já está pressuposto como primeira condição do primeiro “campo”. Se não se quiser admitir isto, pois bem, submeto o meu argumento a dois aspectos que se encontram no interior do livro, nesse jogo da construção de título. Refiro-me ao "Caderno das gravuras" e ao "Caderno das inclinações geométricas".

Tanto num quanto noutro caso estamos perante o jogo da redundância, ou o jogo da representação. Aquilo a que em terminologia literária se chama metáfora. E a metáfora enquanto fundada no princípio de analogia é um jogo de redundância em que o conceito do predicado nada acrescenta ao do sujeito, mas antes repete-o. Pois, é isso mesmo que nos dizem as ideias de gravura e de geometria enquanto estratégias de representação de algo que não existindo, poderia existir. E em todos estes sentidos, a obra de Léo Cote faz jus tanto ao primeiro quanto ao segundo princípio aristotélico segundo os quais a poesia é imitação e é mais filosófica do que a historia no sentido de que ao invés de se ocupar daquilo que existe, lida tão-somente com aquilo que poderia existir. Para Aristóteles essa imitação, (redundancia) não precisa necessariamente se basear naquilo que existe mas naquilo que poderia existir. Ao mesmo tempo estabelece uma síntese com a visão platónica na medida em que o seu processo de construção e representação começa e culmina ao nível do ideal ou transcendental. Concorre para efeito o emprego de uma linguagem destituída de identidade telúrica, geográfica, cultural, uma linguagem sem linguagem, uma linguagem que nos remete a um universo cosmopolita. O tempo e o espaço na sua dimensão conceitual e fugaz, intangível, desligados da experiência concreta dos homens.

Talvez doa menos uma gaivota no mar/ ou as abelhas toscas a salpicar o chão/ Aprendemos com as andorinhas/ a ver e ouvir passar o tempo/ e é severo o dia/ de não querer mais dele

Como nos mostra este poema em que procura encontrar o ponto de equilíbrio entre a dimensão transcendental da arte e a dimensão empírica. Nesse jogo de palavras que resultam nem em cópias fieis da realidade empírica, social, ideológica, nem em cópias fieis do mundo inteligível da poesia, como se pode ler no poema.

O tempo é uma casa grande/ que apodrece devagar/ não há luz que o apague/ nem há metáfora que o redima.
Com efeito o “tempo”, “a casa”, “a luz” aqui evocados não o são na sua dimensão empírica, social, isto é, que se associe ao mundo das experiência dos homens, mas o tempo na sua dimensão transcendental. Aliás, o mesmo se verifica com evocações de espaço, como campo de areia, no título. Aqui também não lidamos com um campo de areia que se associe a um mundo de experiência de uma determinada sociedade ou cultura, mas a um campo abstracto. Trata-se de areia enquanto um mero elemento da natureza, destituída de qualificativos como coloração e funções, não se trata de “areia de incomati”, aquela que utilizamos na área de construção civil, nem são as famosas areias pesadas que se tornaram um recurso estimável, muito menos se trata de “campo de treinos”, “campos de reeducação” ou de qualquer outra coisa.

E o poeta opera a semelhança do que Deus faz no seu acto da criação do mundo, em que opera a nível dos princípios, dos conceitos, dos postulados no sentido de que ao invés de construir o mundo efectivamente, dado que ele já dispunha da ideia da sua configuração e dos materiais de que ele se compunha, limita-se a repetir essa mesma ideia como se estivesse a emenda-la ou a experiencia-la mentalmente, sem ter em conta os materiais. E ai onde vemos formulada o conceito do homem enquanto um ser intangível.

No principio Deus criou os céus e a terra;  e passou a dizer venha a haver luz, então veio a haver luz e deus viu que era bom. (…) E Deus prosseguiu dizendo, Produzam as águas um enxame de almas viventes e voem criaturas voadoras sobre a terra, na face da expansão dos céus. (…) E deus pode ver que era bom.

Atente-se aqui a ideia de ver que não se trata de uma visão empírica mas antes de uma visão transcendental (mental), uma experiência que a mente divina tinha consigo mesma, com base na sua faculdade de abstracção.

Como se pode depreender tanto Deus quanto o poeta não concebem as coisas e depois as executam pelas suas próprias mãos, mas deixam a tarefa de as construir à responsabilidade de terceiros. Se, por um lado, Deus, após criar o mundo em e todas as coisas a nível conceptual durante os seis dias, deixou aos homens a tarefa de fazer esse mundo transitar dessa forma conceptual para a forma empírica ou prática, na medida em que a ideia de homem como um ser feito a semelhança de Deus só veio a ser construído na esteira dos dez mandamentos de Deus, anunciados pela boca de Moisés, por outro, o poeta deixa ao critério do leitor a tarefa de fazer a obra de arte literária transitar da forma transcendental para a forma empírica.

E o desafio agora é nosso enquanto leitores, tendo como primeira condição a leitura de "Campo de Areia".
Américo Pacule
 
 

A escrita é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma recordação.
Roland Barthes

A palavra cantiga, na literatura, é muita antiga. Provém do latim e daí passou a significar canto ou melodia em português. Durante a Idade Média (séc. V – XV), designava-se cantiga a uma forma poética que conciliava a letra e o som, ou seja, o verso destinava-se ao canto e à instrumentação. Naquela época destacaram-se quatro principais cantigas: a de amigo, que exprimia a mágoa da moça do povo; a de amor, quando houvesse um trovador a lamuriar-se por uma paixão não correspondida; a satírica, se no texto predominasse um ataque por via da ironia e do escárnio; e de maldizer, se a tónica da troça fosse atirada directamente e de modo agressivo.

Massaud Moisés, estudioso brasileiro que se ocupou destas questões, repara que, a partir do séc. XV, com a separação entre o poema e a música, a cantiga passa referir toda peça lírica em versos curtos.

Considerando-se este pequeno princípio conceptual, pode-se facilmente enquadrar a poesia de Ivone Soares no que o termo cantiga etimologicamente sugere, isto é, a escrita desta autora, quer do ponto de vista estrutural quer do ponto de vista temático estabelece um regresso ao passado, captando no tempo o estilo e a estética peculiares a estes Salpicos de águas e sóis – meu eu poético, recentemente publicado.

Os poemas do livro de estreia de Ivone Soares são feitos de versos curtos, sincopados, os quais, bem à imagem das cantigas de amigo e de amor emprestam a este exercício uma dimensão telúrica no acto da enunciação.

Esta colocação ganha relevo nos textos, pois, dando voz a tantos sujeitos entristecidos, piegas muitas vezes, Ivone Soares é egocêntrica, no sentido de que o universo textual circunscreve-se apenas à medida dos anseios de um certo “meu eu poético”. Na verdade, até nessa parte do título a autora vinca essa demonstração possessiva, dominadora e demiúrgica. O eu poético de Salpicos de águas e sóis pertence a alguém. Logo, essa entidade faz dessa pertença o que a convém, por exemplo, um subterfúgio para expor a dor, como lamúria e como terapia: “Dói-me essa dor funda/ Que te pressinto/ Essa tristeza triste/ Que te leio nos olhos” (p. 11).

A origem da dor tácita e expressa em Salpicos de águas e sóis – sinceramente, Ivone Soares poderia ter encontrado um título melhor, mais poético, menos feio – é o vazio gerado pela distância entre quem ama e é amado. Neste pormenor, de facto, há no livro um carácter iniciático da poesia, a explorar outros elementos afins, como a saudade e a ternura, a desaguarem num surrealismo óbvio. A saudade imprime condições no poema: “Posso esquecer a saudade/ Se imaginar querer bem” (p. 15).

Irredutivelmente, a saudade é a condição primária destes Salpicos com lineamentos mais ou menos ao estilo medieval e/ou romântico. É a força motriz do poema, geradora da angústia, do desejo impossível de satisfazer. Aqui Ivone Soares encontra na ausência um requisito para tornar a satisfação da carne e anímica algo ainda superior. Também por aí transparece determinados hábitos, sobretudo esse de os Homens valorizarem quem está distante em detrimento dos que se encontram próximos. Estará a autora a sugerir que a saudade é essencial para o triunfo das relações? Talvez o poema “Tua dor, dói-me” ajude: “Dói-me a tua dor, meu Amor,/ Mas ainda o que mais me dói/ é a distância que fica,/ é esse vazio distante criado na saudade,/ mas que quero preencher de ternura e/ de amor para te voltar a ter” (p. 63).

Em suma, a distância, a saudade e a dor daí correspondem a elementar trindade de Ivone Soares, o ponto de luz que a aproxima às cantigas de outros tempos.

Título: Salpicos de águas e sóis – meu eu poético
Autor: Ivone Soares
Editora: Minerva
Classificação: 12

 

 

 «Algo mais, para além de tudo»

“DÍVIDAS OCULTAS E/OU ODIOSAS” (I)

Sua conceptualização, manifestações, natureza e regime jurídicos aplicáveis, tratamento, implicações e consequências

Uma das questões torrencialmente ventiladas no panorama internacional, mas que, entretanto, suscita, ainda, uma série de dificuldades de compreensão, manuseamento e solucionamento é o fenómeno das chamadas dívidas ocultas (comummente denominadas também de “dívidas odiosas” ou “ dívidas ilícitas”).

A temática é paradoxalmente complexa, visto que, forçosamente, obriga a uma análise paralela e simultânea de vários prismas: quer à luz das normas do Direito Internacional [Público e Privado], quer à luz das normas internas do Estado em nome do qual a dívida é contraída; quer ainda à luz da responsabilização daquele Estado e/ou das pessoas psicofísicas que assumiram obrigações “em nome daquele Estado”, isto só para citar alguns exemplos de aspectos que são chamados à colação, quando nos enrostamos com este fenómeno de dificultosa apreciação e tratamento. 

No meio desta salganhada jurídica, merece particular atenção a análise de cenários onde um Estado, obrigado a pagar a referida dívida, tem ainda de curar que corra, em simultâneo, o processo judicial destinado a responsabilizar os indivíduos que o “hipotecaram” perante terceiros (outros Estados, organismos públicos internacionais ou instituições do Direito Privado sedeadas noutros ordenamentos jurídicos) com a finalidade de expropriar os preditos indivíduos, permitindo que o Estado “devedor” salde a dívida, não directamente do respectivo erário, mas sim por intermédio do património daqueles que terão obrigado o aludido Estado.

A via de acesso para a contracção das dívidas ocultas, decorre precisamente da faculdade que é, por Leis domésticas, conferida à generalidade dos respectivos Estados, como corolário da sua soberania, de contrair empréstimos, normalmente sujeitos a juros, com a promessa de que o Estado mutuário restitua futuramente do valor mutuado, dentro das condições contratuais previamente previstas e estabelecidas.

Por exemplo, entre nós, o n.º 1 do artigo 56 da Lei n.º 9/2002 – Lei do Sistema de Administração Financeira do Estado, doravante tratada somente pela sigla “SISTAFE” – estabelece que a dívida pública compreende as obrigações financeiras assumidas em virtude de leis, contratos, acordos e realização de operações de crédito.

Portanto, constitui um procedimento normal a contracção de uma dívida pública (quer interna quer externa) por parte de um Estado e as razões da sua contracção justificam-se pela necessidade de dotar o Estado de meios de solvabilidade, visando a prossecução do interesse público. A dívida pública será interna se for «contraída pelo Estado com entidades de direito público ou privado, com residência ou domiciliadas no País, e cujo pagamento é exigível dentro do território nacional» (redacção extraída da alínea a) do n.º 2 do artigo 56 da SISTAFE) e, contrariamente, a dívida pública será externa quando «contraída pelo Estado com outros Estados, organismos internacionais ou outras entidades de direito público ou privado, com residência ou domicílio fora do País, e cujo pagamento é exigível fora do território nacional» (redacção extraída da alínea b) do n.º 2 do artigo 56 da SISTAFE).

Nos parágrafos precedentes, faz-se menção sintética da legitimidade que os Estados possuem em contrair dívidas públicas (internas ou externas), factologia que constitui procedimento plausível para qualquer entidade (pública ou privada) que se veja numa situação de escassez de meios de liquidez, em virtude de as receitas arrecadadas mostrarem-se hipossuficientes para garantir a realização das despesas que se mostram pertinentes realizar.

Quando é que ela – a dívida pública – se torna odiosa/oculta/ilícita?

À luz da Doutrina do Direito Internacional Público, dívida odiosa é uma teoria legal que sustenta que a dívida nacional contraída por um regime político, com propósitos que não servem os interesses de uma nação, não deve ser compulsória, ou seja, o respectivo pagamento não deve ser imposto nem ao Estado e muito menos ao respectivo povo. Portanto, segundo esta doutrina, tais dívidas são consideradas como dívidas pessoais de um regime [político] que as contraiu e não, exactamente, dívidas do Estado. 

Os Estados são pessoas colectivas de Direito Público e possuem personalidade jurídica (susceptibilidade de ser portador de direitos e obrigações), que, no caso dos Estados, é originária. Sendo pessoa colectiva, as suas acções terão que ser executadas pelas pessoas psicofísicas que legitimamente foram eleitas/nomeadas/indigitadas para o representar, significando que, das acções desenvolvidas pelas sobreditas pessoas psicofísicas – as faces visíveis de um Estado – “supostamente em nome do respectivo Estado”, criam-se, a priori, obrigações para esse mesmo Estado.

A odiosidade de uma dívida começa a desenhar-se quando as retromencionadas pessoas psicofísicas com legitimidade para encetar actos jurídico-político-executivos idóneos a obrigar um Estado perante terceiros, de forma fraudulenta e simulada, desencadeiam obrigações para os seus Estados, mas, entretanto, objectivando assenhorar-se ilicitamente dos valores monetários provenientes do empréstimo.

Dito de outro modo: na dívida odiosa, a figura do Estado somente é usada e instrumentalizada (de forma abusiva) para fazer emergir os efeitos práticos do negócio: liberalização dos valores por parte do mutuante e captação individualizada, fulanizada e personalizada de tais valores, por parte daqueles que têm o privilégio de fazer emergir obrigações para o Estado, aproveitando-se desse privilegio conferido por Lei para perseguir objectivos pessoais, particulares, empresariais e individuais – logo, ilegalíssimos –, enquadrando tais valores no seu próprio património ou aplicando-os em investimentos ou operações financeiras cujas vantagens apenas ir-se-ão repercutir na esfera dos próprios ou de terceiros à sua escolha, causando gigantesco prejuízo ao respectivo Estado e gerando uma explosão e revolta social generalizada no seio dos seus cidadãos.

Na esmagadora maioria das vezes – senão em todas – este processo de apropriação ilícita dos bens do erário público, tem uma origem material e/ou formalmente ilegal, ou porque praticado por dirigente sem competência para o efeito, ou porque, tendo sido praticado por dirigente com competência para o efeito, careceria de autorização expressa para o efeito (autorização emitida por outro dos três poderes, no âmbito do controlo da acção governativa de um executivo, ou seja, é caracterizado por uma tramitação desviante relativamente àquela legalmente prevista, fazendo com que, inumerosas vezes, os cidadãos de um determinado país nem tenham o conhecimento da existência de uma dívida que lhes é susceptível de onerar por largo horizonte temporal. Neste último caso, a dívida é oculta (qualificação que parte do sentido etimológico do termo “oculto” que sob o ponto de vista semântico-linguístico-gramatical significa “escondido”, “clandestino”, “escamoteado”, “camuflado”), diferenciando-se, assim, da terminologia “dívida odiosa” que é usada sobretudo para significar que a dívida em apreço não só é uma afronta a um determinado povo, mas, sobretudo, cria nesse mesmo povo um veemente sentimento de repulsa que se confunde com o sentimento de ódio (pela dívida).

A contracção da dívida odiosa é, assim, interpretada como se o governante que a despoleta estivesse, literalmente, a escarnecer, humilhar, calcar brutalmente com sapatos robustos, fulminar impiedosamente a dignidade e consideração de todo um povo. Não só demonstra desprezo pelo povo por parte de quem contrai a dívida, como também faz de forma com que esse povo não tenha dúvidas da existência desse sentimento de desprezo.

É por isso que a dívida odiosa é, na maioria dos casos da generalidade dos ordenamentos jurídicos, considerada nula à nascença, pois os mecanismos manuseados na sua criação, e tendo em conta que é, amiúde, deflagrada por iniciativa do poder executivo, envolvem vícios jurídico-administrativos universalmente consagrados [tais vícios] como determinativos da nulidade dos respectivos actos administrativos.

A título de exemplo e com a fito de facilitar a compreensão do leitor, no ordenamento jurídico moçambicano, os vícios atrás referidos vêm previstos no artigo 34 da Lei n.º 7/2014 (Lei do Procedimento Administrativo Contencioso) e a tipologia daqueles vícios traduz-se numa destas cinco nuances: Violação da lei (desrespeito pelas normas jurídicas aplicáveis ao acto; ex: erro na interpretação, ausência de base legal para praticar o acto, etc.), Vício de forma (quando há uma preterição de formalidades essenciais anteriores à prática do acto ou no decorrer dele ou ainda por completa ausência de forma legal), Usurpação de poder (quando um acto administrativo invade as competências do poder legislativo ou judicial; ex: o Governo pratica actos que deviam ser praticados pela Assembleia da República ou que deveriam carecer da autorização deste magno órgão; é uma violação ao princípio da separação de poderes), Desvio de poder (quando visa um objectivo diverso daquele que a Lei estabeleceu ao conferir tal poder) e Incompetência (quando um órgão da Administração Pública adopta um acto incluído nas atribuições ou na competência de outro órgão da Administração Pública; difere-se da usurpação de poder porque nesta, abalroam-se competências de outro poder: judicial ou legislativo), sendo que, ainda entre nós, os actos cometidos com envolvência daqueles vícios são, uns, nulos (artigos 129 e 130 da Lei n.º 14/2011 – Lei que “Regula a Formação da Vontade da Administração Pública, Estabelece as Normas de Defesa dos Direitos e Interesses dos Particulares”) e, outros, anuláveis (artigos 131 e 132 do retromencionado compêndio legal).

Para que o leitor tenha uma ideia aproximada do que se aduz acima, é focar-se no conteúdo impregnado na alínea p) do n.º 2 do artigo 178 da Constituição da República (CRM) que propugna que «é da exclusiva competência da Assembleia da República autorizar o Governo, definindo as condições gerais, a contrair ou a conceder empréstimos, a realizar outras operações de crédito, por período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder pelo Estado».

Dissecando o comando normativo reproduzido no parágrafo precedente, significa dizer que, se, por mera hipótese académica, o Governo tomar a iniciativa de contrair dívidas públicas em desrespeito pela imprescindível autorização da Assembleia, em contramão aos ditames acima expostos, o empréstimo será ilegal. E se, para além disso, o produto dos valores mutuados direcionar-se para um destino contrário à prossecução do interesse público, designadamente, o encaminhamento de tais valores para a esfera patrimonial privada, pessoal e individual dos indivíduos que somente usariam, no vertente exemplo hipotético, a figura do Estado como veículo sub-reptício para, na verdade, fazerem ingressar tais valores nos seus “gananciosos bolsos”, a dívida será, segundo os postulados do Direito Internacional Público, odiosa.

Sublinha-se que os princípios adoptados em Moçambique para o regime da nulidade dos actos administrativos, segue e obedece uma visão mundialmente consagrada, pelo que, o que mais releva para a análise dos vícios acima esmiuçados, é o forte pendor ilegal que caracteriza a origem e nascença das dívidas odiosas, independentemente do respectivo ordenamento jurídico. É precisamente por este motivo que a Doutrina mais predominante do Direito Internacional Público, assevera que estas dívidas odiosas não podem ser vinculadas ao povo residente no “Estado que as contraiu”, porquanto, conforme assinalámos supra, elas brotam da violação dos pressupostos de legalidade para que uma dívida pública externa seja legitimamente contraída, não se perdendo de vista que não é nem o Estado e muito menos os seus cidadãos que dela beneficiam, mas sim somente um grupelho de “gangsters de gravata” e “colarinho branco” é que se satisfaz obscenamente com as delícias proporcionadas por esse acto lesa-pátria.

Para Alexander Sack, jurista russo percursor da Doutrina das dívidas odiosas (sic): «as dívidas odiosas, contraídas e utilizadas para fins que, com o conhecimento do emprestador, são contrários aos interesses da nação, não obrigam a nação – quando sucede que o governo que as contraiu é derrubado – excepto quando a dívida está nos limites das reais vantagens que estas dívidas possam ser suportadas. Os emprestadores cometeram um acto hostil contra o povo, e não podem esperar que a nação que se libertou de um regime déspota assuma tais dívidas odiosas, que são dívidas pessoais do antigo governante» (fim de citação). Entretanto, as enunciações teóricas, doutrinárias e inclusivamente legais aqui depositadas, estão longe de permitir que um problematismo desta natureza, assim que se faça sentir, tenha tratamento fácil ou esponjoso. Muito pelo contrário. As dívidas odiosas, apesar de serem ilegais, produzem efeitos práticos (e até vicissitudes jurídicas), quer para aquela entidade que empresta os valores quer para o país em nome do qual, fraudulentamente, a dívida foi contraída. 

Chegados aqui, no que concerne aos referidos efeitos práticos, encaminhamo-nos para a análise das consequências advenientes para (1) o país em nome do qual se contrai a dívida, (2) para os indivíduos que colocaram o país e seus cidadãos nessa desassossegada situação e (3) para os cidadãos do país em nome do qual a dívida foi consignada. Confluem implicações susceptíveis de desencadear responsabilidade civil, criminal, disciplinar, administrativa e política, entre outras, a serem escalpelizadas na próxima publicação, cujo horizonte temporal se fixa para daqui há precisamente uma semana.

PS: Se nalgum ponto do presente artigo opinativo, se verificarem similitudes com situações que, eventualmente se estejam a suceder no solo pátrio, parafraseando o já perecido escritor alemão Heinrich Boll: «tais similitudes não são nem intencionais nem ocasionais, mas inevitáveis».

 

Por: Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

Nem em todos os amanheceres o sol é aberto. Em certos dias, ele se fecha, tornando-os plúmbeos e cinzentos, com cara de poucos amigos! Em outros, se bem que, a sua presença seja jubilosa, às vezes o abandonamos no terreiro e procuramos uma sombra que dele nos enchapele! Em outros, ainda, a sua tépida presença no firmamento, deixa-nos maravilhados e desejamos que devagar, devagarinho caminhe para o ocaso, e só lá chegue depois de termos usufruído, com plenitude a sua generosidade! Destes, foi, para mim, o dia em que, o meu, às vezes, aborrecidamente, silencioso telefone repicou, com alguma insistência, já que o seu silêncio reiterado me leva a deixá-lo, bastas vezes, pousado um pouco distante de mim. Já que insistisse no repique da sua breve melodia, deitei-lhe a mão e, surpreso, dei, no visor/ecran, com o nome de um amigo que já não via havia algum tempo. Era o Victor Gonçalves, um dos gestores da livraria MINERVA CENTRAL. Depois dos cumprimentos da praxe, ele foi directo ao assunto, endereçando-me um convite para que, desse uma breve entrevista, de alguns minutos antes da hora da inauguração da MINERVA & CONTINENTAL, aprazada para as 18:00 horas do dia 28 de Novembro de 2019. A referida entrevista seria através da RM, Radio Mocambique, que estaria a fazer uma emissão em directo, no pátio a entrada do novo edifício. Sem delongas perguntei sobre o conteúdo da conversa radiofônica, ao que ele me respondeu que se tratava de, sendo eu uma pessoa dedicada à literatura e conhecedora da cidade de Maputo, saberia, certamente, algo sobre a sua história, particularmente, sobre a Minerva  Central, como centro difusor do livro, e sobre o Continental, das primeiras casas de pasto da capital moçambicana, se não a primeira (com algumas reservas, como se verá mais adiante). Não me fiz de rogado. Aceitei o repto, depois de lhe retorquir que não era tão velho quanto ele imaginava, para saber da história daqueles dois incontornáveis centros culturais e turísticos da capital moçambicana! Fechamos o acordo.

O frenesim começou. Procurei documentar-me, como complemento do que a minha memória retinha, ainda, sobre os dois noivos que se iam casar no princípio da noite do soalheiro dia 28 de Novembro de 2019.  No intervalo que mediava o pedido do meu amigo Victor Goncalves e o dia do evento, o meu telefone retiniu e atendendo a chamada, uma voz feminina identificou-se como mensageira da RM para uma programação daquela emissora, em direito, na inauguração da MINERVA & Continental, a partir das 16:00 horas e que eu era um dos entrevistandos alistados. Informei que já tinha conhecimento de tudo, incluindo que a minha entrevista seria vinte minutos antes da inauguração. 

No dia aprazado, quando me ataviava para iniciar a marcha ao local festivo, uma vez mais, o meu telefone retiniu. Célere, como apenas vira um número desconhecido no visor, atendi e, a mesma voz feminina que num desses dias me ligará, identificando-se, como representando a RM informava-me que, dali a cerca de 10 minutos seria a vez da minha entrevista! Eram 16:20 horas. Eu estava ainda em casa. Estranhei a reprogramação, pois esperava intervir 20 minutos antes das 18:00 horas! Cavalguei o dorso do tempo e me fiz ao átrio do Minerva & Continental, onde cheguei e fui recebido com alguma deferência, pela senhora da RM que me havia contactado, a Dalila Miquidade. Procuramos um canto apropriado, aonde, a dois, fomos alinhavar a entrevista e, quando eram 17:10 horas, ela foi para o ar.

O que se me ofereceu dizer, sobre a primeira pergunta da minha entrevistadora radialista, foi que a Minerva Central foi a primeira papelaria/tipografia/livraria, estabelecida na capital  de Moçambique português – Lourenço Marques, a 14 de Abril de 1908, por J.A. Carvalho, na Rua Consiglieri Pedroso. Portanto, já lá vai mais de um século ou seja: 111 anos de existência. Nos anos que se seguiram à sua implantação, concentrou leitores, escritores  e outros tipos de artistas, pela cultura que emanava da diversidade das suas actividades. O cidadão, nacional, português-moçambicano ou português oriundo da metrópole ou de outras colónias lusas, (todos portugueses, na concepção colonial, sob o flamular da mesma bandeira, verde-rubra, centrada de cinco quinas, ao som da mesma melodia do hino ‘Heróis do Mar’, e o estrangeiro, afeiçoados às letras, com as arraias assentadas em ou de passagem por Lourenço Marques, tinham como polo de atracção, ou um dos seus destinos de lazer ou lúdicos, a Minerva Central. Este costume tornou-se um hábito arreigado das gentes sedentas do saber, que enfeitiçou a capital moçambicana, até aos dias que correm. Desde 1935, ano do lançamento da sua primeira Feira, até 2018, organizou e realizou 82 eventos similares, beneficiando os seus frequentadores assíduos, incluindo-os de palmo-e-meio, e mesmo os que sabendo das exposições venda, mesmo sem serem frequentadores do lugar, para lá se deslocavam, em que este factor de conhecimento universal, ofereceu, para gáudio de todos, valoração reduzida, considerável, em relação aos seus preços reais. Tratava-se de um esteio de conhecimento universal através da leitura e de troca de amizades entre os seus frequentadores, que variavam entre meros leitores e escritores, jornalistas e cultores de outras artes.

Volvidos mais de 40 anos da sua existência, eis que surge o Café e Pastelaria Continental, como uma das primeiras casas de pasto da cidade de Lourenço Marques, numa das esquinas do cruzamento da Avenida D. Luis com a Avenida da República, no primeiro-piso ou Rés-do-chão do prédio Paulino dos Santos Gil, ninho da engenharia, da arquitectura e de outras profissões pensadoras e activas, laurentinas, contando que, do outro lado da Avenida da República, na outra esquina do cruzamento desta, com a Avenida D. Luís, encontrava-se a Pastelaria SCALA, acoplada ao Cine Teatro SCALA, que, segundo alguns antigos conhecedores da cidade, surgiu, por volta dos anos 30 do século XX. Nestes lugares, aglomerava-se a elite da cidade, em retemperadoras cavaqueiras de diversos  níveis, tendo como pretexto o saboroso café e os frescos pastéis de nata e outra ‘bolaria’.

Com o correr do tempo, entre um e outro lugar, do nosso leitmotiv, (Minerva e Continental), a clientela era invariável, deslocando de um para o outro, com uma ligeira passagem pela Praça 7 de Março (actual Praça 25 de Junho), criando, assim, sem se aperceber, o eixo Minerva-Continental. Portanto, uma ligação inconsciente que foi durando o tempo que, galgando o evento da Independência de Moçambique, continuou até aos dias que correm, temperado com o surgimento, aqui e acolá, de similares estabelecimentos, mas mantendo a sua soberba e sóbria existência, a MINERVA, na sua Consiglieri Pedroso e o Continental, na mesma esquina, mas, já, das avenidas Samora Machel e 25 de Setembro, na nova toponímia municipal da cidade de Maputo, antiga Lourenço Marques, ou seja, com a cara lavada depois de acordar da noite colonial.

Percorreram, este eixo, de entre outros, não de irrelevante menção, personalidades como, por exemplo, José Craveirinha, Rui Nogar, Rui Guerra, Rui Nogar, Rui knopffli, Rui Baltazar, Malangatana Valente Gwenya, Ricardo Rangel, só para citar algumas.

‘Nosoutros’ ou seja, eu e alguns da minha geração, conhecemos, sem, no entanto, frequentar, que a idade e o status não o permitiam, ao, por lá e ao largo, perpassarmos, indo, a lazer, à Luna-Parque e ao Circo Mariano, montados, todos os anos, entre os meses de Novembro e Dezembro, período de férias escolares, no terreno baldio, perto dos eucaliptos do pantanal da baixa da cidade, onde hoje é a Feira Popular de Maputo; ou indo aos campos de futebol do Sporting Clube de Lourenço Marques ou do Grupo Desportivo de Lourenço Marques, igualmente, no pantanal eucaliptal da cidade. Aliás, na Minerva Central protagonizávamos, que nem os 'Capitães da Areia' de Jorge Amado, algumas batidas, sobretudo, nas prateleiras de revistas aos quadradinhos e da colecção 'Seis Balas' e, de fininho, sem que ninguém nos surpreendesse, fazíamo-nos à rua, de regresso aos nossos bairros suburbanos. No Continental era impensável, tamanha ousadia, pelas razões atrás evocadas.

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Acima de quatro décadas de um namoro secreto, alcovitado, inconscientemente, por gente ávida de outros saberes e sabores, até que alguma alma pensadora, que não propriamente, o Pensador do grande escultor francês Auguste Rodin, achou por bem oficiar, não uma união de facto, mas um casamento entre as duas entidades: MINERVA & CONTINENTAL, onde a cultura e outros sabores se imiscuíssem. O evento, sob a égide da 83ª Feira do Livro, da Minerva Central, aprazada entre os dias 28/11 e 15/12, aconteceu no dia 28 de Novembro de 2019, perante o testemunho de quem se dignou corresponder ao convite público para a grande festa, num rol encimado por respeitadas personalidades políticas e artísticas  do universo nacional e não só. Naquela data, nasceu na cidade capital moçambicana um novo conceito, alinhado às práticas mundiais culturais atuais, onde a palavra de ordem é a globalização, em que não só os povos se cruzam e se fundem, na aldeia global, mais ou menos nos mesmos pensamento e acção, mas, também, nos modos de fazer as coisas, esperando-se que a iniciativa ganhe vigor para se replicar noutras paragens desta Pérolas Índico.

Na Minerva & Continental, entrelaçam-se a escrita, a leitura, a conversa, a gastronomia, em volta da Cultura e outros sabores. E, também, a avidez dos mais pequenos e do adultos, a tentarem deslindar o conhecimento, por entre os, ou dentro dos livros que pejam as preteleiras.

Mais do que o que sei sobre os casados de fresco: Minerva e Continental, não tenho, na minha caixa memorial.

 

A ser verdade que a Junta Militar da Renamo é a responsável pelos ataques na região centro do país, estamos perante um problema cuja solução não cabe de forma exclusiva ao Governo mas também a própria Renamo de onde tem origem, é a Renamo que conhece os labirintos por onde se anda naquelas matas, cabendo a si, localizar o desertor e entregá-lo ao Governo, recordando que, a Renamo ainda não desmilitarizou-se, não desarmou-se e nem reintegrou os seus antigos militares.

Quando escrevo esta reflexão, o último ataque de que há memória, terá acontecido, dia 12 de Novembro de 19, no troço Inchope e Gorongosa, de acordo com vários testemunhas, o ataque se deu de madrugada e visou uma viatura de passageiros com destino a Niassa, trata-se de um grupo de religiosos, depois de ferirem o Motorista, uma passageira terá tomado o comando do volante e levou os passageiros até a Vila de Gorongosa, num troço de aproximadamente 40 Quilómetros, do ataque resultou três feridos de entre eles dois graves que, foram evacuados para o Hospital Central da Beira.

Trata-se de quarto ataque protagonizado por homens da autoproclamada “Junta Militar da Renamo” sob comando do Tenente General Mariano Nhongo, que se rebelou das fileiras da Renamo, alegadamente, por Ossufo Momade ter-se deixado “comprar” pelo partido no poder a Frelimo, na opinião deste, Ossufo Momade deixou cair por terra os compromissos que o falecido Líder da Renamo tinha com o Governo do Presidente Filipe Nyusi. Depois da eleição de Ossufo Momade para a liderança da Renamo, iniciou com a “purga” de pessoas que eram próxima a Afonso Dhlakama, algumas das quais presas e distribuídas por unidades de menor relevância.

Mariano Nhongo, foi notável durante a campanha eleitoral, ao persuadir o eleitorado a não votar no Presidente do Partido e candidato da Renamo Ossufo Momade, em pleno dia de reflexão sobre as diferentes propostas eleitoralistas, Mariano Nhongo apareceu nos diferentes órgãos de comunicação social, contra a Lei, a apelar a população a não votar em Ossufo Momade, alegadamente porque, o “verdadeiro” Presidente da Renamo é ele, esta mensagem, criou alguma estranheza junto do público que domina as regras eleitorais e indignação aos partidos políticos, com especial destaque ao partido Renamo visado pela mensagem.

A primeira aparição pública do Presidente da Renamo, para comentar sobre os ataques na região centro do país, de acordo com alguns órgãos de comunicação social, somam 4 ataques com a registada na última madrugada de Terça-feira, Ossufo Momade distanciou-se dos mesmos e responsabilizou a “Junta Militar” na pessoa de Tenente-General Mariano Nhongo e, não deixou de criticar a “inação” do Governo que, na sua expressão, está a deixar o “jacaré” crescer no lugar de eliminá-lo quando ainda é ovo. Com este pronunciamento, Ossufo Momade e a Renamo distanciam-se de um homem que, de acordo com as fontes orais, foi de extrema importância na manobra militar da Renamo.

Dizem as mesmas fontes que, Mariano Nhongo, foi capturado e tornado Menino-Soldado aos 11 anos de idade e, de lá a esta parte, não sabe fazer mais nada se não matar ou ordenar as matanças, com o advento do AGP, assinado em Roma, capital da Itália, Nhongo não beneficiou da desmobilização, tendo ficado no quadro do mesmo acordo para a defesa de altos quadros da Renamo, dizem as mesmas fontes que, Mariano Nhongo teve um papel determinante no salvamento de Afonso Dhlakama depois do ataque de Zimpinga e depois, no resgate deste na cidade da Beira para as matas de Gorongosa.

Dando fé a esses e outros relatos sobre a vida de Mariano Nhongo, acredita-se que, move-se como “peixe na água” pelas densas matas de Sofala, sendo que, para se conseguir aproximação deste não há melhor grupo que não seja a própria Renamo, no entanto, as coisas complicam-se quando o Presidente do partido distancia-se dele e não mostra qualquer interesse em, no mínimo, colaborar para a sua neutralização pelas FADM, Ossufo Momade mostra-se algo chocado com o comportamento do Governo em relação a esta matéria bem assim do seu colega Mariano Nhongo, por ter feito uma contra campanha, ao apelar a não voto.

Muitas pessoas acreditam que, a campanha de Mariano Nhongo contra Ossufo Momade, sobretudo quando este ameaçou aqueles que fossem votar nele, como sendo uma “declaração de guerra” terá levado as pessoas apoiantes da Renamo a retraírem-se das urnas e deixado o partido e seus candidatos sem o apoio que necessitavam para lograrem sucesso nas eleições de 15 de Outubro, para eleger o Presidente da República, Deputados da Assembleia da República, membros das Assembleias Provinciais e por via disso, os Governadores Provinciais, é que, por incrível que pareça, a Renamo não elegeu se quer um Governador e, na Assembleia da República foi reduzido a 60 Deputados dos 250 possíveis.

Contudo, olhando para o histórico das eleições em Moçambique, não espanta a ninguém, o próprio Líder da Renamo, o saudoso Afonso Dhlakama, participou em 5 eleições e, em todas perdeu a favor dos candidatos da Frelimo, sendo a última perda com o actual Chefe do Estado Filipe Jacinto Nyusi, não seria o estreante Ossufo Momade que derrotaria Filipe Nyusi que concorria para o seu segundo mandato, ainda para mais, em uma campanha que não apresentou ideias, se não a crítica à governação da Frelimo, sobre assuntos que todos sabiam.

Nada justifica a actual escalada de violência na zona centro do país, a justificação que se dá sobre os resultados eleitorais, “fraude e enchimento” das urnas, não faz sentido, até porque, as pessoas que protagonizam o ataque estavam contra as eleições na sua total dimensão, a questão agora é saber com quem o Governo deve negociar para o cumprimento do DDR, evidente que, oficialmente é com Ossufo Momade, será isso suficiente, sabido que, não controla a totalidade dos homens dispersos nas matas de Gorongosa? Qual pode ser o papel da igreja! Da sociedade civil! Da Comunidade internacional, a começar pelo grupo de contato, todos somos poucos para trazermos a solução para este grande equívoco e, rogamos pela paciência de Filipe Nyusi, Presidente da República.

O desenvolvimento da indústria do petróleo e gás tem sido vital para as economias devido ao seu contributo no produto interno bruto, receita fiscal, processo de industrialização e geração de postos de trabalho. Em Moçambique, a indústria ganhou mais ânimo com as descobertas de reservas significativas de gás natural na Bacia do Rovuma. Segundo as estatísticas oficiais, é expectável que as Áreas 1 e 4 da Bacia do Rovuma possam gerar receitas para o Estado na ordem dos USD 49,4 mil milhões (cenário base) e mais de 300 mil postos de trabalho directos e indirectos.

Ora, a Decisão Final de Investimento (DFI) anunciada pelo consórcio que explora a Área 1 no valor de USD 23 mil milhões e a esperada DFI da Área 4 liderada pela Exxon Mobil e a ENI têm gerado grandes expectativas entre os moçambicanos que anteveem uma melhoria no seu padrão de vida. No entanto, é necessário ter alguma cautela em relação às expectativas criadas, pois o sucesso futuro vai depender das decisões que o país tomar em relação à utilização das receitas resultantes da indústria.

As más experiências observadas em países como Angola, Guiné Equatorial, República Democrática do Congo ou o Chade resultaram de problemas de gestão, instituições e dependência dos recursos petrolíferos. Essas experiências mal sucedidas impõem enormes desafios para Moçambique, sobretudo o de assegurar que as receitas do gás contribuam para a elevação do bem-estar de todos os cidadãos das gerações actual e vindouras. Assim, as questões centrais que carecerão de atenção são:  

  • Diversificação da economia

É de conhecimento comum que o gás é um recurso não renovável e que se esgota quando explorado. Outro factor é que as receitas do gás são altamente sensíveis a volatilidades de preços no mercado internacional, o que pode alterar significativamente as projecções feitas e afectar os planos de crescimento. Assim, para minimizar estes efeitos e a fuga de trabalhadores e do capital para o sector em expansão, o país deverá transferir parte das receitas do gás para potenciar outros sectores de crescimento, tais como a agricultura, manufactura e turismo, bem como estimular ligações económicas entre estes sectores. Entretanto, para que os sectores tradicionais da economia sustentem efectivamente o crescimento a longo prazo e contribuam para a substituição de importações por exportações, será necessário desenvolver e implementar reformas sérias em cada sector para evitar-se o desperdício de recursos.

É verdade que a entrada massiva de divisas no país resultantes da exportação do gás poderá pressionar para a apreciação do metical, situação que afectaria negativamente as exportações dos outros sectores. Uma alternativa para contornar este fenómeno seria guardar parte das receitas do gás em instituições financeiras estrangeiras e trazê-la de volta para Moçambique de forma gradual ou investir em activos com nível de risco reduzido no estrangeiro.

  • Transparência, corrupção e investimentos

Um dos grandes problemas nos países detentores de recursos petrolíferos, especialmente em África, é que a maioria dos cidadãos tende a permanecer pobre, mesmo depois da descoberta e comercialização dos seus activos (vide os casos da República do Congo ou de Chade). Alguns dos factores que contribuem para a maldição dos recursos nesses países vão desde a falta de transparência na gestão das receitas, elevados índices de corrupção até às opções de investimentos questionáveis.

Moçambique tem estado a piorar no Índice de Percepção de Corrupção, ocupando actualmente a posição 161, de um total de 183 países avaliados pela Transparência Internacional, além de manter investimentos em empresas públicas enfraquecidas. Este cenário é desencorajador para a nova fase que se aproxima, porém há uma discussão actual sobre o modelo de fundo soberano autónomo que o país deverá adoptar para garantir maior transparência na gestão e investimento das receitas do gás. Certamente que este fundo deverá, por um lado, ser inspirado pelas melhores práticas internacionais que se observam, por exemplo, na Noruega, Kuwait ou Botswana e, por outro, estar ajustado à realidade do país e aos objectivos que se pretendem alcançar.

Ora, estes modelos tendem a ser bem concebidos nos países com uma visão estratégica clara, mas o problema surge nos indivíduos seleccionados para gerir as receitas e pela excessiva intervenção política sobre como e em que áreas o dinheiro deve ser aplicado. O Chade é um exemplo de país que concebeu um bom modelo de gestão de receitas do petróleo, mas que colapsou. De Angola são recebidas notícias que dão conta do desvio de elevados montantes do fundo soberano (inspirado no fundo soberano Norueguês) para contas particulares offshore e realização de investimentos duvidosos.

Portanto, se Moçambique pretende financiar o crescimento económico e assegurar o bem-estar das gerações actual e futura com base nas receitas do gás, deve olhar com seriedade para as más experiências e definir medidas para que não se repliquem na economia. Os indivíduos que serão responsabilizados pela gestão de receitas do gás devem ser íntegros, comprometidos com a causa nacional, independentes, com preocupação institucional, reconhecido mérito e altamente respeitados pela sociedade moçambicana.

Os investimentos a serem realizados pelo fundo devem ser canalizados para as áreas prioritárias de desenvolvimento bem como na construção e modernização de infra-estruturas a todos níveis. O provimento de serviços de saúde e da educação de qualidade devem constituir prioridades para que as pessoas estejam preparadas para a nova realidade e beneficiem no máximo das oportunidades que estão por vir. As opções de capitalização feitas devem estar sujeitas a auditorias por entidades independentes de forma a garantir que não exista conflito de interesses e que o dinheiro esteja a ser aplicado nas melhores alternativas disponíveis.

  • Aproveitamento do conteúdo local

O Conselho Económico aprovou recentemente a proposta final da Lei do Conteúdo Local, que visa regular a participação das empresas moçambicanas nos projectos da indústria extractiva. Todavia, para fornecer bens e serviços às companhias petrolíferas é necessário preencher determinados requisitos. Por exemplo, a Anardarko (substituída pela francesa Total) anunciou que para aceder aos USD 2,5 mil milhões relativos á construção da fábrica de liquefação do gás natural em Cabo Delgado, as empresas moçambicanas devem estar devidamente registadas, organizadas e certificadas.

Ora, num contexto onde mais de 95% do tecido empresarial nacional é composto por micro, pequenas e médias empresas que enfrentam problemas de gestão, desenvolvimento de capacidade e certificação, então faz sentido questionar a sua participação efectiva nos projectos do gás. Uma alternativa para auxiliar as empresas a corrigirem alguns dos problemas técnicos e de gestão seria a implementação urgente de um Programa Nacional de Apoio ao Negócio.  No entanto, este programa deve ser bem articulado, ter uma visão de longo prazo para assegurar o desenvolvimento contínuo do sector privado e gerar ligações empresariais.

  • Desenvolvimento das comunidades residentes na zona de produção

Aos comunidades que residem nas zonas onde os recursos petrolíferos são descobertos tendem a queixar-se da falta de oportunidades para aceder aos fundos. Devido ao desemprego ou falta de pequenas fontes de renda, parte dos jovens residentes nas zonas de produção é aliciada para actos criminosos, tais como a sabotagem, roubo dos recursos petrolíferos, rapto dos trabalhadores das concessionárias, e em caso mais graves associam-se a grupos de insurgentes/desestabilização (vide casos da Nigéria ou Líbia).

Para minimizar este cenário, o governo deve assegurar que as receitas do gás tenham um impacto considerável na vida dos cidadãos (principalmente dos jovens) residentes na região de produção, através da criação de postos de trabalho directos e indirectos, fácil acesso à educação e saúde de qualidade. A construção da fábrica de liquefação do gás natural em Afungi representa uma oportunidade inicial para manter os jovens da região ocupados em actividades produtivas.

Certamente que o governo tem interesse que as receitas resultantes da produção e comercialização do gás tenham um contributo assinalável no crescimento económico e na melhoria do bem-estar social dos moçambicanos. Assim, é relevante ponderar sobre a forma com as receitas serão geridas tendo em conta parte dos desafios acima mencionados.

 

Digo e volto a dizer, e se necessário digo de novo: a cidade de Maputo, a capital deste deveras iliterário país, merece uma feira de livro! Pois, aquela a que se (des)organiza pelo Conselho Municipal, no Jardim Tunduro, não é, e não deve ser tratada como tal. Participo desta desordem desde que a mesma passou a ser realizada na praça da independência e posteriormente neste botânico jardim. Destas participações retive, como ilações, o festim de reclamações dos envolvidos, desde os escritores, ou autores, os expositores, até ao público, que a cada ano tende a não afluir naquela que deveria ser a principal festa do livro em Moçambique.

A desordem do município de Maputo, a falta de preparação do pessoal para lidar com a arte, a insensibilidade e o desrespeito destes desorganizadores para com os artistas, aliada a uma nítida aversão ao livro, fazem desta “feira” um verdadeiro festival de mediocridades.

Esta desorganização que o município organiza é cheia de peripécias adversas que se opõe aquilo que seria uma verdadeira feira de livro, literalmente falando. Vários são os aspectos que não fazem sentido nenhum. Para melhor ilustrar estas atrocidades vamos por pontos:

1) Para mim, e para qualquer um que viveu essa balbúrdia, não faz sentido que uma instituição, como o Município de Maputo, organize debates ou qualquer outro evento em que os protagonistas, no caso da feira os oradores e moderadores, não tenham informação nenhuma relativa a participação destes, o que é facto lamentável na feira de livro de Maputo.

2) Em relação ao convite de escritores ou autores de outros quadrantes do mundo, para que possam participar da feira, é óbvio que estes trazem mais-valia a este evento, porém, não faz sentido que o município convide-os e não consiga prestar-lhes qualquer apoio logístico, como a passagem, alojamento, transporte, alimentação, entre outros. Isto é ultrajante, sabe o Município que imagem passa de Moçambique para o mundo com essa atitude covarde e burlesca?   

3) Não faz sentido, que haja uma feira de livro em que o preço do livro continue o mesmo das livrarias e, nalguns casos, mais caro ainda que o habitual. A questão que faço é simples: Como o município de Maputo, com todos aqueles parceiros que se exibem nos materiais promocionais, não consegue encontrar meios de subsidiar, ou seja o que for, para que os expositores baixem os custos dos livros? Para mim o conceito de feira é promoção do livro. E promover algo é tornar mais acessível. Se não há acessibilidade do livro então não estamos perante uma feira, simples quanto isso.

4) Também não faz sentido que o Município celebre contractos com os envolvidos nas actividades da feira, como artistas e outro pessoal, e este mesmo Município não cumpra com aquilo que se predispôs a obedecer, como é o caso dos miseráveis cachês que levam séculos para que os artistas recebam. Não faz sentido!  Ou não assinem contractos com os artistas, ou então assinem e cumpram com a promessa, ora bolas!

5) Não faz sentido que o município de Maputo, com a estrutura e os meios logísticos que detém, não consiga divulgar o evento para que haja adesão massiva de visitantes, porque é extremamente penoso que um escritor ou estudioso de qualquer área de saber, se prepare, se dê trabalho de fazer uma pesquisa e, no final das contas, fale para uma plateia de cadeiras vazias, que é o cenário característico da “Feira de Livro de Maputo”. Tudo bem que os índices de literacia em Moçambique são baixos, mas o quê é que o município e os seus parceiros de cooperação para realização da feira têm feito para contornar esse fenómeno? Será que existem parceiras com o Ministério da Educação, com as Universidades, as Escolas? Se não é melhor que se pense nisso.    

Bom, eu posso esgotar todos os números e suas possíveis combinações, arrolando os aspectos que não fazem sentido na “Feira de Livro de Maputo”, porém tenho piedade dos meus dedos e teclados, a verdade é que esta feira, nos moldes em que se (des)organiza, não faz qualquer sentido, e essa atitude não só tira o mérito aos (des)organizadores, como também a todos nós citadinos desta urbe.
Se nós, os que moramos nesta cidade, realmente queremos uma feira de livro, no sentido literal da palavra, precisamos repensar esta desordem, todos nós que gostamos de ler e que estamos de alguma forma ligados ao livro, como os próprios escritores, leitores, artistas, livreiros, jornalista, associais culturais, fundações artísticas, todos devemos unir sinergias para que a próxima edição seja uma verdadeira “festa” do livro, só assim estaremos a dar um passo significativo para literacia do país. Só espero que haja abertura por parte do município, se não for por essa via, é minha opinião que se não continue com a (des)organização nestes moldes.

Já nos bastam as adversidades sociopolíticas que nos roubam o sono e nos destroem a esperança, precisámos que o livro seja esse tubo de escape para que possamos voltar a sonhar, e quiçá reconstruir novos horizontes, algo que este país tão sofrido quanto empobrecido precisa. E os novos horizontes, meus caros, abundam nos livros. Então, não nos livrem do livro!

A terra é a única coisa que fica quando tudo o resto acaba.

Isabel Allende

 

E de repente a terra fica completamente submersa. A vida quase desvanece. Nos ramos das árvores e nos tectos das casas prevalecem a esperança, a força que mantém inabalável a vontade de as personagens sobreviverem. De um lado está um comerciante (Adelino Branquinho), um pastor de gado (Flávio Mabota) e um administrador de cuecas (Jorge Vaz), afinal a água levou quase tudo. No tecto onde se encontram, antes das cheias, um dia funcionou uma mercearia. Agora é um porto de onde os vivos esperam partir com as suas angústias. Do outro lado do plano vêm-se duas mulheres: uma velha casmurra (Nélia Gilberto Nhambau) acompanhada pela neta (Joana Mbalango). Eis os dois mundos separados pela morte, um cenário de partida de uma peça acutilante e cheia de verdades taciturnas.

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Com a direcção de Jorge Vaz, o espectáculo teatral do Mutumbela Gogo representa a história de todo um povo anónimo que da noite para o dia teve de aprender a esquecer o sentido possessivo das palavras. Recuando alguns meses, Xicalamidadi vai recuperar no Centro e no Norte de Moçambique as circunstâncias que contribuíram para que vários moçambicanos das duas regiões ficassem isolados, primeiro, na sua dor, e, segundo, no seu próprio país. A peça do Mutumbela Gogo, essa companhia de teatro com 33 anos de existência, na verdade, é um exercício de colocar os que não viveram o Idai ou o Kenneth a sobrevoar os territórios tragicamente afectados pelos dois ciclones. A preto e branco. Logo, cada personagem, na história, retrata uma condição. Por exemplo, o carácter da velha casmurra é uma abordagem a todos aqueles que, mesmo diante do nada, escolheram ficar a ter de reaprender a viver num outro lugar de “favor”. No fundo está aí uma questão complexa, que, compreende-se, traz ao de cima a questão de determinadas pessoas sentirem-se relevantes devido à relação estabelecida com a terra, a tal única coisa que fica quando tudo o resto acaba, segundo Esteban Trueba, esse velho personagem de A casa dos espíritos, de Isabel Allende.

Na peça teatral Xicalamidade, a velha personagem cumpre bem esse papel de proteger um legado, válido aos herdeiros enquanto se mantiverem no lugar da tradição. Então a árvore na qual avó e neta buscam refúgio é mais do que um recurso natural, é cultural, daí a idosa sempre insistir em proteger o nada restante. Naturalmente, nisso apresenta-se um conflito entre as duas mulheres, pois se uma enxerga a esperança na permanência, a outra acredita na partida.

Num outro momento, Xicalamidadi é uma sátira ao instinto materialista dos homens. O comerciante que a certa altura bebe uma coca-cola escondido para não ter de partilhar com ninguém é um exemplo desse apego ao material; o pastor cuja vida perde importância por já não possuir os cabritos levados pelas cheias também. E o que dizer do senhor administrador? Para esse uma coca-cola é o maior argumento nesse jogo persuasivo de descortinar os mais misteriosos encantos femininos da personagem que não fosse a avó idónea, teria caído sedenta nos seus braços.

Portanto, além de ser uma história relevante para a compreensão do que se passou no Centro e no Norte, este ano, Xicalamidadi é, do ponto de vista criativo, um bom exemplo de que muitas vezes pode-se fazer teatro sem exagerados adereços no palco. E a decisão de se explorar o espaço vertical, colocando-se uma árvore virtual no cenário, rompeu com o habitual. A anacronia no preenchimento de vácuos narrativos também. O resto são os actores. De Branquinho a Vaz, Joana Mbalango e Nélia Gilberto Nhambau… Duas belas performances, num alto nível, que corresponderam ao rigor desse Gogo que é Mutumbela.

 

Título: Xicalamidadi

Autor: Mutumbela Gogo

Direcção: Jorge Vaz

Classificação: 15

 

Já nem me lembro o que estava a sonhar, o toque do alarme estragou-me a vida do lado de lá. Um Moçambique mais humano era um bom sonho! Eu e David, meu primeiro colega de quarto que se tornou meu irmão, partilhávamos o mesmo quarto numa residência universitária de Lisboa. A escuridão que se apossara do quarto durante a noite começava a se dissolver. O meu desejo era continuar a dormir, mas algo me dizia que se dormisse mais um minuto chegaria atrasado.

Contrariado, desci da cama e fui me preparar. Não tinha mais de um mês em Portugal, ainda ia a todas as aulas, até as que não existiam.
Quase quarenta e cinco minutos depois, David continuava na cama embevecido pelo sono e sonho que me foram roubados pelo toque do alarme. Ele ia à escola duas horas mais tarde que eu. O dude parecia um daqueles carros avariados quando se tratava de acordar, levava muito tempo para arrancar. Nos primeiros dias combinámos que eu seria o seu despertador, o acordaria quando estivesse para sair de casa e depois seguiriam os seus outros milhares de alarmes até acordar.

Como nos outros dias, o acordei e ele me lançou um «puto, ainda é muito cedo, dorme». Todos os dias dizia-me coisas sem sentido quando o acordasse. Ignorei aquelas palavras e me pus a andar.
Na rua o nevoeiro cobria o ar e o frio gelava-me o cérebro. Até ali nada parecia estranho…

Quanto barulho numa só noite! O mundo tem tantas coisas bonitas! Já viste o teu sorriso? E porquê sou obrigado a ver isto, meu Deus! As nuvens nebulosas a sufocarem a lua me causam um nó na garganta e um sentimento de impotência do tamanho da alma das águas do dilúvio que se vêem nos olhos de gente triste. Se eu levantar para fechar a cortina perderei o fio da narrativa, mas se eu ficar aqui a ver as lágrimas daquela luz fluorescente, será pior, morrerei nesta página.

Merdas, deixa-te de preguiças e fecha essa cortina enquanto for tempo!
Entretanto voltei! Sabes, amanhã o dia tem vinte e cinco horas! O que será o tempo senão duas pessoas apaixonadas a se beijarem até tudo arder de novo? Um beijo a mais, um a menos, cabe sempre mais um beijo, menos um, mais um… até tudo arder de novo.

Mas é verdade, amanhã passaremos para o horário de Inverno. Parece algo chique, mas é uma chatice! Passo a estar duas horas mais longe de Moçambique! O povo por aquelas terras dorme muito cedo e eu que durante o dia desligo-me do telemóvel para esfalfar-me nas coisas do mundo chego enquanto está quase tudo a dormir!  

Como tu consegues fazer tanta coisa ao mesmo tempo?

Não me põe a responder perguntas deprimentes senão ainda penso na lua. Vou te contar um segredo, mas tens de jurar que isto fica entre nós.

Quando me sinto cansado vou ao salão cortar cabelo! Nos últimos anos, depois de cortar cabelo me sinto meio assim, deprimido. Para além de me sentir menos chuchu, sinto que boa parte de mim cai e vai ao lixo com aquele cabelo. Não te rias, estou a te abrir o meu coração.

Cá para mim aquilo é um remorso que eu tenho por andar a prostituir minha cabeça. Até vir estudar para Lisboa, a minha cabeça não conhecia mãos brancas, sabes? Quando vou cortar lá para os lados de Odivelas ainda me sinto bem. Mas quando vou aonde fui antes de ontem, saio de lá com o espírito a rastejar. Cortam-me tão mal, cada parte da cabeça com o seu tamanho e ainda fico parecendo calvo, como diz meu puto!

Mas com que intimidade chegamos a este ponto? Faz favor, continuar a narrativa.

Desde o metro que eu sentia a sensação de algo estar fora do lugar. Infelizmente só percebi quando pus os pés na escola e vi tudo fechado.

O meu telemóvel tinha se conectado ao fuso horário de Verão durante a noite e me estragara o sono! Uma hora a mais! O que será o tempo senão o que nós quisermos!

Esse barulho não pára! Bem-bem, parece que estão a fazer coisas de adultos no piso acima do meu. Sei que sou louco! Vou lá ver o que se passa, volto já.

 

    Na obra a Saga d ??'Ouro, a voz do narrador omnisciente nos dá a conhecer a história do reinado de Gatsi rucere à decadência do império Mwenemutapa. Portando, do universo diegético apresentado, chamou-nos mais atenção a presença de realidades surpreendentes e estranhas, realidades legítimas para demonstrar elementos que concorrem para construção de fenómenos e/ ou comportamentos insólitos. Desse modo, esperamos estimular outros estudos na obra, bem como, contribuir na compreensão do insólito na obra em causa. No presente estudo, argumentamos que o absurdo, as consequências (efeito) da transgressão ao código de conduta do meio natural que os personagens estão inseridos, como punição ou indicação de um acontecimento, concorrem para a construção do insólito.

     Desta feita, o insólito ficcional é uma categoria comum a vários géneros literários. O conceito abarca uma série de modalidades representativas, como o maravilhoso, o fantástico, o estranho, o realismo mágico, o realismo maravilhoso, o realismo animista, o absurdo, sobrenatural e outros subgéneros híbridos em que a invulgaridade é marca distintiva. (Petrov: 2016).

     Se para Petrov (2016), o insólito é uma categoria comum a vários géneros literários, observamos em Matusse (1998), os traços que constroem as experiências insólitas, estas, que são fenómenos e comportamentos que se colocam no limiar do fantástico. Pois, os fenómenos ultrapassam limites do que é considerado normal mas não são sobrenaturais, contudo, desproporcionais e invulgares. Para este autor, o retrato da guerra nos seus aspectos absurdos; a atmosfera trágica, apocalíptica, em que impera a ideia da decadência e destruição, representada pela morte e loucura; a marcação de destinos trágicos, alguns fenómenos com cariz cómico; o uso da hipérbole para retratar realidades sórdidas e a procura do equilíbrio perdido concorrem para a construção do fenómeno e comportamentos insólitos.

      Os autores García 2011, Ferreira e Stoelehner S/d, Furtado 1980 citado por Carneiro e Ribeiro 2013 e Petrov 2013 sustentam que o insólito coloca o leitor a questionar o real diante do sucedido, uma vez que aparecem no meio quotidiano, manifestações meta-empíricas cuja razão da lógica vigente, não encontra explicação.

    Portanto, os fenómenos insólitos são invulgares e meta-empíricas, podendo estas, desafiar a compressão e aceitação no leitor implícito ou não, este, rejeita ou aceita os fenómenos tendo em conta a realidade que o envolve. A propósito da realidade que envolve o leitor, Matusse (1998:175) considera que o insólito deve ser lido dentro de um contexto histórico marcado por vivências em que se consolidam elementos culturais. No estudo em causa, é preciso entender as sociedades africanas na perspectiva do contexto colonial, as atitudes perante o facto de colonialismo, por este, desencadear fenómenos de assimilação, rejeição e de tentativa de conciliação de valores, conduzindo a desequilíbrios de diferentes sistemas de valores.

       O insólito é um assunto correlato ao fantástico, sobre este, Todorov (1980) explica o que metaforicamente designa de coração do fantástico, ou seja, a condição fundamental para a sua ocorrência.

Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade esta regida por leis que desconhecemos. […] a possibilidade de vacilar entre ambas cria o fantástico. (Todorov, 1980: 15-16)

     Aqui, a ideia de vacilar diante do fenómeno é a condição primeira para que ocorra o fantástico. O leitor implícito ou não, carece de explicação sobre o insólito, quando confronta o sucedido com as leis do mundo que lhe são familiar.

     Nessa perspectiva, concorda Matusse (1998) sobre a condição sine qua non para a sobrevivência da dúvida e do fantástico, acrescentando que este caracteriza-se nas obras de Mia Couto e Ungulani Ba Ka khosa, pela coexistência da ordem natural e sobrenatural; pela sobreposição do sentido literal e do sentido alegórico; pela tentativa da restauração da ordem e aparece também, o insólito, representado pelo fantástico, como punição de uma transgressão ao código de conduta e como sinal de um acontecimento. Em contrapartida, ilustra a inadequação da concepção de Todorov (1980), ao conceber o fantástico como género. Sendo preferível para Matusse (1998) a definição abrangente, o fantástico como toda ocorrência de fenómenos que invertem a lógica natural, tendo como base a concepção padrão dos homens.      

      Por sua vez García (2011), demonstra numa análise comparativa dos seguintes textos: «Elisa» de Murilo Rubiao, «Do Deus memória e notícia» de Mário de Carvalho e «O não desaparecimento de Maria sobrinha de Mia Couto» a subversão da personagem, como estratégia de construção narrativa do fantástico, visto que as acções desenvolvidas ou sofridas pela personagem, ligadas a sua condição física e psicológica é que determinam a fanstasticidade.

    Diferente da perspectiva de Garcia (2011), Carneiro e Ribeiro (2013), tende como corpos o conto o curioso caso de Benjamin Button de F. S, Fitzgerald, a adaptação para a narrativa gráfica e o filme: a transposição intersemiótica, ressalta o absurdo associado ao cómico como elementos que concorrem para causar no leitor e espectador a dúvida, portanto, o elemento desestabilizador do real.

     Portanto, ao lermos a Saga d ??'Ouro de Aurélio Furdela, compreendemos que o absurdo associado ao cómico, assim como não, a punição e sinal de um acontecimento relativamente a transgressão das normas de conduta dos personagens constroem o insólito.

O absurdo  

     De acordo com Teixeira (1987: 77) citado por Noa (1998), o absurdo caracteriza-se «ostentar leveza no tratamento de matéria grave, em inverter a ordem natural, histórica ou esperada das coisas. […], Põe tudo de cabeça virada».

     Pretendemos com a acepção acima, demonstrar que dadas personagens em a Saga d ??’Ouro tratam algumas situações graves com leveza, invertendo a ordem esperada no que diz respeito a sua reacção diante do grave. Trata-se de um humorismo em que «a morte se cruza com o risível» Noa (1998:99-100), tal como podemos ler o absurdo associado ao cómico, quando o soldado Francisco Barreto disposto a vingar a morte do padre Gonçalo da Silveira, embrenha-se no Mwenemutapa com 650 soldados contra os guerreiros de Negomo Mupunzaguto. Francisco Barreto esperava uma batalha encarniçada, ou seja, cruel e sanguinária. Contudo, após a dança de uma idosa por parte dos guerreiros de Mutapa, os soldados fizeram comentários, nos quais, embora assumam estar numa guerra, chamem-se de princesa; chamam os túmulos onde os cadáveres dos soldados foram inteirados de berços, o fato destes chamaram-se bebés em plena guerra, suscitou nos soldados gargalhadas até a morte. Veja-se o seguinte fragmento: «Os demais soldados, apesar de esfaimados e da dor que sentiam no corpo, acometidos de vómitos e diarreias, retomaram a marcha. A cada passo, haviam de rir-se às gargalhadas, até a morte» (Furdela, 2019: 87).

      Portanto, o absurdo concorre para construir o insólito, na medida em que a irrupção do real, é feita pelos comportamentos que os personagens não encontram explicação na lógica racional, do comportamento esquisito, Francisco Barreto reage da seguinte maneira, diz-nos a voz do narrador: «embora nada disposto a admitir o que as circunstâncias acusavam» (Furdela, 2019:83), para sustentar que lhe era difícil admitir a existência do meta-empírico, coexistindo assim, o natural e sobrenatural. Os nomes (princesa, bebés e berços) que os soldados se atribuem durante a suposta guerra, diante da morte, provam a leveza com que tratam a matéria grave.

      Nota-se ainda o absurdo concorrendo para construir o insólito em a Saga d ??'Ouro associado a uma atmosfera trágica, quando Gatsirucere ordenou a dezenas de ínfices para matar todo aquele que antes da sua entronização dormiu com sua primeira esposa. Para exemplificar podemos ler o seguinte fragmento textual:

Na noite das lanças longas, como ficou conhecida a madrugada em que Gatsirucere ordenou a dezenas de ínfices para se embrenharem nas trevas e verter sangue de todo aquele que, antes da sua entronização, tivesse dividido momentos de sexo e prazer com Dakarai, sua irmã, mulher escolhida pelos deuses para Mazarira, a primeira das três principais esposas do soberano de Mwenemutapa. (Furdela, 2019:30-31)

    Como podemos observar, o personagem principal ordenou aos guardas pessoais para matar quem tenha dormido com a primeira esposa antes da sua entronização, atitude, que pela sua invulgaridade, orientada pela loucura, nas consideradas normas de Mutapa, era inconcebível, aprovar pela «aparição de centenas de corpos estranhos a boiarem nas águas do Musengesi, rejeitados pela estirpe natural de crocodilos» (Furdela, 2019:38) domesticados para patrulhar e caçar animais como alimento para os espíritos Mpondoro, mostrando assim, que o meio não aceita a atitude de Gatsirucere. Sendo este comportamento meta-empírico concorre para justificar a construção do insólito a partir do absurdo, ao permitir que Gatsirucere trate com leveza a matéria de matar homens só porque no passado, antes de estar no trono, dividiram momentos de prazer e sexo com sua primeira esposa, Dakarai. 

O sinal de um acontecimento (transgressão ao código de conduta)

     Pretendemos aqui, demonstrar que o insólito aparece no universo da diegese para indicar e/ ou acusar dada personagem por transgredir o código de conduta vigente no meio em que se encontra inserido. Deste modo, veja-se o seguinte fragmento: «Os ritos para trazê-las de volta não produziram o efeito desejado, senão o revés com as águas a galgarem as margens do rio, para inundarem palhotas e machambas dos camponeses […] os líquidos vazantes eram lágrimas dos guerreiros varridos na Noite das lanças longas a desrespeitar as margens» (Furdela, 2019:46)

    De facto o «sobrenatural está quase sempre ligado a um acontecimento particular, que interfere no equilíbrio da vida da sociedade ou de um indivíduo» (Matusse: 1998:172). Compreende-se dada ideia, aquando da abolição da realização dos ritos de busca das esposas de Gatsirucere, cujo efeito fora inverso do desejado. Pois, ao invés se encontrar as esposas, as águas do Rio Musengesi, por causa da atitude de Gatsirucere de mandar matar todos que antes da sua entronização dividiram momentos de sexo e prazer com a Mazarira, galgaram inundando palhotas e machambas, interferindo no equilíbrio da vida da comunidade, acentuado ao facto de tais líquidos serem lágrimas dos guerreiros, que portanto, indicam e/ou acusam Gatsirucere como transgressor do código de conduta do meio, indicando, ocorre o insólito.

    Essa perspectiva, nota-se ainda quando Personagens Bengo e Mudzingaze entram na mata à busca de raízes para produzir dôro-re-simba a mando de Gatsirucere. Todavia envolvem-se numa luta, Mudzingazi viria a perder a vida e Bengo prosseguira com a viagem de modo a chegar ao reino de Mutapa, contudo já distante, admirou o seguinte: «pôde ver o fio de sangue de Mudzingaze a descrever curvas, passando por debaixo de folhas secas, ou a contornar escolhas de ramos secos, tombados sobre as areias da floresta» (Furdela, 2019:111)

   Depreende-se que o insólito aparece para indicar e/ ou acusar personagem Bengo por ter matado Mudzingaze, transgredindo o código de conduta do meio que o envolve.

Efeito de punição à transgressão do código de conduta

      Mostrar-se-á aqui, que personagens sofrem acções advindas do seu próprio comportamento de transgressão ao código de conduta, do meio natural onde se encontram inseridos, com efeito, os fenómenos em forma de punição, que recaem sobre estes, são insólitos. Recuperemos a atitude de Gatsirucere ao mandar matar homens só porque no passado, antes de estar no trono, dividiram momentos de prazer e sexo com sua primeira esposa, Dakarai, dado que no dia seguinte, além centenas de corpos estranhos a boiarem nas águas Rio Musengesi, os corvos vindos do nascente formaram gigantescas nuvens provocando escuridão que prolongou-se por meio-dia, «tempo suficiente para desaparição do Tichaona, pai de Mudzingaze» (Furdela, 2019:38). Portanto, além de acreditar-se que dada escuridão enturvaria o reinado de Gatsirucere, Rumbidzai insistiria que o «cheiro da podridão que infestava os ares do Mwenemutapa duraria até ao fio do reinado de Gatsirucere» (Furdela, 2019:39).

      Como que a confirmar-se os presságios por conta da transgressão de conduta por parte do Gatsirucere, ora na busca do equilibro ao reino, sucede consequentemente o seguinte: «Bengo começou a envelhecer, assim, a olhos vistos, enquanto se debatia como quem lutava com uma força oculta no vazio do espaço, de onde sobre o mutante corpo de Bengo havia uma serra que lembrava uma enorme cabeça de velho». (Furdela, 2019:113).

      O envelhecimento repentino de Bengo irrompe a ordem natural da lógica dos factos do meio em que o mesmo se encontra inserido, e associado ao facto deste envelhecimento impedir que Gatsirucere reequilibre o reino serve como forma de puni-lo com a decadência do mesmo. De facto, a proliferação de fenómenos meta-empíricos como efeito de punição, no meio natural constrói o insólito, interferindo na vida do indivíduo e da comunidade. Não é apenas esse fenómeno insólito que se notara após a transgressão de conduta de Gatsirucere, podemos ler «Para o espanto das anciãs que assistiam ao parto, do ventre de Manyara, centenas de crias de cabra saíram para povoar o monte cabeça de velho» (Furdela, 2019:114).

    Diante do fenómeno, as próprias anciãs ficam espantadas, perplexas. Pois, no mundo em que se encontram não há explicações para o nascimento de centenas de crias de cabra, da barriga de um pessoa, mas sim, de uma cabra, logo, o efeito da punição pela transgressão do código de conduta de Gatsirucere contribuindo também para a decadência do império, constrói o insólito.   

   Portanto, em a Saga d ??'Ouro de Aurélio Furdela o absurdo, o efeito da punição e o sinal de um acontecimento (de uma transgressão ao código de conduta) concorrem para construir o fenómeno insólito.

Bibliografia

 Activa

Furdela, Aurélio. (2019). Saga d ??'Ouro. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, S.A.

 Passiva

Carneiro, Raphael. M.O e Ribeiro, Ivan. (2013). Fantástico ou Realismo Magico? Um estudo sobre o insólito ficcional em o curioso caso de Benjamin Button. In Anais do Silel. Vol. 3, núm 1. Uberlandia: EDUFU;

García, Flavio.(2011). Fantástico: a manifestação do insólito ficcional entre modo discursivo e género literário – literaturas comparadas de língua portuguesa em diálogo com as tradições teóricas, crítica e ficcional. Brasil: XII Congresso Internacional da Abralic, Centros- ética, estética;

Matusse, Gilberto. (1998). «O Fantástico e as experiencias insólitas». In A construção da imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria universitária, UEM. Pp 175-182;

Noa, Francisco. (1998). «O Absurdo em Machado de Assis e Mia Couto». in A escrita Infinita. Maputo: Livraria Universitária, UEM. Pp. 97-108;

Petrov, Peter. (2016). Representações do insólito na ficção literária: o fantástico, o realismo mágico e o realismo maravilhoso. In revista Nonada: Letras em Revista, vol. 2, núm. 27. Pp 95-106;

Todorov, tzvetan. (1980), Introdução à literatura Fantástica. (versão Brasileira à partir do espanhol: Digital Source).

 

*Leituras anteriores do mesmo autor, “A Dimensão Tragicómica em De Medo Morreu o Susto de Aurélio Furdela”, ensaio de culminação do Curso de Licenciatura em Literatura Moçambicana, pela Universidade Eduardo Mondlane.

  Segundo Furdela (2019:26), trata-se de espíritos ancestrais de elevado prestígio.

Já que estamos no ‘Black History Month’ aqui no Reino Unido, deixem-me contar-vos o que me sucedeu na semana passada.

Conforme sabem, sou consultora freelancer – trabalho em vários escritórios de advogados, um de cada vez. Convém-me muito que assim seja. Mas como devem imaginar, existem períodos em que não tenho projectos. Embora nunca seja motivo de grande preocupação, é natural que roa as unhas (durante estes períodos), ansiosa por um próximo projecto.
 
Como estou a fazer o meu Mestrado em Tradução (inglês-português-inglês), decidi que não queria ter períodos de roer unhas. Um contrato mais longo, preciso com um permanente, seria o ideal, embora recebesse menos.
 
Uma das agências com a qual trabalho, por telepatia propõe-me uma vaga num bom escritório de advogados (como sempre) e eu aceito o desafio, mas com pouca obsessão, por saber que, para tal posição, de certeza que iriam querer alguém que tenha estudado cá, Direito Inglês e tal.
 
“Foste seleccionada para uma entrevista e os sócios em questão são (…) e eles mesmos irão conduzir a entrevista contigo”
 
Vou a correr “checar” os perfis deles e os acho muito “cromos” e britânicos – rígidos – pelas fotos e brilhantes percursos acadêmicos e profissionais. Direito em linha recta!
 
Ligo à minha agência e explico a consultora que sou uma gaja de esquerda e que aqueles dois pareciam maningue conservadores, e por tal, estava receosa de perder o tempo de todas as partes envolvidas. Além do mais, não tinha, não podia demonstrar o entusiasmo que ela tanto exigia que eu demonstrasse.
 
“Mas qual entusiasmo? Não tenho nenhum, lamento imenso! Fretes faço por um curto período”.
 
A agente desesperadamente vende o seu peixe (não era bem o da firma de advogados em questão) e, entredentes manda-me ir à entrevista.
 
Leio a página do escritório de advogados, vejo ali um registro de esquerda. Gosto mas aqueles perfís dos sócios com quem teria de trabalhar directamente, não me convenceram, mas vou lá, resoluta em apontar os seus maravilhosos feitos.
 
Chego lá e constato que o sócio sénior, com mais de 30 anos de brilho, é deficiente. Uma deficiência que afectou a fala, as mãos e o andar. E ele é tido como dos advogados mais brilhantes na sua área de actuação e, numa firma de topo.

Houve momentos em que a sua sócia teve de me esclarecer o que ele dizia.
 
Emocionei-me ao rubro e pensei logo que, nele residiria o meu entusiasmo. Eu queria poder trabalhar para ele e perceber como ele fazia as coisas e alcançava tanto.
 
Os dois foram muito hospitaleiros. Quando eles me perguntaram do porquê de eu escolher a firma deles, eu disse-lhes que a maioria as suas áreas de actuação eram diferentes das que se repetiam noutras firmas e que pela primeira vez, via um grande escritório, a ocupar-se também, de questões relacionadas com o bem-estar da sociedade, em oposição à money, money, money.
 
“Mas nós aqui fazemos e gostamos de dinheiro também!” – disse o meu novo ídolo, risonho.
 
Fizeram-me poucas perguntas técnicas. Meu ídolo fez perguntas sobre amigos dele num escritório no qual trabalhei. Falamos sobre línguas e eles repetiam, olhando para o meu CV, que eu tinha experiência, em jeito de quem estivesse desarmado. Em tempos da Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa, eu estaria certa de que esta rendição seria vantajosa para mim. Mas neste caso, podia ser que eles tivessem desanimado, por uma gafe insusceptível de recuperação.
 
Fui admitida e estou no sétimo céu, ansiosa por aprender, dando o melhor de mim, para não parecer estúpida, nem… deficiente?

Para além de ti
no perfil duplo da tua cabeça
quero que cante um pássaro até romper a manhã.
Fernando Leite Couto,
 in POEMAS JUNTO À FRONTEIRA, 1959

 

Ao
Mestre Calane da Silva!
Quando fui convidado para apresentar a mensagem de homenagem ao escritor, poeta, jornalista, declamador, professor universitário, Mestre e amigo Raul Alves Calane da Silva recebi a tarefa num misto inexplicável de emoções, mas sobretudo com sentido de elevação e responsabilidade acrescida. E espero dizer algo que te faça justiça, Mestre.

Vou começar por felicitar-te por celebrares neste ano 50 anos de uma carreira literária, marcada pelo visível empenho de um jornalista preocupado com as questões do seu tempo, um poeta e escritor marcado pela vida, um professor, um mentor de várias gerações de autores, de novos professores e leitores, mas sobretudo, de polivalência inexcedível em várias áreas do saber.

A obra de Calane da Silva não pode passar ao lado de nenhum de nós e urge a sua contínua divulgação por forma a alcançar muitos mais leitores desta varanda à beira do Índico. Tio Dinasse assim era chamado por muitas gerações de colegas o meu saudoso professor do secundário Pascoal Chaimite que provavelmente Calane não conheceu.

Quando a obra transcende o autor há uma verdadeira alegria que a fortuna literária pode proporcionar a quem a escreveu. O Professor Pascoal era um leitor voraz e admirava XICANDARINHA NA LENHA MUNDO de tal modo que, ao falar do texto, tremia de emoção como se fosse ele o legítimo autor daquela obra. Esta emoção que ele espalhava na aula, ensinando os seus alunos a gostar de ler. E eu faço parte dessa lista dos que aprenderam com o Professor Pascoal. Creio que houve no país outros professores como Pascoal Chaimite que ensinaram muitos outros alunos seus a gostar de ler, de norte a sul do país. Isto aconteceu porque fragmentos do livro XICANDARINHA… faziam parte do plano curricular do ensino secundário-geral. Nos últimos anos isso não acontece, infelizmente. E fazendo piada nas redes socias, alguém perguntava há meses sobre a obra do escritor Mia Couto. E a resposta dizia que se não sabia onde ele estava a construir.

Convoco o escritor russo Anton Tchekov que escreveu ao amigo Máximo Gorki sobre os professores do ensino primário e a meu ver, sobre todos os professores: «Quando me encontro diante de um professor primário, constrange-me vê-lo tão tímido, tão mal vestido, e tenho a impressão de me caber também a responsabilidade no seu infortúnio…»

Mestre Calane da Silva,
a cidade que te viu nascer há 74 anos decidiu por via do pelouro da cultura prestar-te uma tão merecida, quanto justa homenagem. O património da cidade são as pessoas que a habitam. E os artistas e escritores são os mensageiros, vertem a alma nas suas obras. Vou recordar um excerto de uma poema de Rui Knopfli que me parece oportuno:
Amo-te cidade da infância
com girassóis e casas de madeira e zinco
a dormir na neblina da memória.

Numa entrevista ao escritor Nelson Saúte, o escritor português Baptista Bastos, o cronista da CIDADE DIÁRIA dentre vários outros títulos, afirmou:
«A literatura não é importante, é indispensável. Não há desenvolvimento sem literatura, sem poesia, sem prosa, sem pintura, sem cinema, sem teatro, porque pobre dos povos – eu penso que não há nenhum- que não converse, a literatura é sempre uma conversa com o outro».

Devo dizer que dos convites que em tempos formulei, enquanto activista cultural, ao mestre Calane, para dar uma palestra em Boane, ou Matola, ou numa e outra escola da periferia de Maputo não me lembro de uma recusa, talvez, e foram poucas vezes, num e noutro caso tenha proposto uma mudança de calendário. É esta a forma de estar de Calane da Silva, uma pessoa sempre disponível para estar com os outros, para partilhar a sua sabedoria. E a geração de novos autores tem o seu dedo. Por exemplo os grupos literários dispersos pela cidade, tais como Kuphaluxa, Café com Livro, em sessões de formação, lançamentos e conversas no Instituto Camões e na Fundação Fernando Leite Couto, sem esquecer-me das primeiras edições da feira do livro, todos tiveram o seu apoio.

Noutro dia passei uma tarde a reler uma edição da revista Tempo dos anos 80, uma grande reportagem sobre a peça «Gota de Água» apresentada no Centro Cultural Tchova Xita Duma. Contam Calane e outros actores daquela peça que foram semanas e semanas de ensaios, fora de horas porque quase todos trabalhavam, e faziam teatro por paixão e prazer, algo que precisamos de transmitir aos mais novos.

Calane da Silva é membro fundador de diversas organizações, como: Associação dos Escritores Moçambicanos, Organização Nacional de Jornalistas, Associação Moçambicana de Língua Portuguesa,apoia o departamento de oncologia do Hospital Central de Maputo, foi presidente do Instituto de Língua Portuguesa e, nesta semana recebemos a boa nova, da comemoração do dia da Língua Portuguesa, a 5 de Maio pela UNESCO, foi o primeiro director moçambicano do Centro Cultural Brasil Moçambique, Presidente da Mesa da Associação Cultural Kulungwana, Membro do Comissão de Honra da Fundação Fernando Leite Couto e de outras instituições que aqui não irei mencionar.

A 20 de Outubro de 2005 Calane da Silva fez 60 anos. Um grupo de amigos e admiradores foi a casa do mestre para celebrar o seu aniversário. De entre várias peripécias recordo que ele disse «comi na palhota e no palácio». Fez a ponte entre estas duas realidades mas não perdeu os valores que aprendeu com a sua avó ronga, sua mãe em Mikhokwêni, na Malanga e com outras pessoas que cruzaram o seu caminho. Tudo para dizer que o Mestre Raul Alves Calane da Silva é uma pessoa verdadeira admirável, um autêntico agitador do sol.
 Poderia passar a tarde inteira a tentar justificar o injustificável, o que me parece óbvio e flagrante, a sua dedicação de activista da vida.
Vou usar a bengala do crítico literário brasileiro António Cândido que nos revela que «o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante».

No livro XINGONDO do meu amigo Daniel da Costa, numa das crónicas, um menino pergunta ao pai quem este senhor apontando para a estátua de Eduardo Mondlane na avenida do mesmo nome. Esta alusão ao texto do Daniel da Costa reenvia-me para a pergunta e para o vazio recorrente quando, em muitos casos alunos, são questionados sobre uma data ou personalidade nacionais. Cabem nessa lista de personalidades representativas e relevantes de Moçambique que, com o tempo podem perpetuar-se nesta cidade, nomeando lugares, o escritor, jornalista, professor universitário, poeta, declamador, actor Raul Alves Calane da Silva. E espero que muitos rapazes e raparigas saibam de futuro responder com conhecimento a uma questão semelhante.
Calane da Silva é por assim dizer a nossa Xicandarinha, essa chaleira de que muitas famílias moçambicanas e do mundo se servem para aquecer a alma.

Bem haja, Mestre Raul Alves Calane da Silva, votos de uma vida de luz, multiplicando-se por todos e por cada um.
Celso Muianga

Maputo, 26 de Outubro de 2019

*Mensagem lida no acto de homenagem ao escritor na Feira do Livro de Maputo.

 

 

O caminho é para Tete, para o planalto do Songo. O autocarro, com sinais de amolgamento na varanda das rodas esquerdas, tem preguiça de abandonar a planície da Beira. Demora-se mais de uma hora a recolher os seus ocupantes à porta das respectivas casas. A casa do último ocupante, imitando a vida de muitas pessoas daquele lugar, está num impasse. A rua não autoriza que os carros passem para o outro lado da rua, para a famosa rua 6 da Manga.

O motorista obedece e verga-se perante o impasse. Recolhe o último passageiro e inverte a marcha num chão riscado com valetas, as quais não só drenam águas pluviais. Drenam também o lixo que não cabe nas covas privadas dos moradores e que nunca foi recolhido pelos catadores.

O último passageiro traz uma pasta pequena. Minto. É grande, mas fica pequena em seu corpo, que é grande, avolumado, recheado de polpas. Traz, preso no ângulo do sovaco esquerdo, um livro para ler na viagem. Mas eu duvido que ele vá conseguir ler. Aliás, nós todos temos livros que queremos ler. Levamo-los com a certeza de que os conseguiremos ler. Cada um de nós está à espera da antipatia dos colegas para os conseguir ler. Mas o grupo é tão íntimo que dispensa a intimidade dos livros. Afinal o que está nos livros? São conversas de pessoas que solicitam a nossa afinidade e intimidade.

No novo pavimento da auto-estrada, o autocarro lembra-se que é automóvel, espreguiça-se e põe-se a mover com mais rapidez. Mas não pode muito. A multidão do bazar Filipe impõe-lhe cautela. A população corta a estrada com a imprevisibilidade e a vaidade dos bois. Detemo-nos a olhá-la e os nossos olhos desaguam no infinito dos postes magros e metálicos de iluminação, os quais suportam, nos seus pescoços, bandeiras de partidos políticos que se digladiam para mandar na população da nossa província.

Nos primeiros duzentos quilómetros, ninguém se dá conta de que o carro está em movimento. O pavimento de alcatrão ainda está jovem, sem cicatrizes. E só não tem o corpo recto porque as montanhas não autorizam. A estrada serpenteia por entre as pernas das montanhas como se estivesse a fugir de algum perigo. Talvez esteja mesmo a fugir do mar, que ameaça engolir a Beira.

Mas, nesta viagem, quem foge somos nós. Nós é que estamos a andar sem viajar. Entramos no caminho, mas não queremos ali ficar. Fingimos que queremos ir, mas o que gostamos mesmo é de chegar. A nós os verbos que nos animam é partir, chegar e regressar. O que nos anima não é o verbo viajar.  

Então, a estrada não tem pressa. As pessoas do interior, que nos vêem a passar, não têm pressa. Confirmamos isso na vila de Catandica. No restaurante em que entramos para recarregar o estômago, a garçonete não tem pressa, soneca com o rosto sobre o cimo da encosta da cadeira castanha. Mantém-se sentada enquanto regista os nossos pedidos no papel da memória. Todos pedimos galinha cafreal, o que nos faria arrepender. Demorou muito para sair, tanto que pensamos que as galinhas tivessem fugido da capoeira. Não são só os nossos pratos que demoram. As mesas vizinhas, o cenário, como se fosse história, se repete. Um vizinho, já cansado e dispensando intermediários, dirige-se para a cozinha. Ia reclamar, mas voltou a exclamar. “Não pode ser”, dizia vezes sem conta até lhe trazerem o prato. Quisemos seguir o exemplo, mas a garçonete nos disparou um sorriso, do qual nasceu palavra. “Vocês da cidade têm muita pressa”, disse.

Demorar é verbo que não encontra lugar naquele espaço. As pessoas estão ali numa eterna espera. Os agentes da polícia esperam, sentados e serenos, por um crime qualquer para se lembrarem que são agentes da lei e ordem. Em todos os lugares, a vida é assim. No “Botequim Artur Faz-se Comida”, a vida é assim”. No “Guest House Quartos de Dormir”, a vida é assim. Quem vive com pressa, chega cedo à morte: esta é a inconfessável sentença que paira no coração dos nativos.       

Partimos, depois da pausa prolongada. A partir dali, o tempo está quente e seco. O frio ficou para trás. Árvores que fazem fronteira com a estrada não nos podem saudar condignamente. Estão sem os dedos das mãos, as folhas sucumbiram por falta de chuva. As que se mantêm presas aos ramos enxutos o fazem por um amor quase religioso. Mesmo descaracterizadas, preferem tombar juntos com os ramos.

Quem parece não mesmo aceitar folhas é imbondeiro. Vemos isso quando o relevo se eleva. Sereno, o embondeiro não se importa que a seca lhe sacuda as folhas, o peso que carrega é demasiado pesado. Agora confirmo: o imbondeiro tem mais braços que dedos.

Em seus caules, divisam-se cicatrizes de feridas impostas pelo homem. Naquelas cicatrizes, o homem extraiu-lhes forças, em modo de casca. Daquelas cicatrizes, o homem transferiu forças para as estacas entrelaçadas das suas palhotas. Afinal, o que do imbondeiro sai dura para sempre.

Enquanto o homem carcome o imbondeiro, a natureza está esforça-se para emagrecer o leito da estrada, comendo-lhe as margens. Mas no centro do asfalto brilham uns buracos isolados.

Mais à frente, os buracos se multiplicam e vemos miúdos que parecem políticos em formação: atiram-nos areia aos olhos, como se estivessem a tapar buracos, e a seguir esfregam o dedo polegar e o médio em pedido, exigindo tributo pelo trabalho desfeito.

Os miúdos estão sem muitas alternativas. Não chove. O Zambeze está com pouca água, pelo que não pode partilhar com nenhum afluente. Mesmo aos influentes, o Zambeze não dá ouvidos. As hortaliças que as populações plantaram no leito das afluentes murcharam e só se alimentam de areia. É na areia que as mulheres se agacham, em serviço semelhante ao da reza. Ao seu lado, montes de roupa querem voltar a ser roupa. Na mesma areia, manadas de boi pastoreiam. Diz-se por falta de verbo. Os seus pastores tentam retirá-los do leito, mas os bovinos não arredam a pata. É ali que a água vivia. Com o focinho preso em inúmeros poços secos dos afluentes, os bois perguntam: quando é que começa a campanha chuvosa?  

Começo por dizer que “mbobobo”, numa explicação não muito rigorosa no ronga, aponta para: leilão, saldo, facilidades! Pois é o que está a acontecer com o mais importante para o desenvolvimento do futebol nacional: a privilegiação dos campos de futebol, para actividades não desportivas, desde que elas permitam, no imediato, receitas.

Exemplos: o Estádio do Zimpeto esteve impedido para o desporto por cerca de 20 dias, para a missa papal. Foi bonito, algo excepcional, os moçambicanos ficaram enriquecidos, os desportistas compreenderam e o país ficou a ganhar.

O problema é que esse mesmo estádio, é um local regular de cultos, ou outras cerimónias, com maior ou menor significado.
 
LOGO A SEGUIR…
Sempre que haja um “mega” espectáculo musical, adiam-se, transferem-se ou cancelam-se jogos e treinos, nos dias anteriores e posteriores ao evento, para a instalação de palcos. Aí, tanto poderão assistir-se a realizações culturais de qualidade, como movimentações de bundas, com artistas angolanos à cabeça e estrelas nacionais a servirem de “damas de honor”. Então, o Zimpeto abarrota, a relva sofre as consequências, as limpezas duram dois (ou mais) dias.

Mas se fosse só no Zimpeto e o futebol da capital ficasse só afectado pela monopolização do seu símbolo nacional…

A cidade de Maputo, com rigor, tem apenas quatro campos para o futebol. O do Ferroviário (dito das Mahotas), do Maxaquene, Costa do Sol e Mahafil. Escapam à mencionada “voracidade exterior” os recintos dos canarinhos e mahafilenses.

Nos outros dois campos, os futebolistas, que deveriam ser os “donos”, vão apanhando boleias, tanto para poderem treinar, como para jogar. Os espectáculos musicais sucedem-se de forma crescente, com a aquiescência dos dirigentes dos clubes, pois eles dizem que é daí que vem algum retorno…

Mas se sairmos da capital, para a Província do Maputo, o que temos? Estádio da Machava, Afrin e Liga. É para aí que se dirigem Ferroviário, Maxaquene, Desportivo, Liga de Maputo, para encontrarem espaço para as equipas principais treinarem, com alguma dignidade.
 
MEDIDAS ENÉRGICAS: PRECISAM-SE!
Se para os participantes no Moçambola o cenário é este, o que dizer para as representações na II Liga, juniores e infantis? E para os “duplicados” campeonatos femininos?

Em Cabo Verde, o Ministro dos Desportos decretou o fim da utilização dos principais estádios, para realizações extra-desportivas. Medida impensável entre nós. Porquê? Várias razões:

A primeira, muito simples: é que a maioria dos nossos compatriotas, considera perfeitamente normal pagar qualquer coisa como 500 ou muitos mais meticais, para assistir a um show musical medíocre, mas opta por ficar em casa em dia de derby Costa do Sol-União Desportiva do Songo, com o custo do bilhete a 50 meticais…

A segunda: é que será das receitas dos espectáculos musicais, que resultarão os meticais para acertar os salários em atraso com os atletas nas colectividades! Um ciclo vicioso e viciado!
Resumindo: equacione-se, um a um, o desaparecimento dos espaços, hoje ocupados pelo cimento que a todos asfixia, os “dumba-nengues” em tudo quanto é esquina, adicionando-se ao sumiço nas escolas, onde quando é preciso aumentar o número de salas de aula, o primeiro sacrificado é o espaço reservado à Educação Física e Desportos…

Concluindo: a componente principal para se fazer uma boa omoleta, são os ovos. Logo, para se ter bom desporto, são precisos espaços para a iniciação e competição. Aos vários níveis. Só que, perante a razia dos lugares onde antes se brincava, treinava e se jogava, não se pode sentir legitimidade para procurar outras explicações para o fraco desempenho do nosso futebol e para o desporto, em geral, quando nesta, que é basilar, se vive num autêntico… mbobobo!

 

Sobre eleições em Moçambique, creio que nenhum acto equiparável a um simples estalar de dedos fará com que sejam transparentes, livres e justas. Por mera questão de lotaria da vida, quando os moçambicanos foram chamados pela primeira vez às urnas, em 1994, estava eu em idade de votar, e por engajamento cívico listei-me como Membro de Mesa de Voto.

Transcorridos 25 anos, ainda equiparo o escrutínio a um jogo de futebol, com lugar em noite de chuva tempestuosa, jogando os intervenientes em terreno lamacento, escorregadio e com receio de serem atingidos por um raio na cabeça.  

Não é novidade para ninguém, Moçambique revive, de eleição em eleição, uma paz ameaçada pelo retorno à guerra, com registos intermitentes de hostilidades militares. Da memória mais recente, em 2014, com a divulgação dos resultados das eleições gerais, o maior partido da oposição em Moçambique, a Resistência Nacional Moçambicana, RENAMO, queixou-se outra vez de fraude eleitoral e, em protesto, boicotou a tomada de posse dos seus membros nas assembleias provinciais e dos 89 deputados no Parlamento, seguindo-se a isso toda uma peripécia belicista que não vem agora ao caso.

O facto de não termos olhado desde o início, 1994, para as eleições como um processo evolutivo, e assim valermo-nos de cada experiência eleitoral como capital de aprendizado para a sofisticação da nossa prática democrática, conduziu à asfixia de toda a possibilidade futura de um escrutínio insuspeito.

Quero aqui acreditar que a grande armadilha em que os partidos da oposição se meteram, foi a ideia de alcance imediato do poder, esquecendo-se de que as instituições ou melhor, as mentalidades outrora confiadas à condução dos destinos do País eram as mesmas que há pouco conduziam o Partido-Estado, em tempo de partido único, por alongamento geracional podem ser árbitros nas subsequentes disputas políticas. As hostilidades militares não permitem a transformação dessas mentalidades, pois ninguém acredita numa democracia assente no cano de uma AKM. Não seria um simples Acordo de Roma que estirparia o complexo problema de mentalidades, ou a aprovação de sucessivas leis.

Quero acreditar que o problema da democracia em Moçambique não advém de único partido, ou apenas dos partidos políticos, pois tudo deriva de onde viemos, um processo histórico de mentalidades absolutistas que iria cimentar-se até no seio dos partidos da oposição, das organizações da sociedade civil, das universidades, da instituições de arte e cultura, tudo em torno do umbigo próprio e nada pelo País. Se algum dia vier a provar-se efectivamente alguma fraude, e apontar-se o partido no poder como quem se agarra ao poder a qualquer custo, é de se perguntar: Quem no seio dos partidos da oposição não é vitalício, na sua esfera de exercício de poder? Chamaria atenção para a trajectoria de lideraça dos dois maiores partidos da oposição, e um extraparlamentar. Afonso Dhlakama, após a morte de Andre Matsangaíssa, em 1979, tornou-se Presidente da Renamo, cargo que conservou até a morte, quase quatro décadas depois, com que energia? Davis Simango é Presidente, desde a criação do MDM, 2009, e jamais presenciámos abertura para uma transparente, livre e justa eleição de um novo presidente. O PIMO de Yacub Sibinde, idem.

As organizações da sociedade civil, afinam no mesmo diapasão. Caso um desses estivesse no poder, com essa mentalidade, garantir-nos-iam eleições, justas e transparentes? Se fosse esse o interesse, à Renamo, por exemplo, não teria faltado uma visão atenta ao futuro, a médio e longos prazos. Ao gerar contestações em tom grave desde 1994, a RENAMO acaba por dar um tiro no próprio pé, a sangrar até a data.

A transição da mentalidade totalitarista da época monopartidária para uma pluripartidária, de plena democracia que almejamos, não será garantida pelo triunfo das tensões político-militares. O processo de democratização nacional clama, desde a realização das primeiras eleições gerais, por uma gradual transição, politicamente negociada entre as diferentes alas progressistas da classe política da RENAMO e do Partido no poder, entre outros. As tensões que sempre se impõem, a cada período pós eleitoral, minam o nosso crescimento em todos os sentidos, mesmo na academia, que se pretende um centro do saber por excelência, aponta-se muita massa intelectual amorfa, que em nada contribui para a produção do conhecimento. Aliás, um cientista social que não escreve, equipara-se a um alfabetizado que não lê. Não será com a ajuda de tais intelectuais da televisão em falácias “político-científicas” que atingiremos um pensamento pró-democrático.

E se a RENAMO reclama agora que a polícia favorece o partido no poder, não deve se esquecer de que também contribuiu para que esta condição prevaleça até a data. Naturalmente, a RENAMO, ao ameaçar guerra, conduziu para o reforço da ideia de que ela era inimiga da paz, espectro que possivelmente ter-se-ia dissipado gradualmente, através de uma luta política no quadro das instituições alcançadas a partir da assinatura dos Acordos Gerais de Paz. Por outro lado, se o partido no poder, FRELIMO, no quadro da tensão político-militar, faz o reforço das instituições à sua imagem, presta-se a ocupar o lugar de vilão, sempre suspeito. E, se por um lado alguém é acusado de falsificar editais, o outro é da falsificação de outro tipo de documentos, é um jogo em campo lamacento, escorregadio, onde quem perde pensa que o vencedor fez batota maior que a sua.

Outrossim, os membros da Comunidade Internacional deviam, por seu turno, procurar trazer à memória o facto de a democracia nos seus respectivos países, ter obedecido a um crescimento gradual. Aliás, a própria União Europeia, em 2004, viveu de Silvio Berlusconi a acusação a esquerda de fraude nas eleições europeias.

Sorte dos países que começaram a democratização a partir de eleição de órgãos de pequena monta, transitando essa experiência por anos a fio, até o alcance do funcionamento das eleições como acontece na actualidade. Nunca vi os partidos políticos a baterem-se nos bairros para a eleição do Chefe do Quarteirão ou Secretário do Bairro, facto que dinamizaria a cultura democrática junto do cidadão comum, e com esta atitude prestariam melhor acção na transformação das mentalidades.

A Comunidade internacional devia, provavelmente ter buscado a consciencialização dos partidos da oposição, para a necessidade de uma longa caminhada, desde 1994, e hoje não se falaria assim do uso do património do Estado a favor deste ou daquele partido. Por exemplo, no Brasil, consta que o poder local concentrava-se na figura do coronel, que lançava mão do seu poder económico para conquistar e manter seu prestígio político, coagindo apadrinhados a votar no candidato por ele indicado. O período foi marcado pela prática exercida pelas mesas eleitorais, que sabotava o apuramento dos votos, produzindo actas falsas, ressuscitando eleitores mortos, entre outros actos fraudulentos.

Apesar de contar com essa experiência e outras da sua longa idade democrática, a democracia no Brasil, ainda tem instituições judiciais capturadas a favor de alas políticas, pensemos aqui no caso Lula da Silva.

A concluir, Moçambique precisa de alcançar, por mais que seja em ritmo acelerado, a maturação da democracia, acreditando no crescimento através da superação política e não pela remoção de obstáculos pela via armada. A tentativa de remoção destes obstáculos pela via armada, possivelmente aproximou ainda mais, nos últimos anos, às instituições do Estado ao Partido no poder, Frelimo, fazendo, provavelmente, por outro lado, a RENAMO e os restantes partidos da oposição sentirem-se párias de um processo que se pretende único na transmissão legítima do poder, o resto, a julgar pelo imediatismo, seria por um indesejável  blitzkrieg. Assim, em Moçambique, face às actuais condições de pobreza intelectual, política e económica, não se pode falar simplesmente de eleições fraudulentas. A grande fraude é tentar induzir o povo a lutar por interesses particulares de um líder partidário, ou partido, quando nem os do País cabem nalguns manifestos eleitorais falaciosos que há pouco testemunhámos.

 

 

Hoje eu prometi para mim mesma que me ias ouvir. O tempo engoliu tantos dias e eu continuo presa ao mesmo instante. Envergonho-me de tudo isto, ainda não reaprendi a viver. Às vezes fico lúcida e abro os olhos. Este estado nunca deixou de me visitar. Sim, eu aceito e depois me arrependo. Não sei o que quero dizer, é muito lixo amontoado no mesmo chão. Talvez não tenha passado muito tempo, mas de certeza já te calaste o suficiente. Diz-me alguma coisa. A cada minuto fecho os olhos na esperança de que venhas me buscar. Estou acordada, mas deixei de viver desde aquele segundo.  

Quando vens me buscar?

Ontem ou hoje veio um médico ver-me. Acham que para além de viúva fiquei louca, mas só eu sei o que é isto. E tu continuas a esconder-te por detrás dessa cortina de silêncio. Nós que sempre brincámos que iriamos no mesmo dia. Não tinhas o direito, vês em que estado me deixaste? Não tinhas o direito. Quando me preparava para te dizer isto me prometi que não ia chorar, mas tens de entender que isto custa. Não consigo superar e começo a pensar que nunca quis. A vida deixou de fazer sentido desde que foste. Mudaram-me de quarto como se adiantasse alguma coisa. O que me faz lembrar de ti e daquela manhã nunca conseguirão mudar. Os meus olhos, as minhas mãos, a minha memória, o meu corpo. Tudo continua me empurrando para o mesmo precipício, faço aquele caminho tortuoso sempre que abro os olhos.
Bem sabes que não consigo suportar a ideia de andares por aí aos namoricos com as defuntas. Sim, prometemo-nos que até que a morte nos separasse. Mas tu não morreste, dormiste. Certo que não acordaste mais, mas não morreste.

Não te rias de mim, que isso me dói.

Tu vês a forma como me tratam? Sou a viúva! Vestem-me de preto e tratam-me como se eu também tivesse deixado de existir. A verdade é que morri contigo, apenas não chegou a hora de adormecer. Sempre olhei para viuvez como algo da velhice. Mas aqui estou, jovem e submersa neste poço escuro. A saudade me guilhotina a alma a cada segundo. Não me digas para calar que ainda não acabei. Não sei o que quero dizer, mas escuta-me que é tudo o que podes fazer. Não poder mais ter as nossas conversas, do verbo e da carne, dói-me mais que tudo o que te venho dizendo. Dormiste e de lá para cá não deixei de esperar que acordasses.

Quando vens me buscar?

Já tentaste te colocar no meu lugar? Isto não é algo que se ensaie, meu bem! Ainda lembro de tudo. Senti a luz do sol a invadir o nosso quarto e fingi que ainda era noite. Mas no mesmo instante decidi abrir os olhos. Era domingo, lembras? Beijei-te a bochecha e desejei-te bom dia enquanto saía da cama às pressas para a casa de banho. Ouviste aquela voz? Era eu a gritar para que te levantasses porque tínhamos pouco menos de duas horas para nos prepararmos antes de irmos à igreja.

Ainda consigo sentir a água quente a percorrer o meu corpo durante o banho. Preferia os teus braços a me enrolarem o corpo depois do banho que aquela toalha branca. Tu continuavas na nossa cama, deitado como um anjo. Ouviste aquela voz? Saiu da minha boca e disse para que te mexesses que havia coisas mais importantes que dormir.

Quando vens me buscar?

Não consigo superar isto. Vês essa mulher a chorar? Sou eu desesperada a te sacudir o corpo ao perceber que não acordas. Não morreste, dormiste e não acordaste mais. Desculpa, mas eu não sou forte como tu. Não depois da forma como aquilo aconteceu. Dormimos e não acordaste mais. Diz-me como eu explico isso para mim mesma sem enlouquecer. Diz-me como fechar os olhos e não esperar que venhas me buscar. Aquele dia amanheceu e o meu coração não aqueceu mais.

 

 

 

 

O senhor Namagulia Murara saiu quando a aurora era ainda uma utopia inimaginável. Nem a Paciência, sua esposa que se mantinha entre os lençóis encardidos, no velho colchão de molas, sentiu os passos lentos que o seu marido coreografava para não deixar quaisquer desconfianças naquele minúsculos e reles quarto, onde o seu doce, como tratava a mulher em momentos de fugazes alegrias, um hábito que nos últimos anos já se escasseava, repousava o corpo e a alma.

Pegou com certo carinho as chaves para evitar aquele tlintar que podia acordar a parceira, imprimiu nuns camaleónicos passos naquele esburacado soalho de argamassa e com as duas mãos, para que os gonzos não cantassem tão alto ao ponto de despertar a dona Paciência, abriu a porta e saiu! Em fracção de segundos perdeu-se na cacimba matinal.

Quando o ponteiro curto e grosso do relógio, preso a uma das paredes daquela velha casa de madeira e zinco, apontou para as cinco horas da manhã, dona Paciência ouviu um gogogogo incomum, ruido que a despertou do desconfortado sono. Abriu os olhos de mansinho, trouxe sua alma ao mundo e esticou as antenas do seu pavilhão auditivo para averiguar se era ou não devaneio e se realmente era sua a porta que bramia aquela hora da manhã, lamentavelmente a realidade se impôs ao ponto de pontapear a porta.

A primeira surpresa foi a ausência do seu marido, o que a motivou a se levantar e não precisou expor seu rosto ao velho espelho que espetado a uma das paredes reflectia a cama, como fazia em dias normais, apenas gritou bem forte com a intenção de abafar a algazarra que vinha de fora, enquanto procurava qualquer coisa para esconder as vaidades.  

“Qual é o problema, já?!!!!”

Mesmo que fizesse um esforço brutal, seu grito não era capaz de abafar aquele gogogogo da porta. Era um trenado barulho e os que o promovia continuavam motivados mesmo depois da intersecção da mulher. Dona Paciência nem mesmo precisou ajeitar a velha capulana que cobria apenas a parte frontal do corpo, assim que abriu a porta, com o tecido entre os dedos, viu três homens com rostos mergulhados de ira o que indiciava a disposição para qualquer selvajaria. Os estranhos invadiram-lhe o rosto murcho que trazia da noite, porém a mulher olho-os nos olhos com aquela coragem que as pessoas nessas situações não sabem de onde vem.

“Algum problema?”

“Todos do mundo!”

“O que aconteceu?”

“É isso mesmo que queremos saber…”

“Viram me marido?”

“É isso mesmo que queremos.”

Apenas um deles respondia a mulher, sendo que os restantes dois olhavam-na como famintos olham para qualquer coisa comestível, o que constrangia mais a dona Paciência a ponto de perder a paciência.

“Onde está o teu amarido!”

“Aconteceu alguma coisa?”

“Apenas diga onde, porra…”

“Eu, eu, eu… não sei onde ele está…”

A determinação dos homens foi-lhe arrancado a ousadia que trouxera da noite, começou a tremer e tremia bastante o que lhe fazia gaguejar. Os dois homens, os de sem palavras aprimoravam mais ainda aquele olhar de feras famintas. De olhos abertos e testas enrugadas pareciam rugir, tinham rostos experimentados a várias adversidades, características exaltadas pelo excesso de cicatrizes que exibiam. O trio vergava vestes pretas, não se sabia se era ou não coincidência, o facto é que aqueles trajes acompanhados daquele terror representado em seus rostos, naquela fatídica manhã, fizeram bater mais rápido o coração da dona Paciência. 

“Estás a ver alguma cara de palhaço?”

“A verdade é que eu não sei onde ele está!

“E tu és o quê?, o porta-voz dele?”

“A esposa!”

“Então onde ele está?

“Quem são vocês e o que querem com o meu marido?”

“Não queremos nada com ele, queremos é ele!”

O clima já estava tenso, dona Paciência que já estava impaciente olhou nos quatro cantos do seu vasto quintal e nada viu, apenas aquele ar sóbrio que soprava misturado na ramagem matutina. Naquela hora da manhã nenhum dos seus vizinhos havia acordado, aqueles homens desconhecidos que se não haviam apresentado, nem dito porquê procuravam o senhor Namagulia Murara, eram as únicas vivalmas ali, “Mas onde se meteu este senhor?” Pergunto a mulher si mesma sem soltar a voz e o mais agravante era que nem ela sabia o que o marido teria feito para merecer tal visita.

“Mas bem, bem, bem, podem-me dizer o quê que meu marido fez?”

 “Chega de blá, blá, blá… vamos levar ela connosco!” Determinou um daqueles que ainda não haviam tossido sequer.

“Como assim, levar ela?”

“É o que temos, djony.”

“Mas não ela quem queremos, ela é inocente.”

“Não há inocentes nessa cena. Vamos levá-la e pontos!”

Dona Paciência, depois de ouvir a sua sentença, de costas voltadas a porta, retornou para dentro da casa, fechou-a com todas as trancas e, toda a pressa e força que tinha. Ofegante, com os poros a libertarem-se, apesar de a manhã estar muito friorenta, já se via com o corpo ensopado. Correu para o quarto procurou por qualquer coisa, mas no meio daquela agitação não conseguia localizá-lo nem saber o que era, enquanto isso os três homens embarafustavam a porta com todas as forças do mundo.

Em menos de cinco minutos, com a porta já escancarada, introduziram-se no interior da casa, vasculhavam em todos compartimentos pela mulher. Dona Paciência estava num dos quartos desusados tentado quebrar a janela, e se não fosse tão dura a tabua que o marido usou para fechar aquela janela talvez ela tivesse chance de escapar antes mesmo que o homem de poucas palavras entrasse e a pegasse pelo pescoço. Assim que agarrou trouxe-a até a sala de estar, onde se encontravam os seus dois comparsas e disse:

“Quer morrer, quer viver?”

 “Onde está o trafulha do seu marido?” Berrou o primeiro interlocutor.

Vendo que não teria qualquer resposta que lograsse seus intentos, o homem deu-lhe uma bofetada de arrepiar a alma e atirou-a no soalho. A mulher desfeita chorava, chorava sem saber nenhum dos porquês de tudo aquilo. Chorava até quando os homens lhe meteram no guarda malas do runx vermelho que estava estacionado a duas léguas da sua casa.

Foi uma manhã trágica para aquela mulher, que ensanguentada não parava de chorar para o “cala-te” dos homens de preto. Quando Senhor Namagulia Murara voltou por volta das vinte e duas horas, não se surpreendeu tanto ao encontrar a casa como se fosse o epicentro de um vendaval tropical. Entrou de mansinho assim como saiu de madrugada, levou algumas peças de roupa e com uma pasta nas costas sumiu, pé ante pé e desapareceu na escuridão da noite.

Algumas horas mais tarde, numa barraca algures na cidade, quatro homens bebiam um copo enquanto estudavam o que fazer com a mulher, que respirava com imensas dificuldades no porta-malas do runex.

“Edjo, aquele gajo não virá resgatar a mulher, pá?”

“Então, vamos fazer o quê?”

“Vamos-lhe mostrar que não se brinca com a malta!”

“Como?”

“Vamos pensar bem, bradas.

“Pensar bem? Ora bolas… O gajo quando nos prometeu dinheiro, não estava a pensar bem?

“Ya, porra, a malta encheu as urnas e o gajo não quer nos encher os bolsos.”

“E dizem que ganharam…”

“Isso não me interessa, eu quero minha xibaba, djo.”

“Estás a ver, né? Esse gajo vai nos conhecer.”

“Ah vai… espera só.”

Moçambique vive um momento de grande disputa política e torna-se por essa via um campo fértil ao debate, com análises do processo eleitoral marcadas por olhares abertos de diversos ângulos. Dessas análises, atraiu a minha atenção à do investigador Joseph Hanlon. Fazendo fé ao que pude ler publicado na imprensa, sobre a sua visão do processo eleitoral em curso no País, saliento o facto de este renomado cientista social considerar que estas "foram as piores eleições de sempre de Moçambique". Julguei bastante interessante esta conclusão e assim fiquei impelido a tentar compreender o sustentáculo da sua constatação.  

Joseph Hanlon sustenta a ideia de que estas foram as piores eleições de sempre de Moçambique, realçando aspectos como: i) o facto de  em algumas mesas de voto ter havido observadores que foram obrigados a ficar de pé e, noutras, expulsos, porque, alegadamente, tinham o carimbo errado na credencial; ii) os agentes dos partidos políticos foram impedidos de entrar em assembleias de voto; iii) ocorrência de violência como elemento de pressão sobre os partidos da oposição, ainda impedidos de falar e, por último, iv) houve atraso no financiamento.

Ao ler essas considerações, um aspecto não passou despercebido em mim, o facto de o académico estar marcado por um olhar unidimensional, analisando somente por um ângulo, um processo que envolve diferentes actores e realidades.

Quero afirmar que faço qualquer análise política com a visão que tenho de uma reacção química, onde colocamos, por exemplo, no mesmo tubo de ensaio os reagentes necessários  para obter um ou vários produtos desejados, em perfeito equilíbrio de fases.  Portanto, a avaliação de Joseph Hanlon está ferida de privação desse equilíbrio, não sendo para mim nenhuma análise, mas um mero exercício de manipulação, pois não avalia todos os termos da “equação eleitoral.”

Das constatações de Hanlon, busco a afirmação de que “nalgumas mesas de voto ter havido observadores obrigados a ficar de pé e noutras expulsos, porque, alegadamente, tinham o carimbo errado na credencial.” Ora, pessoalmente, não encontro motivo para um observador não fazer a observação pelo simples facto de não estar sentado, além de que este, por vezes, se faz um elemento circulante. Honestamente, não deixei de rir-me ao pensar que, possivelmente, o académico tenha-se enganado, não querendo reclamar a falta de assentos, mas sim a não distribuição de óculos aos observadores, o que seria uma inovação no rol de recomendações dos observadores. Por outro lado, refere que noutras mesas de voto, “observadores” foram expulsos, porque, alegadamente, tinham o carimbo errado na credencial.” Aqui levanta um aspecto bastante sério, a expulsão. Todavia, essa expulsão é porque tinham na credencial o carimbo errado, ficando a ideia dúbia de que cada observador por si, carimbara a credencial ou alguém da CNE trocara a estampa do carimbo. Dizer “carimbo errado” sabe-me ainda a eufemismo, pelo qual Joseph Hanlon foge da possibilidade de admitir a ideia de um carimbo falso.  “Carimbo errado” purifica o portador dessa credencial, com que base?
Segundo, ao afirmar que “também os agentes dos partidos políticos foram impedidos de entrar em assembleias de voto”, isso é bastante grave, os agentes dos partidos políticos têm o direito de entrar e, aí, ao académico faço justiça. Mas,  não é exagero dizer que os agentes dos partidos políticos foram impedidos? Pois fica aqui, para quem lê, por exemplo, de fora do País, a ideia de que todos os agentes não entraram, visto que  “os agentes” abarca todo o universo de agentes. Será um lapso de articulação ou uma cuidadosa e intencionada hipérbole?

Ainda seguindo o olhar unidimensional do académico, ao dizer simplesmente que “houve atraso no financiamento” torna impolutos os partidos da oposição, nas consequências desse facto. No meu entendimento, quem recebe tarde os fundos para a campanha eleitoral procuraria rentabilizar o tempo que lhe sobrava, não viajaria para Europa, com direito a passeio aos campos de renomados clubes de futebol para sessões de fotografias. Custava ao académico dizer que houve atraso no financiamento, sim, mas, por outro lado, analisar a utilização imediata do valor concedido e daí chegar à conclusão de como esse elemento pesaria para estas serem as melhores ou piores eleições de sempre de Moçambique. Quanto a mim, essa afirmação é falaciosa, pois equiparo-a a dois quilos de batata aferidos numa balança de pratos sem um peso-padrão.

Ainda na sua abordagem, o renomado pensador,  Joseph Hanlon, avança que "tivemos três mil observadores da sociedade civil independentes que não conseguiram credenciais para observar as eleições” voltando a pecar pela leitura de olhar estreito, não olha o incremento do número de observadores credenciados para as eleições do dia 15. Dos dados avançados pela mídia, contra os dez mil do anterior escrutínio, quarenta mil observadores se fizeram ao terreno, e, trocando isto em percentagem, estamos a falar de um ascendente de 400 porcento. Pouco ou muito, depende do olhar e interesse particular de cada um.

Desses quarenta mil, Joseph Hanlon lembra que “tivemos milhares de observadores de grupos alinhados à FRELIMO, dos quais nunca ninguém tinha ouvido falar, e eles conseguiram credenciais". Penso aqui que o cientista social devia apontar alguns, ou trazer mínimos indicadores, sob risco de pensarmos, por exemplo, na União Europeia (UE), no Parlamento Europeu, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), no Instituto Eleitoral para a Democracia Sustentável em África, na Commonwealth e na Organização Internacional da Francofonia,  como alinhados da Frelimo ao considerarem “que as eleições decorreram de forma ordeira e pacífica”, um debate que por ora adio quaisquer comentários. Mas, algo me arrisco a afirmar, fundado nas declarações de Joseph Hanlon, ainda não há bases para afirmar-se que estas “foram as piores eleições de sempre de Moçambique.”

 

 

Só com uma pinça consegues destrinçar as vozes que te falam por cima de nuvens famintas. O mundo não é todo ele tristonho, mas esta é mais uma voz que me rouba a serenidade. São milhares que durante o dia me torturam de boca para dentro e ao anoitecer me tomam a língua, os olhos, os pés e vagueiam por estes papéis. Queria bailar à luz do luar, olhar-te nos olhos e juntos tocarmos lá como muitas vezes fomos capazes de o fazer. Estas palavras são o que vejo e não o que quero.
Minha história? Isto não é tristeza que te baste?

Matei um mosquito, vês? Continuam a viver às nossas custas, sugam-nos com tanta maldade como se a água já não o tivesse feito de forma mais que suficiente. Com a crise de alimentos que agora mora aqui no centro de reassentamento quero ver como é continuamos a produzir sangue para eles. As águas da chuva engoliram tudo o que puderam. Machambas, casas, corpos, galinhas, porcos. Com o passar do tempo, muitas pessoas que foram levadas pelas águas vão aparecendo.

Ninguém sabe onde estiveram durante estes seis meses. Não falam, não ouvem, não vêem. São só corpos voltando para ter sepultura junto dos seus.

A pobreza não chega ao fim tão já. Ciclone Idai somos nós aqui neste centro de reassentamento a viver isto que te estou a dizer. As catástrofes naturais são mais o depois que o momento em que a natureza se zanga. Eu não te quero complicar com narrações, basta-te apenas ver o que estamos a viver aqui.

Minha história? Na verdade, não gosto de me lembrar disso.
Aquela criança a chorar, vês? É órfã de pai e mãe. As águas levaram os dois para sei lá onde. De lá para cá é filha da vida. São muitas na mesma situação que a dela. Os chefes disseram que vão tomar providências. Falaram em adopção, coisas dessas. Por agora, alguns de nós é que cuidamos delas. É desumano, mas quase ninguém as quer acolher. Só dão uma caneca de farinha de milho, três tampinhas de óleo e, uma vez ou outra, uma caneca de feijão por família. Achas mesmo que alguém vai querer mais uma boca para alimentar com essa pouca coisa? As nossas famílias são numerosas, não medimos na hora de fazer filhos. Divertimento é bom, mas quando chegam coisas tristes como estas sofrimento pesa mais. São coisas da vida.

Minha história? Talvez ainda te conte. Mas não gosto de me lembrar disso, sabes?

Estamos todos a tentar refazer a vida. Disseram que vão construir casas para nós. Não te vou mentir, foi muito meu sonho nos meses passados. Para falar sério ainda é. Dormir na tenda no Inverno não é fácil, o frio viola nos sem medo. Agora com as chuvas e o calor é isto que estás a ver. Matei outro mosquito, estás a ver? Este sangue deve ser teu, cheira bem.

Queres um copo? Esta bebida chama-se Nipa. Alguém dali da outra tenda vende, é uma forma de conseguir sustento. Se tivesses chegado na sexta-feira não reconhecerias este centro de reassentamento.

Ficamos à volta da fogueira a partilhar sonhos. Não temos muita coisa por partilhar entre nós. O sofrimento que vivemos hoje e o inimigo que nos roubou tudo é o mesmo. Falando nisso, sabes que há aqueles que partilham maridos e mulheres aqui, nem? Eu não. Mas acontece de verdade. O que esperavas que sucedesse? Muitas famílias na mesma tenda, de vez em quando alguém toca o outro a pensar que é seu e acontece. Com as crianças ali mesmo…

Isto é uma ferida que ainda está aberta, por isso não gosto de lembrar. Aquilo começou com ventos fortes. Estávamos todos em casa. Ficou tudo escuro. Quando nos demos conta já estava a acontecer. Água a entrar na sala e lágrimas gordas a caírem dos olhos. Tudo ficou cheio. Fora não havia terra, nem nada. Tudo era água. Ninguém esperava que aquilo fosse assim. Mesmo agora ainda não entendo bem como aquilo aconteceu. Minha história eu nunca vou esquecer. Mas acho melhor pararmos por aqui. É noite e ainda estamos em desgraça.

 

 

A “mola” que empobrece o basquetebol 
O mesmo do mesmo, e é sempre o mesmo no basquetebol nacional. Reclamam, esperneiam, mas na hora da decisão, um aceno com as “samoras”, e escolhem o mesmo.

Gostaria de dizer que estou espantado, que estou estupefacto com as “trafulhices” que se vê no “backstage” do basquetebol, mas isso é “papo”, e nem é para Homens, é mesmo para boi dormir (se é que este animal aceita “ferrar”).

Aliás, até podíamos ferrar um ou (forçadamente) dois meses, mas “my god” 1 ano inteiro a preparar o “trono” do outro, foi uma jogada de mago, e é de se tirar o chapéu.

Mas o brilho desta jogada se viu neste processo de eleição, desde logo, salta a vista, citando fontes anónimas, que o processo “tinha de ser sigiloso, porque queriam desclassificar pela demora na entrega das candidaturas”, talvez por isso é que o tempo para se candidatar foi de meros sete dias.

Um dos candidatos quase foi pego nessa arapuca. Safou-se pela lei, mas como quem entra na chuva é para se molhar, também ele decidiu jogar com as mesmas “cartas especiais” molhando as mãos dos outros. 

Num áudio que agora circula por aí nos “whatsups”, um dos (quatro) candidatos terá acusado uma outra lista de estar a prometer “muito dinheiro” para arrumar a concorrência. Era tanto dinheiro que “ele” não conseguia ombrear de igual forma.

Eram 70 mil “paus” em jogo, ninguém (os presidentes das Associações que tem direito a votar para escolher o presidente da Federação Moçambicana de Basquetebol) queria perder a “bolada”.

Mas este bolo (70 mil meticais) era só uma parte do verdadeiro prémio pelo apoio. A outra parte iria/irá ser usufruída agora, depois da eleição, aliás, duas listas candidatas tinham nomes dos presidentes de associações provinciais como seus membros.

É como um indivíduo que é jogador de uma equipa e ao mesmo tempo é o árbitro do jogo. Isso é uma pouca-vergonha, um presidente de uma Associação Provincial de Basquetebol não pode pontapear todos princípios éticos e desportivos. 

Com vontade de corrigir este comportamento distorcido, ouviu-se um sussurro nos corredores jornalísticos, sobre uma fonte carregada (obviamente) de interesses, que queria denunciar este esquema do “ma paga bem”, mas parece ter perdido a voz. 

A voz desapareceu mas os “deals” estavam ao rubro nos bastidores, e as possibilidades eram grandes para qualquer um dos “players”, e lá no “backstage”, ficava cada vez mais claro que nesta maratona, quem sairia a perder era a peça mais importante, o basquetebol. 

No dia de eleições, os discursos eram muito bem elaborados, excepto de um dos candidatos, que convencido de que havia pago o suficiente, deu-se ao luxo de não elaborar um discurso, falando apenas durante meros cinco minutos, dos 10 que tinha, sem apresentar nada, nada, nada de interessante. 

O outro candidato até elaborou um discurso, mas deixou claro que queria fazer exactamente como o antecessor, ou melhor, queria continuar com o trabalho feito pelo antecessor. 

No fim, quem realmente queria mudanças no basquetebol foi arrasado, arrisco dizer que foi humilhado, e no máximo, teve um voto apenas, mas do que isso, só os “boladeiros” mais hábeis. 

O mais triste é que depois de todo fingimento deste processo, uma das listas decide reclamar da outra, o roto tentava denigrir o rasgado, num processo patético em que confirmava-se a ruína, o descalabro, a decadência do basquetebol. 

 
  

A Associação dos futebolistas moçambicanos assinou com o Instituto de Segurança Social, um Memorando de Entendimento que aponta para a resolução de um dos maiores câncros do nosso desporto, com enfoque particular no futebolista: a incerteza no pós-actividade.

Poderá ser uma emenda pior que o soneto, caso não se cuide de algumas questões centrais, de onde ressalta o facto de se tratar de uma actividade exigente e de curta duração. Há portanto que atender às especificidades e exigências, pois a carreira do jogador, em regra dura pouco mais de 10/15 anos, descontados os períodos de formação e afirmação.

Para os outros profissionais inscritos no INSS, a reforma só começa a ser considerada a partir dos 35/40 anos.

FIM DO PROFISSIONALISMO ENCAPOTADO?

A divulgação/publicitação do rendimento dos nossos futebolistas, passará a ser uma exigência? Ou isso representará o destapar de um tabu?

Na alta competição de hoje, se qualquer cidadão pretender aceder aos rendimentos de um jogador do Manchester United, Benfica ou Sporting, fá-lo com a maior das facilidades. São figuras públicas, pagam impostos e têm salários acima do cidadão comum. Os clubes vivem basicamente da compra e venda dos atletas, “merchandising” e quotas dos sócios. Por esta ordem.

As receitas e despesas correntes, salários dos futebolistas e funcionários – nalguns casos do próprio Presidente do clube – têm contas auditadas, sendo objecto de discussão pública.
Mas entre nós, não vai ser tranquilo. Porquê?

Maioritariamente, a origem dos rendimentos dos nossos clubes, vem das empresas públicas, logo do Estado e, consequentemente dos impostos dos cidadãos. Só uma ínfima parte delas provém dos sócios e simpatizantes.

E todos sabemos que as verbas envolvidas na contratação de um jogador acima da média – nalguns casos estrangeiros – não têm nada a ver com a de um trabalhador médio. E como este reagirá, ao saber que do seu suor, uma parte foi canalizada para a contratação de um craque, que actua num clube, que muitas vezes nem é o da sua preferência?
Contratação de estrangeiros, técnicos bem pagos, deslocações cómodas e atempadas, estágios com boa alimentação, departamentos clínicos à altura, têm custos, nem sempre brandos.

As empresas públicas, terão que gerar e gerir contas paralelas. O espaço entre o ser e o parecer, vai ser alargado. Declarar uma ínfima parte dos rendimentos e depois alocar o resto “por baixo da mesa”, poderá acontecer no imediato.

Mas as soluções definitivas, apontam para um “apanhar do comboio” da modernidade. Nós, porque lhe perdemos o passo, teremos que saltar para as últimas carruagens. A alta competição tem que passar a ser um negócio, em que o craque é o activo principal. Porém, para ele aparecer e impôr-se, no panorama nacional e internacional, o investimento tem que ser DE FACTO na formação, com planos efectivos e não subalternizados, de médio e longo prazos.

 

A realidade, muitas vezes, tende a converter-se em normalidade e pior ainda, a se nos apresentar como uma verdade inalterável. Por isso mesmo, Brecht nos recomenda a questioná-la sempre, a desconfiar do mais trivial, dito em palavras simples: a não confiar nas aparências. E é justamente esse o tema da parábola. A velhinha que mendiga compaixão na esquina, afinal é um lobo disfarçado, à caça de uma oportunidade para devorar a menina. E de repente o sapo ancorado no charco da rua, não é que é um príncipe amaldiçoado. Enfim, o nosso imaginário está repleto de exemplos do género. Entretanto falemos de A Noite das Hienas, uma parábola hiperbólica que resulta do cruzamento entre A noite dos Visitantes do dramaturgo alemão Peter Weiss e Babalaze das Hienas, do poeta moçambicano José Craveirinha.

Se de um lado estamos perante uma história de uma família camponesa – cujo único luxo é um laçarote cor-de-rosa – que numa noite se vê invadida por dois estranhos – cada um a seu tempo e com estratégias contraditórias, mas ambos decididos em pilhá-la e matar – doutro somos confrontados com poemas que põem a nu as mais bizarras tragédias decorrentes da guerra, a mãe das tragédias.      

Enquanto Weiss recorre ao verso e à rima para, digamos, fugir do enguiço da psicologia doméstica e agrava mais ainda a trama pelo lado da objectividade de imagens e falas, os poemas de Craveirinha encontram no exagero o tom mais apropriado para denunciar a barbárie. O que, obviamente, resulta numa “complicação” interpretativa, pelos múltiplos sentidos que esse diálogo sugere. E as opções da encenação, em termos de jogo dos actores, escolha da cenografia e demais ingredientes necessários para confeccionar o espectáculo, acabam sendo um trabalho de descomplicar complicando doutra maneira, simplificando aliás.

É a esse exercício matemático que nos temos dedicado há três semanas, e cujo resultado, não sendo definitivo, porque o teatro não o permite, nos propomos partilhar com o público da cidade de Maputo nos dias 18 e 19 de Outubro, pelas 18 horas no palco do Centro Cultural Universitário da Universidade Eduardo Mondlane.

Com encenação de Fernando Mora Ramos, esse projecto teatral resulta da parceria entre o Teatro da Rainha, de Portugal e a Escola de Comunicação e Artes de Moçambique. Pela complexidade do trabalho e devido a escassez de tempo e recursos financeiros, assumimos essas apresentações como um exercício, uma primeira mostra, em bruto, do que almejamos, que queremos que, num futuro breve, se torne um espectáculo. Há neste processo, na apresentação da forma exercício antes do espectáculo, uma dimensão pedagógica sobre o fazer teatral que nos interessa partilhar, uma maneira de pôr à vista um work in progress.

Cruzar dois autores como Piter Weiss e José Craveirinha, assim como fazer interagir um encenador português com actores moçambicanos é, por si só, um grande pretexto para pensar o mundo e o teatro enquanto espaço de discussão sobre a arte e a vida.  

    

Ficha técnica

Encenação: Fernando Mora Ramos

Assistente de encenação: Venâncio Calisto

Interpretação: Castigo dos Santos, Fernando Macamo, Josefina Massango, Maria Clotilde, Samuel Nhamatate e Venâncio Calisto.

Apoio a cenografia e figurinos: Sara Machado

    

Juro que não sei, sinceramente, não sei. O que esperas que eu te diga depois do que vi ontem? Não me interessa quem assinou o quê, apenas me diz se se faz isso. Celebrar o quê? Quem? Eu? Não me pede para não chorar, apenas me diz se se faz isso. Eu vi com estes olhos. Achas que alguém parou para pensar nisso? O que sabem sobre ele? zero, não sabem nada. Paz de quê? Estou a chorar sim e não me tome por louco, sei bem do que estou a falar. Diz-me lá se se faz isso, diz-me lá, diz…

Os dois autocarros tacteavam a estrada com autoridade. E ela não pedia muito, apenas rogava que aqueles senhores que os comandavam fizessem o combinado. Ambos se tinham deixado aconchegar nos cuidados do outro. A estrada, no meio da savana, continuava aberta e os autocarros, separados por uma distância considerável, deslizavam tranquilamente. Aqueles motoristas já tinham feito vários pactos semelhantes àquele no passado, conheciam aquela estrada há muitos anos.

Uma luz tímida iluminava o amanhecer ao ritmo daqueles passos ténues que os primeiros raios solares gatinhavam. Eram quase cinco da manhã. Estávamos na mítica Gorongosa. A ponte sobre o rio Púnguè deitava os seus olhos sobre os autocarros que passavam Dongobe e cheia de si se estendia para sentir aquele deslize, que a estrada já vinha sentindo desde há muito tempo, e cumprir o seu honroso papel de permitir que eles fossem para o lado de lá sem serem engolidos pelo rio. De repente, o sono que nos tinha feito companhia, desde que a viagem tinha começado, foi espancado por um sentimento que nos arranhou a alma, acredita no que te digo, aquilo deixa sem ar e faz qualquer um pequeno. O medo quando nos visita deixamos de existir.

Eu estava lá, eu vi aquilo. Não fizemos nada de mal a ninguém, nenhum dos que estavam naquele autocarro merecia aquilo. Aquilo não se faz…
Continuo ouvindo aquele ruído de balas a atravessarem o autocarro, continuo ouvindo pessoas a gritarem descontroladamente, continuo sentindo o pânico a ferver-nos o sangue e a cozer-nos os corações. Aquela chuva de tiros pareceu durar o tempo suficiente de um dilúvio. Uma chuva de tiros, uma chuva de balas. Diz-me lá, faz-se isso? diz…
Eu não parava de me perguntar o que era aquilo, ainda não parei. Enquanto escondia a cabeça por baixo do assento, como todos os que viviam aquele inferno, o nosso herói pegava o volante com vigor e pisava fundo no acelerador do autocarro. O que era aquilo? O que tínhamos feito para merecer aquilo? Uma chuva de balas…

Minutos depois a chuva parou e rios de sangue corriam atabalhoadamente pelo autocarro em alta velocidade, talvez buscassem um mar onde desaguar a dor que marchava em sapatos de bico fino naqueles corpos. Muitas pessoas foram atingidas, dentre elas o motorista, mas ele acelerava, continuava firme com as mãos no volante. Aquele homem nos salvou, não a todos, mas nos salvou. Eu vi com estes olhos, que agora estariam cerrados para eternidade, um homem morrer. Sei que nunca sabemos qual é o nosso dia. Mas alguém sai de casa, entra num autocarro para viajar, é baleado e morto como se fosse um bandido. Disparar em pessoas indefesas daquela maneira! Diz-me lá, faz-se isso? Faz-se?

Desculpa, mas isto não é nenhum desprezo. Não me digas para que não chore. Eu estava lá. Não posso ignorar tudo depois daquele sangue ter-me tocado.

Hoje é um dia de festa para quem não esteve lá. São quatro da manhã e ainda não consegui adormecer. As pessoas vão acordar mais tarde que é feriado, vão fazer um frango assado na grelha, vão passear, vão depositar flores na praça da paz, vão fazer campanha eleitoral. Isto tudo não passa de uma hipocrisia nacional. Ninguém tem culpa. Não é da tua casa, não é alguém famoso. Mas eu estava lá e vi tudo. Há dias foi em Zimpinga. Ontem foi em Dongobe. Amanhã onde será? Hoje o que celebramos? Quando consigo cerrar as pálpebras só vejo aquele rio de sangue arrastando uma vida para morte. Sim, hoje é 4 de Outubro, o resto não sei, juro.

 

 

A terra guarda a raiz da gente. Mas a mulher é a raiz da terra.

Mia Couto

 

 

Caramba! 28 minutos atrasados. Mas chegamos, ansiosos e motivados, afinal no palco do Franco-Moçambicano estava, quinta à noite, uma bela mulher: Assa Matusse, essa raiz da terra que também é som, sonho e vibração.

À nossa chegada, “a menina do bairro” cantava a música “Estranho” para uma audiência que encheu a Sala Grande, ao estilo afro/jazz, grandiosa trajada de um vestido preto com uma racha à esquerda como protagonista. Assa estava na sua melhor noite, gira, álacre e cativante, divertindo-se no seu espectáculo até à exaustão. E ela não é egoísta, então para gozar aquele momento em que o + e o Eu misturam-se como que mecanicamente, convidou a amiga Duduzile Makhoba para juntas interpretarem “Estranho”. Então a sul-africana apresentou-se no palco entre aplausos expectantes. A intombazane não envergonhou no dueto e nem quando actuou sozinha. Entretanto o espectáculo era de Assa. Por isso, minutos depois de se ter recolhido para os bastidores, onde foi trocar aquele vestido matreiro, culpado por eventuais distrações masculinas, voltou ao palco e continuou a proporcionar ao auditório momentos de boa música.

– A Assa Matusse está muito madura! Aquiescemos, quando Leonel Matusse, um bom amigo, finalmente rompeu o seu silêncio para se render ao talento em forma de mulher. E, de facto, o jornalista do Notícias estava certo. Durante o concerto, Assa provou estar preparada para aquele tipo de eventos. Sempre afinada, desinibida e envolvente, a artista mostrou que quando tudo é bem feito pode não haver diferença entre um álbum e o show ao vivo. Fez sentido ter cantado “Fenomenal woman”, pois é isso o que está a tornar-se ao levar para a música a sua feminilidade acompanhada de um acentuado poder de observação. Está aqui uma explicação para a cantora ter recriado “Nitxitxile” e inserido no seu álbum de estreia. A interpretação dessa música foi feita com paixão, lembrando-nos do que a xenofobia tem feito dos moçambicanos na África do Sul. Ainda bem que a cantora sabe separar as coisas, daí ter chamado Duduzile.

“Menina do bairro”. Assa também cantou essa música, um exemplo de quem reivindica a origem, a infância, os sonhos puros dessa fase e essa disposição de ir à ribalta para dar atenção ao seu tão amado Mavalane. Acompanhada da sua banda, a cantora contou essa história sobre ser em função das circunstâncias.

Ao som de Assa, o tempo passou rápido no Franco. E foi supersónico quando Mingas deixou o assento de onde viu quase todo o concerto, ali bem perto dos holofotes, para cantar com a autora de + Eu. Com Mingas no palco, o espectáculo ganhou um contorno mais electrizante. Ambas cantaram “Xihono” e “Ndzumba”. E lá os telemóveis saíram dos bolsos para registarem em vídeo épocas diferentes personificadas na qualidade vocal de duas mulheres.

A propósito de mulheres, Assa homenageou todas aquelas que, sendo raízes da terra, fazem por merecer, ao cantar “Carinho de mãe”. Apenas um reparo, talvez os cantores, durante os espectáculos, devessem parar de falar ao fim de cada música que cantam. É desnecessário. Muitas vezes, Assa caiu nessa tendência aborrecida de explicar, justificar ou mesmo cumprimentar pessoas queridas. É dispensável.

Seja como for, a algumas horas do Dia da Paz, a “menina do bairro” conseguiu realizar um concerto equilibrado, à altura do seu primeiro disco, e, a partir daí, desejando ou não, refrescar-nos o espírito para o que aí vem a seguir.   

 

É claro que o império do Zimbabwe (1220-1450), que contemplava o vasto território que vai desde o Índico até ao país que hoje herdou este nome, foi um dos mais bem-sucedidos impérios endógenos da África, com imensos reinos vassalos, Estados-satélites, que desempenhavam a função de, como hoje em dia funcionam as províncias, entrepostos tributários que enriqueciam a capital: o Zimbabwe, o amuralhado de pedras onde ficava a corte e todas as artimanhas que o poder exige.

O que demonstra a existência de uma divisão social do trabalho fortemente desenvolvida, o que, como efeito, origina dois grupos de actores sociais: os que trabalham na produção directa dos meios de subsistência e os que se dedicam as tarefas de prestígio, sendo que estes últimos vivem do esforço dos primeiros.

Apesar deste sistema de reinos tributários, o império do Zimbabwe teve vários e longos ciclos de governação dirigidos por diferentes mambos, os mwenumutapas, soberanos dos Mutopas, cuja ascensão ao poder destes nunca era de forma pacífica, isto é, sempre houve disputas entre os estados-satélites para a ascensão ao poder de qualquer monarca, e só a força era necessário para manter e controlar este poder absoluto, como em qualquer governo da actualidade. Todavia, no império de Zimbabwe estas lutas, de e pelo poder, foram, como reza a história, a condição sine qua non para a decadência do império.

Bom, como devem imaginar, não será a história, no sentido académico, o interesse primário desta lavra, mas a história como lenha para a fogueira chamada ficção, o que origina os chamados romances-históricos, onde a memória estabelecida pelo homem através da escrita do seu próprio passado é usada como matéria-prima para novas narrativas. Este género alberga um campo teórico bastante discutido, e nisso várias são as ilações. Em sumula, a historiografia, enquanto campo científico que estuda os factos no tempo, ocupa um lugar subjectivo no presente, portanto é um género fechado e encerrado como o mundo que representou, enquanto o romance-histórico é objectivo, encontra-se em processo de construção e reconstrução permanente, sendo capaz de dar conta da multiplicidade e complexidade do presente, e sem perder os faróis do futuro. Daí que, a denominação romance-histórico não é determinada por qualquer traço interno, mas é um dado externo, peculiar e sem relevância para a realização estética, o que obriga mestria e sagacidade dos autores que neles se lançam para que não caiam no espaço comum, e isso pode-se dizer que a “Saga d’Ouro”, do escritor e dramaturgo moçambicano, Aurélio Furdela, é o exemplo, não foi por acaso que a sua distinção com o prémio INCM/Eugénio Lisboa, um galardão destinado a distinguir as mais destacadas obras escritas em língua portuguesa, no género de prosa, sendo que para a edição 2018 reconheceu a obra de Aurélio Furdela.

Vamos ao que interessa: Porque debater as vicissitudes do poder dos mwenemutapas hoje?, ou melhor, que importância tem este romance na vida actual dos moçambicanos e de Moçambique?, a resposta a essa questão é actual e futurista, e funciona como um acre-doce que se dissolve na língua, por um lado adocicando o nosso imaginário colectivo, enquanto leitores, e por outro lado azeda a nossa consciência colectiva, enquanto moçambicanos.

Nesta distinguida obra, Aurélio Furdela desmascara os egos que inflamam a nossa vida, desvendando a ganância pelo poder na África actual. Neste livro há viárias aspectos que me fascinam, todavia para esta humilde opinião de um leitor desprovido de qualquer instrumento de medição, seja literário, histórico ou mesmo político, irei destacar apenas três que são:

1) A técnica da narrativa, neste ponto fascina-me bastante a forma e a estilística, a maneira como Furdela traz-nos a história, é uma narrativa que nos embala, nos coloca nas asas das mais belas águias da imaginação e que elas nos transportam para o tempo, este tempo-histórico onde vivemos a história como se nós, os próprios leitores, contribuíssemos para reconstruí-la, ou melhor, é como se nós fossemos os personagens dessa mesma história. A partir deste livro, sentimos até o cheiro das pedras que compunham o Zimbabwe e o medo das supersticiosas assombrações de Rumbidzai, o grande feiticeiro, a quem teria sido convidado pelo soberano para conter os inimigos da corte, ou melhor, eternizar-se o mambo no poder.

Ao ler este livro ficamos com a verosímil impressão, mas nunca com a certeza de estar a ler um manual de história, pese embora o facto de aprendermos e apreendermos imensas configurações dessa historiografia que muito nos importa conhecer. Esta é uma narrativa complexamente envolvente e empolgante que nos lembra outro mestre do romance-histórico, Ungulani Ba Ka Khosa em Ualalapi.

Outro aspecto relativo a narrativa é a beleza e coerência dos diálogos, aqui arrisco-me mesmo a dizer que Aurélio Furdela é, ou pode vir a ser, o escritor que mais domina a mestria de construir diálogos na literatura moçambicana, talvez seja pela sua passagem, e também fixação, pelo teatro.

2) A ironia e o sarcasmo com que o autor caracteriza os personagens, sobretudo o protagonista, GatsiLucere, historicamente conhecido como o traidor, aquele que, pela ganância desmedida e covardia crassa, teria permitido a entrada e fixação de comerciantes portugueses no império e que estes, a partir desta brecha, exploram e saqueiam as minas de ouro, colocando todos, desde homens, mulheres e até crianças, na mineração, em detrimento da agricultura e pastorícia, actividades principais do império, o que gerou revoltas populares, sobretudo dos mwenemushas[1] de Quiteve e Manica, contra o mambo.  

Furdela neste livro consegue transpor para o papel a mais covarde imagem de um soberano, um monarca prepotente, como diz Ubiratã Sousa (in prefácio) “GatsiRucere é tão-somente um anti-chefe parasitário, que assume um poder sem poder e é incapaz de qualquer grande feito.” Esta imagem de prepotência, arrogância, de um líder desvinculado de sua própria liderança, capaz de prostituir-se, a si e ao reino a qualquer um ou seja lá quem for em troca de “mais-valias” ou mais dias no trono, é-nos bem fresca e actualizada enquanto moçambicanos e, muito semelhante a dos soberanos que pululam pelo mundo afora, com mais incidência nessa tão má desgovernada África. 

E é esta relação, da história do reino do Zimbabwe com actualidade moçambicana, onde reside a importância de os moçambicanos do séc. XXI conhecerem as sagas para as quais se chega ao trono, e é este (3) o último ponto, uma vez que ao se ler este livro ficamos com aquela dúbia sensação de estarmos a repetir a história, arrancando deste tão importante ramo do conhecimento humano, a sua nobre função de conhecer o passado para melhor perspectivar o futuro, tudo para que ela não se repita.

Este livro, por um lado, chama-nos a razão para essa incoerência histórica que cometemos, todos nós, porque todos temos algo a dizer para que não sejamos repetidores de nós mesmos, enquanto protagonistas do nosso destino. Por outro lado, a obra mostra-nos uma verdade que optamos em ignorar, que apenas as revoluções, as insurreições armadas são único caminho para mudar ou desmontar qualquer ditadura, e que o sangue que se verte em revoluções é sacrifício, fermento útil para as mudanças que se pretendem, sejam elas em reinos ou democracias pequenas ou grandes, consagradas ou não. Sem querer ser demasiado peremptório, todavia este livro mostra-nos que, volvidos todos estes séculos (do longínquo império do Zimbabwe a actual África), os nossos líderes não conseguiram e não conseguem se desfazer do poder de forma pacífica, e tudo indica que estes não conseguirão desenvolver uma consciência democrática, enquanto os vemos todos os dias empenhas na procura de um Rumbidzai, um feiticeiro, a qualquer preço, que exorcize opositores, e se possível toda a oposição dos seus regimes, e todos aqueles com ideais e ideias diferentes para que eles reinem eternamente. “Mas eternamente não, patrão”, como diria Craveirinha.

Mesmo a desejar uma boa leitura, terminaria citando Cleber Sadoll Costa, brasileiro afeiçoado pela literatura moçambicana que, comentando sobre esta “saga” adianta: Num livro que deixa espaço para ambiguidades e metamorfoses, o autor surrealiza com destreza, e enquadrá-lo em qualquer categoria confortável seria como impor limites ao já escrito e ao que há de ser lido – percebido. Em “Saga d’ Ouro”, a malícia é dosada, a ironia é apimentada. Um livro pronto para ser lido mais de uma vez…

 

 

 

[1] Pequenos chefes de aldeais

 

Ontem choveu em Lisboa. Tudo o que me vem aos olhos são as lágrimas que inundam o buraco no qual aquela criança se contorce. Amanhã é Outono. Eu sei que já te contei isto, mas deixa-me contar, custa-me, mas deixa-me contar-te que só assim enxugo aquelas lágrimas. Hoje estou de cama. A temperatura mudou e, como sempre, apanho com isto no corpo. Sinto a mudança bem aqui no fundo. Há anos que no meu corpo a mudança de temperatura é anunciada por meio de dores.

Estou febril, dói-me o corpo todo, mas deixa-me contar-te.

Muito mais que minutos de silêncio precisamos de acções. Não digo isto porque quero, mas porque a temperatura mudou e os alertas ressoam na minha carne. O meu corpo ardendo em febre e os gritos das dores da minha perna direita superam todas as sirenes do mundo. Isto sempre me faz retornar àquele dia. Nunca se esquece algo como aquilo. Desculpa-me, mas eu tenho de te contar.

A campainha ecoa na escola. Que se dissipem as dúvidas para quem ainda bailava nesse pêndulo, é mesmo hora do recreio. O pátio da escola ganha cor e vida com as centenas de alunos que saem das salas. Frequentam todos a sexta e a sétima classes, a média da idade deles é de doze anos. O sol já estava quase no lado de lá e depois daquele intervalo viria a última aula do dia. As centenas de vozes se aliavam aos sons da natureza e executavam a ópera típica do recreio de uma escola do ensino primário.

As crianças pulam, gritam, vão trocando chalaças e riem entre sim. Todas brincam. O intervalo vai quase ao fim e uma delas corre (não me pergunta o motivo). Traz no corpo calças azuis escuras, um camisa azul do céu e sapatos pretos. A corrida não vai até muito longe, é interrompida por um empurrão e o rapaz cai numa cova que se encontra ali pertinho. Nunca se soube quem o empurrou, nenhuma criança se denunciaria ao se dar conta da gravidade do problema gerado.  

A dor que senti naquela cova continua aqui comigo e as lágrimas que despontaram destes meus olhinhos desde o momento que não consegui mexer a perna direita até o dia seguinte ainda inundam aquele buraco.

Deixa-me contar-te, deixa.

Não tardou e aos poucos aquele lugar ficou cheio de crianças com aquele uniforme azul que nos obrigavam a usar. Os meus colegas foram comunicar aos meus professores o que tinha sucedido. Precisei de ajuda para sair daquela cova. Os meus professores apareceram no lugar onde tudo tinha acontecido. Todos não paravam de fazer perguntas como «onde dói, Miguel? Como te sentes, Miguel?». Aquelas lágrimas onduladas que jorravam dos meus olhos eram as únicas respostas que eu conseguia formular.

A minha escola, como a de quase todos os moçambicanos, não tinha uma enfermaria para primeiros socorros e nenhum dos meus professores tinha carro. Não havia como me levarem ao hospital. Acabou decidindo-se que era melhor me levarem para minha casa. Coube aos meus colegas mais velhos e com estatura um pouco mais robusta me carregarem até lá. As lágrimas em catadupa inundavam as ruas, nasciam rios suspensos na minha dor. Naquele dia não houve mais aula e uma multidão de colegas me acompanhou até a casa. 

Isto nunca passa. Estou febril, mas deixa-me contar-te.

A minha mãe não queria acreditar no que tinha acontecido. Ainda lembro do teu ar preocupado, mamã. Lembro de tudo. Felizmente naquele dia meu pai estava em casa e tinha trazido com ele o carro do serviço no qual me transportou até ao Hospital Central de Maputo, onde um hora depois eu estava deitado numa maca com a perna direita toda engessada.

Sempre que a temperatura muda, a minha perna dói e a memória despeja-me tudo de novo. Deram-me cabo da perna. Isto não se apaga. Deram-me cabo da perna e me pergunto, mas e o que lembrarão os violentados desta campanha eleitoral? Não me venham com merdas. Façam quantos minutos de silêncio quiserem. Isto nunca passa. Hoje estou de cama. Amanhã é Outono.  Choveu em Lisboa ontem.

 

 

– DE SUSTO MORREU A CRÍTICA

Ubiratã Souza

Peço que me perdoem. É preciso começar por reflexões de cunho teórico. Dizia o professor Ngoenha em certa ocasião que uma reflexão sem teoria é como uma casa a ser construída sem uma planta. Por isso é preciso iniciar dizendo que, por mais que tergiversem, debatam, se confrontem e discordem as teorias e os métodos, parece ser assente que há duas maneiras possíveis de que a literatura estabeleça relações com a história. Uma delas é atávica, a outra pode ser mais ou menos arbitrária. Consoante a cada possibilidade, modificam-se no detalhe os significados tanto da palavra “literatura” quanto da palavra “história”. Mas, vamos por partes.

A maneira atávica da literatura estabelecer relações com a história não depende exatamente da literatura, mas depende do olhar crítico que deve reconstituir essa relação através do ato interpretativo. Refiro-me exatamente à historicidade da literatura enquanto fenômeno social – essa relação já está dada por hereditariedade: assim a literatura nasce, fiel às características remotas de sua ascendência. Reconstituir essa relação entre literatura e história durante o ato crítico é só um objetivo.

Chamo esta primeira relação entre literatura e história de “atávica” justamente porque ela é inelutável, é a essência da própria existência da literatura na sociedade. Não é arbitrária. Ela prescinde de qualquer possibilidade de esforço por parte do autor. Qualquer discurso humano é impregnado de uma historicidade que lhe estimula, fomenta e limita organizações e articulações específicas, mesmo na dimensão da linguagem. Ainda que o escritor busque negar essa relação, ainda que o crítico a dispense durante seu ato analítico, ainda que os leitores não deem por isso, ainda que essa relação seja completamente irrelevante: ela está lá. E os mínimos detalhes de organização da língua (seja uma peculiaridade no posicionamento do aposto predicativo, por exemplo), poderão, algures, ser usados como índices que comprovarão a historicidade da literatura. Nesta acepção, a literatura assume uma significação social mais abrangente, que a inscreve como produto da relação entre seres sociais inscritos na história. A história, por sua vez, caminha em direção a significar mais que um campo de estudo, mas torna-se aquela História (que se grafa em maiúscula), precisamente o objeto de estudo da disciplina história (a “cadeira”, como se diz em Moçambique). Pronto.

Já a outra forma de relação entre a literatura e história, a que chamo de arbitrária, trata-se da forma mais comum, direta e óbvia de evidenciar essa relação. Esta, sim, depende totalmente da arbitrariedade do autor, e, quando está bem realizada na obra, o crítico não tem muito como nega-la. Trata-se, em suma, de como o autor pode se apropriar da história como elemento para a composição de sua obra. Neste sentido, a palavra “história” se refere somente à disciplina formalmente organizada (a cadeira) e suas infinidades de sequências narrativas. Seja como tema, seja como dados auxiliares e contextuais que servirão como pano de fundo a uma narrativa construída em primeiro plano, seja por referências esparsas ou por reprodução de discursos, a história, nesta relação arbitrária, pode aparecer em menor ou maior grau de intensidade dentro da obra – ou pode nem aparecer. É nesta acepção que passa a ser útil se referir a uma obra como “romance histórico”, por exemplo, pressupondo que existam outros romances que não sejam históricos: ou seja, existem romances que não se ocupam da apropriação da narrativa historiográfica como elemento de composição como aqueles ditos “romances históricos”.

Sim, isso mesmo: se foi possível acompanhar essa sistematização um pouco complicada que proponho aqui, aquele leitor arguto já deve ter emitido uma gargalhada porque ele, ledor assíduo de críticas de literatura, já percebeu que existem críticos que, quando se empenham em trabalhar sobre a relação entre literatura e história, nunca conseguem saber exatamente se estão a se referir à historicidade da literatura ou à história como elemento de composição. Então tropeçam nos próprios pés, abalroam-se todos com o texto literário, e regurgitam análises repletas de algaravias, que poderiam ser boas, até, não fosse a barafunda teórica (a ver, como o prof. Severino tinha razão?).

Chamo atenção disso tudo porque Saga d’Ouro é um romance que salta para cima da história como disciplina para se apropriar dela como elemento de composição. Insere-se na segunda possibilidade, portanto. É neste fito que a novíssima obra de Furdela se integra a uma antiga tradição no interior da literatura moçambicana. Essa tradição, ninguém há de negar, tem sua assomada no antológico Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa. O próprio Khosa, inclusive, sumo pontífice do clero ao qual Furdela se integra, é o mais reconhecido escritor moçambicano a utilizar a disciplina história como elemento de composição em praticamente todas as obras (com exceção, talvez, dos contos do seu início, anteriores à sua atuação junto da Charrua).

Perfazendo a vol d’oiseau um arco que considere desde as primeiras manifestações literárias em Moçambique desde o final do século XIX, até o esfíngico e borbulhante presente da literatura moçambicana, não parecerá escusado dizer, sem pretensões sistemáticas, que a tomada da disciplina história como elemento de composição neste sistema literário costuma andar em círculos sobre dois grandes temas: o poder político nguni pós-Mfecane no sul (o Reino de Gaza), e o poder dos prazos no centro.

Em relação ao poder político do sul, a tradição literária é muitíssimo antiga, e tem como precursor alguém que, ao escrever sobre a guerra entre Portugal e Gaza, escrevia sobre o seu presente, e não sobre a história: está lá, no ano de 1891 o “Canto de Guerra Vatua (Assibinheia)” de Arthur Serrano em seus Sons Orientaes, enquanto Ngungunhane ainda imperava sobre marongas, machanganas e matsuas e demais súditos de toda a parte. O rol de obras que se integraram a esta tradição é imenso: no “Pós da História” (1934), de Rui de Noronha, o próprio Godido (1951), de João Dias, alguns poemas de Noémia de Sousa (1948-1951), o já citado Ualalapi (1987), A balada dos deuses (1991) e Os ossos de Ngungunhana (2004), de Marcelo Panguana, As andorinhas (2008), de Paulina Chiziane, só para citar alguns exemplos representativos. Recentemente, essa tradição foi reavivada com a trilogia As areias do imperador (2015-2016), de Mia Couto e o novíssimo As mulheres de Ngungunhane (2018), do mesmo Khosa. As formas como essas obras integram-se a esta tradição também são as mais variadas: desde obras cujo enredo concentra-se todo em construir personagens históricos ou até um simples “Bayete!” no verso de um poema de qualquer outro assunto.

Já o outro tema, poder dos prazos do centro, cito, por alto, três obras que me saltam sempre aos olhos: Choriro (2009), do mesmo Khosa, Dona Theodora e seus Mozungos (1998), de Maria Sorensen, e Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz (2016), de Adelino Timóteo. Evidentemente, deve haver outras. Mas a assimetria regional em Moçambique reflete-se com peso nas dinâmicas editoriais, culturais e literárias – tanto é mais difícil para essas outras obras virem à estampa quanto é muitíssimo mais custoso que sejam conhecidas pela pesquisa desde o Brasil.

Pois  Saga d’ Ouro inova justamente neste ponto. Desvia-se da solução moçambicana comum de perambular por entre os dois focos históricos de poder de Moçambique, o centro e o sul, e se dirige a outro tempo e a outra forma de poder, o Mwenemutapa. Quando faz isso, reconstrói a personagem histórica de GatsiRucere como um anti-herói, ou, como é comum na literatura moçambicana, constrói a figura de um “anti-chefe”, por assim dizer. Digo desse modo porque GatsiRucere é o oposto de tudo aquilo que uma idealização pode conceber como um grande líder político: é temeroso, pusilânime, desprovido de altura e imponência, profundamente reativo, ridicularizado, desviril, ansioso, imprevisível e perigoso. Não faz lembrar, ao acaso, o decadente, gordo, autoritário e orgíaco Ngungunhane de 1987?

É na oposição com uma personagem muito coadjuvante, Fungai, no início da obra, que podemos ver exatamente um ideal de chefe, dotado de “rara inteligência” e “compleição física”, capaz de se igualar aos bens de luxo da nobreza por via de seus próprios esforços como caçador, pescador e agricultor. Quase como um ideal liberal de homem empreendedor, aqui gravita em oposição a um líder enfraquecido, desprestigiado e completamente parasitário.

É justamente no ínterim dessa desfavorável comparação entre o Mambo – o soberano do Mutapa – com um súdito qualquer que surgem inúmeras ressonâncias e averbações dos shonas como terríveis invasores, cujo poder nunca teria sido aceite ou sequer assimilado pelas populações locais, colocadas sempre na iminência da revolta e da necessidade de uma dominação mais ostensiva. Acaso isso não será outra semelhança com aquelas obras que tratavam dos ngunis também como invasores e de uma população subjugada igualmente na iminência de uma rebelião?

Gostava muito de ter ensejo para analisar com cuidado toda a estrutura narrativa de Saga d’ Ouro, mas isso é pouco conveniente para um prefácio, afinal, o arguto leitor ainda há de ler a obra a seguir, não cai bem lhe revelar detalhes do entrecho. Em breve farei isso por maneiras científicas nalgum artigo: prometo publicamente. Não posso deixar de chamar atenção para mais dois pontos acerca dessa narrativa, no entanto.

A crueldade e o vexame ao qual GatsiRucere está constantemente exposto deriva muito de sua consciência de ser ele próprio o causador da desgraça e do perigo que corre agora o Mwenemutapa: é um líder fraco e ameaçado. A forma como, desde o seu zimbabwe particular, assiste a uma procissão de feiticeiros, mensageiros, forasteiros, ínfices e subordinados a chegarem constantemente para comunicar-lhe novas de desgraça faz lembrar, no horizonte de expectativas, aquele Édipo, ainda rei de Tebas que, quanto mais avança no sentido de conhecer as causas da desgraça da polis, mais se aproxima da sua própria condenação, já que ele é a própria causa da ira dos deuses. Os corvos, que revoam por toda a narrativa, surgem então como o terrível presságio de uma desgraça iminente, assim como, para um Prometeu acorrentado, serviam de castigo e fustigação a comerem-lhe o fígado. Ao contrário de Prometeu, no entanto, GatsiRucere não levou fogo à humanidade e, ao contrário de Édipo, não livrou a polis da ameaça da esfinge. GatsiRucere é tão somente um anti-chefe parasitário, que assume um poder sem poder e é incapaz de qualquer grande feito.

Saltando para o século XXI, aqueles corvos são hoje companhias constantes de qualquer transeunte pelas ruas de acácias. Esses corvos, crocitando na narrativa, fazem constantemente com que o romance se desprenda daquele passado remoto e nos traga de volta para um Moçambique atual. Surgem questionamentos, então. Por que convém ainda falar de anti-chefes parasitários causadores da desgraça do reino? Por que faz sentido que, no presente, falemos de chefes tirânicos capazes de escravizar uma população inteira ao seu domínio para que continuem no poder?

É aqui que se fecha o arco da crítica. Existem duas formas de que a literatura se relacione com a história: uma forma é tomar a disciplina história como um tema para a narrativa e a outra é destacar, criticamente, a historicidade da literatura. O romance de Furdela toma a história como tema para sua narrativa: Mwenemutapa. Pronto, essa é a primeira forma. Agora, pensemos na historicidade do romance de Furdela: ao chamar a atenção para formas despóticas, parasitárias e autoritárias de se desempenhar o poder, Saga d’ Ouro acaba se filiando a uma tradição da literatura moçambicana que reflete, desde sempre, sobre as mesmas formas despóticas, parasitárias e autoritárias de se desempenhar o poder político – ora, aqui já não falamos mais do passado, falamos mesmo do presente, não falamos mais do Mwenemutapa, falamos mesmo da República de Moçambique, 2019.

Atenção: a segunda forma de relacionar a literatura à história não depende do autor, mas do ato crítico. Pena não poder contar como acaba essa história. O arguto leitor gargalharia mais uma vez.

Hi itatlela wonana, vamakhweru! Khanimambo nikensile!

 

São Paulo, 21 de abril de 2018.

 

Agradeço ao grandioso professor Elídio Nhamona o Serrano e a constante interlocução sobre este assunto. Nyi bongile, mwama!

 

*(Texto introdutório da conversa sobre autores brasileiros no Centro Cultural Brasil – Moçambique, 19/09/19)

 

Carlos Nejar é um dos poetas brasileiros que marcou de alguma maneira a minha vida de leitor, ou mais precisamente, de consumidor inveterado de poesia. Tenho em mim dois personagens literários: um leitor e um poeta. Eis-me aqui portanto na pele de um simples leitor.

 

O meu primeiro encontro com o poeta Carlos Nejar foi nos finais dos anos 80 do século XX, numa livraria algures, em Lisboa, por via de um livro que me caíra às mãos, assim ao acaso, retirado de uma das prateleiras dedicadas à literatura brasileira. Era uma antologia poética intitulada “Obra poética (1), 1980, Nova Fronteira  – que incluía alguns dos livros do autor até aí publicados -. Daí em diante fui descobrindo mais trabalhos deste autor incluindo ensaios e ficção.

 

Mas o que me marcou realmente neste poeta foi a forma como os seus versos vibravam em mim. Por exigência minha, não são muitos os poetas capazes de criar um efeito destes no leitor que sou. Eu tenho o hábito de, à primeira, ler um livro de poesia folheando-o de forma aleatória e, neste caso, à medida que o ia lendo, fragmentos de versos ficavam reverberando em mim como uma música ao sabor da brisa crepuscular daqueles dias semi-áridos. Por muito tempo esses versos ficaram-me, por assim dizer, encravados na memória pela sua doçura, simplicidade, profundidade e, em alguns casos, pela sua densidade e espontaneidade. Repare-se neste poema:

 

A IDADE

 

Falou e disse um pássaro

dois sóis, uma pequena estrela.

Falou para que calássemos

e disse disse disse

a idade da eternidade.

 

Nessa altura eu já conhecia a maioria dos poetas emblemáticos do espaço da língua portuguesa, verdadeiros monstros da arte do bordado das palavras; falo dos “outsiders” do mundo africano, designadamente, portugueses e brasileiros, entre os quais Sophia de Mello Andersen, António Osório, Eugénio de Andrade, Carlos Drumond de Andrade, Vinicius de Morais, entre outros. Portanto, a descoberta do poeta Carlos Nejar foi uma espécie de dádiva para mim, ao constatar que estava perante uma das vozes mais esclarecidas da poesia em língua portuguesa.

 

E quando é que um determinado texto marca um leitor? Eu próprio tenho dito, em jeito de resposta, que é quando o mesmo está incompleto nos seus contornos absolutos, mas paradoxalmente perfeito na sua arquitetura relativa. Sim, é quando induz o leitor à necessidade de sua continuidade, complementaridade, acabamento, de acordo com os preceitos e necessidades interiores do próprio leitor. É o mesmo que acontece comigo quando leio algo que me marca, como um bom poema, um bom conto, um bom romance, em suma, um bom texto literário.

 

CÂNTICO

 

Limarás tua esperança

até que a mó se desgaste;

mesmo sem mó, limarás

contra a sorte e o desespero.

 

Até que tudo te seja

mais doloroso e profundo.

Limarás sem mãos ou braços,

com o coração resoluto.

 

Conhecerás a esperança,

após a morte de tudo.

 

 

É gratificante quando na nossa caminhada pela vida cruzamos com poetas da estirpe de Carlos Nejar, por intermédio dos seus escritos poéticos, quanto a mim, emblemáticos, porque vibrantes na sua tessitura e no seu conteúdo. Nejar tem uma forma peculiar de estar na poesia que ultrapassa os limites da própria contenção da palavra, consubstanciada na escolha do vocábulo certo no momento e contextos próprios. É justamente nas escolhas que ele faz que se revela como testemunho fiel da sua vida, em todas as suas contingências e magnificências. Desde as metáforas ou imagens, passando pelos vocábulos, até mesmo na rigorosa cadenciação dos versos, acabam emprestando à sua poesia aquela configuração musical que lhe é característica. Na poesia o verso deve ser, em rigor, “… denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si” diria Sophia de Mello Andersen.

 

Os escritos poéticos de Carlos Nejar são grosso modo intemporais como, aliás, toda boa poesia, o que significa que a experiência da vida e do tempo vivido criou nele a consciência de si próprio ante as contradições e contrariedades existenciais que, por sinal, são universais. A poesia em geral contesta o axioma da reprodução afunilada ou do olhar passivo perante o mundo pois, na essência, ela é simultaneamente questionamento e explicação da realidade consentida. A missão do poeta é, em última análise, a de propor novos territórios igualmente possíveis de serem habitados pela humanidade. Assim, a poesia é também resultado das contradições internas tanto do sujeito poético quanto do mundo em que este está enclausurado.

 

Deixo aqui um outro poema intitulado “Inscrição”:

 

Aqui estou,

aberto o pórtico.

Serei breve no amor e no transporte.

O óbolo está pago, o dia resgatado

E a barca pronta, com seu barqueiro amargo.

 

Aos deuses não ouso nada,

nem compro,

senão o intervalo

de meu próprio espanto.

 

Carregai-me, barca

E ainda canto.

 

A questão que me foi colocada como pretexto para este reencontro foi se, eventualmente, havia algum poeta brasileiro que me tivesse marcado de alguma maneira. Como poeta, e depois do que falei antes sobre a poesia de Carlos Nejar, a resposta a essa pergunta certamente que só pode estar com os meus leitores. Nisso eu não queria interferir pois, como fazedor de versos, a minha missão começa e termina na criação. Todo escritor, pelo menos daquilo que eu saiba, é sempre um mau leitor de si próprio. Contudo, penso eu que, qualquer que seja um texto literário, neste caso, da lavra dum poeta, inegavelmente haverá nele marcas da sua vivência literária e social.

 

“A verdadeira educação consiste em pôr a descoberto ou fazer actualizar o melhor de uma pessoa. Que livro melhor há que o livro da humanidade?”

Mahatma Gandhi

 

Do latim educatio*, a educação entende-se como transmissão e aprendizado de técnicas culturais para a formação e amadurecimento do homem. Era suposto que este fosse um fim imprescindível de qualquer escola – a busca do aperfeiçoamento das faculdades humanas. Ou seja, antes de a escola focar-se em formar os indivíduos para o trabalho com fim de desenvolver a economia do país, era míster que se focasse na formação dos indivíduos para o seu desenvolvimento intrapessoal e interpessoal. Não se trata de uma preferência subjectiva do autor, mas de uma necessidade de subordinação entre os dois objectivos. Isto porque a sustentabilidade do trabalho e da economia depende fundamentalmente de uma educação para valores humanos. E a relação entre os dois objectivos não deve ser recíproca, mas sim unilateral. A falta de uma educação para valores humanos configura-se como um buraco negro que ao longo do tempo vai consumindo todas as realizações vindas de uma educação para desenvolvimento económico.

Suponhamos uma sociedade formada só para o trabalho, mas desprovida de um conhecimento que a ajude a manter uma convivência intrapessoal e interpessoal sã e pacífica. Por quanto tempo se pode esperar que esta mesma sociedade se sustente, antes de cair em crises de relacionamento? Poder-se-ia dar o caso de uma nação ser rica em infraestruturas, tecnologia e recursos minerais, mas, ao mesmo tempo, miserável e fragmentada na sua forma de conviver e cooperar. É muito mais provável que esta nação seja infestada de desigualdade, corrupção, crime, exploração, ódio e conflitos, pois não há nenhuma sociedade que prevaleça sã e tranquila, quando os valores humanos são preteridos pelos ganhos materiais. Tarde ou cedo, a falta de uma educação para o bem-viver transforma-se num buraco negro que vai devorando todo o desenvolvimento económico proporcionado pela educação para o trabalho.

Ao contrário, o mesmo não se verifica. Ou seja, a ausência de uma educação para o trabalho não se traduz na degeneração dos frutos duma educação para vida. Se um adulto assimilou ao longo da vida o conhecimento que o permite discernir o bem e o mal, ainda que se veja desprovido de condições materiais, jamais o seu bom carácter vai aconselha-lo a cometer crime para suprir a necessidade. Se o fizer, não será por outra razão senão pela fraqueza do carácter, pois quando se é bem-educado, o mal não faz parte das nossas escolhas. A educação para valores humanos configura-se como um compromisso com o bem, independentemente das desfavoráveis circunstâncias em que o indivíduo se encontra. Se bem que é nas desfavoráveis circunstâncias que mais se destaca o brilho de um carácter inabalável. O dito popular “a ocasião faz ladrão” é deveras verosímil, pois o homem é que é o princípio das suas acções, sendo por isso responsabilizado por elas. Se ele se permite que a ocasião que lhe é algo externo transforme-o num outro ser diferente do que é, não é mais por outra coisa senão pela fraqueza do espírito ou falta do compromisso com o bem. Não basta aprender o que é o bem, é preciso assumir a virtude. Caso contrário, toda a aprendizagem mostrar-se-á vã.

Nesta ordem de ideias, o pensamento socrático de que a ignorância é a fonte do mal mostra-se um despacho exacerbado sobre a ética, por não dar explicitamente a entender que não basta conhecer o bem, é preciso assumi-lo. Há gente iluminada sobre o bem e o mal, mas decide praticar o mal sempre que lhe ocorre vantagem pessoal, simplesmente por não ter feito nenhum compromisso com o bem durante a aprendizagem.

Todavia, a conjugação dos dois tipos de educação favorece para um pleno desenvolvimento humano. Tanto o trabalho como os bons modos de viver são imprescindíveis para evolução do homem no mundo, ainda que em medidas desiguais. Entretanto, o maior problema da educação contemporânea que se verifica em vários países do mundo, incluindo Moçambique, é o facto de não estar focada nem para o trabalho nem para valores humanos, pelo menos no I e IIO ciclos de ensino.

Ora vejamos. De primeira à 12a classe, os alunos aprendem Matemática em seus diversos cálculos, porém, terminam o IIO ciclo sem habilidades que lhes permitam uma boa gestão das suas próprias finanças. Sabem contar e calcular, mas mesmo assim, lhes falta a educação financeira. Na Língua Portuguesa, é-lhes ensinada a gramática, leitura e escrita, porém, não adquirem o essencial da língua que é o poder de comunicação. A Biologia que é uma ciência sobre funcionamento do organismo dos seres vivos, da forma como é dada, pouco fala do que bom e do que é mal para conservação da própria vida. A Física e Química também se juntam ao conhecimento sem proveito urgente para a auto-ajuda diária. Afigura-se-me que não haja habilidades que se possam adquirir dessas disciplinas para resolução de coisas práticas do dia-a-dia. O conhecimento das leis dessas ciências só se torna mais valioso para os alunos que queiram ser investigadores.

Não vejo em que circunstâncias do seu dia-a-dia, o aluno comum pode aplicar o conhecimento da formação das células ou funcionamento da genética. De que modo, o aluno pode tornar práticos para sua vida quotidiana os cálculos de algébrica, dos limites, dos logaritmos e da trigonometria? Para que momento da sua vida, o aluno precisa saber das reacções químicas e acerto das equações, se tampouco quer ser um químico? Quando é que um adolescente precisou de usar a fórmula de resistência, gravidade e tensão para livrar-se de um problema diário? Longe de eu soar a um imediatista, procuro compreender a urgência e a imprescindibilidade do conhecimento que nos têm passado ao longo dos 12 anos de ensino. Se calhar fosse primordial que os professores indicasse o fim prático de cada tema das suas aulas, antes de discorrer em teorias fantasmagóricas.

O que se ensina nas nossas escolas primárias e secundárias não é uma educação para o trabalho, muito menos, uma educação para vida, mas sim uma educação (defeituosa) para ser um cientista. É uma educação defeituosa, na medida em que as aulas são expositivo-explicativas e há falta de instrumentos laboratoriais para que o conhecimento ensinado seja transformado num poder prático. Não se pode esperar que um aluno consiga acertar uma equação química na prática, quando só aprendeu a fazê-lo em papel.

A apologia que faço é que se deveria remover estas disciplinas desprovidas de urgência prática das salas de aulas para estantes da biblioteca. E aquele que lhe vier a curiosidade sobre reacções químicas, funcionamento da genética, ondas magnéticas, gráficos exponenciais ou classificação das palavras, ao menos, terá um espaço de esclarecimento na biblioteca. Findo o segundo ciclo de ensino, estas disciplinas podem ser resgatadas no ensino superior – nível em que se espera que os estudantes, para além de aprimorar competências da vida e do trabalho, adquiram competências de investigação e produção do conhecimento.

As disciplinas que se me afiguram urgentes e imprescindíveis para uma sociedade que se queira construir dia-pós-dia por meio do conhecimento – mas que permanecem ignoradas – são a educação financeira, a educação alimentar ou nutrição, a inteligência emocional, os primeiros socorros, a informática, a educação ambiental ou reciclagem, a retórica, a aritmética, a gramática e as artes (música, dança, teatro, poesia, literatura, pintura, desenho, escultura, etc). Nas artes, julgo que cada modalidade deveria ser ensinada em função da vocação de cada aprendiz. A estas disciplinas supracitadas, dever-se-iam juntar as já existentes como a Filosofia pela construção de uma consciência crítica; a Ginástica pelo bem-estar físico; as línguas por uma melhor interação com o mundo; a História em busca das lições do passado comum; a Geografia pela nossa própria localização no mundo e o Empreendedorismo que nos estimule a criar ideias e planos de negócio. Seria uma tarefa tautológica se quisesse explicar a importância de cada disciplina que sugiro a sua introdução para resolução de problemas do nosso dia-a-dia. São disciplinas educativas por excelência e que, quando bem aprendidas, geram riqueza espírito-material e preparam as pessoas para viver o presente de maneira segura e responsável.

Ao invés de despender-se o tempo em aprendizagem de fórmulas matemáticas, físicas, químicas ou estudo minucioso da formação dos léxicos, da composição dos seres vertebrados e invertebrados – conhecimento importante, mas não urgente para múltiplas exigências diárias dos alunos – dever-se-ia apostar, primeiro, em conhecimento para o bem-estar físico, psicológico e social bem como em habilidades para o trabalho. Dever-se-ia sempre dar primazia ao conhecimento que proporcione saúde biopsicossocial dos indivíduos, pois, repito, a sua falta configura-se um buraco negro que ameaça devorar tudo quanto foi conquistado pela obra de ensino-aprendizagem.

*ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 1ª ed. Martins Fontes. São Paulo, 1998.

E-mail: tsembah@gmail.com

As visitas do Dr. Valdez integra-se em um projeto literário que se apresenta, hoje, como um dos mais desafiadores dos contextos de língua portuguesa. Desde 2003, ano de sua estreia como ficcionista, com As duas sombras do rio, João Paulo Borges Coelho publicou sete romances, dois volumes de contos e três novelas. A este registro vertiginoso, que não dispensa o rigor e a experimentação estética, juntam-se três livros de histórias em quadrinhos, lançados em Maputo no início dos anos 80, e algumas narrativas curtas espalhadas em edições de natureza diversa. Embora também seja um reconhecido historiador, João Paulo Borges Coelho evita em seu trabalho artístico o caminho da restituição didática do passado. Apoiado em estratégias como a metonímia, a metáfora ou a alegoria, frequentemente mediadas pelos recursos do humor e da ironia, o jogo que propõe aponta antes para as trocas simbólicas entre o “pequeno” (cotidiano) e o “grande” (história). Virtuoso, o primeiro abre fendas no solo rígido do segundo.

Ambientado na Ilha do Ibo e na cidade da Beira, em um tempo complexo que se situa entre o já agônico colonialismo português e a eufórica independência moçambicana, As visitas do Dr. Valdez coloca em cena a experiência do interstício. A narrativa gira em torno do empregado doméstico Vicente e de suas patroas, as velhas mestiças Sá Amélia e Sá Caetana. Preocupada com os delírios da primeira, que reclamava das ausências do Dr. Valdez, entretanto já morto pelo excesso de manteiga ingerido em vida, Sá Caetana propõe um jogo a Vicente: resgatar o médico das cinzas. Assim, nos domingos de folga, Vicente disfarça-se de senhor doutor branco, em uma tripla transformação que visa devolver alguma alegria à Sá Amélia. Mas não só.

Com o disfarce do velho colono, elaborado na escuridão solitária e precária de seu quarto, o jovem empregado encontra uma criativa maneira de confrontar Sá Caetana e todo o imaginário por ela representado. Por trás da máscara, Vicente aciona um discurso estrategicamente ambíguo e passa a atuar em um dos campos que mais aflige os poderes autoritários: o da imaginação reivindicativa. A imitação que faz do Dr. Valdez, na cara e na casa da autoridade, desestabiliza a velha ordem colonial ancorada nas premissas da superioridade racial e científica e, como tal, no privilégio que decorre da primazia e da lei. O jovem procura libertar-se, portanto, de uma vida de submissão que lhe parecia destinada e acompanhar a mudança que, a um nível mais abrangente, se vai anunciando em Moçambique. Contudo, recorda com frequência as palavras de seu pai: o velho Cosme Paulino exigia-lhe que desse continuidade a uma história de servidão, cuidando das senhoras como se de sua própria família se tratasse. A vinculação quase umbilical a dois mundos opostos acentua a ambiguidade das relações entre as personagens, que são convidadas a ocupar distintas posições durante a narrativa.

Realizadas em três domingos e estruturadas em torno de outros tantos núcleos de significado (gesto, voz e olhar), as visitas do Dr. Valdez asseguram ao empregado alguma margem para expressar seu descontentamento. O discurso de Vicente, na primeira visita, adquire uma capa predominantemente visual. A maneira como se disfarça e os pensamentos que elaboram seus gestos constituem uma eficaz afirmação pública de sua rebelião privada. Executando de maneira sagaz e irônica os gestos doutorais de Valdez, avança por fronteiras até então intransponíveis: senta-se pela primeira vez no sofá, aceita o chá servido pela patroa, toma a iniciativa de observar da janela o quintal e espanta-se com o espaço miserável que é reservado aos criados… Enfim, graças ao novo lugar que lhe cabe no cenário, vê o mundo de um ângulo inédito. E se faz ouvir, mesmo quando silencia. Em contextos onde o estatuto impera, a autoridade não necessita de muitas palavras para se fazer valer. O discurso verbal da dupla Vicente/Valdez progride do comedimento, na primeira visita, para o confronto aberto, na segunda. Programada nos bastidores, depois de um inusitado encontro entre o criador Vicente e a criatura Dr. Valdez, a terceira visita sintetizará as duas anteriores, além de trazer o complemento fundamental da máscara-elmo, peça tradicional da arte maconde que se sobrepõe a do Dr. Valdez. Em dificuldade por ter que se dirigir a quem não vê totalmente, Sá Caetana perde um dos seus principais pontos de apoio: o desigual duelo de olhares.

Assim, após a performance física da primeira visita (que conforma ironicamente a imagem do colono) e da reivindicação retórica da segunda (que confirma a indignação do colonizado, mas o expõe a um risco), a terceira visita será marcada pelo impacto do olhar e de seus desdobramentos. Qualquer desses encontros terá contornos e resultados imprevisíveis, que não nos cabe aqui esmiuçar. Mas não resistimos a uma especulação: a representação de Vicente talvez nos queira dizer, entre outras coisas, que a arte é menos transformadora no momento em que explicita a raiva do que quando, sem renunciar ao compromisso político, faz a adequada mediação das estratégias que lhe são específicas (o gesto, a voz, o olhar e a necessidade de se colocar no lugar do outro). João Paulo Borges Coelho, por seu turno, parece querer complementar com uma pergunta: até quando serão necessárias as máscaras?

Cada uma dessas visitas, por outro lado, nasce de contextos específicos dentro dos quais a memória – imediata, remota, inventada – desempenha uma função relevante. Os jogos de espelhos internos à própria estrutura narrativa, que nos reenviam ao universo íntimo das personagens, complementam e orientam o sentido da teatralização. Compondo os bastidores – ou a pré-história – da encenação, o olhar retrospectivo do narrador e das personagens afigura-se como chave de leitura para as três visitas do Dr. Valdez. No que se refere a Vicente, as memórias remontam, por exemplo, ao tempo da infância, quando presenciou a humilhação pública de que foi alvo seu pai às mãos do patrão Araújo, em um dos episódios mais violentos já relatados na ficção moçambicana; indicam ainda o presente das saídas noturnas, tensão e excessos partilhados com seus amigos Jeremias e Sabonete, que também são empregados domésticos; finalmente, projetam o futuro enganador, metaforizado nas luzes de neón da Boite Primavera e na dança sinuosa de Maria Camba. As figuras do pugilista Ganda, herói nos ringues e engraxate fora deles, e do estranho dançarino que com sua arte recupera a complementaridade perdida do mundo, funcionam também como ativos lugares de memória para o empregado.

A compulsão memorial que atravessa a narrativa e a escrita de João Paulo Borges Coelho, conferindo-lhe unidade, está subordinada a uma resposta artística às formas de produção do esquecimento, especialmente aquelas que são elaboradas pelo discurso político. Este tipo de discurso possui uma natureza programática que choca com o espaço da intimidade (dos rumores e dos desejos, dos ódios e dos segredos, das ambivalências e das confluências) onde sua literatura se alimenta. Em suas obras, aliás, qualquer tipo de mergulho no passado é orientado por um presente repleto de complexidades. E vice-versa. Ao autor, por isso, interessa menos enquadrar a lembrança em um registro fixo de verdade do que ligá-la a um campo aberto de interrogações e interpelações.

Ao eleger caminhos que favorecem a sobreposição de tempos e memórias, a pluralização da geografia literária, a densidade existencial de heróis e personagens secundárias, a diversificação de posturas do narrador e a desestabilização de doxas por via de uma pesquisa estética sobre o paradoxo, João Paulo Borges Coelho consolida o romance moçambicano e constrói um novo lugar no campo literário.

Celebremos, pois, sua primeira visita ao leitor brasileiro.

Rio de Janeiro, 20 de Julho de 2019.
Actualizado pelo autor em 01 de Outubro de 2019.

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Este texto foi escrito com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ (Programa Jovem Cientista do Nosso Estado, processo nº E-26/203.025/2018) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa, Nível 2, processo nº 307217/2018-3).

*Texto publicado pela Kapulana a propósito do lançamento de As visitas do Dr. Valdez, no Brasil. Aqui mantivemos a ortografia usada naquele país.

 

 

Contextualização

Ualalapi, título da obra e nome de uma personagem que recebe a missão de matar o rei hosi (rei, imperador, em língua tsonga) Mafename, a mando do seu próprio irmão Ngungunhane-Gungunhana que se torna, assim, o imperador de Gaza. Este imperador é famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do séc. XIX. Eleito um dos 100 melhores romances africanos do século XX, em Ualalapi Ungulani Ba Ka Khosa conta a história de Ngungunhane, da sua ascensão até a sua queda. (Kapulana)

Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1987 e até hoje ecoa com uma profusão indescritível e imbatível no seio da rica literatura moçambicana. Ler Ualalapi é sempre um exercício de auto-deleite, de aprendizagem e de envolvência numa máquina do tempo que nos faz devorar página por página, espremendo as folhas movidos por um enlevo surreal. Actualmente é quase como um crime desconhecer Ualalapi, desconhecer a hipercorrecção e a forma como Ungulani torneia e esgota a descrição do espaço físico, social e psicológico, dando-nos uma imagem bem pincelada e sonora do que se trata na diegese.

 

O livro Apocalipse da Bíblia e Ualalapi à luz de “O Último Discurso de Ngungunhane”: Que intercessão?

Passados 32 anos, o que dizer de Ualalapi? Para uns uma obra literária e para outros didáctica, mas afinal de contas que obra literária não contém no seu ventre um pendor didáctico? Há sempre um didactismo por detrás de qualquer criação literária seja ficcional ou não. Refira-se que a análise feita tem em conta apenas “Ualalapi”, isto é, exclui-se “As Mulheres do Imperador”.

Associamos o livro Apocalipse da Bíblia à obra Ualalapi, mais particularmente a “O último discurso de Ngungunhane”. O nome do livro bíblico de Apocalipse vem de uma palavra grega que significa “Exposição” ou “Revelação”, como aparece em algumas traduções. O próprio nome já indica qual é o conteúdo do livro de Apocalipse: ele expõe assuntos que estavam ocultos e revela eventos que aconteceriam muito tempo depois de terem sido escritos. Lancemos, então, um especial olhar ao discurso que o imperador de Gaza fez na iminência do seu exílio no qual:

“(…)gritou como nunca, silenciando aves e o vento galerno, petrificando os homens e as mulheres com as palavras que saíam em catadupa e que percorreram, em outras bocas, gerações e gerações em noites de vigília e insónias (…)” (KHOSA, 2017:73)

Encontramos nesta asserção as primeiras impressões que ligam o Apocalipse, a Revelação e a premonição à obra em alusão. Há um sinal temporal que demonstra que o que estava prestes a acontecer inspirou habitantes futuros, ou seja, palavras que romperiam a barreira do tempo e ganhariam vida própria. De seguida, Ngungunhane iniciou o seu discurso, a nosso ver premunitivo, que foi dito com total disforia ao seu povo, em gesto de despedida:

“(…) Mas ficai sabendo, seus cães, que o vento trará das profundezas dos séculos o odor dos vossos crimes e viverão a vossa curta vida tentando afastar as imagens infaustas dos males dos vossos pais, avós, pais dos vossos avós e outra gente da vossa estirpe. Começareis a odiar os vossos vizinhos, increpando-os pelos males que padecerão nas palhotas sem idade (…)” (ibid:74)

O imperador dirige-se ao seu povo, agora metaforizado e vocativizado sem qualquer ensejo e chamando-o “cão”, vomitando aquele que é o seu apocalipse para o Império de Gaza, particularmente, e para Moçambique em geral.

“(…)Os nomes que vêm dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos m***a e vocês agradecendo(…)”(ibid:75)

Vaticina-se uma vivência bastante conturbada, a perda da autenticidade telúrica, do nacionalismo, ou seja, trata-se de uma premonição antiutópica ou se preferirmos, distópica. Não é segredo para ninguém que, por exemplo, haja actualmente maior preferência pela atribuição de nomes inspirados em modelos ocidentais e muito distantes do que é nativo-africano no seio das sociedades “globalizadas”.

“(…) E pela primeira vez na vossa vida vereis filhos rejeitando as mães que se atirarão às casas onde o corpo se venderá ao preço do pão, fornicando com as crias que desconhecem e apontando ao acaso os presumíveis pais da caterva de miúdos que nascem às dezenas(…)” (ibid:76)

Para terminar, Ngungunhane declara:

“Todos ou quase todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro muitos irão curandeiro e pedirão a raiz contra as balas do inimigo (…) seus cães, a maldição que abraçou estas terras perdurará por séculos e séculos (…) rebentarão as barrigas grávidas de mulheres inocentes, obrigando os pais a comer os nados-mortos sem uma lágrima nos olhos (…) Eis o que será a vossa desgraça de séculos, homens. (…)” (ibid: 79-80)

 

Conclusões

Consideramos que a escrita de “O último discurso de Ngungunhane” é apocalíptico, na medida em que este constitui um vaticínio, ou seja, uma revelação carregada de distopia. Se considerarmos, embora haja várias interpretações, que o Apocalipse faz revelações sobre o futuro do mundo, Ualalapi, particularmente no último capítulo, faz revelações do que aconteceria de 1987 em diante.

Podíamos ser um pouco mais atrevidos e constatar que esta escrita relacionada à Bíblia está ligada também  ao autor, Ungulani Ba Ka Khosa, veja-se: Apocalipse é o último livro da Bíblia assim como “O último discurso de Ngungunhane” o é em “Ualalapi”; De igual maneira, em “Orgia dos loucos”, do mesmo autor, o último conto tem um título que indica uma revelação/premonição: “Fábula do futuro”, por conseguinte a escrita de Khosa em Ualalapi está formal e ideologicamente, de alguma forma, relacionada ao livro “Apocalipse”, da Bíblia.

 

Bibliografia

Corpus

KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana. Lisboa, Porto Editora, 2017.

 

 

Não me recordo de um discurso em que algum político local tenha dado ênfase tão enquadrado ao nosso desporto, como factor motivador na sociedade, como aquele que ouvi do Papa Francisco. E os exemplos para insuficiências-chave apontadas como inibidoras de sucessos ao nosso alcance, serviram-nos como uma luva. A referência ao lado pouco valorizado dos sucessos de Maria Mutola – perseverança e não desfalecimento – deveriam passar a ser matéria de aprofundamento e estudo entre nós.
Afinal, parece que o Papa sabe de nós, mais do que nós próprios…
Passo a citá-lo:
– Maria Mutola aprendeu a perseverar, apesar de perder a medalha de ouro nos três primeiros Jogos Olímpicos que disputou. O tão sonhado título dourado veio à quarta tentativa, quando a atleta dos 800 metros venceu nas Olimpíadas de Sidney.

E eu recordo, para substanciar, uma citação de Mia Couto:
– Lurdes Mutola, nas suas actuações ao mais alto nível, nunca pediu às adversárias para partir um pouco à frente, por ser oriunda de um país do Terceiro Mundo!

 

FILÃO NA PERIFERIA

Ao Presidente Samora Machel, preocupava-lhe a necessidade da prática desportiva porque “onde entra o desporto, sai a doença”. Essa é uma componente basilar, que deveria obrigar a uma relação muito mais próxima entre os ministérios que superintendem o desporto e a saúde. Questiona-se: quanto dinheiro, e não só, se poderia poupar na saúde, se o “preventivo” desporto, sobretudo nas crianças, fosse utilizado de uma forma sistemática e controlada?

Porém, nos dias que correm, as diferenças entre os países que apostam no desporto e os que o mantêm na periferia, como é o nosso caso, reflectem-se de várias formas, que vão desde o prestígio, vantagens imediatas no turismo, até aos volumosos encaixes financeiros.

Permitam-me comparações:
Tivemos ciclones a assolar o país, nas zonas Centro e Norte. A título de empréstimo concessional, o Banco Mundial concedeu-nos 100 milhões de dólares, a serem pagos em DEZ anos, com uma taxa de juro bonificada. Entretanto de Portugal, chegava-nos a notícia de que o “passe' de um jovem futebolista do Benfica, João Félix, de 19 anos, custou, nada mais e nada menos do que 120 milhões de euros! E não estamos a falar de Ronaldo, Messi ou do nosso falecido compatriota Eusébio!

 

DESPORTO: PORQUE NÃO PRIORIDADE NACIONAL?

Os programas de aposta na agricultura e turismo, são e serão sempre válidos. Até porque temos terra arável, praias lindas e um povo hospitaleiro.

Mas… no desporto? Tivemos e temos talento (re)conhecido e vocacionado. Faltam programas sérios e modernos neste sector actualmente na periferia, apontados para um negócio altamente rentável, envolvendo clubes e empresários. O beneficiário último será o país.

Mas entre nós, reina muita descrença, com corrupção à mistura. Há falta de crer e querer, na maior parte da sociedade. E isso não pára à porta do desporto, que deveria ser uma lanterna a iluminar o caminho. Dói, ouvir as lideranças da actividade desportiva, a “darem de bandeja” a priorização a outros sectores como Educação e Saúde. Será que o desporto não é Educação e nem Saúde?  

Se temos como história real deste país, o “fabrico” de estrelas mundiais como Eusébio, Coluna e Matateu, (e estes são apenas os emblemáticos), porque não apostar forte e de forma enquadrada, para que não nos sintamos felizes e acomodados em lugares 160 e tal no ranking FIFA?

Perdoem-me, compatriotas, mas quando uma vitória sobre as Maurícias ou a Suazilândia, nos coloca num estado de alma que dá a impressão de que conquistámos o Campeonato Africano, fica clara a assunpção da nossa pequenez… Ao invés de ser um sector a render biliões ao Estado, o desporto tornou-se um encargo. Dá para entender?

Falta-nos, como disse o Papa Francisco, um maior sentido de perseverança e um querer que nos permita chegar a voos à altura da nossa história e das nossas já comprovadas capacidades!  

 

Já eram seis horas do dia 24 de agosto de 2019, e o Roberto já estava com os pés no chão e com sorrisos espalhados no seu rosto de tanta felicidade e ansiedade para viver e reviver o dia da verdade.

E quando já se encontra no seu quarto apreciando o seu fato de casamento no espelho, o seu tio bateu na porta e entrou para conversar.

— Roberto, tu tens a certeza de que não vais mesmo convidar o teu próprio pai para o teu casamento? Ainda tens tempo de o fazeres.
— Não! Aquele não é meu pai coisíssima nenhuma. É um grande feiticeiro. Não quero feiticeiros no meu casamento. Olha para a cara dele, é mesmo de um bruxo.

— Oh, meu sobrinho! Tu sabias que o teu pai anda triste e muito doente. Tu nunca vais lá visitar! E agora vais casar sem convidá-lo. Porque é tão duro este teu coração?

— Tio sabe muito bem que por culpa deste feiticeiro perdi vários empregos e as minhas relações conjugais nunca deram certo. A minha vida está muito bem longe dele. Deixe-me paz! Por favor!
Ao perceber que o seu sobrinho já estava ficando chateado com aquele assunto, Cardoso abriu a sua pasta e entregou-lhe um envelope.

— Toma! É um presente enviado por Deus. Se não leres esta carta antes do casamento, arrepender-te-ás para o resto da vida.

E quando o tio Cardoso saiu do quarto, Roberto sentou-se na cama, mesmo sem vontade de ler aquela carta, fez a questão de abri-la para matar a curiosidade e pôs-se a ler de imediato.

“Querido filho, sei que hoje é o dia mais importante da tua vida, o dia do seu casamento. Queria tanto poder estar do seu lado para lhe dar um abraço e dizer que te amo tanto, mas infelizmente não fui convidado para o teu casamento.

Filho, lembra-te das vezes que eu acordava de madrugada para ir à aquela casinha que desconfiavas de que era lá onde produzia as minhas bruxarias contra si? Era lá onde permanecia todas as madrugadas de joelhos e com fome pedindo a Deus para que nunca te faltasse nada na vida.

Betinho, das vezes sem conta que não eu comia e somente olhava para ti na mesa com os meus cheios de lágrimas, naqueles momentos de muita dor, queria apenas poupar a nossa comida para que nenhum dia faltasse alimentação em casa, e não tinha nenhum medicamento de azar tal como dizes às pessoas

Este rosto que dizes e julgas ser assustador e que tanto tens vergonha de olhar e tocar, ficou desfigurado quando tentava salvar-te num incêndio que tu mesmo provocaste na cozinha quando brincavas com fogo e próximo de uma botija de gás.

Saibas que o emprego que hoje tens e que ganhas muito dinheiro, não te chamaram por sorte ou porque um amigo ajudou-te com a vaga.

Acredites que fui implorar e chorar todos os dias para o dono daquela empresa para poder admitir-te, e jurei-lhes que eras um jovem competente, humilde e honesto e que só precisavas de uma oportunidade para mostrar a tua valência.

Meu filho, não cases com esta mulher, pois ela é filha da minha irmã, aquela é a tua prima que tanto procurávamos quando sumiu nas cheias de 2000, na província de Gaza quando ainda tinha cinco anos. Queria te dizer que achámos e que estava a namorar contigo, mas tu nunca atendeste as minhas chamadas e muito menos respondeste as minhas mensagens.

Para terminar, neste envelope tem um documento de autorização de uso e aproveitamento de terra, tem um terreno grande na cidade da Matola em teu nome e podes construir a tua própria casa.

Ham! Já me ia esquecendo, faz muito tempo que te procuro, meu filho, para entregar-te o teu cartão do banco para levantares o dinheiro que fui depositando em toda a minha vida para que levantasses depois dos teus dezoito anos.”

Abraços do seu pai! Amo-te, filho!
Com lágrimas nos olhos, Roberto tirou os seus sapatos, desmontou aquela roupa de casamento e correu para ver o seu pai e pedir desculpas por todo mal. E quando lá chegou, o seu pai já tinha partido deste mundo. Olhou para si e disse chorando:

— O verdadeiro feiticeiro da minha vida são os meus pensamentos e as minhas atitudes que julgaram a cara do meu pai antes de conhecer bem as profundezas do seu coração; o verdadeiro feiticeiro é a minha boca que tanto chama de feiticeiro alguém que me colocou no mundo e que muito fez por mim.

 

Todos, graças às palavras, elevam-se como se tivessem asas.

Aristófanes

 

Minutos depois da cerimónia de lançamento de Asas da água, Armando Artur admitiu que Nelson Lineu é uma grande promessa como poeta. Nós, os que ouvimos tal afirmação, não nos surpreendemos, até porque Gilberto Matusse, um dos melhores professores de literatura, no prefácio daquele livro ainda recente, realçou as qualidades literárias do nosso autor. Nesse exercício, Matusse fez referência ao título de estreia de Lineu para melhor integrar o leitor na oficina do poeta.

Ora, se começarmos a ler a poesia de Nelson Lineu a partir de Cada um em mim (2014), de facto, podemos assumir que Asas da água é uma continuidade criativa de um autor que muito investe no peso da palavra para aglutinar significados. Essa continuidade observa-se quer do ponto de vista da individualização poética quer no da mancha gráfica. Nos dois livros, Lineu desafia-se a resumir toda uma viagem pelas suas dimensões existenciais muitas vezes em uma curta estrofe. Julgamos que esta opção foi bem oportuna no caso do seu primeiro livro, pois os sujeitos de enunciação de Cada um em mim são tão refinados que chegam a dizer realmente tudo sem se alongarem. Por isso mexem connosco, despertam-nos sensações, emoções e desejos numa construção contagiante: “aprendi a indicar/ ao vento onde me deve levar/ quando me dei conta/ que as palavras/ se plantam umas as outras (p. 13).

À semelhança de Cada um em mim, na versificação de Asas da água há um recurso à infância, à beleza dos pássaros, à vitalidade da água (do rio e do mar) e à vegetação. Nesse sentido a continuidade poética, se quisermos, criativa, é certa, afinal determinados registos apontam para os eventuais elementos importantes ao poeta na oficina da escrita.

Com efeito, embora Asas da água seja uma continuidade do que Lineu inicia no primeiro livro, como bem observa Gilberto Matusse, na nossa opinião é também uma descontinuidade no sentido qualitativo. Ou seja, nesta obra lançada pela nova editora moçambicana, TPC, este poeta, também já assumimos publicamente ser uma promessa, decresce em termos da combinação dos sentidos das palavras nos seus versos. Logo, muito dificilmente os sujeitos poéticos conseguem nos despertar a necessidade de celebrarmos continuamente os textos ou as circunstâncias aí convocadas. Parece-nos que faltou, em muitos caos, o cuidado na harmonização rítmica das palavras, daí, por exemplo, ser pouco encantador ler o poema 1 (p. 19) ou 6 (p. 24) de forma inteligível e numa sequência apropriada. O que define o ritmo nos textos de Asas da água? A certa altura esta é a questão a que não conseguimos dar resposta.

Não obstante, facilmente lê-se Asas da água no mesmo estado de espírito. O título do livro foi muito bem conseguido, todavia a beleza nele contido não vai muito traduzida nos versos porque, se calhar ao trabalhar a técnica, o nosso poeta esqueceu-se do mais importante: a comoção.

A existirem livros de pausa, parece-nos que este é um deles. Sinceramente, não notamos grande evolução deste poeta que já mostrou saber trabalhar o lirismo. Talvez Lineu tenha-se acomodado numa zona de conforto ao produzir este livro ou então, eventualmente, foi pequenos demais para alcançar a sua qualidade.

Em todo o caso, Asas da água é um exercício além da fronteira do que os olhos captam ou do que os sentidos pressentem num claro jogo polissémico sobre a subjectividade. Nisso, a criação da imagem e do movimento (da água, das folhas, das aves) são das situações principais.

 

Título: Asas da água

Autor: Nelson Lineu

Editora: TPC

Classificação: 11

Passaram-se três dias após a visita apostólica do Papa Francisco a Moçambique. As bandeirolas nas ruas de Maputo, a azáfama causada por crentes e curiosos que se colocaram nas ruas por onde passara o Sumo Pontífice e o ambiente de festa e segurança esfumavam-se. Naquela manhã de segunda-feira, a cidade recuperava a sua normalidade, para alegria dos que tinham achado aquilo tudo uma palhaçada com milhares de palhaços. Infelizmente a intolerância religiosa sempre será uma causa de conflitos.

O acto de comunicar requer muita paciência. A distância que separa o ouvir uma coisa e escutá-la assemelha-se à mesma que se precisa percorrer numa viagem entre a terra e a lua. Muitas vezes o som que dribla os canais visíveis e invisíveis da comunicação abandona a tua boca com toda tenacidade e atravessa os meus ouvidos, mas não alcança a minha mente. A mensagem dispersa-se ao longo da viagem e nunca chega a produzir os efeitos desejados. Ninguém é imune a este imbróglio, até o Papa.

Enquanto estacionava o carro na garagem do edifício do ministério onde trabalhava, o Indivíduo X não conseguia parar de tremer. Tudo tinha que ver com a discussão que se passava na sua cabeça. Milhares de vozes o assombravam. A garagem ficava no subterrâneo do edifício. Embora houvesse muitos carros naquele espaço, a escassa luz dava-lhe um ar sombrio.

De repente, o Indivíduo X ouviu uma bofetada estrondosa. Pisou no travão e o carro parou. Bateste a parede, disse-lhe uma das vozes. Ele cobriu a cara com as mãos como quem se recusava a ver a borrada que fizera. A borrada está feita, disse-lhe outra voz. Deixem-me em paz, gritou ele enquanto batia no volante do carro. Como se as vozes lhe tivessem escutado, tudo ficou em silêncio. Ele recuperou o controlo dos acontecimentos e disse para si mesmo enquanto passava a mão na cabeça calva, estás a ficar maluco broh!

O estrondo que há instantes visitara os ouvidos do Indivíduo X tinha vida própria, era muito diferente daquelas vozes que lhe coçavam a consciência com garras afiadas. O epicentro dele era palpável, por isso qualquer pessoa que ali estivesse também seria assaltado pelo mesmo som. E assim foi. O segurança que tinha sido escalado para guarnecer a garagem ouviu o som e se dirigiu imediatamente ao lugar onde se tinha dado o impacto.

O segurança, magro e alto, identificou o Range Rover que tinha batido a parede da garagem numa marcha de retaguarda.  «Boisse, está tudo bem?», perguntou o segurança enquanto se aproximava do carro.

No interior da viatura, o Indivíduo X continuava a esconder a cara com as mãos trémulas. O homem estava mesmo a passar por um mau bocado. Na cabeça tudo girava, não conseguia ouvir mais nada senão aquelas vozes que nem existiam. «Precisa de ajuda, boisse?», voltou a perguntar o segurança enquanto socava o vidro do carro.

Quando ouviu o vidro a ser socado por um jovem negro que trazia um uniforme azul e uma arma, o indivíduo X deu-se conta que tinha chamado a atenção do segurança e disfarçou o mal-estar. Ajustou a gravata, fechou o botão do casaco, puxou a chave com força, sacudiu-a e a guardou, pegou a pasta de mão e desceu do carro.  O Indivíduo X saiu do local do crime e disse ao segurança, sem lhe olhar a cara, «Bati a parede, nada de mais. Está tudo bem…».

O escritório do Indivíduo X ficava no segundo piso, mas preferiu ouvir uma das vozes que o incomodavam e foi ao terceiro piso resolver os pendentes com o Indivíduo Z. «Excelência, aquela bolada com os libaneses não vai acontecer», disparou ele logo que entrou na sala do chefe. «Podes me dizer a propósito de quê?». «Excelência, nós estávamos lá quando o Papa disse aquilo… Não vale a pena, Moçambique não merece isso…».

Uma bofetada de novo. Desta vez o Indivíduo X não está de pé na sala do chefe, mas deitado a suar sangue numa cama pequena na cela 33. Uma voz lhe acordava daquele sonho sofrido e perguntava «E se a homilia do Papa tivesse sido antes da bolada?».

 

 

Soneto da Vida sem Rimas

Irei voltar…, Irei voltar para vos oferecer palavras amigas que o tempo trouxe na melodia imaginária do meu silêncio. Irei voltar para contar a metáfora

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