Juro que não sei, sinceramente, não sei. O que esperas que eu te diga depois do que vi ontem? Não me interessa quem assinou o quê, apenas me diz se se faz isso. Celebrar o quê? Quem? Eu? Não me pede para não chorar, apenas me diz se se faz isso. Eu vi com estes olhos. Achas que alguém parou para pensar nisso? O que sabem sobre ele? zero, não sabem nada. Paz de quê? Estou a chorar sim e não me tome por louco, sei bem do que estou a falar. Diz-me lá se se faz isso, diz-me lá, diz…
Os dois autocarros tacteavam a estrada com autoridade. E ela não pedia muito, apenas rogava que aqueles senhores que os comandavam fizessem o combinado. Ambos se tinham deixado aconchegar nos cuidados do outro. A estrada, no meio da savana, continuava aberta e os autocarros, separados por uma distância considerável, deslizavam tranquilamente. Aqueles motoristas já tinham feito vários pactos semelhantes àquele no passado, conheciam aquela estrada há muitos anos.
Uma luz tímida iluminava o amanhecer ao ritmo daqueles passos ténues que os primeiros raios solares gatinhavam. Eram quase cinco da manhã. Estávamos na mítica Gorongosa. A ponte sobre o rio Púnguè deitava os seus olhos sobre os autocarros que passavam Dongobe e cheia de si se estendia para sentir aquele deslize, que a estrada já vinha sentindo desde há muito tempo, e cumprir o seu honroso papel de permitir que eles fossem para o lado de lá sem serem engolidos pelo rio. De repente, o sono que nos tinha feito companhia, desde que a viagem tinha começado, foi espancado por um sentimento que nos arranhou a alma, acredita no que te digo, aquilo deixa sem ar e faz qualquer um pequeno. O medo quando nos visita deixamos de existir.
Eu estava lá, eu vi aquilo. Não fizemos nada de mal a ninguém, nenhum dos que estavam naquele autocarro merecia aquilo. Aquilo não se faz…
Continuo ouvindo aquele ruído de balas a atravessarem o autocarro, continuo ouvindo pessoas a gritarem descontroladamente, continuo sentindo o pânico a ferver-nos o sangue e a cozer-nos os corações. Aquela chuva de tiros pareceu durar o tempo suficiente de um dilúvio. Uma chuva de tiros, uma chuva de balas. Diz-me lá, faz-se isso? diz…
Eu não parava de me perguntar o que era aquilo, ainda não parei. Enquanto escondia a cabeça por baixo do assento, como todos os que viviam aquele inferno, o nosso herói pegava o volante com vigor e pisava fundo no acelerador do autocarro. O que era aquilo? O que tínhamos feito para merecer aquilo? Uma chuva de balas…
Minutos depois a chuva parou e rios de sangue corriam atabalhoadamente pelo autocarro em alta velocidade, talvez buscassem um mar onde desaguar a dor que marchava em sapatos de bico fino naqueles corpos. Muitas pessoas foram atingidas, dentre elas o motorista, mas ele acelerava, continuava firme com as mãos no volante. Aquele homem nos salvou, não a todos, mas nos salvou. Eu vi com estes olhos, que agora estariam cerrados para eternidade, um homem morrer. Sei que nunca sabemos qual é o nosso dia. Mas alguém sai de casa, entra num autocarro para viajar, é baleado e morto como se fosse um bandido. Disparar em pessoas indefesas daquela maneira! Diz-me lá, faz-se isso? Faz-se?
Desculpa, mas isto não é nenhum desprezo. Não me digas para que não chore. Eu estava lá. Não posso ignorar tudo depois daquele sangue ter-me tocado.
Hoje é um dia de festa para quem não esteve lá. São quatro da manhã e ainda não consegui adormecer. As pessoas vão acordar mais tarde que é feriado, vão fazer um frango assado na grelha, vão passear, vão depositar flores na praça da paz, vão fazer campanha eleitoral. Isto tudo não passa de uma hipocrisia nacional. Ninguém tem culpa. Não é da tua casa, não é alguém famoso. Mas eu estava lá e vi tudo. Há dias foi em Zimpinga. Ontem foi em Dongobe. Amanhã onde será? Hoje o que celebramos? Quando consigo cerrar as pálpebras só vejo aquele rio de sangue arrastando uma vida para morte. Sim, hoje é 4 de Outubro, o resto não sei, juro.