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A (in)justiça em Mia Couto e Agualusa

Não são portanto os casos isolados que definem o carácter dos indivíduos, mas a harmonia das suas virtudes ou a degradação dos seus defeitos.

Eduardo Paixão

 

 “O terrorista elegante”, “Chovem amores na rua do matador” e “A caixa preta”. Estes são os títulos das três narrativas que compõem o livro O terrorista elegante e outras histórias, de Mia Couto e José Eduardo Agualusa. De um modo geral, a obra literária dos dois autores é preenchida por temas muito concernentes aos factores que movem o mundo e o imobilizam simultaneamente. Entre os factores em causa, estão imensos “ismo”, como o racismo, o machismo, o egocentrismo e o terrorismo. Mas há também o amor, o ódio, o conflito de interesses, o desejo de vingança e, claro, o injusto frequentemente infiltrado no conceito justiça.   

Na primeira história do livro, Mia Couto e José Eduardo Agualusa ficcionam este mundo contemporâneo, feito de dúvidas e repugnância, sobretudo derivada da maneira como uns e outros, de culturas, crenças e latitudes diferentes, lidam entre si, quando há algo maior em jogo: o poder ou manutenção dos benefícios que isso implica.

Esse é bem o cenário de “O terrorista elegante”, de longe a melhor história do livro. Num estilo muito miacoutiano, ao protagonista Charles Poitier Bentinho são-lhe atribuídas feições da dissonância num universo adverso à diferença. Então, porque o mal só pode ser o desigual, ao mesmo tempo que se verificam seis atentados em Londres, Paris, Amesterdão, Bruxelas, Roma e Madrid, contra embaixadas, consulados e empresas ligadas aos Estados Unidos, é preso, no aeroporto de Lisboa, um indivíduo de origem angolana, com reconhecidas ligações ao Estado Islâmico, quando se dirigia ao avião da United Airlines.

Pressionado por um ministro português e pelos interesses norte-americanos, Laranjeira, um comissário da Polícia Judiciária portuguesa, mesmo convencido da inocência do detido Charles Poitier Bentinho, monta-lhe uma artimanha para que este confesse crimes que afinal não cometeu.

Aí, logo se vê, a história entra para um confronto entre o justo e o injusto. Ou seja, muito pela parcialidade que a envolve, em “O terrorista elegante” há essa demonstração dos elementos que, no mundo real, edificam ou corroem a Justiça. Há imensa relatividade nisso, assim como há hipocrisia dos poderosos em relação aos indefesos. Por isso mesmo, a história, muito bem escrita, com humor, intriga e sarcasmo, a certa altura, torna-se também catártica num momento em que o amor é usado como parte de uma estratégia para condenar o tão surreal terrorista elegante.  

Se na primeira história de Mia e Agualusa um personagem é forçado a admitir conspiração para matar, na segunda, por outro lado, há, de facto, um Baltazar Fortuna desafortunado. A causa? Três mulheres com as quais tem assuntos muito mal resolvidos: Mariana, Judite e Ermelinda. Desejando obstinadamente justiça, o protagonista do enredo vai tentar matar a cada uma, olvidando as suas falhas na relação com elas. É igualmente esse sentido de vingança misturado com outras coisas, na história, que faz da justiça e injustiça realidades próximas, deduzidas pelas percepções de quem as busca. Assim, em “Chovem amores na rua do matador” nota-se essa justiça almejada por Baltazar Fortuna e outra do entendimento das suas ex-mulheres. No fundo está ali subentendido um debate sobre que justiça se pretende para o mundo e o que mais move as pessoas na reivindicação desse direito.

Portanto, em O terrorista elegante e outras histórias entende-se por justiça o mecanismo adoptado pelas personagens para se desembaraçarem de um problema, pouco importam os meios, a moral ou ética. Diante de um ladrão, por exemplo, Vitória, em “A caixa preta”, enche-se de fel para matar. Afinal, se um indivíduo assalta a casa para fazer mal a ela e a avó não merece outro fim.

As três histórias do livro são desirmanadas, com estilos e perfis das personagens completamente opostos. Ainda assim, todas têm nos protagonistas os maiores promotores da iniquidade social no contexto da ficção. Isto é, em Mia e Agualusa a equidade é um recurso ao alcance dos mais fortes ou daqueles com destreza na altura de sentenciar o veredito. No fundo, é essa verosimilhança que aproxima as personagens ao plano desencantando da realidade actual.

 

Título: O terrorista elegante e outras histórias

Autor: Mia Couto e José Eduardo Agualusa

Editora: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 14

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