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“DÍVIDAS OCULTAS E/OU ODIOSAS” (I)

 «Algo mais, para além de tudo»

“DÍVIDAS OCULTAS E/OU ODIOSAS” (I)

Sua conceptualização, manifestações, natureza e regime jurídicos aplicáveis, tratamento, implicações e consequências

Uma das questões torrencialmente ventiladas no panorama internacional, mas que, entretanto, suscita, ainda, uma série de dificuldades de compreensão, manuseamento e solucionamento é o fenómeno das chamadas dívidas ocultas (comummente denominadas também de “dívidas odiosas” ou “ dívidas ilícitas”).

A temática é paradoxalmente complexa, visto que, forçosamente, obriga a uma análise paralela e simultânea de vários prismas: quer à luz das normas do Direito Internacional [Público e Privado], quer à luz das normas internas do Estado em nome do qual a dívida é contraída; quer ainda à luz da responsabilização daquele Estado e/ou das pessoas psicofísicas que assumiram obrigações “em nome daquele Estado”, isto só para citar alguns exemplos de aspectos que são chamados à colação, quando nos enrostamos com este fenómeno de dificultosa apreciação e tratamento. 

No meio desta salganhada jurídica, merece particular atenção a análise de cenários onde um Estado, obrigado a pagar a referida dívida, tem ainda de curar que corra, em simultâneo, o processo judicial destinado a responsabilizar os indivíduos que o “hipotecaram” perante terceiros (outros Estados, organismos públicos internacionais ou instituições do Direito Privado sedeadas noutros ordenamentos jurídicos) com a finalidade de expropriar os preditos indivíduos, permitindo que o Estado “devedor” salde a dívida, não directamente do respectivo erário, mas sim por intermédio do património daqueles que terão obrigado o aludido Estado.

A via de acesso para a contracção das dívidas ocultas, decorre precisamente da faculdade que é, por Leis domésticas, conferida à generalidade dos respectivos Estados, como corolário da sua soberania, de contrair empréstimos, normalmente sujeitos a juros, com a promessa de que o Estado mutuário restitua futuramente do valor mutuado, dentro das condições contratuais previamente previstas e estabelecidas.

Por exemplo, entre nós, o n.º 1 do artigo 56 da Lei n.º 9/2002 – Lei do Sistema de Administração Financeira do Estado, doravante tratada somente pela sigla “SISTAFE” – estabelece que a dívida pública compreende as obrigações financeiras assumidas em virtude de leis, contratos, acordos e realização de operações de crédito.

Portanto, constitui um procedimento normal a contracção de uma dívida pública (quer interna quer externa) por parte de um Estado e as razões da sua contracção justificam-se pela necessidade de dotar o Estado de meios de solvabilidade, visando a prossecução do interesse público. A dívida pública será interna se for «contraída pelo Estado com entidades de direito público ou privado, com residência ou domiciliadas no País, e cujo pagamento é exigível dentro do território nacional» (redacção extraída da alínea a) do n.º 2 do artigo 56 da SISTAFE) e, contrariamente, a dívida pública será externa quando «contraída pelo Estado com outros Estados, organismos internacionais ou outras entidades de direito público ou privado, com residência ou domicílio fora do País, e cujo pagamento é exigível fora do território nacional» (redacção extraída da alínea b) do n.º 2 do artigo 56 da SISTAFE).

Nos parágrafos precedentes, faz-se menção sintética da legitimidade que os Estados possuem em contrair dívidas públicas (internas ou externas), factologia que constitui procedimento plausível para qualquer entidade (pública ou privada) que se veja numa situação de escassez de meios de liquidez, em virtude de as receitas arrecadadas mostrarem-se hipossuficientes para garantir a realização das despesas que se mostram pertinentes realizar.

Quando é que ela – a dívida pública – se torna odiosa/oculta/ilícita?

À luz da Doutrina do Direito Internacional Público, dívida odiosa é uma teoria legal que sustenta que a dívida nacional contraída por um regime político, com propósitos que não servem os interesses de uma nação, não deve ser compulsória, ou seja, o respectivo pagamento não deve ser imposto nem ao Estado e muito menos ao respectivo povo. Portanto, segundo esta doutrina, tais dívidas são consideradas como dívidas pessoais de um regime [político] que as contraiu e não, exactamente, dívidas do Estado. 

Os Estados são pessoas colectivas de Direito Público e possuem personalidade jurídica (susceptibilidade de ser portador de direitos e obrigações), que, no caso dos Estados, é originária. Sendo pessoa colectiva, as suas acções terão que ser executadas pelas pessoas psicofísicas que legitimamente foram eleitas/nomeadas/indigitadas para o representar, significando que, das acções desenvolvidas pelas sobreditas pessoas psicofísicas – as faces visíveis de um Estado – “supostamente em nome do respectivo Estado”, criam-se, a priori, obrigações para esse mesmo Estado.

A odiosidade de uma dívida começa a desenhar-se quando as retromencionadas pessoas psicofísicas com legitimidade para encetar actos jurídico-político-executivos idóneos a obrigar um Estado perante terceiros, de forma fraudulenta e simulada, desencadeiam obrigações para os seus Estados, mas, entretanto, objectivando assenhorar-se ilicitamente dos valores monetários provenientes do empréstimo.

Dito de outro modo: na dívida odiosa, a figura do Estado somente é usada e instrumentalizada (de forma abusiva) para fazer emergir os efeitos práticos do negócio: liberalização dos valores por parte do mutuante e captação individualizada, fulanizada e personalizada de tais valores, por parte daqueles que têm o privilégio de fazer emergir obrigações para o Estado, aproveitando-se desse privilegio conferido por Lei para perseguir objectivos pessoais, particulares, empresariais e individuais – logo, ilegalíssimos –, enquadrando tais valores no seu próprio património ou aplicando-os em investimentos ou operações financeiras cujas vantagens apenas ir-se-ão repercutir na esfera dos próprios ou de terceiros à sua escolha, causando gigantesco prejuízo ao respectivo Estado e gerando uma explosão e revolta social generalizada no seio dos seus cidadãos.

Na esmagadora maioria das vezes – senão em todas – este processo de apropriação ilícita dos bens do erário público, tem uma origem material e/ou formalmente ilegal, ou porque praticado por dirigente sem competência para o efeito, ou porque, tendo sido praticado por dirigente com competência para o efeito, careceria de autorização expressa para o efeito (autorização emitida por outro dos três poderes, no âmbito do controlo da acção governativa de um executivo, ou seja, é caracterizado por uma tramitação desviante relativamente àquela legalmente prevista, fazendo com que, inumerosas vezes, os cidadãos de um determinado país nem tenham o conhecimento da existência de uma dívida que lhes é susceptível de onerar por largo horizonte temporal. Neste último caso, a dívida é oculta (qualificação que parte do sentido etimológico do termo “oculto” que sob o ponto de vista semântico-linguístico-gramatical significa “escondido”, “clandestino”, “escamoteado”, “camuflado”), diferenciando-se, assim, da terminologia “dívida odiosa” que é usada sobretudo para significar que a dívida em apreço não só é uma afronta a um determinado povo, mas, sobretudo, cria nesse mesmo povo um veemente sentimento de repulsa que se confunde com o sentimento de ódio (pela dívida).

A contracção da dívida odiosa é, assim, interpretada como se o governante que a despoleta estivesse, literalmente, a escarnecer, humilhar, calcar brutalmente com sapatos robustos, fulminar impiedosamente a dignidade e consideração de todo um povo. Não só demonstra desprezo pelo povo por parte de quem contrai a dívida, como também faz de forma com que esse povo não tenha dúvidas da existência desse sentimento de desprezo.

É por isso que a dívida odiosa é, na maioria dos casos da generalidade dos ordenamentos jurídicos, considerada nula à nascença, pois os mecanismos manuseados na sua criação, e tendo em conta que é, amiúde, deflagrada por iniciativa do poder executivo, envolvem vícios jurídico-administrativos universalmente consagrados [tais vícios] como determinativos da nulidade dos respectivos actos administrativos.

A título de exemplo e com a fito de facilitar a compreensão do leitor, no ordenamento jurídico moçambicano, os vícios atrás referidos vêm previstos no artigo 34 da Lei n.º 7/2014 (Lei do Procedimento Administrativo Contencioso) e a tipologia daqueles vícios traduz-se numa destas cinco nuances: Violação da lei (desrespeito pelas normas jurídicas aplicáveis ao acto; ex: erro na interpretação, ausência de base legal para praticar o acto, etc.), Vício de forma (quando há uma preterição de formalidades essenciais anteriores à prática do acto ou no decorrer dele ou ainda por completa ausência de forma legal), Usurpação de poder (quando um acto administrativo invade as competências do poder legislativo ou judicial; ex: o Governo pratica actos que deviam ser praticados pela Assembleia da República ou que deveriam carecer da autorização deste magno órgão; é uma violação ao princípio da separação de poderes), Desvio de poder (quando visa um objectivo diverso daquele que a Lei estabeleceu ao conferir tal poder) e Incompetência (quando um órgão da Administração Pública adopta um acto incluído nas atribuições ou na competência de outro órgão da Administração Pública; difere-se da usurpação de poder porque nesta, abalroam-se competências de outro poder: judicial ou legislativo), sendo que, ainda entre nós, os actos cometidos com envolvência daqueles vícios são, uns, nulos (artigos 129 e 130 da Lei n.º 14/2011 – Lei que “Regula a Formação da Vontade da Administração Pública, Estabelece as Normas de Defesa dos Direitos e Interesses dos Particulares”) e, outros, anuláveis (artigos 131 e 132 do retromencionado compêndio legal).

Para que o leitor tenha uma ideia aproximada do que se aduz acima, é focar-se no conteúdo impregnado na alínea p) do n.º 2 do artigo 178 da Constituição da República (CRM) que propugna que «é da exclusiva competência da Assembleia da República autorizar o Governo, definindo as condições gerais, a contrair ou a conceder empréstimos, a realizar outras operações de crédito, por período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder pelo Estado».

Dissecando o comando normativo reproduzido no parágrafo precedente, significa dizer que, se, por mera hipótese académica, o Governo tomar a iniciativa de contrair dívidas públicas em desrespeito pela imprescindível autorização da Assembleia, em contramão aos ditames acima expostos, o empréstimo será ilegal. E se, para além disso, o produto dos valores mutuados direcionar-se para um destino contrário à prossecução do interesse público, designadamente, o encaminhamento de tais valores para a esfera patrimonial privada, pessoal e individual dos indivíduos que somente usariam, no vertente exemplo hipotético, a figura do Estado como veículo sub-reptício para, na verdade, fazerem ingressar tais valores nos seus “gananciosos bolsos”, a dívida será, segundo os postulados do Direito Internacional Público, odiosa.

Sublinha-se que os princípios adoptados em Moçambique para o regime da nulidade dos actos administrativos, segue e obedece uma visão mundialmente consagrada, pelo que, o que mais releva para a análise dos vícios acima esmiuçados, é o forte pendor ilegal que caracteriza a origem e nascença das dívidas odiosas, independentemente do respectivo ordenamento jurídico. É precisamente por este motivo que a Doutrina mais predominante do Direito Internacional Público, assevera que estas dívidas odiosas não podem ser vinculadas ao povo residente no “Estado que as contraiu”, porquanto, conforme assinalámos supra, elas brotam da violação dos pressupostos de legalidade para que uma dívida pública externa seja legitimamente contraída, não se perdendo de vista que não é nem o Estado e muito menos os seus cidadãos que dela beneficiam, mas sim somente um grupelho de “gangsters de gravata” e “colarinho branco” é que se satisfaz obscenamente com as delícias proporcionadas por esse acto lesa-pátria.

Para Alexander Sack, jurista russo percursor da Doutrina das dívidas odiosas (sic): «as dívidas odiosas, contraídas e utilizadas para fins que, com o conhecimento do emprestador, são contrários aos interesses da nação, não obrigam a nação – quando sucede que o governo que as contraiu é derrubado – excepto quando a dívida está nos limites das reais vantagens que estas dívidas possam ser suportadas. Os emprestadores cometeram um acto hostil contra o povo, e não podem esperar que a nação que se libertou de um regime déspota assuma tais dívidas odiosas, que são dívidas pessoais do antigo governante» (fim de citação). Entretanto, as enunciações teóricas, doutrinárias e inclusivamente legais aqui depositadas, estão longe de permitir que um problematismo desta natureza, assim que se faça sentir, tenha tratamento fácil ou esponjoso. Muito pelo contrário. As dívidas odiosas, apesar de serem ilegais, produzem efeitos práticos (e até vicissitudes jurídicas), quer para aquela entidade que empresta os valores quer para o país em nome do qual, fraudulentamente, a dívida foi contraída. 

Chegados aqui, no que concerne aos referidos efeitos práticos, encaminhamo-nos para a análise das consequências advenientes para (1) o país em nome do qual se contrai a dívida, (2) para os indivíduos que colocaram o país e seus cidadãos nessa desassossegada situação e (3) para os cidadãos do país em nome do qual a dívida foi consignada. Confluem implicações susceptíveis de desencadear responsabilidade civil, criminal, disciplinar, administrativa e política, entre outras, a serem escalpelizadas na próxima publicação, cujo horizonte temporal se fixa para daqui há precisamente uma semana.

PS: Se nalgum ponto do presente artigo opinativo, se verificarem similitudes com situações que, eventualmente se estejam a suceder no solo pátrio, parafraseando o já perecido escritor alemão Heinrich Boll: «tais similitudes não são nem intencionais nem ocasionais, mas inevitáveis».

 

Por: Télio Chamuço

Advogado

Email: telio@teliochamuco.com

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