O País – A verdade como notícia

Sinto-me em casa…

Andam muitos homens nestas páginas, quando chegar a vez das pitas continuem no mesmo silêncio. Hoje escrevo deitado porque, mais que muitas outras noites, faz demasiado frio. Recuso-me a correr o risco de me deixar vencer pela preguiça, dispo-me a alma com o corpo entre uma cama quente e um par de cobertores. Ouve-se um cão a latir, não tenhas medo, é o Fiel.  Não me vejo longe deles tão já. We are in love, my love. Paras-me para te rires do meu pijama azul?, não tem nada de mais, nem desenho de macaquinhos a baloiçar, nem frases como i am your baby, nem coelhos com os dentes fora, prontos para devorar cenouras, apenas milhares de fios azuis de lã feitos gémeos siameses pelas grandes máquinas de costura para cobrir-me as vergonhas.

Não estou em Lisboa, nesta madrugada de Natal não. Cheguei ao início da noite de ontem à Vila de Rei, esta terra ladeada de pinheiros e eucaliptos, com mais estrelas que a minha menina e moça inteira, sorrisos e couves a colorirem todos os ângulos da pintura. É o centro de Portugal, o marco geodésico que aqui existe não me deixa mentir.

– Já ando por cá há muitos anos, sinto-me em casa…

Não te gastes os olhos se não fores um gato, está tudo às escuras.  Numa outra cama ao lado da minha dorme, – Mas diz, tu acreditas em extraterrestres? o meu irmão português, o David. Já viste que tenho tantos irmãos, nem? Tudo genuíno. A amizade é a porta para tudo. Ainda admiras por que razão te negam. Diz, primeiro, que queres ser amigo dela, bro.

– Sabes como é que se chamava a actual capital de Moçambique? – perguntou-me ele sentado na varanda para qual dava a janela do nosso quarto numa residência universitária que se situava num bairro de Lisboa.

– Lourenço Marques! – respondi eu prontamente.
– Pois é, esse é o meu nome: David Lourenço Marques. – rimo-nos e quebramos o gelo de dois putos que acabavam de se conhecer e partilhariam o quarto nos próximos tempos. Um era de Moçambique, o totozinho que te escreve, e outro era de Portugal, mas de uma terra distante de Lisboa. Esta na qual ao pôr os meus pés fora do autocarro há algumas horas obrigou-me a abrir bem os olhos, ajustar os óculos e procurar pelos edifícios escondidos por detrás do nevoeiro que engole tudo neste mês de Dezembro. O Inverno não anda a brincar de faz de conta, se for para nos metermos nisto que seja a sério, não nesta terra, de faz de conta não brincamos.

– Mas diz, tu acreditas em extraterrestres?
Sempre a mesma pergunta antes de dormirmos, e depois outra, mais uma até ele adormecer e eu ficar a costurar a escuridão. Passaram quatro natais e a amizade cada vez mais forte, desde o primeiro momento abriu-me as portas da sua vida. Acompanhamo-nos todos os dias. O importante disto não é apenas a doutrina jurídica que nos fazem papar ao longo do curso, mas as pessoas, as experiências, os silêncios e sorrisos do dia-a-dia. Concluiu o curso, voltou para sua casa, já não me faz as perguntas da madrugada, mas tudo continua, sua família continua a minha família, somos irmãos de países diferentes, tratam-me todos com tanto carinho, sempre amáveis, sempre queridos. Tudo de forma genuína, sem aquele cheiro no ar de somos bons samaritanos. Tudo genuíno, meu Deus.

– Mano já imaginaste como é que deve ser o Natal para os que combatem na guerra? – eu para ele numa outra altura atordoado por Cabo Delgado. Ele respondeu-me com algo que fingi não perceber para que aquela triste memória do presente que sequestrou Moçambique nos abandonasse. Mas tudo genuíno, meu Deus. A atenção, o carinho, a amizade! Sinto-me em casa, a deixar-me surfar sob o sono, tudo…

 

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