O País – A verdade como notícia

Memórias de um povo

Nunca se tem a certeza de nada quando se escreve sobre aquele que escreve. A única certeza que temos é a de que uma das riquezas da literatura são  justamente as múltiplas dimensões que propicia, o que significa, por outras palavras, que cada análise crítica vale pelos seus próprios argumentos. Com todas as suas “certezas” ou fragilidades, com todas as suas “verdades”. Não tenho a certeza de nada neste momento, a não ser o de estarmos diante de um poeta que construiu o seu próprio caminho e deixou ficar a sua marca na história da literatura moçambicana. A única verdade que trago neste modesto texto é a de que Sérgio Vieira se fez reconhecer sem nunca ter assumido a poesia de forma obsessiva, “escrevi como vivi”, disse um dia ao estudioso e saudoso Michel Laban.

Na Casa dos Estudantes do Império ensaia as primeiras incursões literárias. Escreve. Reescreve. Queima. Cresce. Deixa Portugal, percorre outros territórios onde troca ideias e amadurece a sua “poesis”. Depois, mais tarde,  milita ideiais revolucionários nos históricos cadernos da “poesia de combate”, termo que Sérgio Vieira desaprova, porque considera que o critério de avaliação de uma obra não é necessariamente o tema que ela está a abordar. Para ele, uma obra literária, para além dos seus propósitos políticos, é boa ou não é. E cito: “Há péssimas obras líricas, há más obras ditas revolucionárias, e há excelentes obras dos dois lados. Fim de citação. Liberta a pátria, o processo de escrita prossegue, confronta-se com outras propostas literárias preocupadas em apresentar uma nova expressão literária. Mas a “guerra” do Sérgio Vieira prosseguiu apenas com um único propósito: o de se envolver, através da sua poesia, na construção e consolidação de uma obra imponente: uma pátria livre.

Falar de um poeta é, antes de mais nada, um acto de coragem. Significa falar da sua grandeza ou da sua fragilidade. Exige assumir uma posição. Enunciar um veredicto.  Falar de um poeta significa, para mim, aflorar os contornos através dos quais se desenha sua poesia, arriscar vaticínios, sugerir leituras, chamar atenção para os aspectos narrativos. Nada mais que isso. Por essa razão declino afirmar que o Sérgio Vieira é o melhor poeta que a nossa terra viu nascer, o que seria uma pura inverdade, devido a múltiplas razões, e uma delas é porque o Sérgio Vieira nunca teve a pretensão de o ser e tenho a certeza que não procura absolutanete nada com a literatura, contrariamente aos que buscam nela um estatuto social. Para Sergio Vieira, ser poeta é apenas  escrever. É viver. É cumprir a sua responsabilidade como um cidadão a quem o acaso legou o dom da escrita. Apenas isso.

Escreveu “Também memória do povo”, um livro que surgiu num tempo em que se exaltava a pátria e se tentava construi-la. Influências? Talvez Aragon, talvez Senghor, talvez Homero,  talvez o Rilke. Talvez o Jorge Amado do nosso eterno encantamento, ou mesmo o Eça de Queiróis, o Antero e um Urbano Tavares Rodrigues, autores que leu antentamente. Não se tem nenhuma certeza donde terá buscado as suas influências literárias. Talvez das saudades da sua terra nos longos períodos do exílio. Talvez das recordaçoes dos tempos da escravatura. Do amor por uma mulher. Da sua preocupação na construção do homem novo. “Também memória do povo” é, por outro lado, um livro de homengem aos que tombaram no fragor da luta. Um livro de denúncia. Cheio de sangue. De lágrimas. De memórias.

Brindou-nos, não num tempo longíquo, com “Participei, por isso testemunho”,  um livro que saiu-lhe de um jacto, no isolamento de um quarto de hospital em Beijing, sem o arrimo de notas e agendas pessoais, sem a possibilidade de consultar fontes e referências. Um livro que levou Luis Bernardo Honwana a escrever que “notável e refrescante é a capacidade que estas páginas possuem de fazer reviver o drama, o sofrimento, a entrega, a solidariedade à volta do ideal da libertação da pátria e a exaltação dos momentos altos da luta. De reviver ou, mais importante ainda, de descobrir e compreender”. Excusado se torna dizer que se tratou duma obra que suscitou bastante expectativa pelo facto do autor ser polemista, e por via disso ter-se transformado numa figura polémica, controversa, atributos granjeados nos palanques da assembleia da república e nas páginas da imprensa moçambicana, atributos que ele sempre fez questão de pantetear nos variados corredores onde se esgrimiam ideias.
Como muito bem o disse José Luís Peixoto, “não se chega a uma certeza sólida e coerente sem se ter passado pela dúvida”. E a certeza sólida e coerente que neste momento posso transmitir é de que não tenho nenhuma dúvida que o poeta Sérgio Vieira percorreu, enquanto escritor, o caminho que merecia ser percorrido. A sua obra é escassa, se diga, mas torna-se necessário lê-la, para compreender o homem e reconhecer o poeta. Ler o Sérgio Vieira é, em última análise,  viajarmos através da nossa história, uma forma de perpetuar a memória de um povo.
 
19 de dezembro 2019

 

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos