O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

Ao Joaquim Boaventura Massingue

 

Há gente que vive no irracional.

Vivem de apetites do mal.

São imprevisíveis feitos crocodilos.

Calculistas feitos chitas.

Ágeis feitos serpentes.

E oportunistas feitos abutres!

 

Ser honesto é um perigo entre nós. Então salve-se quem quiser/puder. Isto está infestado! "Que pena…". Disseste – a nós filhos – repetidas vezes –, no leito do hospital – antes da misteriosa levar-te. Inconsciente já estavas há alguns dias. Os gemidos eram cada vez mais fortes… Não te comunicavas com frequência! Os seus olhos ficavam presos no teto daquele quarto do HCM… Parece que vias coisas. Mesmo com a dor que te consumia… nos momentos de aparente lucidez distribuías sorrisos, bem me lembro do sorriso meu grande amigo! Havia muita esperança que o mal não venceria, até mesmo depois de ouvir… "a situação é mesmo grave, deixemos tudo nas mãos de Deus". Cenário igual vi num filme de ficção… era tudo irreal.

Os gemidos eram sufocantes e perfurantes para todos que te amam. Sentimo-nos reduzidos (minúsculos) e incompetentes por nada pudermos fazer para quem deu tudo por nós. Sempre foste forte, todos sabemos… era para nós mais uma provação! Rios escorrem pelo rosto, são da dor…

E os abutres? Foram os que te levaram ao leito do hospital e, depois, ao além. Desta luta… Dedicaste a vida a inalar o pó de giz naquelas salas de dar dó. Face às dificuldades, foste à faculdade: abriste-nos os olhos! Com seu jeito frontal e dono de si levaram-te ao dirigismo. Mas é lá onde encontraste os abutres. Maltrataram-te. Durante dias colocaram-te num compartimento minúsculo. Nove anos se passaram… lutaste para te defenderes das injúrias e acusações. Provas não tinham e não tinham o porquê as terem… sempre vincaste e nós acreditamos! Lutaste até as últimas consequências… mas venceram os abutres… venceram porque se alimentaram da sua saúde até desgastá-la. Vais com a dor de não ter feito justiça, vais com a dor de não concretizares alguns dos nossos sonhos, os nossos projectos… por isso "que pena", disseste de forma repetida no leito do hospital.

Já há algum tempo que o coração não pulsava com vigor e, com isso, outros órgãos vitais foram disfuncionando. Neste mar de incertezas e de lutas, o que mais nos deixava irritado é que te preocupavas mais connosco e com os outros que consigo próprio. Quem te conheceu sabe, era a sua personalidade! Foste um homem de ideais e convicções próprias. A humildade foi sua marca.

Mesmo na dor, nunca quiseste ser peso para ninguém e ninguém mesmo…

À sua companheira de batalhas, nossa mãe, defendeste "giz nos meus filhos não… já basta eu e você". Mandaste-me à comunicação, onde caí no jornalismo… Orgulhavas-te, mas para ti já era igual a inalar giz. Enfim…

No seu velório, que inundou sua residência, lembrei aos presentes sobre: “Abutres da minha terra”, título do livro que ficaste por escrever. “Muitos, talvez, não percebiam ou não percebem a razão desse desejo do nosso pai. A final de contas, o que é um abutre?”, questionei perante centenas para depois explicar. “Abutre é um animal (ave) que se aproveita dos restos mortais de outros animais para se alimentar. É que o nosso pai apercebeu-se, durante a sua trajectória, que houve gente que agiu, comportou-se e aproveitou-se dele feito abutre. E alguns podem estar aqui”, disse perante um silêncio que era apenas interrompido pelo movimento dos ramos de árvores que plantaste no quintal. “Esquecem-se, os abutres, que podem ser vítima da sua própria natureza, do seu próprio destino!”, concluí.

E porque os abutres ainda moram algures… não querias que derramassem lágrimas de crocodilo no seu adeus. Escolheste o crematório… decisão que quem não percebe tentou contestar. Mas era a sua vontade. Foi sua, mas agora é também nossa! Cumpra-se!

Boaventura – é outra história por contar – nome do seu pai, que fizeste jus. Lembramo-nos das boas aventuras à terra dos macuas, onde ficamos por cinco anos, das conversas à mesa em Xai-Xai ou Chókwè, das piadas que contavas para nos colocar em gargalhadas, dos ensinamentos, das longas viagens via terrestre do Norte a Sul e vice-versa. Lembro-me ainda da vez que voltei à casa sem a pasta e cadernos, isso em Nampula, e consolaste-me… são tantos os episódios. Foste um grande amigo, um sábio companheiro.

Sempre gostaste do mar e foi lá onde depositamos suas cinzas como exigiste no testamento, porque poucos te compreendiam.

Aos seus amigos Victorino (Barrote), Banzima, Tembe, Mubai e tantos outros – que a imperfeição e a memória ofuscam –, os nossos mais profundos agradecimentos, foram grande suporte. Ao tio Zé, seu irmão de sangue e de luta… que esteve de perto nessa dura batalha. Encaminhou-mos, demonstrou-nos o significado e profundeza do amor que sempre vos uniu. Ao tio Cabral, tia Rosália, tia Maria, tio Orlando, Herculano e tantos outros familiares, que nos momentos mais difíceis, mostraram firmeza e apoio incondicional. Foram determinantes!

Nosso pai, palavras são apenas palavras… o que sentimos vai muito além do que podemos traduzir nestas letras que juntas fazem algum sentido.

Apesar de curta, que boa(a)ventura foi a nossa! Descanse em paz nosso herói, amigo, companheiro e eterno professor. Que Deus lhe dê o eterno descanso, até breve!

 

Agradecimentos extensivos aos meus amigos

e colegas pelo suporte e encorajamento!

 

(*) Título do livro que ficaste por escrever, nosso pai…

 

 

 

 

 

Hoje, 21 de Março,  o mundo celebra o dia mundial das florestas. Uma efeméride que se repete ao longo dos anos desde a sua instituição em 2012. Constitui uma oportunidade para cada ser humano reflectir sobre a importância das florestas, a origem da vida humana e animal, sobre a dinâmica das civilizações modernas e sobre o futuro próximo e longínquo de toda a Humanidade. Mais do que isso, é um momento privilegiado para guardar as florestas bem juntinho ao peito, sentir nele as batidas do coração verde que irradia a energia e a vitalidade da mãe Natureza.

O coração humano, esse bate em busca do oxigénio produzido e generosamente disponibilizado na atmosfera pelas florestas. Elas absorvem o lixo que exalamos em forma de dióxido de carbono, transformando-o num enorme reservatório lenhoso que pode ser utilizado para muitos fins: construção, energia, artes, etc. Para além de fornecer oxigénio, as florestas purificam o ar que respiramos de substâncias tóxicas como o monóxido de carbono, dióxido de enxofre e dióxido de nitrogénio. Daí a sensação de ar puro que se respira dentro e em redor das florestas.

Outro elemento essencial para a vida é a água, colocada à disposição dos seres vivos através do “ciclo da água”. Também nele as florestas têm uma função essencial, fazendo parte da equação complexa de evaporação, sublimação, precipitação, retenção, conservação, purificação, filtragem de água. Graças ao papel crucial das florestas, a água corre ligeira ou se armazena em forma de rios, lagos, lagoas, aquíferos, glaciares ou outras formas de reservatórios do tão precioso líquido.

Na hora de produzir os alimentos essenciais para a vida, a floresta é um provedor incansável, através dos seus ecossistemas ricos em biodiversidade. Fornece verduras, frutos, cogumelos, mel, tubérculos, raízes, antílopes, insectos, aves, anfíbios, crustáceos, peixes, lagartas, mel, etc. Uma panóplia de possibilidades e oportunidades ricas em proteínas, vitaminas, minerais, carbohidratos, ácidos gordos essenciais para uma vida saudável e activa. Os polinizadores naturais multiplicam-se nas florestas, semeando vida no reino vegetal. Mesmo os ecossistemas marinhos que fornecem grandes quantidades de pescado, necessitam das florestas para revigorar a sua capacidade productiva.

As florestas representam um imenso reservatório de biodiversidade ao serviço do planeta e da Humanidade. Metade das espécies conhecidas habitam nas florestas. Se considerarmos apenas as espécies que vivem em terra firme, isso corresponde a cerca de 80% da biodiversidade.

Conjuntamente com os alimentos, as florestas produzem e disponibilizam medicamentos naturais, eficazes e acessíveis para o tratamento de muitas doenças, e cosméticos para o tratamento dos cabelos, dentes, pele e rosto.

Os solos também devem a sua fertilidade e capacidade productiva às florestas, não apenas pelo fornecimento sistemático de matéria orgânica, mas também pelo trabalho de eliminar as substâncias tóxicas prejudiciais ao bom funcionamento dos ecossistemas terrestres.

Também sem as florestas, a superfície terrestre seria um lugar inóspito. Elas representam uma das mais sólidas fortificações contraventos, inundações, erosão, deslizamento de solos e poluição sonora.   É nela que muitos seres vivos (incluindo seres humanos) buscam refúgio de ventos, tempestades, inimigos naturais. Cerca de 300 milhões de pessoas, incluindo populações indígenas (como os índios da Amazónia e os pigmeus das florestas da África Central) consideram as florestas como a sua morada natural e uma divindade a respeitar. Os restantes, buscam nela os materiais de construção para as suas casas e outras edificações.

No calor abrasador equatorial, estão as frondosas copas das árvores que absorvem o calor e fazem circular o ar fresco que possibilita uma vida serena e tranquila Numa dimensão mais global, a fotossíntese sequestra o dióxido de carbono prevenindo o aquecimento global e as mudanças climáticas.

Para muitos povos, as florestas fornecem uma energia renovável de valor inestimável, para cozinhar ou aquecer as casas durante a estação fria ou para espantar alguns perigos.

Actualmente, estima-se que cerca de 1.6 bilhões de pessoas utilizam produtos florestais como matéria-prima em múltiplas cadeias de valor e na geração de empregos, como por exemplo na produção de papel, mobília, medicamentos, frutos silvestres, materiais de construção, roupas etc. Também gera oportunidades para o turismo e produção artística.

Uma das mais belas contribuições das florestas para a Humanidade é o prazer de olhar o colorido das paisagens, suas floras caprichosas e seus odores perfumados que alimentam a alma. Embora os poetas e artistas plásticos transmitam essa emoção nas suas obras, é na expressão silenciosa de pessoas comuns que escondem memórias e experiências pessoais únicas de felicidade e bem-estar.

Curiosamente, e por tudo isto, a floresta exige tão somente o seu direito legítimo de existir. Que a guardemos bem juntinho do coração, envolto de amor, responsabilidade, respeito e carinho. Neste momento em que a Humanidade avança para uma crescente urbanização, cresce também a necessidade de cultivar bons hábitos de proteger as florestas contra o desmatamento, contra as queimadas descontroladas, e o abate indiscriminado com fins comerciais.

Pensando bem, a base de recurso naturais que sustenta a vida no planeta é multifacetada e complexa: água, solos, florestas, fauna, ar, energia solar, etc. Não podemos olhar separadamente para cada uma delas. Estão todas interconectadas e se apoiando mutuamente.

Hoje colocamos as florestas no centro desse olhar, como uma justa homenagem. O tema da jornada é: “As florestas e as cidades mais sustentáveis”. Uma convivência que se impõe perante os desafios demográficos da modernidade: em 2050, cerca de 6 bilhões de pessoas viverão em cidades. Não se justifica que, sob o pretexto de construir cidades, abrir campos de cultivo e de pastagem se decapitem as florestas.

A urbanização não deve significar a rejeição e o desrespeito da floresta e da Mãe Natureza. Pelo contrário, a floresta pode e deve estar implantada dentro das cidades do futuro e no coração de cada um, cultivando novos afectos relativamente à essa grande divindade natural. Plantar uma arvore é plantar a esperança e a felicidade no mundo e dentro de cada ser Humano.

 

 

 

Era um dos destaques, nas estantes de uma livraria, da Cidade do Cabo, e o nome em letras brancas sobre a capa preta, à distância da minha miopia, pareceu-me familiar: Moira Forjaz. O título, por baixo, Mozambique 1975/1985 (edição: Fanele, 2015, Joanesburgo). A fotografia, belíssima, de uma jovem moçambicana, inclinada ao ritmo da dança. Os primeiros dez anos da Independência. Comprei-o com entusiasmo. Isto foi em Junho do ano passado. Sorri para o facto de adquirir esta obra naquele mês emblemático e fui para casa com urgência. Fiquei, confesso, nostálgico da revolução. Hoje, bem sei, essa palavra, esse vocábulo, encontra-se dissoluto. Os seus arautos procrastinaram-na. Já ninguém se lhe refere. As suas personagens e os seus protagonistas parecem ter ou sofrer de uma amnésia que impende sobre eles e sobre aquela época. Estas imagens, estas fotografias, devolveram-me esse tempo singular da nossa história. Tenho dito – e faço quezília nisso –  que o tempo histórico que vivemos não deve estar refém do proselitismo que é hábito praticar, entre nós. Mas também deve ser arredado do silêncio a que, por oposição, é votado. Temos de encontrar a dose certa entre a grandiloquência que, por vezes, queremos que a história tenha sido ou tido e o relato comedido e apaziguado de um tempo decisivo.

Mozambique 1975/1985, de Moira Forjaz, dedicado a Samora Machel e a Ruth First, é um documento histórico e sociológico dos primeiros dez anos da vida de Moçambique independente. Samora Machel marcou indelevelmente esta primeira década do país. Não é possível fazer-se uma iconografia dos anos da revolução ignorando Samora – para o bem e para o mal. Os primeiros anos da Independência são marcados pela sua figura exuberante e omnipresente. Moira esteve perto dele e fotografou-o soberbamente, como fotografou Graça Machel e outras/outros protagonistas ou figurantes da História recente, que nos parece, pelas transformações que, entretanto, se operaram no país, longínqua. Estas fotografias, para mim inéditas, são impressivas. Há aqui um tempo que foi o nosso – um tempo colectivo – que se esfumou. Há aqui uma época que agora escorre nas paredes melancólicas da memória. Tempo e história que revisito nas páginas deste soberbo livro.

Foi Barney Simon (1932-1995), um escritor e encenador e ativista sul-africano, que apresentou, num clube de jazz de Hilbrow, a jovem Moira de 20 anos a Ruth First, nos anos 60, de quem seria uma das suas maiores amigas.  Moira, nascida a 17 de Abril de 1942, em Bulawayo, provinha de famílias russas oriundas de Riga e irlandesas provenientes de Country Cork. Forjaz foi apelido que lhe adveio do casamento. First, que se tornaria ícone da luta anti-apartheid, seria vítima com uma carta-bomba a 17 de Agosto de 1982, aos 57 anos. (Esta data, 17 de Agosto de 1982, é importante para a minha mitologia pessoal. Foi naquele dia e por causa daquele bárbaro acontecimento que comecei a escrever. Tinha 15 anos e aconteciam-me os primeiros versos dedicados à Ruth First, que eu não conheci, mas cujo sacrifício tanto me impressionou.) Ela era também mulher de outro nome icónico da luta anti-apartheid, Joe Slovo, que tem uma rua em Moçambique, e que chegou a ministro de Mandela. Morreu em 1995. Viveu e lutou também em Moçambique. Num bairro periférico (Langa) da Cidade do Cabo, onde se erguem casas sociais, há uma delas onde se grafitou a imagem de Slovo. Uma bela homenagem. Foi ele que iniciou o ambicioso programa da habitação social na África do Sul.

Alf Kumalo (1930-2012) foi um fotógrafo documentalista e um fotojornalista importante na África do Sul. Documentou a história da luta anti-apartheid. Tem uma brilhante imagem de Nelson Mandela e Ruth First, antes da prisão do primeiro e do exílio forçado da segunda. Ruth First foi uma intrépida activista da luta contra o apartheid, uma importante jornalista e uma brilhante socióloga e está na origem de estudos incontornáveis nesse domínio entre nós. O trabalho dela no Centro de Estudos Africanos é importantíssimo.

Ouvi falar da Moira, pela primeira vez, nos anos 80. Foi através de um livro de fotografias sobre a Ilha de Moçambique. Eu demandava, na época, a mitologia poética da Ilha. Conheci-a pessoalmente em Lisboa numa galeria de arte. Fotógrafa, curadora de arte, produtora de festivais de música, fomo-nos cruzando ao longo dos tempos, entre exposições e concertos. Recentemente, é curioso, a Ilha voltaria a ser pretexto para admirar o seu trabalho. Curei recentemente uma exposição sobre Muipiti no Camões – “A Ilha dos Poetas” – onde avultam belíssimas fotografias da Moira, entre as quais a imagem de cartaz da mesma. Quando recebi as fotografias exultei, de tão belas e impressivas que eram.

Este livro começa justamente com fotografias da Ilha de Moçambique. Um texto de Jens Hougaard, como sucederá noutros capítulos, faz o enquadramento antes das imagens. A cidade de pedra, a cidade de macuti, aqui estão estas imagens incrustadas no tempo, num tempo sublimado no rosto destas mulheres, desses miúdos, na vista de mar para o continente, no homem que constrói o seu barco, dhow, na rede de pesca de bambu, no maulide, ou na exuberante teta de uma jovem que amamenta em plena maré baixa, com o recorte da ponte, em segundo plano.

“People” (povo) é o segundo capítulo: Samora Machel, Marcelino dos Santos e o rosto cortado de Oliver Tambo. Agostinho Neto em visita a Moçambique, ele e Graça Machel.  Samora, Luís Bernardo Honwana e José Forjaz, que foi casado com Moira. Samora com microfones diante de si e aquele sorriso arrebatador. Graça Machel a dançar em apoteose com as mamanas da OMM, Graça fardada acolhida em Chilembene, terra de Samora. Ruth e os seus colaboradores em Metocheria, em Nampula, aquando do projecto “Algodão”.

Sucessivamente: Oliver Tambo, Janet Mondlane, Pamela dos Santos, Samora e Canaan Banana, que foi o primeiro presidente do Zimbabwe (entre Samora e a sua tradutora oficial Zita Costa), Samora de mãos dadas com Joshua Nkomo e Roberto Mugabe, num palco em Harare, Joe Slovo (belíssima imagem: vencido pelo sono no sofá, com charuto entre os dedos e um gato no colo), Barney Simon, escritor e encenador, António Quadros (João Pedro Grabato Dias/Mutimati Barnabé João), Ricardo Rangel, Funcho (João Costa) a filmar miúdos colhidos de espanto, Jean-Luc Godard, o célebre cineasta, que esteve em Moçambique a colaborar na formação de novos cineastas. Jovens ginastas. Um velho leitor de jornais no Continental. Uma mulher em Boane. Um trabalhador da construção civil: na transformação de um cinema em palácio de congressos.  Samora, Samora, Samora. Jovens. O povo a ouvir o Presidente.

O terceiro capítulo “Mine Workers” (Mineiros). Ruth First dirigiu um projecto de pesquisa muito importante, no Centro de Estudos Africanos, que resultou na obra O Mineiro Moçambicano. Aqui há uma clara ligação entre Moçambique e África do Sul, como aliás este livro subscreve. Esta época já não existe, este documento é impressionante. Alpheus Manghezi escreve sobre os migrantes para as minas da África do Sul. Um poema pungente de Gouveia Lemos sobre a vida agónica dos mineiros. Esta iconografia dos trabalhadores moçambicanos nas minas, vulgo Magaizas, é um documento sociológico imprescindível para o entendimento e conhecimento de um capítulo relevante da história de Moçambique e da África do Sul. Ainda hoje ouvi “Stimela”, a vibrante música do Hugh Masekela, que fazia a evocação destes mineiros oriundos dos países da Africa Austral para as as minas da África do Sul.

“The Wives” (Esposas), como sequência, do capítulo anterior, preenche o quarto.  É o reverso da vida dos mineiros. As crianças e as mulheres que estão do outro lado da fronteira. As famílias dos mineiros. As crianças que deixam e as crianças que encontram. É um contra-ponto interessante.

 O quinto capítulo “Cotton” (Algodão) documenta outro trabalho do CEA e de Ruth First em Nampula, Metocheria. Bridget O´Laughlin escreve sobre este trabalho realizado em 1979. Segue-se-lhe “Coal Miners”  sobre os mineiros de Moatize, o qual reporta um acidente, de 2 de Agosto de 1977. Paola Rolleta faz o enquadramento deste acontecimento.: Kok Nam, célebre fotógrafo que fora para lá enviado para reportar o desastre, é aqui fotografado.

O livro encerra com “Music” (Musica). A fotografia de capa, aliás belíssima, abre este sexto capítulo. José Fonseca e Costa (1933-2015) realizador do filme Música, Moçambique, que documenta um memorável festival de música e dança tradicional, conta com Moira Forjaz como assistente de realização e faz o depoimento do momento histórico que vive e documenta. Neste festival foi convidada Miriam Makeba que cantará para Samora Machel: “Moçambique – a luta continua”.  Cabem neste capítulo Miriam Makeba e a mitologia cultural de um povo, cabem nele executantes anónimos, cabe nele Samora. Sobre Samora depõe impressivamente Óscar Monteiro; Albie Sachs, alvo de ataque bombista em Maputo, faz a memória sentida de Ruth First; Luís Bernardo Honwana e Hilary Hamburguer, ambos amigos de longa da data da Moira, falam da amiga e do seu percurso, do seu notável trabalho, do documento história de uma época, da história de quem esteve na Linha da Frente.

Moira narra o seu longo excurso, desde Bulawayo, passando por Joanesburgo, nos anos 60, por Moçambique (64), Portugal (65 e 66), Londres (65), Nova Iorque (67/68), Swazilândia (68 e Abril de 74), Moçambique (74), com destaques para Marromeu (78), Maputo (em 81, no festival de música e dança tradicional), Maputo em 82, o ano da morte de Ruh First, e Portugal em 86, o ano que em que Samora Machel soçobra em Mbuzini. Esta cronologia comentada é profusamente documentada com imagens pessoais sobretudo.

Mozambique 1975/1985: 244 páginas. Testemunho a favor de Moçambique, a primeira década da sua Independência. Cartografia de um tempo que desapareceu. Imagens belíssimas, documento histórico e sociológico: património afectivo. Primeiro rascunho da História. Aqui se cruzam, na sua grandeza e na sua miséria, Moçambique e a África do Sul e todo manancial de história comum que persistimos em iludir. De Samora Machel a Ruth First, passando por Oliver Tambo ou Joe Slovo. Instantes decisivos. Belíssimas fotografias a preto e branco. Aqui conta-se também o percurso de uma nação, de um país e de um povo. Sem proselitismos, nem grandiloquências.

 

 

Linda é a mulher e o seu canto, ambos guardados no luar

Cecília Meireles

Leitmotiv é um termo alemão, que, ao nível literário, designa “motivos centrais que se repetem numa obra, ou na totalidade da obra, de um poeta” (Wolfgang Kayser, 1958). Entretanto, de acordo com Massaud Moisés (1974), “a recorrência de um objecto no decurso de uma obra não constitui, por si só, um leitmotiv: para sê-lo, é preciso que o reaparecimento envolva uma significação especial”. Em Os poros da concha, de Sangare Okapi, temos no “corpo” e no que o envolve, os motivos, os temas ou fundamentos primários do que norteiam o espírito do poeta, transformado nessas entidades intangíveis, ora alimentadas de ambiguidade, nos versos, ora de sugestões polissémicas.

Diríamos que este livro, como é habitual em Okapi – veja-se, por exemplo, Inventários de angústias ou apoteose do nada –, o poeta segue uma trajectória linear, paradoxalmente, com percursos paralelos, no qual avança sempre recuperando o que já foi dito nos versos anteriores. Estamos a querer destacar, neste Os poros da concha, a prevalência da repetição quase constante da palavra, todavia, não como pretexto para gerar a anáfora. Não. A repetição em causa surge como forma de garantir a abundância de uma série de imagens que dão azo à manifestação espontânea dos sujeitos de enunciação. E como se impõe na lírica, a expressão de sentimentos cor-de-rosa é uma realidade, no caso, a fundir-se com observações, às vezes, carnais, de quem pensa mediante o que os olhos captam. Na repetição a que nos referimos cabem termos como: corpo, voz, lábios, língua, pele, coxas. Nada acidental. Bem visto, aquelas são sugestões do que realmente importa: a contínua inserção de uma imagem que se sabe completa, da mulher, mas projectada aos fragmentos, talvez numa tentativa de se evitar protótipos pré-estabelecidos quanto à caracterização dessa musa inspiradora.

Portanto, o facto deste livro ter no “corpo”, nas suas alusões e circunstâncias, um leitmotiv desvenda, pelo menos, uma atmosfera da qual emana o poder criativo de Sangare Okapi, um poeta, aqui, com muito cuidado no processo de lapidar a palavra e com mais cuidado ainda na sua combinação.

Os poros da concha é um bom livro do ponto de vista do rigor vocabulário. Por isso, o poeta consegue sugerir situações eróticas sem baixar o nível da linguagem ou sem dizer o que é bom de imaginar: “estirpe e tese teu corpo/ alguma realidade oculta/ ou doce vagem insepulta// à vista apetecível o ninho/ na blusa lis em desalinho” (p. 29). Onze páginas antes, encontramos o seguinte texto: “atalhados sentidos na erecção do caule// maduro o fruto adocicado entre as coxas/ ou húmido o musgo na bexiga que a mão/ te alcança nua e secretamente vegetal” (p. 18). Erecção, caule, frutos e coxas são palavras agradáveis de ler neste livro constituído por 54 páginas. Há também o peito, os seios: “como o antílope pulando na savana rubra/ vejo-te os seios rijos no peito convidando/ a fome apetecida e excelsa sem candonga (p. 52).

Com efeito, há neste livro sujeitos muito sensitivos quanto à visão, que recorrem sempre ao meio ambiente, quando estão a emitir desejos e fantasias. Vejamos o seguinte poema: “quero a gruta mítica do corpo/ com seus escuros e vibrações/ para que arguta e nua no topo” (p. 27). Tal evento resulta na materialização da comparação enquanto recurso estilístico. Ao recorrer à natureza vegetal, animal, ao mar, ao sol, etc., Sangare Okapi goza em ser um poeta-ambientalista, enlevando a sua poesia à dimensão adulta, madura de facto. Mas, com isso, perde o efeito Camões, naquele emblemático poema “amor é fogo que arde sem se viver”.

 

Título: Os poros da concha

Autor: Sangare Okapi

Editora: Cavalo do Mar

Classificação: 14

 

 

O vento empurrou a cortina. Maimuna estava sentada, sozinha, a fazer aquilo que as mulheres fazem quando estão sozinhas: cuidar da beleza.

Segurou no caule de mussiro, pressionou-o sobre uma pedra esculpida pela erosão de séculos de monção e outros ventos, acrescentou-lhe água, moeu, moeu, moeu, até tornar-se pastoso. Era o mussiro, o creme com que se maquilhava, alisando a pele, adiando as rugas, eliminando as acnes, tornando-a muthiana orera e reforçando a ideia de que a principal tarefa das mulheres é serem belas, toda a engenharia delas está maquinada para lhes suportar o peso da beleza e torná-las infalíveis sedutoras.

Deslizou os dedos pela face, levemente, pincelando mussiro. Os gestos delicados demoravam na pele, untando-a com muito cuidado, para não quebrar a preciosa porcelana do rosto. Na mão menos destra, um caco de espelho orientava-a. Virava a cabeça para um, depois outro lado. Ora para cima, ora para baixo. Arrastou o mindinho, ao detalhe, pelos trilhos onde as expressões da face acentuavam as marcas do tempo. Dobrou os dedos em pinça e desenterrou as ervas daninhas, os pêlos rebeldes que lhe desenjardinavam a face. Multiplicou demãos onde as borbulhas insistiam em carimbar cicatrizes…

Um suspiro do vento empurrou a cortina. A luz aproveitou-se e entrou, sem pedir licença, sem dizer koshukuro. Uma lagartixa assustada com o clarão, fugiu para a fresta onde morava. A luz espalhou-se pelo chão, trepou pelas paredes lascadas, pela madeira preciosa dos móveis antigos, pelas canelas que despontavam das vestes da cor de tufo… Quando lhe tocou o rosto, a mulher tirou o olhar do espelho, sem interromper os gestos de untar a pele, e olhou num soslaio desconfiado, para a cortina. Puxou instintivamente o pano que vestia e cobriu o joelho. Incomodava-a este modo secreto, silencioso com que o vento empurrava a cortina e se intrometia na sua intimidade. Ainda mais agora, véspera de eleições, em que toda a gente parece suspeita. Ainda se soubesse de que partido é o vento…

O vento voltou. Empurrou a cortina. A luz aproveitou-se e entrou sem pedir licença nem dizer koshukuro. Assustou a lagartixa. Espalhou-se pelo chão. Pelos móveis. Pelas paredes lascadas. Trepou as canela. Tocou no rosto da mulher.

Com o vento chegavam os sons inconfundíveis da campanha eleitoral. A animação louca dos eleitores, o desespero rouco dos canditados. “O vento e a luz, assim indelicados, pareciam os políticos em campanha”, pensou Maimuna, “entrar na intimidade das pessoas para dizer em quem devem votar, como se as pessoas não tivessem consciência, não soubessem o que querem. Ntlha!

Acariciou com o creme os edifícios da face. Percorreu as ruelas da face como se lhes cobrisse os buracos com o mussiro. Untou a pele até à periferia, os subúrbios do rosto. E o vento voltou.

O vento voltou. Empurrou a cortina. O mussiro formava agora uma máscara dura. Esbranquiçava e gretava à medida que secava. Maimuna levou a mão ao cesto de palha, sua bolsa. Vasculhou e trouxe, entre indizíveis coisas femininas, os documentos pessoais. Com o dedo indicador, o mesmo que empurra o boletim de voto para as goelas abissais das urnas, passou mussiro na fotografia do cartão de eleitor.

O vento não parava de empurrar a cortina. A luz aproveitava-se e entrava sem pedir licença nem  dizer koshukuro. Assustou a lagartixa. Espalhou-se pelo chão. Pelos móveis. Pelas lascas das paredes.  Pelas canelas. Tocou no rosto da mulher.

Maimuna olhou para o mussiro a secar na foto do cartão de eleitor. Sorriu e concluiu, para si mesma que, democracia é mussiro a renovar a pele no rosto bonito de um país.

“Para a tarefa do artista, a cegueira não é totalmente negativa, já que pode ser um instrumento”.

Jorge Luís Borges

A cegueira talvez seja o olho puro que a alma usa para ver os mais afinados sons que o sangue dedilha nas veias da existência. A cegueira é um exercício que nos obriga a inventar a dimensão exacta dos objectos. Os olhos fechados pela cegueira são como um punho cerrado de vazio que no seu interior, em côncavo, inventa gestos e movimentos silenciosos.

Ray Charles tinha os olhos piscando sobre seu rosto cego e mesmo assim conseguia ver os frascos musicais certos para enchê-los de um bom soul. O compositor e tenor, Andrea Bocelli, apesar da cegueira que se despejou, em seus olhos, consegue ver as escadas da música e degrau a degrau sobe-as sem nenhuma bengala branca.

Amadou e Mariam é um casal de cegos do Mali. Juntos cantam e olham-se. Reconhecem os seus rostos pela tonalidade das vozes. A cegueira que deixou uma cicatriz de escuro, nos seus olhos, é sugada em cada canção por uma esponja de lágrimas de amor. Isaú Meneses, do “Tapi Djêe”, é um outro génio com o perímetro dos olhos vedados pela cegueira; mede o peso do silêncio dos seus olhos com as notas da música e conhece, sem ver, cada movimento e aceleração da música.

Dr. Mussa Rodrigues era também cego. O nome dele sempre chegou-me aos pedaços. Não o conheci inteiro duma só vez. Precisei de dias para completar o seu nome. Um locutor da RM chamava-o, simplesmente de Dr. Mussa. E brincava com o seu nome a medida que punha a sua voz em cima da sua música: “este som chega-nos de Zambézia. É de Dr. Mussa” – dizia o locutor. O locutor mexia no nome do velho como são mexidos dados num tabuleiro de xadrez. Ora Mussa, por vezes Rodrigues e para poupar a palavra até ousava chamá-lo, simplesmente, de Dr.

Fui obrigado a compilar nas páginas da minha memória todos os dados que faziam o nome desse músico. Todos eles. “Nós somos cantores; … moçambicanos da província da Zambézia” – segurava-me, numa das músicas, a sua toca. O seu berço. Aquela música serviu-me de ponto cardeal para saber o nome do velho. Aquela música foi o fio que uniu os elementos do nome desse velho. E assim o conheci: Dr. Mussa Rodrigues. O seu nome já o tinha firme e junto no pulso da língua como uma missanga.

Este velho alegrava os olhos reformados das imagens com cores de melodias e piscava-os quando a proporção distinta da música penetrava nas impressões digitais das mãos. Nem ele próprio conseguia saber o que era: “até hoje, mesmo assim, eu não sei como interpretar o que eu sou”. Ele era “um homem deste mundo aqui, o mundo sem preço”.

Mentiu-se a ele próprio dizendo que era moçambicano da província de Zambézia. Ele era província moçambicana de qualquer Zambézia. Era cego. Como uma pessoa cega cantou tão bem o país que não via? Ver é o testamento dos sem espírito (como eu) e sentir é a compilação de um infinito visual que transborda do recipiente do olhar.

A guitarra foi para Dr. Mussa Rodrigues a sua bengala branca. Através dela conseguia reconhecer os obstáculos da vida, reconhecia os degraus da amargura, o asfalto da sua miséria, os caminhos da sua humilde voz e as paredes que faziam dele uma casa de talento e génio. Quando o ouvia, pela janela da RM, imaginava-o sentado no sossego do seu existir, deambulando nas ruelas da sua criatura gasta pelo tempo; imaginava-o pegando na sua guitarra e servindo, nela, a sua alma líquida e liquidada de tanto viver. A guitarra era o copo que ele usava para nos servir a sua alma e as antenas da RM eram as mesas.

Dr. Mussa Rodrigues era como uma fábrica humana; com a musculatura de génio batia na viola e a boca era a chaminé que tirava o fumo da voz. Os seus olhos roncavam na sua cegueira em cada piscar como esferas duma máquina que tece sentimentos.

 

O teu nome titula este infausto texto. É-me impossível pensar num outro epíteto ao redigir esta evocação. Hoje, como a 2 de Agosto, quando morreste, quando nos morreste, eu queria eximir-me desta tarefa. Há precisamente um ano abrias uma garrafa de champagne e celebravas os meus 50 anos, quando regressei de uma viagem e fui dar-te um abraço. Ainda agora enviei um whatsApp à Silvina com esta imagem. Estamos: tu, o Moisés Jorge e eu. A fotografia está aí e fere até à contundência. Procurei todos os subterfúgios para não o fazer, mas aproxima-se o 21 de Março, o dia dos teus anos, o dia da Poesia, e a tua ausência é ainda mais contundente. Todos os dias me nego a aceitar a dura realidade da tua morte.

Rui Knopfli: “Nunca mais/ nos encontraremos. Jamais. / A morte é isso, é acabar/ simplesmente, não acontecer mais/ jamais. / Nada me auxiliam as lágrimas/ que me salgam a face/ e o muito que tenho blasfemado/ de borco, rente ao teu silêncio gelado. / Esta a lógica prosaica dos factos: / Continuamos a viver, dolorida/ a consciência/ da tua cada vez maior ausência.”

O Knopfli escreveu estes versos dilacerados e dilacerantes para a filha. Eu não sei escrever-te versos. Todos os dias me lembro de ti. Pergunto quase sempre: qual é a razão desta lógica prosaica dos factos? Como continuar a viver com a consciência da tua ausência? Não há dia em que nós, o Moisés Jorge e eu, não choramos em silêncio a tua morte. Sempre que falamos pronunciamos o teu nome. Por vezes, a tua sobrinha Sandra chama por mim – o irmão do tio – e lembra-me essa condição inexpugnável. Sempre que falo com a Silvina falamos das saudades que temos de ti. Acabamos a chorar ambos, sendo que a dor dela não se traduz em nenhuma língua. Com o Moisés falo de ti sempre que estamos os dois e conversamos sobre a urgência de viver. Éramos os três e a fotografia está vazia sem ti. Perdeu conteúdo. Ficou desapossada de significado.

Trinta e tal anos depois de uma amizade indefectível, já eras mais do que um amigo, o meu irmão mais velho. Eu, o teu mais novo. Conhecemo-nos por via da literatura, que queríamos como bandeira das nossas vidas. Tínhamos sonhos e éramos jovens. A cultura era um acto que praticávamos com convicção. A cidadania não era um negócio, mas um imperativo das nossas vidas. A liberdade era o nosso viático. A literatura esse espaço. Discreteávamos sobre tudo. Estávamos nos anos 80. Tu vieras de Cuba e eu de Nacala. A Charrua e a iconoclastia de uma geração – a nossa. Éramos felizes e, provavelmente, não sabíamos.

Tinha contigo muitas cumplicidades. Não ouvirei mais Pablo Milanés contigo  – paro e ponho a tocar o Pablo Querido, que me trouxeste um dia de Cuba  -, nem me falarás mais de Silvio Rodriguez, da revolução cubana ou de Fidel. Custa-me aceitar essa realidade incontornável – vocábulo que era tão caro! Não irei contigo a Havana. Não estaremos na Macaneta na cúmplice companhia de um cão vadio, enquanto o mar nos suspende de azul naquela imensidão soberana. Não leremos versos um do outro. Não ouvirei o teu riso estridente. Pregaste-nos uma partida e lá do céu deves estar a zombar de nós com aquela tua gargalhada e aquele teu olhar malandro. Ou deves estar a olhar-nos com o teu sorriso mefistofélico.

Foi um poema – “Milagre obstétrico” – que publicaste num dos espaços que eram consagrados à literatura que me chamou a atenção para o teu nome de poeta. Vivíamos, talvez como hoje, tempos sombrios. Dias obsidiantes. A mediania medrava. A incongruência das cidades – um dos teus temas electivos. Tu fazias da cidade a nossa ágora, o teu espaço de liberdade, a metáfora da democracia, que te (nos) concitava.

António Pinto de Abreu: “As lâmpadas da cidade/ fundiram-se todas// e numa das esquinas/ da grande aldeia de cimento/ um latão urbanizado/ pariu um pirilampo…// Glória ao novo ser/ que nasceu ao anoitecer. // O jornal não deu a grande notícia/ – os fotógrafos tinham as máquinas/ aguardando o plano superior. // Contudo/ no velho latão urbanizado/ o pirilampo brinca e chora/ (como alguns meninos) / luzindo com o satírico brilho/ da esvaziada lata de sardinhas/ da “ração de combate”.”

Levaste tempo a publicar. O primeiro livro surgiria no ano 2000. Murmúrio de Acácia, que trazia, no seu ADN, uma espécie de programa poético da tua vida, a tua matriz poética. Havia ali um poeta, na sua matura idade, não era um poeta errante, antes pelo contrário. A tua era já uma poesia vigiada, tinhas uma gramática própria, uma sintaxe e uma dicção de quem estava seguro do seu estro.

 

O amor será o teu tema primordial. Tu és sobretudo um poeta do amor. A tua palavra, a tua invenção poética, a tua gramática e a tua dicção informam um discurso amoroso. O teu alto canto alicerça-se na tua amada, a escrita sagra-se e consagra-se na celebração do amor. O corpo da mulher inscreve-se, com desvelo e candura, nessa gramática do amor. A sensualidade.

Por outro lado, o poeta que és está atento à realidade social, em constante transformação, às contradições do devir moçambicano cartografadas em poemas onde o sarcasmo é ineludível e cortante. Por vezes, muitas vezes, como prática e como ética daquilo que insistias em apresentar e representar e que era a essência do ser moçambicano. Tu foste sempre um patriota quezilento.

Poeta do amor – disse-o -, mas também da infância – o bairro da Manga testemunha isso -, da tua tribo – o mano Arlindo, da Mãe, da tua musa soberana Silvina, dos teus filhos Edwina e Luan são referenciais importantes -, poeta do quotidiano, poeta da realidade social. Poeta, finalmente, do devir moçambicano. Não só no Murmúrio de Acácia, mas também na Cascata de Sinos ou na Brisa de Luz. Mas também contista de Luar de Nwanzi ou, mais recentemente, memorialista, em Algumas das Memórias que eu ainda Retenho, registo biográfico e uma espécie de inventário da tua brevíssima existência. Inventário poético, evidentemente. Testamento e despedida.

Há mais de três décadas que somos amigos ou mais do que isso: irmãos. Releva desse lapso de tempo o compromisso com a poesia, a vida como uma obra de arte, a tua extrema sensibilidade, a tua ironia auto-complacente. Avultariam outras admiráveis qualidades tuas, como a do economista, mas eu aqui me desendivido delas. Tu és sobretudo um poeta. Atenho-me, por conseguinte, às tuas qualidades literárias. Foi por ali que alicerçámos a nossa amizade, foi por ali onde andámos a cumpliciar ao longo dos anos. Sou um leitor amigo, cúmplice e exultado. Sou o teu mais novo, o irmão mais novo e fazemos gala nisso. Vivemos e cumpliciámos, visitámo-nos amiúde, frequentámo-nos, partilhámos a felicidade desta existência provisória. Fazíamos uma tertúlia entre amigos que tinham a mesma urgência de amar a pátria. Falámos com urgência, procurámos ser diligentes no que fazemos. Une-nos o amor incondicional pela pátria. Pelo presente, pelo passado e pelo futuro. A nossa vida é isso mesmo, um apelo lancinante ao futuro. Um apelo à esperança. Um apelo à pátria. Um apelo desesperado, digo eu agora.

A pátria. A pátria concita-nos. A pátria impele-nos. A pátria instiga-nos. A pátria mobiliza-nos. Temos um amor impenhorável por Moçambique e proclamamo-lo com abundância. Escrevemo-lo nos nossos textos. Esse amor pela vida e pela poesia, esse amor por tudo. Mesmo diante de um copo de vinho e de uma conversa vagabunda, a pátria não se exonera de nós.

Escrevo no presente e não no pretérito, a despeito de o fazer sete meses depois de teres partido. Hoje eu não queria ter escrito este texto. Mas aproxima-se o dia 21 de Março e não vou ouvir-te do outro lado da linha. Esta noite, vais debruçar-te, certamente, sobre o meu ombro enquanto redijo estas palavras para te lembrar e zombarás de mim, onde quer que estejas, com um ruidoso “vai-ta lixar!” e soltarás, por certo, aquela tua prodigiosa gargalhada. Penso em ti, nos teus breves, mas intensos 52 anos, na tua inteligência arguta, na tua sensibilidade, na tua cultura, na tua sageza, tu que eras um dos poucos, dos poucos bons de que a pátria poderia orgulhar-se. Tu que eras o melhor, entre nós. E aquele que praticava uma esperança intransigente. Tu nunca deixaste que nós soçobrássemos perante a urgência do futuro ou diante do desespero. Eras de uma esperança tenaz neste país e no seu destino e isso ajudava a combater a depressão, que por vezes nos atingia, em momentos sombrios. Penso em ti e lembro-me daqueles versos cortantes de “Funeral Blues”, de W.H. Auden: “Parem todos os relógios, desliguem o telefone, / Evitem o latido do cão com um osso suculento, /Silenciem os pianos e com tambores lentos/ Tragam o caixão, deixem que o luto chore”.

Onde estás, nessa galáxia para aonde emigraste, danças agora uma rumba naquele teu estilo irrepetível. Já te excedeste a falar de Cuba. Já bebemos um rum com coca-cola (um cuba libre) e fizemos o escárnio sem complacência da mediocridade. A pátria viajou contigo para esse planeta para onde resolveste emigrar, deixando-me, deixando-nos, inexoravelmente, mais sós e mais pobres. Oiço esta rumba, esta salsa e este mambo. Pablo Milanés e Soledad Bravo cantam agora, neste preciso momento: “mira Soledad como es hermosa la vida!

Mi hermano, mi buen hermano, mi hermoso hermano: recordo-me daquele abraço à porta de tua casa, aquele abraço de despedida. Sabíamos ambos que ali terminava a nossa aventura comum. Que eu não te ouviria mais, que eu não te veria mais, que não havias de praticar a tua saudosa ironia e a tua ruidosa gargalhada, com as tuas mãos sublinhando a ênfase do que dizias, que não me surpreenderias com as tuas mensagens ou teus gestos. Que não me ligarias mais. Ali chegavas ao fim para mim. Foi demorado aquele abraço. Não te vi mais, não te quis ver naquele ominoso féretro naquele 5 de Agosto. Falei-te, naquele sábado, a cargo dos nossos amigos das nossas tertúlias, que me incumbiram da mais difícil das tarefas e da qual não me pude exonerar: dizer-te adeus em nosso nome, em nome de todos. Fi-lo em nome do Tio Luís, do Magid, do Lourenço, do José Norberto, do Abdul Carimo, do Óscar, do Noa, os companheiros das nossas tertúlias, e desci aquele estrado desamparado. Depois, abraçado ao Moisés Jorge, amparámo-nos da solidão que nos atingira. Abraçados, chorámos ali. Fomos levar-te e acompanhámos-te ao cemitério de Lhanguene. Chorámos outra vez. Ainda hoje choro, ainda hoje te choramos. Agora, tenho de parar. Pablo Milanés canta com os seus amigos belas canções que nos empolgaram estes anos todos. Tenho lágrimas nos olhos que me turvam a escrita. Queria ter falado do dia 21 de Março, dia da Poesia, o teu dia. Não irei ligar-te este ano. Estou, finalmente, resignado ao aforismo grego: “Morrem cedo os que os deuses amam”. Só aqui reside o meu consolo improvável.

Post Scriptum  – Queria falar-te da Camila Cabello, uma bela cantora de 21 anos – ela é também de Março! -, nascida em Cojimar, na ilha caribenha, que anda a fazer sucesso com um hit intitulado “Havana” e o disco Camila. Haverias de gostar de ouvi-la e dançarias por certo, como naquela noite em Madrid em que fomos dar a uma discoteca do Sol e não paraste de dançar aquelas rumbas, salsas e mambos da tua juventude na Ilha de Fidel. Camila canta aqui com o rapper Young Thug. Oiço-a, obsessivamente, por ti.

A letra é um som, quando o olhar é uma esperança

Mirette Muzi  

Albino Mbie brinca de ser um músico a sério. Na verdade, é nisso o que ele se torna, quando, em dois álbuns, apresenta-se com uma qualidade bem apreciável. Quer em Mozambican dance quer no mais recente Mafu temos um artista categórico, que sabe o que está a compor, para quem e as razões de seguir por uma via e não por outra. Mas não é nada disso que nos traz cá. Hoje, o que nos move é a complementaridade existente entre duas músicas: “Dondza”, do álbum Kwiri, da autoria de Roberto Chitsondzo, e “Ahirimeni”, do álbum Mafu, da autoria de Albino Mbie. As duas músicas têm em comum uma dimensão moralística sintetizada num nós capaz de fortalecer o equilíbrio social. Nos dois casos, nota-se claramente o compromisso que cada um dos músicos tem com a sua gente. Logo, as letras aparecem com teor fraterno, veiculado numa linguagem apelativa, moderada e emocionante. A pretensão é a mesma: fazer das composições um mecanismo de persuasão de modo a que a lucidez possa ser cantada e disseminada quando a música é ecoada aos ouvidos. Vejamos:

 “Dondza”, de Roberto Chitsondzo, o eterno professor de educação física muito comprometido com o ensino, é uma música com três minutos e cinquenta e oito segundos. Neste tema, na verdade, o músico canta a educação, aquela que depende de nós, do nosso interesse e que deve constituir um modo de vida. É uma educação nunca tardia. Por isso, a música sugere a todos – às mães, aos pais, aos jovens em geral e às crianças – para investir na escola, esse lugar caro a muita gente sem possibilidades financeiras e sociais para frequentar. A letra de Chitsondzo é simples, breve e, por via desta música, o autor dirige-se aos seus com a convicção de quem sabe o que é a vida sem escola e o que pode ser com os seus ensinamentos.  

A terceira música de Kwiri começa, de facto, com uma recomendação (estude), meio nostálgica, restrita à sua mensagem abrangente. No entanto, a medida que progride vai ficando (mais) animada, mesmo sem abstrair-se dessa atmosfera melancólica, de tal forma que lá para o fim até estimula uns gestos passos de dança, ao de leve.

Se, por um lado, Roberto Chitsondzo aposta, em “Dondza”, numa mensagem dirigida à necessidade de se investir na escola, em “Ahirimeni”, Albino Mbie convida os seus a lutarem por um futuro digno. Neste aspecto, Mbie alia-se ao “bom rapaz” por também ser sua percepção a importância dos livros, dos seus ensinamentos. Entretanto, Mbie não se prende à escola. Naquela música, a oitava do álbum Mafu, temos a convicção de que a escola é importante, é verdade, na mesma proporção que a arte e a agricultura, por exemplo. Aliás, a partir da actividade agrícola, “Ahirimeni” (vamos cultivar), num claro jogo metafórico, sugere que as pessoas cultivem, pois, assim, poderão colher no futuro. Mais do que se pegar na enxada, o que está a ser dito é outra coisa: todo sucesso provém do trabalho árduo.

Ambas as músicas, ao apontarem uma direcção, idealizam os benefícios possíveis de serem alcançados com uma vida preenchida de dignidade, sabedoria e bem-estar. Chitsondzo e Mbie cantam pela educação e pela perseverança no trabalho por se preocuparem com indivíduo enquanto entidade que faz um grupo, uma comunidade e, no sentido mais lato, uma nação. Por isso, a mensagem das músicas dois autores é sempre plural. Em “Ahirimeni” temos, constantemente, traduzido do rhonga, “Vamos cultivar [trabalhar], meus irmãos”. Não são irmãos de sangue, mas da afinidade a ser salvaguardar pelo facto de um conjunto de gente ter nascido no mesmo espaço territorial ou então por fazer parte deste espaço, independentemente da sua naturalidade. Em “Dondza” também não falta o colectivo, representado em grupos: crianças, jovens, homens e mulheres.

Sem se absterem da sua qualidade artística, bem preservada, “Dondza” e “Ahirimeni” traduzem o desejo de ambos os músicos contribuírem na construção de um país com mensagens acertadas e, com isso, envolver mais pessoas nessa construção.

 

 

Três figuras do desporto, com o “C” maiúsculo como inicial no nome, personificam a contra-mão de uma prática cada vez mais presente nos dias que correm: a corrida desenfreada dos africanos rumo à Europa, atraídos pelo néon, num “salve-se como puder” que tem custado muitas vidas.

São nossos exemplos reais, que têm que ser valorizados.

Mário Coluna

Querido e idolatrado na Europa, Mário Coluna cruzou os céus entre o nosso país e Portugal, em sentido contrário à debandada que então acontecia. Com a Independência Nacional, realizava o sonho de servir e ajudar no crescimento do seu país.

O Monstro Sagrado, que em mais de duas décadas actuou ao mais alto nível na Europa e no Mundo, tendo o nome gravado nos anais da FIFA, manteve no interior de si o verdadeiro desejo de regressar. Assim sendo, e deixando para trás a certeza do conforto, assinou um contrato com o Textáfrica do Chimoio, já como técnico, conquistando o primeiro título de campeão de futebol em Moçambique Independente. Depois foi técnico dos Mambas e Presidente da Federação.

Calton Banze

Saiu de Moçambique em Dezembro de 1988, aos 31 anos, após ter conquistado o título de campeão pelo Desportivo de Maputo. O destino era o Sporting de Lisboa, após rubricar um contrato de quatro anos. Para trás ficava uma carreira ímpar de sucessos. Chegou, lutou e… não se pode dizer que tenha vencido totalmente, porque nunca quis renunciar à sua nacionalidade.

Chegada a hora do regresso, despediu-se de quem tão bem o estava acolhendo, numa festa incompreendida pela maioria dos africanos que acabavam de emigrar para tentar a sorte na Europa. Diziam-lhe: “então nós enfrentamos oceanos, arriscamos as nossas vidas e festejamos a nova vida na Europa. O senhor faz exactamente o contrário”?

Clarisse Machanguana

Foi a única(o) basquetebolista moçambicana a actuar no maior campeonato do mundo da bola ao cesto: a WNBA. É, inegavelmente, uma mulher de fibra que levou o nome do país ao Mundo, tendo actuado para além dos EUA, em Portugal, Brasil, Itália, Espanha, França e Coreia. Representou a Selecção de Moçambique por várias vezes, com destaque para os Jogos da Lusofonia, Macau/2006. No profissionalismo ao mais alto nível, Machanguana completou a sua carreira com 1.813 pontos.

Regressou, criou uma Fundação que leva o seu nome e que se dedica, com amor, carinho e honestidade, a ajudar os compatriotas necessitados. No dia-a-dia, Clarisse tem que dar explicações em redor da sua decisão de regressar, sendo confrontada com a designação de “matreca”.

“Então tu estava bem na América, fizeste um curso superior, eras conhecida e reconhecida, estavas no “bem bom” e voltas para o sofrimento”?

Está claro que nem a resposta, convicta da “Match, apontando os superiores interesses em transmitir conhecimentos, o convívio com a família, a comida, os cheiros e o amor pela origens, convence a maioria.

Três personagens, três exemplos de nacionalismo de verdade. Muitos outros existirão, numa era em que o discurso da auto-estima virou falácia e os valores estão mais virados para o umbigo do que para a satisfação em contribuir para o avanço da Pátria que nos fez nascer.

 

Ali na rotunda da Junta, avenida de Moçambique, temos a estátua do herói nacional Filipe Samuel Magaia. Uma verdadeira celebração dum herói que em vida deu a sua vida à causa do país. Um herói que Chamanculo viu nascer. O autor de “Os Miseráveis”, Victor Hugo, disse que “modelar uma estátua e dar-lhe vida é belo; modelar uma inteligência e dar-lhe verdade é sublime”.

Os egiptos sempre procuraram em suas estátuas representar, objectivamente, os seus heróis e faraós – os seus retratos – para que no dia da ressurreição fossem reconhecidos facilmente pelos deuses. A estátua era vista como um caminho a eternidade. Os gregos introduzem o nu na arte. Procuravam fazer uma síntese entre a paixão e a razão em suas esculturas.

E nós tal como os romanos que herdaram as estátuas gregas, arrancamos da nossa história as armas. Produzimos estátuas armadas. A estátua de Filipe Samuel Magaia não precisava de uma arma para ter o simbolismo que se queria nela. A história precisa também ser desarmada. O que queremos? Encher o estendal da nossa memória de armas? Pendurar armas nos quadros do tempo da nossa memória?

Um militar parado. Mirando o caminho que não segue parece uma daquelas estátuas egípcias do príncipe Rahotep e sua esposa Nofret em pedra calcaria presas numa estática que não chega a ser um não-movimento esteticamente aceite.

O estatismo daquele estátua não só cria um engulho estatual, assim como torna o estatuado um verdadeiro herói das batalhas estáticas. A representação iconográfica da estátua de Magaia teria sido uma admirável obra de arte se o seu estatuário tivesse fixado um mínimo movimento nele. Um mínimo movimento típico de estátuas equestres. Uma estátua pedestre conjugado com um pouco de movimento consuma-se a si mesmo enquanto uma obra.

A partir da execrável estátua de Magaia há que pensar em estátuas com um pedestrianismo terreno. Estátuas erguidas que quase pisam o mesmo chão connosco. Estátuas que descem dos altares das rotundas e praças.

Filipe Samuel Magaia olhando o terminal da Junta parece-se mais com a esposa de Ló transformada em uma estátua de sal quando fugia de Sodoma. O estatuário desse herói teve medo de ver a sua obra convertida em sal por isso preferiu mantê-la  parada, olhando para frente.

A estátua é a prisão exacta do movimento e do acontecido no tempo. É a negação da memória que se tem por direito esquecer. Como bem diz Papini a estátua é oferta voluntária da beleza transfiguradora mas a sua função é ainda sempre a de opor-se, até onde for possível, a dissimulada mas perene ofensiva da morte, do tempo que tudo degrada, revolve e consome.

Muito se tem falado e escrito sobre a importância da “alimentação saudável” como precondição para o exercício e usufruto da condição humana. Na maioria dos casos, as análises fixam-se sobre os nutrientes e o seu papel fisiológico. Porém, esta perspectiva incorre no risco de ser restrictiva, deixando de lado as dimensões sociais, culturais e espirituais da alimentação.  

Cientes dessa lacuna, as abordagens mais recentes têm procurado explorar outras vertentes, particularmente as relacionadas com o “Direito Humano à Alimentação Adequada”. Embora muito timidamente, o reconhecimento da existência desse direito elementar ajuda a equacionar o papel da alimentação na dignificação da condição humana e, consequentemente, na garantia de uma sustentabilidade social, baseada na redução das discrepâncias no acesso aos alimentos.

É preciso ter em conta que, numa sociedade cada vez mais consumista, a coexistência entre a opulência e a miséria gera focos de tensão que podem colocar em risco a harmonia e a integridade das pessoas, famílias, países e sistemas.
Nesta abordagem que se pretende mais abrangente, para além dos aspectos meramente nutritivos, destacam-se alguns aspectos socioculturais como a cadeia de valor de alimentos, os sistemas de valor inerentes, as preferências alimentares e a perspectiva sociofamiliar.

Cadeias de valor e qualidade de vida
Cada vez mais, a cadeia de valor dos alimentos se expande, ganhando mais etapas e tornando-se mais complexa: utilização de maquinarias, sistemas de irrigação, agroquímicos, tecnologias de conservação, acondicionamento, processamento, distribuição e venda.

Esse alargamento está em grande medida associado à urbanização. Nessa perspectiva, enquadra-se nos esforços naturais de busca de eficiência, qualidade, conveniência e preço.

Embora alguns estudos recentes demonstrem essa tendência natural e evidenciem algumas vantagens desse processo, particularmente na geração de postos de trabalho e no combate ao desperdício, há sectores que questionam alguns dos seus procedimentos e resultados.

Alguns dos casos mais gritantes estão relacionados com a utilização massiva e indiscriminada de alimentos geneticamente modificados, adoçantes, corantes e conservantes. Também se questionam a sustentabilidade ambiental de algumas prácticas, os maus tratos aos animais e plantas, e os atropelos aos princípios do emprego decente.

Estas realidades suscitam, naturalmente,  questões sobre os sistemas de valores e acabam por ser focos de tensão social, ambiental, económica e política.
As cadeias de valor do sector agroalimentar são mais complexas e dinâmicas no meio urbano, particularmente nos países mais desenvolvidos, onde o mercado gera possibilidades e oportunidades na produção, processamento, distribuição e acesso. Já no meio rural, a ausência de infraestruturas, energia e tecnologias de processamento afecta a gestão de tempo e esforço.  Por exemplo, em África e na América Latina, as mulheres são forçadas a dedicar entre 60 a 80% do seu tempo útil à confecção das refeições, exercendo trabalhos duros (como moer, pilar, lavar, cortar, descascar, transportar, cozinhar, servir, etc.), desafiando a sua dignidade, condicionando a sua integração noutras actividades socializantes, e pondo em causa certos princípios da emancipação da mulher.

A disponibilidade, acesso, estabilidade e utilização de alimentos, através da produção, conservação, processamento e distribuição, têm um impacto na qualidade de vida, saúde pública, biodiversidade, ambiente e bem-estar das pessoas.  A nível do consumidor, afecta particularmente a satisfação ou saciedade, obesidade, flatulência, carências nutricionais, intoxicações, etc.

O conceito de obesidade, por exemplo, tem revelado uma evolução interessante. No passado era considerada sinónimo de saúde, bem-estar e riqueza. Recentemente é apontada como um dos mais medonhos vilões do bem-estar e autoestima.  As cerca de 600 milhões de pessoas obesas que habitam o planeta são hoje consideradas doentes pela Organização Mundial de Saúde. Há ainda cerca de um milhão e 600 mil pessoas padecendo de sobrepeso, as quais enfrentam dificuldades no bem-estar, autoestima, busca de parceiros, emprego e inserção social.

O sal e o açúcar, antes considerados estímulos naturais do “prazer” alimentar, hoje fazem parte dos aditivos alimentares mais controlados e evitados. Por seu turno, a fibra, muito presente em alimentos considerados mais rústicos e pouco apetecíveis, hoje é procurada enquanto componente essencial de uma dieta equilibrada.

Sistemas de valor e preferências
A dimensão sociocultural da alimentação também inclui os sistemas de valor. A nível da produção, por exemplo, surgem novas sugestões para uma agricultura mais inteligente face ao clima (permacultura, agricultura biológica, etc). Na busca de um mundo mais justo, multiplicam-se os apelos para combater o oligopólio industrial, a conversão dos alimentos em meras “commodities”, a sua utilização em prácticas de especulação financeira e busca desenfreada pelo lucro. Cresce também a necessidade de adoptar novos paradigmas e prácticas como preservar, reciclar, reaproveitar, reutilizar, valorizar etc.

Nas abordagens mais recentes, os alimentos transcendem a sua função nutritiva. Quando, por exemplo, fazem parte da equação para uma melhor imagem corporal, quando são dados como presentes e portadores de afectos. Quando os seus sabores, odores, cores, formas e texturas são veículos de rituais e valores como cultura, religião, partilha, recordações, tradições, crenças, preconceitos e tabus. Nessa dinâmica, muitos nichos e marcas nascem: dietas de emagrecimento, “bio”, “glúten-free”, “dairy-free”, “vegan”, “no GMO”, “fair trade”, hallal, etc.

A perspectiva familiar
A alimentação é um factor agregador e integrador dos membros da família. Cada um tem um papel especifico na produção, colecta, aquisição, confecção e distribuição dos alimentos. Só isso permite uma extensa partilha de afectos.

As refeições representam uma instituição familiar privilegiada que determina os hábitos alimentares, e os transmite de geração em geração.

Há estudos que demonstram que as pessoas que se alimentam em família estão geralmente melhor nutridas do que as pessoas que se alimentam individualmente. No primeiro caso, há uma “democratização” do ritual, permitindo uma utilização mais equitativa e partilhada, enquanto que no segundo caso, os mais fortes tendem a sobrepor-se aos restantes.

Os aromas da velha cozinha da avó, a textura  e delicadeza dos alimentos preparados à mão, as gargalhadas das refeições colectivas (particularmente no Natal,  Eid e demais celebrações), guardam mensagens indecifráveis de aconchego.

 

 

Ao Belmiro Quive, amizade…

O melhor dos poetas está na flor que a palavra não descreve

Mirette Muzi

Traduzido do cicopi para português… Mafu significa areia [e por que não terra?], aí onde encontramos “o chão de todas as coisas”, a génesis e o apocalipse. É esse o título do segundo álbum de Albino Mbie, músico cujos créditos vão se multiplicando ao ritmo do vento, com muita originalidade. Bem visto, o próprio título do segundo disco de Mbie revela esse poder criativo, que se robustece com uma imaginação baseada em argumentos simples, a sugerirem sempre um regresso de espírito para quem há anos vive nos Estados Unidos.

O músico, este guitarrista previamente conotado com monstruosidade dos bons, é um daqueles artistas que, estando no estrangeiro, conforme nos referimos no artigo “Os recriadores da tradição II – uma escuta aos grandes”, mantém-se leal a um conjunto de valores moçambicanos, sintetizados na mundividência, na valorização da língua como elemento que engrandece o discurso apresentado na musicalidade. Não é por acaso que este disco, constituído por 12 temas, tem nove em línguas bantu, mesmo tendo sido editado na América. Só por aí, temos elementos que nos revelam a importância que o músico dá à sua origem, facto já manifestado no seu álbum de estreia: Mozambican dance.

Quem conhece Albino Mbie sabe que é um sujeito tranquilo, sereno. No diálogo, sabe ser breve ao dizer e paciente ao ouvir. Estas características do homem atinentes ao estado de alma aparecem constantemente nas composições do artista, daí podermos escutar as músicas em qualquer momento do dia, como se tudo fosse uma conversa que, na verdade, não deixa de ser. Mas o melhor de Albino Mbie, neste Mafu, não está nisso, em particular, e sim numa outra coisa: a lírica. Por via desta combinação poética que tanto enaltece os sentimentos do “eu”, não importa se fictício, Mbie é comovente, convincente e cativante, pois consegue transparecer o sentimento de estar a sentir a dor “fingida”, a que “deveras sente”. Fernando Pessoa. Por exemplo, em “Xiluva”, uma das melhores músicas deste disco, Albino Mbie consegue transformar um tema cliché, muito cantado por várias gerações moçambicanas, numa obra bela, com um perfeito uso da hipérbole no coro, quando um sujeito nos diz que não existe uma flor mais brilhante do que a sua musa. Esse “mafioso” armado em galanteador sabe muito bem que existe uma “Xiluva” mais linda do que a dele, mas diz o que deve ser dito, da maneira mais arrebatador, de modo a alcançar os seus interesses. Além disso, o carácter narratico da música, num tom humilde, “coitado” até, faz da letra penetrante – ainda bem que a “Xiluva” em causa não se chama, nem de longe, Angélica Pereira. Aí, sim, este artigo teria tudo de violento.

À parte o desabafo, o efeito lírico da composição de Albino Mbie aparece bem executado na quarta música do disco, “Rosa”, um tema muito melancólico, feito serenata, na qual o maior objectivo da entidade textual é ter aberta a porta do coração dessa rapariga que pode ser qualquer uma, menos Angélica. “Hodi nili hodi. Nipfulele n’kata”. Fany Mpfumo. Aqui, de facto, Mbie investe num amor feito Jack Dawson e Rose Bukater. Ideal até às últimas consequências, como se ele fosse uma espécie de James Cameron. O que o músico nos está a dizer é que o amor, esse “Lirandzo” que faz a nona faixa, é tudo que vê, ouve e sente. Por essa razão, o empenho numa busca que o permite aprender sobre “xa vutomi”, a vida. “Lirandzo” é acústico, e apresenta um dado interessante. Se em “Rosa” encontramos voz com pretensão de conquistar, em “Lirandzo” temos uma que se dá por satisfeita por ter conseguido cantar a sua Marilyn Monroe numa versão muito refinada.  Muito bom!

Com efeito, há uma sequência lógica neste Mafu. Os temas estão relacionados, nessa conexão entre “eu” e “tu” (subentendido), enaltecendo um bem-estar incondicional. “Zula mbilo” é um exemplo claro disso, de uma música feita para as pessoas, para as pacificar, tornando-as generosas com elas mesmas. “Zula mbilo” significa sossegue o coração e traz a preocupação por uma humanidade feliz. A música que intitula o álbum, a sexta, “Mafu”, é também exemplo dessa preocupação pelo bem do próximo, daí possuir muito aconselhamento.

Nem mais, Mafu é a personificação de uma voz doce, feita de textos bem assentes no chão, portanto, na areia.

 

Título: Mafu

Autor: Albino Mbie

Editora: AM Productions

Classificação: 16

O Rui Nogar morreu há 25 anos. Foi a 11 de Março de 1993. Hoje já ninguém fala dele. Deram-lhe o nome de uma rua, mas esqueceram-no. Este país cultiva o silêncio e o esquecimento, a ignorância e o despeito em relação a muitos dos seus melhores. O Rui foi um dos nossos melhores. Não só como poeta, mas como cidadão. O Rui foi das pessoas que mais estimei no universo literário moçambicano e não só. Eu viera de Nacala, quando um meu amigo de infância, Luís Guevane, hoje colunista do semanário Savana, com quem partilhava inquietações literárias na juventude, me levou, em 1984, à Associação dos Escritores Moçambicanos. Tinha 17 anos e o então secretário-geral da AEMO recebeu-me com uma disponibilidade e um afecto invulgares. Afinal, ele era um escritor consagrado e eu um pretenso candidato a escritor. Um miúdo que tinha essa veleidade, no entanto ele abraçou-me como par. Tenho-lhe essa dívida de gratidão impagável e uma imensa amizade.

Armando Artur: “(Ao Rui Nogar) – Escrevo-te, melancólico, / estas palavras reverberadas/ nas folhas das palmeiras. / A tua ausência ganha, / em mim, a forma de um poema/ subitamente inacabado. / O nojo e o frio do teu silêncio/ apaga a lógica poética/ em que me fundo. / A bordo do teu nome vazio/ escrevo-te estes versos/ com o azul absurdo deste dia”.

Neste lancinante poema do Armando, publicado no seu livro Estrangeiros de Nós Próprios, de 1996, está a subsunção de um sentimento geracional. Pessoalmente, sinto-me aqui sub-rogado e ainda bem. O Rui merece de nós memória persistente e um afecto sem tréguas.

Francisco Rui Moniz Barreto nascera a 2 de Fevereiro de 1932 e tinha no curriculum o mito de um grande declamador, de um intelectual preso, de um activista e militante, com poemas que publicara em O Brado Africano, e um título na sua estante de autor – Silêncio Escancarado. Com o convívio na AEMO, primeiro, em viagens ou em Portugal, onde viveu parte final da sua vida, depois, conheci-o melhor e admirei-o ainda mais. Tive o privilégio de o ter como amigo e tenho deste meu camarada de ofício uma saudosa memória.

Para além de frequentar a Associação Africana, ele teve uma assídua convivência com José Craveirinha – aliás a edição do Karingana ua Karingana dos finais dos anos 70 e a dos anos 80 trazia um texto do Rui Nogar -, conviveu com Raúl Peres da Silva, Máximo Viana Fernandes ou os irmãos Primavera. Faziam tertúlias, trocavam livros, divertiam-se. O Rui, oriundo da burguesia colonial, penetrava no universo suburbano sem dificuldades nem hesitações – “Nove Hora”, poema que será dramatizado pelo Mutumbela Gogo, nos anos 90, é disso apanágio! Pertencia aos “Marechais de Areia”, grupo em que se mesclavam todos: intelectuais ou mecânicos – todos! -, unidos pelas amigas que partilhavam no subúrbio. Já citei “Nove Hora”, parece incontornável citar “Xicuembo”, um outro notável poema do Rui Nogar, testamental dessa época:

Rui Nogar: “eu bebeu suruma/ dos teus ólho Ana Maria/ eu bebeu suruma/ e ficou maluco// agora eu quere dormir quere comer/ mas não pode mais dormir/ mas não pode mais comer// suruma dos teus ólho Ana Maria/ matou socego no meu coração// eu bebeu suruma oh suruma suruma/ dos teus ólho Ana Maria/ com meu todo vontade/ com meu todo coração// e agora Ana Maria minhamor/ eu não pode mais viver/ eu não pode mais saber/ que meu Ana Maria minhamor/ é mulher de todo gente/ é mulher de todo gente/ todo gente todo gente// menos meu minhamor”

A vida, o quotidiano, as injustiças sociais, as desigualdades sociais, que ele abominava e contra as quais lutava, estão no lastro da sua escrita. Sobretudo, a sua passagem pela cadeia da Machava, que está na origem de poemas pungentes, belos, doloridos e dolorosos.  Alguns versos: “tratávamos o silêncio por tu/dormíamos na mesma cama/acordávamos do mesmo sono”. Este poema, “Da fruição do silêncio”, escrito em 1967, tem versos notáveis: “ninguém pressentia/ no gume acerado/da quase indiferença/ que o silêncio aparentava/ o perfeito sincronismo” ou: “nada sabíamos de nós próprios/ além da angústia lacerante/ coagulando-nos um a um/ nos limites da expectativa”. Ou ainda: “era o silêncio devorando o silêncio/ era o silêncio copulando o silêncio/ era o silêncio assassinando o silêncio/ era o silêncio ressuscitando o silêncio”.

Há um episódio que fica para os armoriais da resistência. O Rui, sabendo da presença dos agentes da polícia na primeira fila, numa Associação Africana apinhada, declama um poema de Carlos Maria (“Balada dos homens da caça”), que tinha um estribilho: “Venham todos os homens da caça/ Venham todos/ Tragam as azagaias”. Fazia-o com gestos provocatórios, apontando para a primeira fila. Seriam presos nessa mesma madrugada: ele, o José Craveirinha, o Luís Polanah e a Cacilda Reis. Interrogando-o, o torcionário Roquete, de triste memória, seria assertivo na indagação: “Porque é que você anda com pretos?”

Foi o amigo Raúl Peres da Silva, que, em 1964, estando na Argélia, o convidaria a juntar-se à UDENAMO, um dos movimentos que estão na origem da FRELIMO. Estando de férias na Rennies, onde então trabalhava, vai a Paris para iniciar esse percurso libertário. Marcelino dos Santos, com quem se encontra na capital francesa, aconselha-o a regressar, era necessário organizar a luta no interior. Joel Madunaxinana procura-o por incumbência de Marcelino. Numa reunião em casa de Armando Pedro Muiuana, em 1964, são arrastados pela polícia. Presos o próprio Armando Pedro, Rui Nogar, José Craveirinha e outros. Adrião Rodrigues, Almeida Santos e Santa Rita advogam a favor destes presos. Rui Baltazar, identificado com um dos presos, Albino Maeche, que viera da Tanzânia, é impedido de o fazer. São ilibados. Pouco tempo depois, o julgamento é repetido. A ordem, vinda de Portugal, era clara: cadeia. Assim, Malangatana, Craveirinha, Luís Bernardo Honwana serão companheiros de prisão – companheiros de sempre. Os escritos da cadeia saíam disfarçados nas marmitas que levavam comida e eram entregues a Rui Baltazar.

Depois da Independência, passará pelo opróbrio de uma penitência em Nampula, ironia e contradição da revolução: ele e o Malangatana. O Craveirinha foi poupado à purga graças a Samora Machel. Rui Nogar seria Director Nacional de Cultura, Director do Museu da Revolução, deputado da Assembleia Popular e, quando o conheci, era secretário-geral da AEMO, o primeiro a dirigir a casa dos escritores. Conheci-o aos 52 anos. Tinha sempre os cabelos penteadíssimos, a barba aparada, um tique quase nervoso, uma inquietude permanente, uma intranquilidade em relação à condição humana. Tivemos muitas conversas, discordávamos muito, mas sempre fraternalmente. A AEMO era o lugar da democracia.

Minhas prematuras conversas com Mário Pinto de Andrade, ali nos bancos da AEMO, ou na casa da Julius Nyerere, nas quais me dizia ter chegado a hora da mudança: os partidos únicos, sucedâneos dos movimentos de libertação, não representavam mais o lastro social e a realidade política e económica e social dos nossos países, faziam-me ansiar, naqueles anos 80 ainda, pela democracia, pela mudança. O Rui, embora concordasse com a democracia – é preciso dizê-lo – achava que não chegara ainda o momento. Mas era aberto à discussão.

O Rui convivia muito bem com a geração da Charrua e todos os jovens rebeldes da época. Nunca o vi incomodado, antes pelo contrário. Creio que a nossa geração – disse-o algures – deve-lhe muito, deve-lhe tudo, principalmente os charrueiros, que albergou e acarinhou. Uma vez, disse-lhe que a nossa afirmação teria de ser pela poesia lírica. Ele contradisse-me dizendo que, entre a flor e a luta, escreveria sobre a luta. Mas aceitava a nossa deriva lírica, quando intentávamos um caminho novo para a poesia moçambicana. A despeito, devo dizer que lhe pertence um dos poemas mais belos da nossa lírica – “Xicuembo” – acima citado na íntegra. Parece contraditório? Não.

Na entrevista de vida que lhe fiz para Os Habitantes da Memória ele resumiu muito bem o ideário da sua vida: “Não me interessa que seja ou não considerado poeta. O que me interessa é que eu seja considerado homem que se preocupa com os outros homens da sua época.” Está tudo dito. Rui foi um grande poeta, sim. Um poeta extraordinário: as suas imagens, as suas metáforas, o seu domínio da língua e da linguagem, faziam-no exegeta. Era ainda um excelente tribuno, um belíssimo declamador, amigo do seu amigo, um homem bom. Um homem apaixonado pela vida.

Gostei de fazer uma viagem com ele a Sevilha, em 92, com o Craveirinha e o Rui Knopfli. Estavam também o Eugénio Lisboa, a Maria Velho da Costa, o Pedro Tamen, entre outros. Foi através do Rui Nogar que me tornei amigo do Egito Gonçalves. Ainda hoje me lembro dos rojões à moda do Porto, que comi em casa do Egito, e da cidade invicta, em vários ângulos, mostrada pelo grande poeta português. A última vez em que estivemos os três juntos foi a 25 de Novembro de 1991, saíramos de um congresso bocejante. Fomos para a casa do Rui no Areeiro, em Lisboa. Comemos umas costeletas que ele preparou e de sobremesa uma bebinca que ele tinha. Quando o Rui morreu, em Março de 1993, o Egito escreveu um poema evocativo – “Lembrança para Rui Nogar”:

Egito Gonçalves: “Imagens tuas ganharam alicerces, / fragmentando-se em gavetas diversas/ como amostras de minerais, receitas/ de comida moçambicana, fotografias ao lado de Rumiana I tiradas/ por Rumiana II (onde estarão?)/ na tarde em que a tempestade estiou/ e descemos para ver o velho molhe destruído/ e os fotógrafos da Sófia Press ao trabalho/ (Maria Bakalova cortava o vento/ com os olhos), as ondas incendiavam/ a nossa imaginação – e o passado / descia pelas falésias, trocávamos/ memória de um tempo de silêncio/ de telegramas cifrados. A espuma/ era um fumo de inverno. Depois/ houve um leão de bronze onde o sol/ escurecia – e anos mais tarde/ uma costeleta lisboeta com o Nelson/ entre duas comunicações repetitivas/ de um congresso que nos aborrecia. / E rimos com vontade. Para isso estávamos/ percorrendo pontos de referência/ das vidas que tínhamos lavrado/ arduamente – para que a morte/ não fosse apenas uma sombra inútil, / uma pedra rolando sem nome no abismo.”

Como me lembro daquela data remota que o Egito alude neste belíssimo poema? No meio da nossa galhofa, o Rui ligou a televisão para vermos as notícias. Foi justamente naquele momento em que anunciaram a morte do Freddy Mercury e eu sendo um indefectível daquele exuberante Queen jamais esqueceria aquela infausta data.

Aqui estou, vinte e cinco anos depois, impelido por esse sentimento de que a morte não seja, no caso do Rui Nogar, apenas uma “sombra inútil”, como escreveu o nosso amigo Egito Gonçalves, muito menos “uma pedra rolando sem nome no abismo”.

 

 

Da janela do meu quarto no hotel local, onde por pouco menos de uma semana me encontro, vislumbro e contemplo o turbulento mar atlântico da  Póvoa de Varzim.

Uma simpática e acolhedora cidade do norte de Portugal que, nos Fevereiros meses dos recém/passados anos da minha vida litéro-cultural, me tem  recebido -em companhia de mais outros, quase uma centena agentes culturais do mundo ibérico das belas letras- em razão das CORRENTES D’ESCRITAS que consideramos ser o mais velho, mais aberto,  mais representativo e menos preconceituoso evento literário jamais realizado em Portugal.

Por uma semana, em Fevereiro, a Póvoa é  uma cidade de letras. Cidade criativa. Na Póvoa de Varzim celebra-se o livro e a literatura pois, por estes dias, todas ou mesmo quase todas, as superfícies comerciais, lojas, cafés, mercados populares, restaurantes, bares e similares, transformam-se em plenas  livrarias, dando as boas vindas aos visitantes e fazendo as honras no centro da cidade.

Constatamos localmente que, os livros podem ser encontrados em qualquer esquina de rua com um tapete convidando –nos para entrar e vê-los entre roupas, assessórios, sapatos,  malas, estantes, carteiras, garrafas, tecidos, óculos e, para além de  agradáveis e gratuitas conversas à volta da literatura, haverá sempre um título de livro procurando por quem o lê, em qualquer parte, no todo ou em parte.     

Neste único 2018 das nossas vidas literárias, uma vez mais marcamos presença por Angola, em companhia do escritor Manuel Rui Monteiro -autor de célebres títulos- contando com mais de uma trintena de livros desde a poesia ao romance, passando pela assinatura de algumas das mais agridoces crónicas literárias angolanas, contos e novelas do mundo autoral lusófono e, dentre os quais saliento: Regresso adiado, Sim camarada,  Quem me dera ser onda, Um morto & os  vivos, O manequim e o piano, Estórias de conversa, Memória de mar,  Crónica de um mujimbo e, como obrigatoriamente tinha de referir, Rio seco.

Em abono da justiça, Manuel Rui, Onésimo Teotónio de Almeida e mais um ou  outro cujo nome agora não me ocorre, são mesmo os «sobas dos sobas» em termos de presenças nas Correntes.

Contam-se dezanove consecutivas estadias no Axis Vermar e consequentes romarias pela cozinha caseira da casa de restauração com o mais sugestivo nome de restaurante para escritores -e não só!- que já encontrei, nas minhas andarilhiçes e itinerâncias,  por tudo quanto é canto com eventos literários no mundo. O Zé Das Letras. Um típico cantinho da Póvoa de Varzim onde muito mais que cinco centenas de figuras e figurões das letras do mundo ibérico tiveram já a oportunidade de fazer o gosto aos sabores da casa.

Considerado o mais importante evento literário em Portugal, julgo ser também e com certeza um dos mais importantes festivais literários no mundo. Pelas Correntes D’Escritas passaram já quase todos os maiores autores dos países lusófonos e, igualmente, alguns dos maiores nomes, das artes e da contemporânea literatura  latino-americana.

Nesta que foi a décima nona realização, depois de no ano de 2017 o festival ter alcançado a sua maioridade, nas Correntes D’Escritas, como sempre em anteriores edições, juntaram-se novos nomes com diferentes andanças culturais e provenientes de distintas e longínquas latitudes geográficas para a sua estreia tal como o moçambicano Bento Balói, jornalista que, enquanto autor, estreou-se como ficcionista com o romance Recados da Alma.

Outro nosso estreante atende pelo nome de Vicente Abraão, cujo nome já não deve ser estranho pois, é presentemente o Ministro da  Cultura e das Indústrias Culturais da República de Cabo Verde mas, que aparece e se estreia, no festival,  na condição de escritor já com alguns títulos publicados, entre o romance, poemas, crónicas e conto infantil.  

Mû Mbana da Guiné-Bissau, multi-instrumentista, compositor musical e poeta, esteve igualmente de passagem em  primeira viagem, representando e prestigiando a cultura e os autores do seu país.

O mais novo estreante vindo do continente africano, «seria» o jovem angolano Hélder Simbad, para quem “a palavra é uma força oculta que se move secretamente” e que, em razão das malhas e falhas que  o «império?» ainda vai tecendo, (refiro-me –infelizmente!- às complicações para a obtenção de um visto junto do consulado de Portugal em Luanda, mesmo com toda a documentação em ordem),  não pôde chegar a tempo de fazer a sua intervenção aprazada para partilhar ideias numa das mesas de debate, em companhia  da cubana Carla Suarez e dos portugueses João Tordo e Sandro William.

Uma nota curiosa que não posso deixar de reportar foi o facto de  que, consumada a ausência do autor, pediu-me –ele mesmo em concertação com a curadoria- que o representa-se fazendo a leitura de uma comunicação preparada para o efeito. Em razão da solidariedade intelectual logo acedi ao pedido, mesmo sem a necessária leitura prévia pois, estávamos  em cima da hora.

O texto foi deveras aplaudido e ovacionado depois da explicação que fizemos dada a ausência autor das linhas que lí, lamentando pela dificultada, quase inexistente e tão desejada circulação de autores, artistas e bens culturais no âmbito da  comunidade de países falantes da língua portuguesa, vulgo CPLP.

No texto, cujo mote  era o verso segundo o qual: “O que escrevo atormenta o que sou”,  mesmo como quem se estreia nas lides internacionais da literatura, com algum conseguimento e motivo de reflexão, o Hélder acabou escrevendo o que aqui cito: “O  que sou pouco importa, o mais importante é o que escrevo. O que escrevo é o que é. E eu posso não ser o que julgam, isto, de facto, me atormenta”.

Finalmente, porque o texto já vai longo e na verdade vou, sem como…, para encurtar a escrita, finalizo observando que para nós, africanos de língua portuguesa e particularmente para Moçambique, o destaque foi indubitavelmente, o nosso Ungulani Ba Ka Khosa autor  do festejado e celebrizado Ualalapi. 

Vindo de Luanda, em cansativa e demorada viagem com escalas em Casablanca e Lisboa, passadas horas e horas, atraco na Póvoa. Feito o check-in e já depois de hospedado, adentro a primeira livraria local em razão do vício e, para meu satisfatório espanto, logo saltam-me aos olhos as páginas da mais recente edição do JL  -Jornal de Letra Artes e Ideias, referenciando Escritas de distintas tonalidades. O propósito era, uma vez mais, a 19ª edição das Correntes D’Escritas antecipadamente anunciadas neste periódico.

Ungulani é  capa do jornal ao lado de três outros grandes das minhas últimas leituras, nomeadamente: Luís Fernando Veríssimo; o homenageado no evento deste ano, Ignácio de Loyola Brandão;  «um amigão da gente!» com quem  já partilhamos mesa no anterior festival e,  igualmente, o andarilho latino-americano Eric Nepomuceno. Um amigo com quem também já partilhamos mesa em distintos festivais e não só. Um bom observador e grande companheiro para as bem recheadas mesas de bar.

O nosso Charrueiro esteve em grande nesta jornada literária  com a redação e publicação do texto intitulado A vida em cinco actos. Recriada e resumida autobiografia encomendada pelo JL. Dele ouvimos também uma comovente  intervenção na mesa cujo mote referia-se a censura e/ou a autocensura. A imparcialidade silencia a escrita. Será?

Entretanto, passadas mais de três décadas da publicação de Ualalapi, Ungulani retoma a história do imperador de gaza e apresentou a sua mais recente obra literária em duas sessões que tivemos a felicidade de testemunhar. Na Póvoa de Varzim e em Lisboa. Gungunhana (Porto Editora 184 pp.)

Para Agripina Carriço Vieira, “Esta é a história de um território que procura encontrar a sua identidade feita de múltiplas pertenças que se constituem como os alicerces sobre os quais se constrói a nova nação, demanda a que dá voz o narrador de As mulheres do imperador…”.    

Digo agora, em jeito de remate final, que Ungulani é sempre um grande ao lado dos grandes e no âmbito da sua profunda humildade, continua palmilhando a sua estrada, desinteressadamente, fazendo-se um dos maiores da língua portuguesa no mundo.      

 

Março de 2018

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na minha abordagem destaquei até aqui três questões, a saber: a da observância do n°2 do artigo 291, a da necessidade ou não da «dupla revisão» e a da composição dos Governos Provinciais, Distritais e dos Conselhos Executivos autárquicos.

De fora ficaram algumas questões cuja solução, não me parecendo muito problemática, caberia, sem grande controvérsia, no âmbito do trabalho de aperfeiçoamento e de garantir a coerência jurídica da própria Proposta de Revisão, trabalho a fazer-se na AR.

Mas pelas dúvidas e questionamentos que se têm levantado, e porque perfilho algumas delas, sou levado a crer que, provavelmente, subestimei o potencial de controvérsia que pelo menos uma dessas questões pode encerrar.

Trata-se do previsto na alínea h1) do Artigo 159 (Competências gerais), nos termos da qual,

«Compete ao Chefe do Estado no exercício da sua função:

…………………………………………………………………………………………………………………..

h1) nomear o Governador de Província, dentre os membros da assembleia provincial e de acordo com a proposta por esta submetida, nos termos da alínea d) do número 3 do artigo 270-K».

Por sua vez esta alínea d) do n°3 do artigo 270 estabelece que,

 «Às assembleias provinciais compete, nomeadamente:

……………………………………………………………………………………………………………….

d) submeter ao Presidente da República a proposta de nomeação do Governador de Província, apresentada pelo partido político, coligação de partidos políticos ou grupo de cidadãos eleitores que obtiver maioria de votos nas eleições para a assembleia da província;»

Sobre a inconstitucionalidade desta previsão, que desloca a titularidade da soberania do povo para os partidos, reitero o que já disse: é insanável e insusceptível de referendo.

O aspecto que deve ainda merecer atenção é o da própria formulação destes dispositivos. Formulação que carece, por um lado, de conformação com o conceito de descentralização em que assenta esta proposta de revisão constitucional, e, por outro, de rigor jurídico.

Da conformação com o conceito de descentralização

A descentralização consiste essencialmente no reconhecimento da prerrogativa de os cidadãos se organizarem para a solução dos problemas próprios das suas comunidades e de promover o desenvolvimento local através do aprofundamento da democracia, para isso elegendo órgãos deliberativos e executivos para a prossecução desses fins. É nisso que se concretiza «a autonomia dos órgãos de governação provincial, distrital e das autarquias locais» que o Estado consagra e respeita, nos termos do Artigo 8 (Estado unitário) da presente proposta de revisão pontual.

Significa que esses órgãos eleitos pelos cidadãos são autónomos, possuem uma legitimidade democrática directa e subordinam-se apenas à lei. Na esfera da sua actuação exercem poderes próprios e não por delegação do Estado, como acontece no caso de mera desconcentração.

Ora, estes órgãos, tanto os deliberativos como os executivos, que surgem no quadro da descentralização, são eleitos, não são nomeados. Com efeito, nestes casos, não há, não pode haver, lugar a nomeação, porquanto eles possuem uma legitimidade directa resultante do sufrágio universal directo.

Por isso é absurdo que se preveja a sua nomeação como prerrogativa do Chefe de Estado. Talvez o objectivo por detrás desta formulação “nomeação pelo Chefe do Estado” fosse o de salvaguardar, aos olhos dos cidadãos preocupados com a defesa do Estado unitário, que os seus receios estavam a ser tidos em conta.

Mas achamos que não era preciso ir tão longe. Senão vejamos.

Se o Chefe de Estado, actualmente, nomeia os Governadores, ao abrigo da alínea b) do n°2 do Artigo 160 da Constituição, é porque, nos termos do n°1 do seu Artigo 141, «O representante do Governo a nível da província é o Governador Provincial». Portanto, estes Governadores, os actuais, subordinam-se e respondem perante o Presidente da República, que os nomeou.

Com a presente Proposta de revisão pontual, a situação é bem diferente. Com efeito, vai-se completar, a este nível, a descentralização já iniciada com a introdução das Assembleias Provinciais no Artigo 142 da Constituição, provendo-as com o respectivo executivo, o que não fora possível fazer aquando da revisão constitucional de 2004 que consagrou essas Assembleias. Assim os Governadores deixam de ser representantes do Governo Central e passam a ser eleitos por sufrágio universal directo, tal como as respectivas Assembleias Provinciais, que já o são, e perante as quais passam a responder, e deixam de responder perante o Presidente da República que apenas lhes confere posse.

Após a eleição, estes órgãos, os Governadores, ou os Presidentes das autarquias, não são propostos á nomeação, eles são, eles foram, designados pelo sufrágio universal directo para tomarem posse ou serem investidos. Quem confere a posse não tem a prerrogativa de não a conferir, ou de a conferir a outros que não a quem foi eleito. Portanto não decide sobre a decisão já tomada pelo eleitorado, não nomeia, apenas limita-se a cumprir aquela decisão conferindo posse aos órgãos eleitos.

Pelo que deve ser necessariamente corrigido o texto da Proposta substituindo o conceito de nomear pelo conceito de conferir posse.

A mesma objecção vale para o previsto nos números 4 e 5 do Artigo 275 da Proposta. O órgão executivo da autarquia é dirigido por um presidente que será, propusemos nós, o cabeça de lista da lista mais votada, dos partidos, grupos de cidadãos, ou designado pela coligação pós-eleitoral com maioria de assentos na Assembleia. Do mesmo modo o Presidente da Assembleia não o nomeia, não tem esse poder, apenas lhe pode conferir posse.

Um ponto merece atenção: o sistema de cabeça de lista como o dirigente do executivo (Governador, Administrador, Presidente de Conselho Municipal) deve ser consagrado na Constituição bem como a provisão de que em caso de impedimento definitivo do cabeça de lista, a sua substituição é automaticamente feita pelo segundo da lista e assim por diante, retirando pois todas as virtualidades da “lista”. No que aliás é uma aplicação do mesmo princípio que neste momento vigora ao nível de deputados

Dos Governadores e dos Secretários de Estado nas Províncias

Como os Governadores, com a descentralização, passam a ser eleitos e deixam de representar o Governo Central, isto é o Estado, este precisa de garantir a sua representação por outra via, uma vez que continuamos , por definição, Estado unitário.

 Essa via é o Secretário de Estado na província.

É frequente o argumento de que tal vai criar conflitos. Para esclarecer este ponto é essencial entender a distinção entre funções centrais e funções locais. As funções centrais são aquelas que já na comunicação do Presidente da República foram citadas (funções de soberania, exemplo relações diplomáticas, delimitação das fronteiras, organização do território – uma Província não pode delimitar-se a si própria!). As funções locais são como regra aquelas que permitem aos cidadãos exercer o seu cometimento e empregar o seu talento ao serviço dos interesses comuns

A governação provincial, a exercer por quem tem maioria na Assembleia Provincial – e que em anterior artigo propus que fosse inclusiva dos outros grupos representados na Assembleia – ocupa-se de funções relacionadas em linha geral com o desenvolvimento local e prestação de serviços locais: assim para tomar um exemplo de como funciona o sistema vejamos os transportes públicos. Os grandes serviços de transporte terrestre ou aéreo que cobrem várias províncias são de âmbito central, que os pode realizar ou licenciar a privados, a governação provincial ocupa-se do transporte inter-provincial e as autarquias do transporte urbano e peri-urbano.

Por isso,  e para além de idiosincracias pessoais, não há confusão nem sobreposição de tarefas.

Por isso é-me difícil entender toda a controvérsia sobre a própria existência do Secretário de Estado como representante desse Estado unitário, que «respeita na sua organização e funcionamento a autonomia dos órgãos de governação provincial, distrital e das autarquias locais…», como se pode ler no Artigo 8 (Estado unitário) da Proposta de Revisão…Ou será que se deveria antes prever que as Províncias, os Distritos e as Autarquias, é que respeitam na sua organização e funcionamento, o Estado unitário, e nele designam seus representantes?!

O que seria um contra-senso porquanto nós estamos num processo de descentralização a partir de um Estado unitário (é esse o processo histórico), e não num processo de união ou de unificação a partir de Estados ou de entes autónomos….

Só posso tentar entender que as preocupações e perplexidades que se suscitam, prendem-se com os medos e preconceitos criados ao longo deste processo, sinuoso sem dúvida, sobretudo na fase que antecede a presente etapa.

 

Isso é consequência do facto de que, uns, temerosos da mudança e do futuro, apegam-se á História e ao passado de forma unilateral, esquecem a vertente e a vocação descentralizadora dessa mesma História e privilegiam apenas a vertente unitária fundacional, para se oporem ou resistirem à descentralização, nela identificando o perigo do fim do Estado fundado em 1975. Outros, face a essa resistência, e porque anteviram na descentralização a possibilidade de verem reconhecido, a nível local, os ganhos obtidos nas urnas, tomaram a descentralização como sua invenção e bandeira eleitoralista, e procuram ignorar ou desvalorizar toda a História passada, incapazes de ler a actual evolução como fase de um processo que tem as suas raízes nessa História.

Assim, o que deve ficar claro e expresso na Constituição, são as delimitações de competências, por um lado, do Governador e, por outro, do Secretário de Estado na Província. Sem qualquer hierarquização entre os dois, já que, no território da Província, um tem uma legitimidade democrática directa, o Governador, ao passo que o outro, o Secretário de Estado, tem uma legitimidade democrática indirecta, derivada do PR, titular da legitimidade democrática directa.

Se houver uma delimitação clara de competências e de esferas de actuação, e se cada um, o Governador, por um lado, e o Secretário de Estado na Província, por outro, se mantiver dentro das respectivas competências e esfera de actuação, será normal a coexistência institucional. Não temos porque vaticinar uma permanente conflitualidade, menos ainda uma conflitualidade insolúvel,

Claro que tudo isso exige uma mudança séria de mentalidade, da parte de todos nós. A Constituição e as leis, quanto mais claras e expressas forem, mais contribuirão para acelerar essa mudança.

Porém, agora que temos que tomar decisões, é imperativo que serenemos. É imperativo que o façamos distanciados desses extremos, para, com serenidade, e fora de calculismos eleitoralistas, regionalistas, tribalistas ou outros, tomarmos as decisões que sirvam o Povo, a Nação e o Estado Moçambicano, que somos todos nós, e que queremos continuar a ser.

 

Da tutela

Quanto à tutela administrativa do Estado, em princípio, deveríamos incidir a nossa atenção naquilo em que o previsto no Artigo 270-D(Tutela Administrativa) do texto da Proposta de Revisão fosse para além do  regime já estabelecido no Artigo 277 (Tutela administrativa) para as autarquias locais.

Nesta perspectiva, sem dúvida que o n°4 deste Artigo 270-D merece sérias reservas na medida em que contém formulações que podem abrir caminho para actuações que vão para além do controle de estrita legalidade. Com efeito, expressões de uma imprecisão tal como «abuso de autonomia», «que possa conduzir à violação grave da Constituição e das leis» ou actuar «de forma que ameace gravemente o interesse geral» ou “perturbe a satisfação das necessidades provinciais e distritais», não podem ser encaradas com ligeireza, sobretudo no prevalecente clima de medos, preconceitos e desconfianças cujas causas procuramos acima identificar.

Consideramos que neste domínio a Constituição deve operar com conceitos precisos, e  da maior objectividade, de forma a evitar-se qualquer arbitrariedade e subjectivismo. A Constituição não trata de possibilidades de violação da Constituição mas de violações da Constituição. Nem de ameaças ao interesse geral do Estado mas de actuações ilegais atentatórias do interesse geral do Estado. Nem de perturbações da satisfação das necessidades provinciais e distritais, mas de impedimentos ilegais à satisfação dessas necessidades.

Mais,

Finalmente, e embora a tutela de mérito já estivesse prevista no n°3 do Artigo 277 da Constituição, para as autarquias locais, sou de opinião de que, para se  eliminar ou reduzir a margem de arbitrariedade e de subjectivismo, deveríamos eliminar em definitivo do texto constitucional este tipo de tutela, retendo apenas a tutela assente no controle de legalidade.

 

O mês de Fevereiro deverá entrar para a nossa história desportiva recente, por motivos que chamaram à atenção aos observadores mais atentos. Os atletas do basquetebol e do boxe, enfrentando potências com claras, visíveis e mensuráveis diferenças, “olhos nos olhos”, deram um sinal de superação, cada vez mais ausente no dia-a-dia da vida dos moçambicanos.

Utilizando palavras de Mia Couto, venceram o coitadismo!

 

Basquetistas: estilosos e garbosos…

Exibindo uma altura e musculatura trabalhadas, sem complexos, sabendo ao que iam, os nossos basquetebolistas, com uma mescla de juventude e experiência, lançaram uma forte mensagem de esperança para o futuro. Falava-se antes “só” na aposta nos femininos, mas os masculinos, mostrando “que os têm no sítio” impuseram-se nas eliminatórias africanas ao mais alto nível .

O Pavilhão do Maxaquene vibrante, afinal não estava meio vazio, pois os apoiantes, patrioticamente unidos à família dos rostos do passado, demonstraram querer continuar a dizer presente! A Inhaki Garcia e seus dois adjuntos, tem que ser debitada uma boa dose de mérito do sucesso, pelo treinamento propriamente dito, mas sobretudo pela forte acção da componente psicológica.

 

Punhos não se medem aos palmos

E o boxe? De modalidade triste e semi-abandonada, sobrevivendo graças à dedicação dos antigos internacionais que criaram academias sustentadas praticamente com recurso ao “estou pidir”, para substituir a indiferença de alguns dos tradicionais clubes da modalidade… de repente: “bum”.

Espectáculo, público novo, patrocinadores, luz, glamour e combates. E o que se pensava que era apenas para consumo interno, deu para conquistar um título africano zonal.

Espantou o sector feminino. As nossas representantes (com)provaram que não sobem ao ringue para “porrada entre mulheres”, mas para jogar com lealdade, um desporto que exige muita disciplina e treinamento, senão… paga-se com o físico.

Claro que este salto tem a ver com um nome: Gabriel Júnior – que na modalidade até parece ser um sénior – pela forma como conseguiu (re)motivar as antigas glórias, revertendo insensibilidades do empresariado para um jogo que muito rejeitam, sem mesmo o conhecerem por dentro.

 

Sinais encorajadores

Perante um fracasso ou sucesso, não devamos passar de bestas as bestiais. Aqui está-se a falar apenas de importantes sinais, que contrariam uma realidade nacional de derrotismo e conformismo. A quase ausência de espírito ganhador, o “xa fana” (é igual) que cada vez mais comanda o nosso desporto e as nossas vidas.

Nas duas jornadas em referência, sem serem necessários decretos, os citadinos de Maputo, “envergaram” os símbolos nacionais e apoiaram, de forma incondicional, as nossas cores.

Se alguém punha em dúvida a possibilidade de subalternizarmos diferenças partidárias ou regionais, quando o que está em causa é o nome de Moçambique, a prova foi concludente.

E os atletas, meus senhores, deixaram claro que, mesmo em período de crise, se podem colocar em sentido potências com outro patamar de condições.

 

“Republic of Ghana” é onde estás, meu irmão. Custa-me pagar o imposto da distância por estas palavras. Sei que a senha da saudade paga-se nas manhãs chuvosas de lágrimas no balcão da memória ou no guiché da cama. Todavia, eu quero paga-la aqui neste meu “Relógio di Oro”.

Quantas vezes sacudimos o sal do cansaço dos nossos passeios e o cheiro do sol ali na Avenida Kwame Nkrumah? E quantos abraçamos dobramos em nossos corpos esperando as nossas namoradas naquela avenida? Tudo isso, afinal, era um projecto do instante. Hoje estás na terra de Kwame Nkrumah. E aquela avenida está sem nós. Existirá, ali, uma cratera que engole a massa pesada da amizade? Por que saímos de Chamanculo só para nos abraçar ali?

Cá estou pensando em ti, meu irmão. É como se tivesses fugido do bairro por culpa de algum medo qualquer. Recordas das nossas fugas sempre que a porrada das nossas mães estivesse por perto? E quem conhece o nosso pequeno esconderijo que inventávamos e passávamos as tardes e noites para despistar o velho que fazia circuncisão?

Quero pensar em ti, mas sempre me derrubo em nós. Ainda lembras dos nossos cigarros de jornais que nos enchiam os pulmões de tosse, os olhos de um vermelhão rígido e tonturas imaginárias que não tínhamos? Tossíamos e o vermelho nublava o céu dos nossos olhos. A cada tosse as nossas fisgas em riste, nos pescoços, baloiçavam e voltavam a fixar o seu formato “Y” na divisão dos nossos peitos esticados por ossos.

Será que aí há espaço para lavares na memória as nossas camisas antigas rotas; estampadas de ranho seco escorregadiço e brilhante e com nódoas de jambolão bem desenhadas pela tinta da nossa saliva que não cabia em nossas bocas? E as mangas? As mangas que temperávamos com grãos grossos de sal para terem sentido na língua. E trincávamos a mesma manga, com o mesmo sal, obedecendo a medida marcada pela unha suja na pele verde da manga. Era como se as unhas fossem a finta métrica das nossas bocas.

Deves te recordares que gostávamos de girar pneus sujos em todo bairro; e de quando em quando servíamos de jantes dos pneus. Dobrávamo-nos para entrar no pneu e alegrarmo-nos por ver cada um de nós girando, a cabeça e os pés imitando as voltas infinitas dos raios. O corpo o único diâmetro. E por vezes a força esgotava e o pneu em forma de espiral caía; as jantes que éramos saíam do pneu. A pele que se arrastava no chão seco e sangrava era cicatrizada por um penso improvisado de areia.

Éramos uma dupla e escrevo-te porque ainda sei que somos. E como éramos cortados o cabelo? A minha mãe, também tua mãe, alinhava uma lâmina, “Made in China”, num pente amarelo e deslizava-a em nossas cabeças. Aquela lâmina em nossas cabeças parecia uma charrua desfazendo os nossos cabelos enrolados. E quando parava, um molho de cabelos caía-nos sobre o corpo enrolado por uma capulana com desenhos do alfabeto. Era o nosso salão aquele. A lâmina passava para arrancar os cabelos e o pente seguia para descolar a caspa de areia que crescia.  As pernas da velha prediam-nos os movimentos e o corte saía. Ficávamos dias com restos de cabelos nas orelhas.

Não sei se Gana dá-te espaço para te lembrares de tudo isso. Não sei se ainda há luz suficiente na tua memória para clarear as cavernas que nos acolhiam em jogos das escondidas. Nós não nos escondíamos, mas sim desaparecíamos. E o jogo termina antes da nossa descoberta. Sim. O jogo terminava e não arrebentava porque nunca éramos descobertos.

Aí é terra de Michael Essien. Aquele fantástico futebolista que um dia queríamos se-lo. Escrevo-te, isto, porque quero fintar uma lágrima de saudade que avança no meio campo dos meus olhos. Sem chuteiras, apenas de peúgas, fazíamos rolar uma bola feita pela mestria das tuas mãos. Sempre que chegasse a hora do jogo cada um de nós, em grupo, contribuía o material que se transformava em uma bola: meias, camisas sujas, linhas de sacos de carvão, esponjas e plásticos. Tu, na baliza, eras como um macaco que espera bananas dum galho duma criança.

E hoje estás aí. Pagando as contas das cervejas que tomas com uma moeda estranha que não te cabe no bolso (CEDI?). E sei que ainda tens o cheiro do metical nas linhas das tuas mãos. E sentes o cheiro das acácias gastas de urina da nossa cidade, a raiva dos txopelas derretendo entre longas filas de autocarros na nossa paragem (Romos) e as moedas molhadas de suor que juntávamos para pequenos passeios sem destino no bairro. E eu termino este texto porque oiço dentro de mim teu assobio chamando-me…

 

 

Eu era um miúdo, tinha 18 anos, quando me tornei amigo do Luís Carlos Patraquim, que me publicou, na “Gazeta” da insigne revista Tempo, os meus primeiros versos impressos, em Agosto de 1985. Começou aí a minha amizade com o poeta e, vezes sem conta, ia visitá-lo à casa da Mao Tsé Tung. Não raro, cruzava-me ali com o Mia Couto, que ia discutir com o Patraquim as versões dos contos, que mais tarde dariam no livro Vozes Anoitecidas. Posso, abusivamente, dizer que acompanhei a génese de um dos livros icónicos do último quartel do século XX na ficção moçambicana. Surgido em 1986, em sua primeira edição, o livro levava um prefácio do Luís Carlos Patraquim e ilustrações do Miguel César. Paradoxalmente, não foi em casa do Patraquim que me tornei amigo do Mia, mas quando ele lançou aquele luminoso livro de contos, na sequência da entrevista que lhe faria para a Rádio Moçambique, para o programa “Cultura Viva”, do Emílio Manhique, de que eu era colaborador.

O meu convívio com Patraquim foi decisivo. Discutíamos a arte de fazer poesia e eu levava comigo emprestados sempre alguns livros. Isso é importante para um debutante. Na altura, eu escrevia poemas breves, mas não conhecia Bashô nem a poesia haikai (ou haiku, forma da poesia japonesa, composta por três versos, com cinco, sete e cinco sílabas). O Luís introduziu-me nesse universo. Também escrevia intuitivamente prosa poética. Ele haveria de dar-me a ler Conde de Lautréamont – Os Cantos de Maldoror. A leitura deste livro representou um choque brutal e um mundo novo que se abriu no meu universo. Também me recordo de ler Omar Khayyam, poeta persa de Rubaiyat, pela mão do meu mestre de sempre.

O Luís Carlos publicara, naquele ano de 1985 em que nos tornámos amigos, um belíssimo livro de poesia – A Inadiável Viagem: “agora vou com amendoins na língua ínsula”, começava assim o poema que dava o título ao livro. Eu gostava particularmente da “Canção” dedicado a Paula, musa soberana: “chegarei com as árvores/ meu amor ao som do sangue/ às catedrais do puro gesto/ com o grito e as aves/ marítimas dentro das sílabas/ ao breve cume da espuma/ mãos nas mãos chegarei”. Do livro anterior, Monção, não esqueço: “afasto as cortinas da tarde/ porque te desejo inteira/ no poema”. Isto é sublime.

Era fascinante discutir com o poeta a sua oficina literária, a sua “ars poética”, descobrir o que o motivava, os segredos da sua carpintaria, da forma como trabalhava os seus versos. Mas também o seu ofício de exegeta sobre os outros poetas. O Luís publicaria dois poemas meus, no “Pássaro azul”, da “Gazeta”, na companhia de um poema de Sebastião Alba. Uma honra para um miúdo que se iniciava e, ainda por cima, admirador do autor de A Noite Divida. Não sei que influência teria, mais tarde, no facto de o meu livro de poesia iniciático se intitular A Pátria Dividida. Vem do Sebastião Alba? Não sei, nunca saberei. Sei que o lia, lia O Ritmo de Presságio e lia A Noite Dividida. O poema que aludi acima era inédito em livro. Um belíssimo texto – “Poema ao pai”. Tinha uma epígrafe de Constantino Cavafy, que seria uma referência poética ulterior, trazia aquele verso celebérrimo: “Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu”. O Luís Patraquim chamou-me à atenção para a beleza do poema do Sebastião Alba e para o fino recorte das imagens. A poesia é o reino das imagens. Das metáforas, sobretudo, para além da sua musicalidade. Aquele poema tinha, a meio, quatro versos notabilíssimos: “Pousa, no joelho, a mão:/ o destino permanece/ na obscuridade assim acautelada/ da palma”. Estes versos são distintos. Só um poeta da estirpe dos eleitos é capaz de algo semelhante. Desde aquela altura que leio isto e me comovo com a beleza deste poema sempre que a ele retorno. A melancolia deste poema. A melancolia é criadora. É fecunda.

Levanto-me, busco na estante o dicionário e procuro a definição de “melancolia”: “tristeza profunda e duradoira, desgosto, abatimento, hipocondria”. Para além disso, alude ao universo da medicina: “afecção mental caraterizada por uma depressão, mais ou menos acentuada, um sentimento de incapacidade, um desgosto da existência, e, às vezes, por ideias delirantes de autoacusação, de indignidade, etc.”

Por que raio escrevo eu esta noite estas notas sobre a melancolia e a criação? De onde me vem a lembrança do poema do Alba? Dá-se a circunstância de que estava aqui, a noite ia já alta, pensando num tema sobre o qual me debruçar, quando pus a tocar, ao acaso, a banda sonora do filme Era Uma Vez na América de Sergio Leone. Digo ao acaso, mas talvez não tenha sido tanto assim. Esta tarde lembrei-me, efectivamente, do filme Era Uma Vez na América. Acho este disco com a música que Ennio Morricone fez para o filme profundamente melancólico. Mas não era sobre a música do Ennio que eu queria escrever. Na verdade, quando me lembrei do meu mestre Patraquim, era para falar da crónica e do facto de ter sido ele a iniciar-me neste género jornalístico e literário, mas tropecei na poesia do Alba e na música do Morricone. Perdi-me na melancolia.

Previno: não estou melancólico. Contudo, hoje, lembrei-me do filme e, sobretudo, de uma cena em que David Aaronson (ou Noodles, a alcunha, interpretado por Robert De Niro) e Deborah Gelly (encarnada por Elizabeth McGovern, que tem uns olhos brutalmente belos) dançam “Amapola”, num restaurante à beira mar, que abrira só para eles. Escrevo isto e calha que toca agora mesmo “Amapola” e vejo aqueles passos lentos de paixão ardente e desespero, de melancolia na lenta dança do David e a sua amada de sempre, Deborah.

Este filme é genial. Vejo-o sempre com lágrimas nos olhos. É longo e complexo. Não é linear. Tem filmes dentro do mesmo filme. Sergio Leone conta a história de um grupo de miúdos amigos em Nova Iorque. Começam com pequenos roubos e acabam como verdadeiros mafiosos. 35 anos depois, o único sobrevivente retorna ao Lower East Side, de Nova Iorque, para saber o que teria acontecido e para descobrir a traição. Um filme sobre a amizade e a lealdade, companheirismo e ambição. Longo, épico, pungente. Nunca me esqueci do “Fat” Moe Gelly, interpretado pelo Mike Monetti, um puto giríssimo que cai numa perseguição e, antes de ser atingido, proclama com candura: “Escorreguei!”. Quantas vezes escorreguei na vida? – pergunto-me.

Oiço esta banda sonora magnífica e recordo-me do filme, releio versos do Sebastião Alba num poema, igualmente pungente, ao pai: “Deixa que o fumo espirale/ a um canto de ti, que envelheces, / quando o regresso das pombas/ é já cinéreo, e senta-te na pedra”, diziam os versos que antecedem aquela imagem belíssima que está na origem do tema da melancolia neste texto para além da comovente e cortante banda sonora do filme de Leone.

Melancolia, angústia, inquietação, abatimento, nostalgia, pena, consternação, saudade são outras formas de dizer tristeza. A tristeza é criadora: “Photographic memories” é uma música desta trilha. É a flauta de Gheorghe Zamfir. Toca com uma beleza contundente. Escrevi uma elegia com este título e à base deste tema, de longuíssimos versos, numa única estrofe, quando morreu o meu irmão Carmo da Conceição Saúte, que emigrado viveu com o nome de Sipho. O tema, o disco, as músicas são dilacerantes. Belas músicas, bela trilha sonora, mas intensamente melancólica. O poema está no meu livro A Viagem Profana.

Pergunto-me agora: de que trato eu verdadeiramente neste texto e esta noite? Da aprendizagem da arte de fazer poesia? Do júbilo de me ver publicado com menos de 20 anos ao lado de um poeta consagradíssimo? Da pungente melancolia dos versos de Sebastião Alba ao Pai? Da banda sonora do filme de Sergio Leone, Era Uma Vez na América, criada brilhantemente por Ennio Morricone? Da tristeza que me invadiu ao ouvir “Photographic memories” no momento em que enterrava algures, em Malelane, o meu irmão Carmo sul-africanizado Sipho? Ou tratei hoje do tema do mistério da escrita e da criação? Ou quis falar da amizade? Do meu mestre Luís Carlos Patraquim? De que falo eu quando falo de tudo isto?

Recordo-me que me sentei para redigir estas notas com a ideia de falar da crónica, género que o Luís Carlos Patraquim me incitou a praticar, era eu estudante no secundário, na Francisco Manyanga, tinha 18 anos. Escrevia na “Gazeta” a “Crónica de Carteira” e assinava com um pseudónimo – primeiro N. Marimbique e depois Nelson Marimbique. Não era imaginativo nos nomes. Contava os episódios que ocorriam nas aulas ou na escola. A minha professora Ilundi Santos um dia veio dizer-me que sabia que eu era aquele Marimbique e fulminou-me com os olhos. Foi um olhar tão assertivo que eu não tive como disfarçar. Capitulei. Ficámos amigos. Falávamos de livros. Ela lia à época Ninguém Escreve ao Coronel, do Gabriel García Márquez. Comentávamos sobre o boom latino americano. Seria do meu início na escrita que eu estava aqui a tratar? – Indago-me. As primeiras palavras levaram-me para o território da poesia porque queria situar o poeta meu amigo, a poesia levou-me para o universo da melancolia, a melancolia foi assaltada pela banda sonora que toca, outra vez esta noite, um dos temas, dos mais impressivos, que me levou, por sua vez, a lembrar a tristeza da perda de um irmão, a origem de um poema prolixo que escrevi em sua memória. E tudo isto gerou um turbilhão de imagens e lembranças.

Levado pela mão, ao matraquear do teclado deste inditoso MacBook Air – continuo a escrever com a força que imprimia nas velhas máquinas manuais AZERT -, trespassado pela flauta de Gheorghe Zamfir, que agora toca de novo, redigi este texto sonâmbulo sobre não sei o quê. Quando lia os meus mestres cronistas daquela época havia um tema a que eles voltavam quase sempre: a falta de assunto. Este texto tem assunto? Ou o seu assunto são vários assuntos? Ou ainda: o assunto deste texto é não ter assunto? Como saberei? Não sei. Ou melhor: nem me parece que queira saber.

Os mistérios da criação são vastos e inextricáveis. Fico agora prostrado a ouvir este solo de flauta. Isto é de uma beleza cruel. A beleza disto dói. Isto, como diria Rainer Maria Rilke num poema, isto é indescritível. Comprei este disco numa pequena aldeia do País Basco – Tafalla. Acordei a ouvir da rua estes sons que me eram familiares e desci em busca do CD. Aí está uma história interessante, a daquela viagem que está na origem do nome do meu primogénito, Irati, que em euskera significa resistência. Também nome de um rio e uma selva. Mas isso é mesmo outra história e já não cabe na prosa, na deriva ou no desvario desta noite. Agora tenho de parar mesmo: está a tocar, outra vez, como se fosse uma primeira vez, “Amapola” e o De Niro dança, com a paixão da sua juventude, num passo lesto e arrebatado – eu diria que está compenetrado, compungido e feliz -, como aliás devemos fazer quando dançamos com a mulher da nossa vida.

 

É quando um homem enfraquece que se percebe a força de uma mulher

Hélder Faife

Na verdade, hoje, são as recriadoras da tradição que trouxemos, portanto, uma escuta às grandes. Nesta onda, escolhemos duas moçambicanas, que, além de formosas e simpáticas, são deveras talentosas. Referimo-nos a Isabell Novella e Selma Uamusse, cantoras de alma vasta, coerentes nos seus labores artísticos.

Quer Novella quer Uamusse – mesmo a condizer com o que Otis e Jimmy Dludlu fazem há anos, por exemplo –, ao exprimirem os vários egos que têm num lugar encantado dentro de si, reservam atenção a um repertório musical moçambicano além do tempo. Por uma questão identitária ou de ordem emocional, ambas reclamam o passado que as pertence, buscando, no caso, sons que, de algum modo, as fizeram ser o que são: mulheres de vanguarda, elas também, a oscilarem entre o universal e a tradição, o princípio de uma trajectória reinventada por via das duas vozes.

É comum as novas gerações não saberem muito sobre o que de melhor se fez no país, ao nível artístico, desportivo, político e etc.. É mais comum ainda os conservadores de uma época olvidarem o compromisso de, num contexto em que a música caminha com pernas para o ar, fazerem chegar ao presente o que deve continuar no futuro. Querendo ou não, ao tocarem “Xonquile” (Original de José Barata), no caso de Isabel Novella, e “Baila Maria” (de Chico António e Mingas), no caso de Selma Uamusse, ambas as cantoras fazem da música um veículo de viagem por um Moçambique diferente deste e, ao mesmo tempo, expressam quem elas são interiormente. Cantar Barata ou Chico António é mais do que recriar a matriz de um sucesso inquestionável. Cantá-los também é distingui-los num universo de bons músicos, como Jaco Maria, na África do Sul, ou Tony Django, prematuramente perdido. Simultaneamente, essa apropriação criativa de “Xonquile” e “Baila Maria” revela que hoje, em geral, precisamos ainda mais das experiências do passado, do que foi bem feito, de modo que o precipício seja uma palavra cativa nos dicionários.

Ao cantar o seu “Xonquile”, Isabel Novella introduz na música aspectos mais alegre, dançante e técnico, claro, de modo que o tema preserve a sua identidade, mas sem fazer esquecer José Barata. Há sempre uma relação entre as duas versões – nada de problemático –, como também diferenças vocais que valorizam outras formas de cantar a mesma composição. Sem superar a versão de José Barata, a de Isabel Novella sai do texto e esbanja-se, em alguns momentos, na possibilidade de se deixar levar por outros factores que a música permite, sem dizer nada, mas preenchendo os espaços vazios e o silêncio.

Ao contrário de Isabell Novella, que canta nos padrões do original de Barata, Selma Uamusse extravasa a “Baila Maria” que conhecemos, de tal maneira que, os mais distraídos, até podem não se dar conta da recriação, e ouvirem a música como se fosse nova. O instrumental também é muito dançante, agitado e festivo. A timbila de Cheny Wa Gune ajuda, completamente, a manter esse carácter vibrante, arrepiante até. Assim, a música acaba sendo nova, sem deixar de ser velha.

Portanto, temos nestas recriadoras da tradição a renovação de obras importantes para o repertório artístico moçambicano. Ouvir “Xonquile”, de Isabel Novella, e “Baila Maria”, de Selma Uamusse, permite-nos revisitar os “esquecidos” que não devemos esquecer. E esta é uma forma bem conseguida de reproduzir a qualidade e manter-nos perto do nosso passado. Desta maneira, afastamo-nos do efémero e das banalidades sonoras que tanto ensurdecem os nossos ouvidos.

A problemática da descentralização reveste-se de certa complexidade e as questões que no processo suscita são susceptíveis de diferentes opiniões, opções ou soluções. Sem dúvida que umas menos outras mais descentralizadoras. Esta seria uma razão de fundo para a necessidade de um debate amplo que informasse as opções e decisões a tomar em cada momento por quem de direito.

A fragilidade do nosso processo reside justamente no deficit de debate público que rodeou esta problemática, pelo menos até ao envio da Proposta de Lei de Revisão Pontual pelo PR à AR. E o compasso de tempo que é agora reservado a este debate, e as circunstâncias em que o mesmo  decorre, não o facilitam, não lhe são muito profícuos.

Um dos riscos que corremos é o de precipitar conclusões sem termos esgotado as questões. Outro é o de reagirmos às opiniões dos outros, de nos posicionarmos, delas concordando ou discordando, sem termos escrutinado com rigor essas opiniões.

Não tenho que me sentir atingido ou prejudicado por isso, mais do que os outros, mas sinto a necessidade de clarificar onde me pareça não ter sido bem entendido no que pretendi expor. Assim,

I

Do n°2 do artigo 291 e do artigo293

A interpretação que fiz do artigo 293 tinha a ver exclusivamente com o afastamento do prazo estabelecido no n°2 do artigo 291, nos termos do qual «As propostas de alteração devem ser depositadas na Assembleia da República até noventa dias antes do início do debate». Considerei pertinente abordar a questão porque embora o proponente a ela não se referisse expressamente, eu tinha conhecimento de que a sua intenção, subjacente ao entendimento com a contraparte no consenso alcançado, era de que a proposta fosse agendada para ser apreciada e deliberada de imediato. E que a urgência neste caso era incompatível com a observância daquele prazo.

Portanto o que pode estar em causa é a minha interpretação do artigo 293 em conexão com o n°2 do artigo 291, e nunca, como há quem tenha entendido, com o artigo 292 (Limites materiais). Pelo menos naquela abordagem.

O artigo 293 (Tempo) estabelece que «A Constituição só pode ser revista cinco anos depois da entrada em vigor da última lei de revisão, salvo deliberação de assunção de poderes extraordinários de revisão, aprovada por maioria de três quartos dos deputados da Assembleia da República». Há uma interpretação segundo a qual esta assunção de poderes extraordinários de revisão só pode ter lugar unicamente para afastar o limite temporal estabelecido na primeira parte do dispositivo. Que teria o único sentido de excepcionar esse limite-regra, estando vinculado exclusivamente a esse sentido.

Tenho para mim que essa é uma interpretação deliberada e infundadamente restritiva da segunda parte do artigo 293. No meu entender, o dispositivo deve ser interpretado no sentido de que o limite temporal em causa só pode ser afastado em caso de assunção de poderes extraordinários de revisão. Mas não deve ser entendido no sentido de que os poderes extraordinários de revisão são assumidos com o único fim de afastar esse limite temporal. Tal seria caso o objectivo fosse o de se antecipar a revisão ordinária.

Assim, se por via de uma revisão extraordinária, se abrisse para uma revisão geral da Constituição, estaríamos perante uma antecipação da revisão ordinária.

Porém, uma revisão extraordinária não é necessariamente uma antecipação da revisão ordinária. Ela pode corresponder á necessidade de uma intervenção cirúrgica para remover, ou resolver, uma dificuldade consubstanciada em determinados dispositivos. É precisamente o caso vertente em que estamos perante uma revisão pontual. Diferentemente, no caso de antecipação de uma revisão ordinária, uma vez tomada a iniciativa pelo proponente, ela teria que estar aberta às propostas de todos os outros interessados, nos termos do n°1 do artigo 291.

O conceito e conteúdo dos «poderes extraordinários de revisão» depende das razões que justifiquem, fundamentem ou determinem a sua assunção. Portanto o afastamento deste limite não constitui, em si mesmo, a causa, ou causa única, da referida assunção.

Foi precisamente a reflexão sobre a experiência da adopção do AGP em 1992 que levou á inserção da segunda parte do artigo 293.

Com efeito, a Constituição de 1990 já estabelecia, no n°2 do seu artigo 198, o prazo de 90 dias antes do início do debate para o depósito das propostas de alteração. Por sua vez, o Protocolo VI, Do Cessar Fogo, do AGP, estabelecia, na alínea a) do n°5, que «O cessar fogo entrará em vigor no Dia E…O Dia E é o dia da adopção do Acordo Geral de Paz pela Assembleia da República, incorporando-o na lei moçambicana.»

 Daí que, quando em Outubro de 1992, o Presidente Chissano regressou de Roma, face à urgente e inadiável necessidade de imediata entrada em vigor do AGP para se pôr termo à guerra, sem exagero, pode dizer-se que desceu do avião e dirigiu-se à AR para submeter o Acordo á sua aprovação, com as incontornáveis alterações constitucionais que eram pressupostas. Embora não existisse dispositivo que acautelasse a existência de uma revisão extraordinária, na circunstância não era possível observar-se aquele prazo de 90 dias para o depósito do AGP, prévios à sua apreciação e aprovação pela AR.

No subsequente processo de revisão constitucional, que culminou com a adopção da Constituição de 2004, era inevitável ter presente essa emergência que nos levara, em 1992, a uma revisão constitucional fora da estrita conformidade com as normas da Constituição que se impunha observar.

Concluindo: a minha abordagem visava explicitamente afastar o prazo do n°2 do artigo 291 em razão da causa fundamental que é a de se alcançar a paz, e da mais que reconhecida urgência dessa causa, no caso, incompatível com o limite temporal do artigo 293 e também com o prazo do n°2 do artigo 291. Não qualquer outro motivo «oculto» ou obscuro.

II

Da natureza do sufrágio, da alínea e) do n°1 do artigo 292 e do seu n°2

A interpretação que eu faço da alínea e) do n°1 do artigo 292 também não tem a ver com algum presumível objectivo «oculto» de retirar o sufrágio directo «…na designação dos titulares electivos dos órgãos …do poder local.», no caso vertente dos Presidentes das autarquias.

Antes pelo contrário. O consenso entre o PR e o Presidente da Renamo, tal como submetido à AR, é que retira esse sufrágio directo ao estabelecer que passam a ser os Partidos com maioria nas assembleias eleitas quem designa o Presidente. Aí de facto deixa de ser o sufrágio dos cidadãos a designar o Presidente para serem os Partidos.

 Eu referi claramente, no meu texto anterior, que esta designação directa pelos partidos, «…constituiria uma alteração de todos os pressupostos em que assenta a legislação eleitoral e o funcionamento das instituições delas resultantes.» O que iria levantar «insolúveis questões…não só quanto á democraticidade desse processo, como quanto à juridicidade do mesmo para se poder inserir numa Constituição da República.»

Quer dizer que ponho em causa de forma expressa a constitucionalização de um tal modo de designação. Agora explicitando melhor o meu raciocínio, considero como matéria não «constitucionalizável», não sendo nem mesmo subsumível a referendo nos termos do n°2 do artigo 292.

Razões?

 Poria em causa o princípio fundamental, consagrado no próprio frontispício da Constituição, no n°1 do artigo 2 (Soberania e legalidade), nos termos do qual «A soberania reside no povo».

Com a designação pelos partidos a soberania passaria sem dúvida a residir nestes…Ora se a estes cabe, nos termos do artigo 74 (Partidos políticos e pluralismo), expressar «o pluralismo político..», e se «concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país», transferir para eles a titularidade do sufrágio, passando eles a designar directamente os edis ou os governadores, seria exactamente transferir-lhes a titularidade da soberania, que deixaria de residir no povo para residir nos partidos.

Isto não seria subsumível a referendo, nos termos do n°2 do artigo 292, porque violaria flagrantemente o estabelecido na alínea a) do n°3 do artigo 136, nos termos da qual «Não podem ser sujeitos a referendo…as alterações à Constituição, salvo quanto às matérias constantes do n°1 do artigo 292». Como esta alteração afectaria directamente o n°1 do artigo2 da Constituição, logo cairia na alçada da proibição desta alínea a) do n°3 do artigo 136 da Constituição. Isto é, não poderia sequer ser submetida a referendo.

Perante esta dificuldade, que se constituiria em obstáculo insuperável, definitivamente insuperável, considerando a urgência de apreciação e deliberação com que estes consensos são submetidos à AR´, apontei como única via a de se consagrar uma solução que respeitasse o conceito de sufrágio directo estabelecido na nossa Constituição, nomeadamente nos artigos 73, 135 e 275, que consistiria em se adoptar a eleição, tanto dos Presidentes das autarquias como dos Governadores de província, pelo sistema de lista com cabeça de lista, que identifica expressamente este como o candidato ao cargo de Chefe do executivo.

Este sistema salvaguarda o sufrágio directo, tal como defendi no meu texto anterior, e tal como podemos extrair do Direito Comparado. Neste ângulo, é interessante e esclarecedora a entrevista de Michel Cahen na última edição do semanário Savana.

Na verdade, e pelo que consegui colher de fontes ligadas ao processo negocial, a exigência de que sejam os partidos a designarem directamente os edis e os Governadores foi colocada pela própria Renamo, escaldada que ficou com a eleição, por voto secreto, em algumas Assembleias Provinciais dos Presidentes destas.

A eleição pelo sistema de lista, com o cabeça da lista vencedora como titular do cargo executivo, resolve, por um lado, essa preocupação da Renamo, e, por outro, respeita estritamente o conceito de sufrágio directo dos artigos 73 e 135 da Constituição da República, como procurei demonstrar. Haveria apenas que alterar o seu artigo 275 sobre o modo de organização desse sufrágio directo, para se estabelecer que não é em lista separada que se elege o Presidente da autarquia mas na mesma lista em que se elege a assembleia. Que nessas listas se elegem as assembleias, o Presidente e o Governador, mas directamente. Aos partidos, ou aos grupos de cidadãos, cabe apenas ordenar a seu critério as listas que os eleitores votam, antes da sua fixação definitiva pela CNE, tal como acontece hoje nas eleições de deputados à Assembleia da República, para os membros das Assembleias Provinciais e das Assembleias Autárquicas.

Michel Cahen considera que com esse modo de eleição se evita o risco de «bonapartismo» que se corre com a eleição «directa» tanto a nível nacional como a nível local. Acho que este é um convite à reflexão sobre os vícios da instituição de autênticos regulados, em que nós próprios já incorremos, e que nos levaram a «soluções de emergência» que muito pouco tinham a ver com democracia.

 

O poder da palavra

Quem falta morrer em acidente de viação na Estrada Nacional Número 4 envolvendo viaturas particulares e os milhares de camiões que todos os dias circulam por aquela estrada, para de uma vez por todas entendermos que a vida das pessoas vale mais que o dinheiro que podemos ganhar em toda a nossa vida?

Quase todas as semanas há pessoas a morrerem naquela estrada vital na ligação entre Moçambique e África do Sul, aliás a mesma é gerida por um consórcio de capitais moçambicanos e sul-africanos, vítimas de acidentes de viação envolvendo, regra geral, camiões pesados e de longo curso e viaturas de particulares. O mais recente envolveu um casal de jovens, recém-casados e com menos de trinta anos. O casal seguia para o trabalho quando sua viatura foi surpreendentemente colhida por um camião, o esposo perdeu a vida no local e a esposa luta pela vida no leito do hospital.

Impávidos vimos a esposa do anterior ministro das Finanças, Manuel Chang, perder a vida nas mesmas circunstâncias, para não falar de outros milhares de moçambicanos anónimos que morrem quando vão a procura do pão-de-cada-dia para alimentar suas famílias.

Não sei se existe no mundo uma estrada com o tráfego de camiões tão intenso quanto a EN4 a passar no coração de duas cidades sem quaisquer restrições. Tal só pode ter alguém que ganha todos dias avultadas somas de dinheiro com o negócio, porque Moçambique e África do Sul têm ligação via linha-férrea que é bastante para escoar o carvão, ferro e outros recursos para o porto de Maputo.

Não faz sentido que tenhamos uma linha-férrea sub-utilizada para pôr milhares de camiões na estrada e matar moçambicanos. Todos nos tornamos cúmplices daquela carnificina e eu me recuso a sê-lo.

Reitero, mas quem afinal tira lucros com a circulação de camiões na EN4? O seu dinheiro vale mais que as mortes que assistimos? Quem põe basta a esta situação? Claro que não há dúvidas que deve ser o Governo, mas onde está o Governo?

Não podemos continuar a assobiar ao lado e fingir que não vemos as lágrimas de diversas famílias que têm de enterrar seus ente-queridos perante o enriquecimento de alguém. A vida de cada um dos moçambicanos vale tanto o quanto a de quem tira ganhos com a circulação de camiões.

No centro e norte do país estão a ser investidos biliões de dólares em obras de ferrovias para escoar os recursos minerais, porquê não se faz o mesmo com a Linha de Ressano Garcia? No mínimo, se não querem perder dinheiro, que se interdite a circulação de camiões durante o dia, melhor entre as 5 horas até as 20 horas. Este facto, cria embaraços e congestionamentos, mas vale a pena isso que a vida das pessoas que se perdem naquela estrada.

Não podemos olhar para esta situação de ânimo leve, temos de nos rebelar quando pessoas morrem por causas que podem ser evitadas. A dor que abala às famílias vítimas daqueles acidentes deve ser encarada como de todos nós. E não podemos nos calar perante esta situação. Nossas estradas não podem continuar a ser corredor de morte.

Descanse em paz Nelson Chinowawa e rápidas melhoras Teresa Nunes Chinowawa. Descansem em paz todos aqueles que foram vítimas destes camiões assassinos. A vossa morte e o sofrimento de todas as famílias vítimas dos camiões da EN4 têm de nos levar a lutar por uma EN4 livre de camiões assassinos. Abaixo o dinheiro de sangue, que enriquece alguns e deixa na miséria milhares de pessoas.

 Que Deus abençoe Moçambique!

“Fujam camaradas!” – com este grito Areosa Pena, então jornalista do Notícias avisava os colegas das oficinas para um perigo eminente. Qual?

Estava-se a 7 de Setembro de 1974, seis meses após o golpe de Estado em Portugal. As movimentações entre a Frelimo e os capitães de Abril em Lusaka encontravam-se no auge. Porém, em Maputo, o grupo denominado “FICO” tinha tomado a Rádio Moçambique e o alvo a seguir era o Notícias. Os nossos cidadãos, liderados pelos democratas, haviam mobilizado os maputenses para uma greve geral, com concentração num Estádio da Machava, cheio como um ovo, com toda a gente entoado hinos do partido libertador.

Arruaça

Na altura eu era compositor mecânico – operador na máquina linotype – e não tinha bem a dimensão do que se estava a passar. Fugir de quem, de quê e porquê? A quem beneficiaria a tomada do matutino? Aos FICO ou à FRELIMO?

Pelas traseiras, com os restantes colegas, “pernas para que vos quero”, descemos as escadas, duas a duas.

O que se passava então cá fora, diante da sede do jornal?

Um considerável grupo de reaccionários à possibilidade da Independência de Moçambique, vociferava impropérios, colava cartazes e cuspia sobre fotografias do Presidente Samora Machel, atirando pedras que destruíam os vidros da fachada principal da empresa, ao mesmo tempo que colocavam de rodas para o ar todas as viaturas com o timbre Notícias. Um dos maiores pandemónios que presenciei na minha vida.

Eu e outros colegas optamos por recolher às nossas casas, tendo a edição do dia sido concluída por jornalistas e gráficos identificados com os revoltosos.

Fogo na rotativa

Retomada a “normalidade”, regressamos ao trabalho. Porém, dias depois…

A edição estava praticamente pronta para avançar para a máquina de impressão, uma rotativa de 4 corpos, quando um grupo de mascarados invadiu as instalações do Notícias. Dois dos invasores apontando uma pistola, controlavam o aterrorizado porteiro, enquanto os restantes despejavam combustível na rotativa, ateando fogo, para em seguida se porem em fuga. Bombeiros, apoiados pelos operários, com muito trabalho, acabaram debelando as chamas.

Como agora manter a tradição de fazer o jornal chegar às mãos dos leitores, honra e glória daquele matutino?

Técnicos da empresa e operários da Electricidade equacionaram o assunto. A máquina, na plenitude, operava com quatro corpos. Felizmente para nós, apenas dois haviam sido afectados. As outras unidades, com pequenos arranjos iriam funcionar.

Moral da história: num acto que considero de heroicidade por uma causa pública – imprimir, dobrar, entrecalar – o matutino acabou saindo, embora com o dobro do trabalho.

O país vivia então sedento de novidades, a pátria nascia e o tempo era de auto-estima que ficou demonstrada naquela militância… no verdadeiro sentido!

 

Antigo porto, feitoria, entreposto, desterro, presídio e até mesmo lupanar, foi a primeira capital de Moçambique, marco talassocrático do Índico, conheceu o apogeu e o ocaso, a distinção e o opróbrio, a riqueza e a pobreza. Demandada por todos, desde sultões a vice-reis, de almirantes a soldados, de mercadores a negreiros, de clérigos a sátrapas, foi através dos poetas que aprendi a amá-la e a cultuá-la. Percorrendo, sobretudo, comovidamente, a iridescente luminosidade e a melancólica obscuridade dos versos de A Ilha de Próspero de Rui Knopfli, a quem se deve a invenção da mitologia poética da Ilha de Moçambique.

Rui Knopfli: “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras. / Tudo mais são ruas prisioneiras/ e casas velhas a mirar o tédio. /As gentes calam na voz/ uma vontade antiga de lágrimas/ e um riquexó de sono/ desce a Travessa da Amizade. /Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique,/ e faço-te estes versos/ de sal e esquecimento.”

Este poema – “Ilha Dourada” – está no primeiro livro do poeta, O País dos Outros, editado em 1959, e servirá, anos mais tarde, de leit motiv para o roteiro poético que haveria de empreender. A Ilha de Próspero – Roteiro Poético da Ilha de Moçambique conheceu a luz em 1972. Poemas e fotografias do autor de Mangas Verdes com Sal, bem como um prefácio luminescente do historiador Alexandre Lobato.

Rui Knopfli: “Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo/ em que, do alto do minarete, / Alah – o grande sacana! – sorria/ aos tímidos versos bem comportados/ que eu fazia. (…) Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas, /caminhos sempre abertos para o mar,/ brancos e amarelos filigranados/ de tempo e sal, uma lentura/ brâmane (ou muçulmana?) durando no ar,/ no sangue, ou no modo oblíquo como o sol/ tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho/ com a luz da eternidade.”

Atente-se a estes versos do poema “Muipiti”: “no modo oblíquo como o sol/ tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho/ com a luz da eternidade.” São versos lapidares. Como o são os versos de um outro grande poeta, neste caso Alberto de Lacerda, que nasceu justamente na “L`isle joyeuse”, como lhe chama. O poema “A minha Ilha”, recolhido no seu belíssimo livro Exílio: “Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam/ No meio da rua como peregrinos/ Dum mundo mais aberto e cristalino.”

Estes cristalinos versos foram escritos a 1 de Março de 1963, há 55 anos, na revisitação da Ilha, que haveria de merecer outros versos igualmente luminosos: “Ó minha Ilha de Moçambique/ Perfume solto no oceano/ Como se fosse em pleno ar”, escreveria o poeta no dia seguinte. Li, fascinado, estes e outros poetas: Glória de Sant´Anna, em “Bairro Negro”: “As pequenas casas maticadas/ erguem-se de longe (de séculos, de antigas datas) / contra o mar e as ondas e as algas.” A Ponta da Ilha, sufragada em belíssimos versos de Rui Knopfli, Alberto de Lacerda, Glória de Sant`Anna, Orlando Mendes, entre outros.

Virgílio de Lemos escreveu abundantemente sobre a Ilha. Pertence-lhe, no entanto, esta formulação sinóptica do espanto: “Ilha/ que dorme na utopia/ pródigo mito/ da poesia.” Lapidar! Está tudo dito!

A Ilha como utopia. Outros versos, outras iridescências. Muito antes, a IIha concitara o estro de Tomás António Gonzaga (“A Moçambique aqui vim deportado. / Descoberta a cabeça ao sol ardente; / Trouxe por irrisão duro castigo/ Ante a africana, pia, boa gente”) ou José Pedro da Silva Campos Oliveira. Muitos anos mais tarde, Luís Carlos Patraquim ou Eduardo White, da minha geração, expenderam as suas liras cantando-a. Outros também o fizeram, descubro-o agora:  Mia Couto, Calane da Silva. Rui Knopfli acompanhou Jorge de Sena, em 1972, a uma viagem à Ilha, na qual o segundo presta tributo a Camões (“Camões na Ilha de Moçambique”, um belíssimo poema) -, o primeiro o invocara, entre a elegia aos monumentos, à rememoração das lápides, o preito às igrejas e aos minaretes, ou a alusão expressa aos ocultos filhos de Caliban, na Ponta da Ilha. “Por ali estiveram Camões das amarguras itinerantes/ e Gonzaga da Inconfidência no desterro em lado oposto.”, escreveria Orlando Mendes, em “Minha Ilha”. Campos Oliveira, Orlando Mendes e Alberto de Lacerda nasceram naquele lugar mágico.

Luís Carlos Patraquim: “Aqui me ergo, pendurado em panos às janelas, imagem de despudor sem mim. Porque aqui me esqueço do que me querem. Da história que me fizeram e fui. Olhem estas paredes que respiram! Arfam? Olhem onde não me posso esconder, no laborioso percurso das tardes jogando-me, brincando, obsessivo gerúndio doutra estória às avessas da história, onde não me vissem mais, quando me distraio, viandante de mim nos alvéolos iluminados do tempo.”

Luís de Camões cita-a pela primeira vez em língua portuguesa na sua egrégia obra – Os Lusíadas: “Esta ilha pequena, que habitamos, / É em toda esta terra certa escala/ De todos os que as ondas navegamos, / De Quíloa, de Mombaça e de Sofala, / E, por ser necessária, procuramos, / Como próprios da terra, de habitá-la; / E, por que tudo enfim vos notifique, / Chama-se a pequena ilha – Moçambique.”

Reli recentemente toda a obra poética de José Craveirinha e descobri uma referência à Ilha muito antiga: (“ambos entristecidos ao galope de pés humanos/ sem ferraduras mas puxando riquexós/ só de ver puxar nós também puxamos/ nas transpiradas ruelas antigas/ da Ilha de Moçambique”). Tinha na memória “O Mote de Camões”, mas no poema “Canto do nosso amor sem fronteira”, a que pertencem os versos citados, Craveirinha alude à Ilha. “O mote de Camões” perfaz, por assim dizer, o diálogo magistral entre dois dos insignes cultores da língua portuguesa e da Ilha de Moçambique.

José Craveirinha: “Exausto/ de insónias/ peço ajuda ao bom Luís Vaz de Camões.// O então malquisto exilado português de Muipiti/ senhor de ínclitos dotes na arte do soneto/ generoso empresta-me seu método/ de falar com os bruxos/ no ambíguo tempo/ dos homens”.

“A Ilha dos Poetas” é o título de um poema meu antiquíssimo no qual tentava homenagear, no entusiasmo juvenil que me movia, os grandes poetas que tinham, antes de mim, escrito sobre a Ilha de Moçambique. Foi Luís Bernardo Honwana que me lançou o repto, de co-organizar, com o António Sopa, A Ilha de Moçambique Pela Voz dos Poetas, antologia poética sobre a Ilha de Moçambique. Aquela lírica empreitada permitiu-me alargar o meu parco conhecimento da aventura poética que a Ilha desencadeara. Circunscrevemo-nos a textos de língua portuguesa, aduzindo-lhes parco material em língua inglesa e duas ou três canções macuas. Havia, e provavelmente persiste, uma visão lacunar sobre a Ilha de Moçambique. Há um quarto de século, quando trabalhei sobre a Ilha, tinha a esperança de que uma recente proclamação da UNESCO, como património da humanidade, haveria de franquear-lhe outras possibilidades para o seu destino. Escrevi então no prefácio do livro: “A notícia de que a Ilha de Moçambique agonizava na modorra do tempo e sob as adversidades que obstam ao incremento de um projecto de sociedade na minha pátria sempre me derrotava num impotente dilaceramento. Mas o conhecimento de que esta fora proclamada recentemente património da humanidade pela UNESCO reacendeu em mim essa crença (já obscura) de que aquelas ruínas, que amortalhavam o monumento singular da nossa identidade, teriam remissão”. A esta distância, creio não estar longe da verdade se asseverar que esse destino persiste improficiente ou essa possibilidade adiada, como são adiadas as nossas mais obstinadas esperanças. A sagração da Ilha nunca foi, por conseguinte, ao arrepio do seu abandono. Antes pelo contrário, actuou como consciência de que era precisa fazer algo. Também por isso, esta alusão, esta celebração, não pode nem deve ignorar quem lá habita.

Não cultivava, a despeito, a veleidade de que aquele livro ou um outro qualquer pudesse fazer muito para intervir directamente no melhoramento da vida daqueles que lá remanescem, nem esse era o seu escopo, mas tenho a ilusão (uma vez mais) de que talvez tenha tinha do lastro que lançou sobre o génio dos poetas alguma benesse.  Li recentemente muitos outros poetas que sobre a Ilha se debruçaram: um poema de Mia Couto ou os versos de Calane da Silva, também eram inéditos para mim. Conhecia o fascínio do Eduardo White, o seu conhecido encantamento pelo Oriente, e nessa busca ele não ficara incólume ao fascínio pela Ilha de Moçambique. Segue-se-lhe Sangari Okapi, entre outros. Hoje abundam textos sobre a Ilha, da época em que organizámos aquela antologia – cotejamos, certamente, os nomes mais importantes e que ainda hoje permanecem – mas agora podemos ter o benefício de poetas mais jovens.

Eduardo White: “Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que ao Norte e na Ilha traz um amante inconfortado. Em tudo habita ainda a tua imagem, o m'siro purificado da tua beleza e das tuas sedes, a rosa dos ventos, o sextante dos tempos, em tudo acordas de repente como se ardesses naus, garças, águas, ouros, pratas, vagas, escravos ausentes, tudo o que esta Ilha que ao Norte, nos pode lembrar. Deito-me, assim, sobre o Sol com a praia funda em meu pensamento.”

Eduardo Pitta escreveu sobre a Ilha e não sei explicar a sua exclusão na nossa antologia, nem em recolhas ulteriores. Pertencem-lhe estes belos e melancólicos versos: “Aqui fazemos o circuito/ inevitável das coisas ociosas/sem sentido.”. Pitta, nascido em Lourenço Marques, é assumidamente poeta português. Isso não seria razão bastante para não incluí-lo. Camões, antes de todos, está representado. À época não tinha sido escrito o belíssimo poema “Áfricas”, do meu amigo Luís Filipe Castro Mendes – incluído no seu livro Modos de Música, senão estaria certamente antologiado. Lembro-me de conversarmos sobre o maravilhamento comum da Ilha aqui há muitos anos. Como me recordo da conversa emocionada com o Francisco José Viegas, que a visitou depois e escreveu um belíssimo texto sobre ela. Castro Mendes ou Francisco José Viegas são dois nomes importantes da literatura portuguesa. A Ilha não é, por conseguinte, apenas património poético nosso. O notável poema, que nobilita a Ilha, e que a seguir transcrevo, demonstra que a Ilha pertence a todos.

Luís Filipe Castro Mendes: Não se faz da memória um novo amor, / por isso nada em mim te procurava. /Não te sonhei sequer quando criança, /teu nome não brilhava como estrela.// Porque amor é só feito de surpresa, /mais nos agarra quando nunca o vimos. /Para mim teu país no mapa era/ uma confusa mancha de incerteza. // A guerra, a solidão, fim do Império, / vieram dar o rosto da tragédia/ ao que eu nunca sonhara como história // que fosse pessoal. Coube-nos todo/ este peso da História e esta surpresa/ de te reconhecer como eu respiro.”

Paixão adolescente, memória ou novo amor, canto sem fronteira, paraíso onde os cães não ladram, e as crianças brincam como peregrinos, exílio ou refúgio perdido, utopia, demandada por todos, disse-o, desde sultões a vice-reis, de almirantes a soldados, de mercadores a negreiros, de clérigos a sátrapas, esta Ilha convoca e invoca uma sintaxe poética marcada pela exuberância das suas cores, pela beleza das suas mulheres ou pela alegria das suas crianças, e pela nostalgia das suas sombras, das suas ruas, onde o sol toca as coisas ferindo-as de mansinho, com a luz da eternidade, ou na cidade de Macúti – permitam-me a exorbitância da linguagem – onde não se pode obliterar as precárias condições de vida de muitos que nela habitam. Lugar de encontro, portanto, onde se fala árabe, swahíli, macua, português, eu sei lá…! lugar da diversidade e, não raro, da adversidade, utopia, disse-o, mas também distopia, hierático mosaico cultural moçambicano, sempre por descobrir e celebrar. Ilha de poetas, de grandes poetas, digo. Se a Camões, que nela se atardaria dois anos, pertence a primeira citação na nossa língua, devemos, sobretudo, a Rui Knopfli e ao seu nobilíssimo A Ilha de Próspero (reitero) esta singularíssima mitologia poética que se engendrou à volta Ilha: “À nossa volta sobram os templos e os deuses.” (Knopfli dixit.)

Termino, este texto redigido ao som de Mama Mosambiki, dos Eyuphuro, e com a poderosa e melancólica voz de Zena Bacar, citando uma canção popular, numa versão livre em português, a partir de uma transcrição em macua, ambas estão na aludida antologia A Ilha de Moçambique Pela Voz dos Poetas: “De longe esta Ilha parece pequena/ Esta Ilha é grande. / Tem longa história desde os habitantes aos seus monumentos/ Não nos é possível contar-vos tudo quanto temos/ Pois há outros que querem também falar-vos/ Se ainda quereis ouvir algo nosso/ ficais muito tempo nesta Ilha. / Assim mostrar-vos-íamos a rua de fogo/ aonde vós nunca chegastes.”

 

Introdução

Depois de tanta incerteza, também ditada pelas circunstâncias próprias do diálogo e das negociações, chegou-se a um ponto em que foi possível tornar públicos alguns consensos e submete-los à AR.

O aspecto que me parece transcendente é que finalmente se deu um passo significativo, na medida em que se definiu a direcção e o objectivo a alcançar. Pelo que doravante não se vai mais discutir se avançamos ou não com a descentralização. O que se pode e deve discutir agora são as formas, o grau e o ritmo do processo.

Por isso me parecem precipitadas, ou excessivas, as críticas que proclamam tratar-se de um total retrocesso da democracia.

Penso que devemos ter uma perspectiva crítica, esse é um direito e um dever, porque afinal estamos a discutir o nosso próprio futuro, o que queremos ser e como queremos ser. Daí que todo o cidadão tem direito á palavra.

Por razões que todos gostaríamos de poder escrutinar, não houve, infelizmente, uma fase de socialização desta problemática, nem nos partidos nem na sociedade em geral.
Mas como o debate na AR é o momento em que se vai proceder ao «aprimoramento» ou «aperfeiçoamento» do documento submetido, é nesse compasso que a sociedade tem oportunidade de contribuir no debate, fazendo ouvir a sua voz, melhor, as suas vozes, às quais certamente os deputados estão e estarão atentos.

É neste espírito e contexto que junto a muitas outras opiniões a presente abordagem.

Das muitas questões que a Proposta de Lei de Revisão Pontual da Constituição submetida à AR pelo PR, no dia 9 de Fevereiro de 2018, tem suscitado, considero necessário, pela sua importância crucial, destacar três, de cuja solução depende a garantia de uma revisão juridicamente coerente e democraticamente aceitável. Trata-se das seguintes questões:

1.    A questão da observância ou não do prazo do nr°2 do artigo 291 da Constituição;
2.    A questão da necessidade ou não da dupla revisão;
3.    A questão da composição dos Governos Provinciais, dos Governos Distritais e dos Conselhos autárquicos.

I
Da observância ou não do nr°2 do artigo 291
O nr°2 do artigo 291 fixa um prazo de 90 dias, antes do início do debate, para o depósito das propostas de revisão. A aplicar-se este prazo ao caso vertente, o debate só poderia ter lugar em Maio, provavelmente depois, ou então em cima, do encerramento da sessão da AR, com o risco de sobreposição com os prazos do calendário eleitoral.

Porém, esta questão só é suscitada pelo erro na indicação do dispositivo aplicável ao caso. Com efeito nós estamos perante uma proposta de revisão, a um tempo pontual e extraordinária, a qual deve ser feita, não ao abrigo do nr°2 do artigo 291, mas ao abrigo da segunda parte do artigo 293 (Tempo). Portanto o que a AR deve fazer é assumir, por via de deliberação, os «poderes extraordinários de revisão, aprovada por maioria de três quartos dos deputados da Assembleia da República» tal como previsto neste dispositivo.  
Assim, este é um falso problema.

II
A questão da «dupla revisão»

É pacífico que qualquer revisão constitucional deve fazer-se com observância da própria Constituição. Uma vez que a Constituição estabelece limites materiais ao poder de revisão, estes deverão ser respeitados sob pena de inconstitucionalidade. Salvo se, previamente, e antes de a AR entrar na apreciação e deliberação sobre a presente proposta, proceder á alteração dos limites materiais que a obstaculizem.
Porém, ainda, no nosso caso a Constituição estabelece, no nr°2 do artigo 292, que as alterações aos limites materiais «são obrigatoriamente sujeitas a referendo». Assim, o referendo afigurar-se-ia como uma barreira intransponível, pelo menos em tempo útil, para a viabilização da presente proposta de revisão.
Contudo, para entendermos a natureza da dificuldade com que nos confrontamos e o seu carácter, superável ou insuperável, temos que lançar mão de elementos extra-constitucionais que levam, neste caso, a relativizar o próprio texto da Constituição. Assim,

1.    O presente texto da Constituição formalmente resulta de um processo de revisão, tendo sido adoptado por uma maioria de dois terços dos Deputados da AR.
2.     A AR que adoptou o presente texto não foi uma Assembleia Constituinte eleita para o efeito, mas foi a Assembleia ordinária assumindo poderes de revisão.

A questão, que é imperioso colocar, é: se a presente AR tem precisamente os mesmos poderes de revisão que aquela que adoptou a Constituição de 2004, isto é, nem mais nem menos poderes, como se pode tomar como intransponível uma condição que funciona como um super-limite, na medida em que cobre todos os outros limites? Que funciona como imposição de uma limitação aos poderes de revisão da actual AR que, como disse, tem exactamente os mesmos poderes da AR que em 2004 adoptou a presente Constituição?

Tal só seria admissível se aquela AR de 2004 tivesse sido uma Assembleia Constituinte, eleita como tal, ou, não o sendo, tivesse submetido a referendo o texto constitucional.

Não se tendo verificado nenhuma das referidas circunstâncias, forçoso é concluir que a presente AR pode alterar, tanto os limites constantes do nr°1 do artigo 292( o que, aliás, tem sido a prática em relação à Constituição Portuguesa, matriz da moçambicana) , como o próprio nr°2 desse dispositivo, sem o condicionalismo do referendo, em processo de revisão prévia ou autónoma.

III
Da desnecessidade de «dupla revisão»
Sem prejuízo de quanto acaba de ser dito, a suposta necessidade de se proceder por via de uma «dupla revisão», como condição para se avançar com a presente Proposta de Revisão, decorre de se considerar que a alteração do modo de eleição dos presidentes dos municípios, da actual «eleição directa», nos termos do nr°3 do artigo 275 da Constituição( o qual estabelece que «O órgão executivo da autarquia é dirigido por um Presidente eleito por sufrágio universal, directo, igual, secreto, pessoal e periódico dos cidadãos eleitores residentes na respectiva circunscrição territorial»), para uma eleição por via da Assembleia da autarquia, violaria o limite material estabelecido na alínea e) do nr°1 do artigo 292.
Vejamos o que estabelece esta alínea e), a saber:
«As leis de revisão constitucional têm de respeitar:
………………………………………………………………………………..
e) o sufrágio universal, directo, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania das províncias e do poder local;»

Para dissipar equívocos desnecessários esclareça-se desde logo que «titulares dos órgãos» são o PR, os Deputados da AR, os membros das Assembleias Provinciais, os membros das Assembleias autárquicas e os Presidentes das autarquias.

Ora os cidadãos exercem o direito de sufrágio, nos termos desta alínea e), tanto quando votam em boletins separados, um para a Assembleia e outro para o candidato a Presidente do Município, como quando votam num único boletim e numa lista para todos os titulares. O que se exige neste último caso é que haja a clara e explícita individualização de quem no boletim de voto é o candidato a Presidente. E universalmente a forma de designação do candidato, neste caso, é por via do cabeça-de-lista. Mas isso tem de constar imperativamente na própria Constituição. E nesse caso continuamos a ter «sufrágio universal, directo, secreto, pessoal…»

Tanto assim é que não ocorreria a ninguém considerar que o sistema vigente na RAS, nos EUA, em Angola ou nas autarquias em Portugal, não respeitasse o princípio do «sufrágio universal, directo, secreto, pessoal…», quer porque, nos casos da RAS, de Angola e das autarquias em Portugal (vejam-se no caso de Portugal, o nr°3 do artigo 239 e a alínea h) do artigo 288 da Constituição), sejam os cabeças de lista, quer porque, nos EUA, seja um colégio eleitoral eleito pelos cidadãos a designar o Presidente!

Portanto a alteração, se for feita nos termos aqui expendidos, rigorosamente não viola a alínea e) do nr°1 do artigo 292, porque a eleição não deixa de ser directa (contrariamente ao equívoco que se está a generalizar sobre o que é uma eleição directa…). Apenas altera o modo como se organiza o sufrágio, sem lhe retirar os elementos essenciais contidos naquela alínea e). Mas, no caso vertente, constando o modo específico de organização do sufrágio no nr°3 do artigo 275 da Constituição, haveria sim que se alterar este dispositivo, sem necessidade de se mexer nos limites materiais, logo sem se enveredar pelo mecanismo da «dupla revisão».

O que já não colhe se forem os partidos com maioria nas Assembleias a designarem directamente os Governadores ou os Presidentes dos Municípios, independentemente da ordem em que estiverem nas listas submetidas à CNE e tornadas públicas. É preciso ter presente que estas listas, uma vez aprovadas e publicadas pela CNE, são inalteráveis durante todo o processo eleitoral e durante todo o mandato dos órgãos eleitos.
Pelo que, nesta hipótese de designação directa pelos partidos, que constituiria uma alteração de todos os pressupostos em que assenta a legislação eleitoral e o funcionamento das instituições delas resultantes, seria inevitável a «dupla revisão». E não vou discorrer aqui sobre as insolúveis questões que se levantariam não só quanto á democraticidade desse processo, como quanto á juridicidade do mesmo para se poder inserir numa Constituição da República.
IV

Da composição dos Governos Provinciais
A questão da composição e do funcionamento do Governo Provincial, na Proposta designado de «Conselho Executivo Provincial», está omissa, levando a pensar que é tacitamente remetida á lei ordinária.

Considero que a ser assim, tudo continuará a passar-se como até aqui, isto é, tal como nas autarquias com os Presidentes dos Municípios, o Governador que sair das eleições, irá designar a seu critério os restantes membros do Governo. Do que vai resultar invariavelmente uma composição monopartidária, independente da composição pliuripartidária da Assembleia respectiva.

Ora, a ser assim, não se terá dado absolutamente nenhum passo para a inclusão de que tanto se fala, nem se terá criado o espaço de convivência e coabitação que é essencial para a reconciliação. O critério do «the winner takes all» é por definição excludente, não abre caminho nem á inclusão e ainda menos á reconciliação. E está visto que estas questões, enquanto ficarem apenas dependentes da boa vontade das pessoas, não passarão de meros discursos sobre inclusão e sobre reconciliação.

É imperioso que a Constituição e as leis estabeleçam as balizas fundamentais que nos levem a realizar a inclusão e a reconciliação.

Com efeito não faz sentido que numa Província em que um partido elege o Governador, porque ao nível da Assembleia ganhou 51% dos assentos, ficando os restantes 49% com os outros partidos concorrentes, o Governo seja constituído apenas pelo primeiro partido.

A este nível é do interesse de todos os partidos, e dos cidadãos em geral, que na composição do Governo esteja reflectida de forma proporcional a composição da própria Assembleia. Assim a governação ao nível provincial, distrital e autárquico, reflectiria a situação real de cada um desses níveis, na sua complexidade e diversidade.

Certamente que para se viabilizar a governação poderá haver a necessidade, e em função dos resultados eleitorais de cada lugar, de fazer coligações pós-eleitorais. Isto é o que decorre da descentralização e da autonomia, porque a descentralização não é meramente administrativa: é descentralização política, e como tal, a diversidade política reflectir-se-á na vida das instituições dela resultantes.

Só nestas condições fará sentido afirmar que «o País não será o mesmo», para significar que teremos uma nova maneira de fazer a política no nosso País. Uma maneira verdadeiramente nova, aberta à inclusão de todos e à reconciliação entre todos os moçambicanos.

Por isso, não bastará, a meu ver apenas consagrar o sistema de lista e do cabeça de lista. É preciso pôr de lado o critério de que ganha quem tiver maioria absoluta, isto é, mais de 50%. Um partido, ou grupo de cidadãos, podem ganhar com uma maioria relativa. A solução não é ir-se a uma segunda volta, num oneroso «tira-teimas» (imagine-se o cenário, não numa autarquia, mas á extensão de todos os distritos e autarquias do País) … A solução é negociar uma solução pós-eleitoral que viabilize a governação. Negociar a coligação a que nos referíamos atrás.

Ao entrarmos nesta nova fase do processo de descentralização é preciso termos consciência de que não é um processo instantâneo, que se desencadeia num momento e, logo no momento seguinte, se chega ao estágio final dessa fase. A questão que é inevitável abordar é sobre o regime de transição, que é preciso definir, entre  a Revisão da Constituição e a implementação completa de todas as implicações desta fase da descentralização. Por exemplo, sobre a designação dos membros do Governo Provincial, entre a situação actual e a que vai prevalecer com a conclusão da implementação da descentralização a esse nível. Ou, no que se refere aos distritos, entre a situação actual e a que vai prevalecer em 2024 (ou 2023…). Esta questão é inadiável, deve ser abordada agora e têm que ser definidos agora os princípios desse regime de transição de forma que, desde já, a mudança se comece a verificar, e a descentralização não fique vazia de conteúdo.
Dada a complexidade desta questão é de se considerar a adopção de uma lei de transição e de gestão da transição, criando-se uma Comissão de Implementação ou de Monitoria do processo, eventualmente integrada também por personalidades de fora dos partidos, para se reduzir a margem de manobra ou de controvérsia partidária.

Então, fazer descentralização para configurar o País do futuro, não para reproduzir o País do passado, não para reproduzir indefinidamente as fontes de todas as conflitualidades que nos dividem e que nos armam uns contra os outros, eis a dimensão do desafio que a todos se nos coloca.

 

 

 

Ali está a Augusta. Pela justiça dos olhos parece uma moça normal. É uma ruína humana escura habitada por corvos de incerteza e fungos de medos. Pela manhã, a Augusta, lava o branco da sua dentadura com intervalos com uma escova, borda o rosto com o colchete das suas tintas, esconde a gordura das bochechas com pequenos remendos de sorrisos, prende o tecto do seu cabelo com pregos de rolos, pinta com um pincel a rolo as paredes dos lábios e desenha interjeições nas suas sobrancelhas; e vai à casa do namorado.

Em casa do namorado ouve “Olhos Sonhadores” de Doppaz enquanto ele rasga-lhe suavemente os seios com as unhas de desejo. A cama do namorado é um mar; seus corpos barcos perdidos sem tripulantes. O corpo da Augusta nu é a ração humana que alimenta o leão que vive nos gemidos do namorado. Os brincos dela amassam-se na cabeceira com o tic-tac do relógio do namorado; o seu sutiã adormece no ronco do chulé das peúgas do seu namorado. Amam-se de dia porque de noite Augusta entrega as latitudes da sua nudez a um geógrafo oculto.

Já é noite. Augusta o sela o seu sorriso com um beijo no portão da casa do namorado. Assim toda a inspecção masculina, na rua, não terá espaço.

Chega à casa; a avó ajuda-lha a arrumar-se: limpa os dentes com raízes secas, as lágrimas são os pincéis que limpam a maquilhagem no rosto, suas bochechas calçam rugas de amargura, prende o cabelo com um pedaço de um tecido vermelho, os colares caiem e amuletos crescem nos seus pulsos e enfeita o pescoço com um colar de ossos e moedas com sangue.

A batucada cresce dentro dela. “Minha neta uma dia isso vai acabar”. Avança Augusta para a palhota com lâmpadas de escuridão. Semi-nua arranja a esteira velha com o lençol lavado pela curandeira. Varre o quarto enquanto entoa as canções que o seu marido da noite gosta. Lembra-se que os mortos têm pressa. Deita o seu corpo e faz sonho com seus bocejos de impaciência. Seus seios são duas gotas de cera descendo na vela do seu corpo. Dorme enquanto aguarda o seu marido espiritual.
 

 

Nasceu a 15 de Fevereiro de 1924, na vetusta Lourenço Marques – passam hoje 94 anos -, morreu a 11 de Junho de 2009, aos 85 anos. Era conhecido, sobretudo, como fotógrafo – repórter fotográfico ou fotojornalista -, dos mais talentosos que Moçambique viu nascer. Chamava-se Ricardo Achiles Rangel. Tinha origem afro-asiática, filho de enfermeiros, o que lhe permitiu deambular por muitas províncias do país. Viveu também com a sua avó negra durante grande parte da sua juventude. Desde muito cedo que tinha a paixão pela imagem, o que fez dele, mais tarde, um grande fotojornalista, com um olhar sublime, não só para a bitola do país, mas ao nível do continente africano. As suas fotografias, os instantes que capturou são surpreendentes e reveladores. Ele ajudou a fazer o primeiro rascunho da História numa determinada época, história de grande parte do último quartel do século XX moçambicano. A despeito, cultivava outras paixões e hoje, ao recordá-lo, quero referi-lo como amante vigoroso de jazz. Assinalo, porém, que fui editor de dois dos seus livros: Pão nosso de cada noite, título dado pelo José Craveirinha, que lancei na Marimbique, em 2004, e, em 2014, justamente dez anos depois, iria publicar Ricardo Rangel: Insubmisso e Generoso, edição coordenada pelo ínclito Luís Bernardo Honwana, numa iniciativa da Henny Matos, da Kulungwana. A despeito do título, pilhado do seu livro, quero falar do jazzista. Aliás, seria despiciendo argumentar que na Rua Araújo também se ouvia jazz, blues, marrabenta, entre outras expressões musicais. Há belíssimos poemas, desde o Reinaldo Ferreira ao José Craveirinha, sobre as bêbadas, lascivas e estereofónicas noites daquela rua onde esplendiam os seus lupanares e as personagens que a fizeram.  

Foi através de um marinheiro – dos muitos que expendiam os seus dias em Lourenço Marques -, oriundo de frotas que protegiam os comboios navais da rota da Cidade do Cabo, que Ricardo Rangel se ria defrontar com uma das suas paixões electivas – o jazz. A sua “afición” pelo jazz é lendária. Foi um jazzista exemplar sem tocar um único instrumento. Foi também um coleccionador impenitente de LP de jazz. Impenitente e intransigente, digo. Talvez seja o moçambicano que mais discos de jazz de 78 rotações deteve. Conhecia – até pessoalmente – alguns dos maiores jazzistas da sua época – de todas as épocas. Posso dizê-lo – e isso não significa nenhum afoito – que Ricardo Rangel é um dos responsáveis pela introdução e disseminação do jazz em Moçambique. Aqui está outra dívida que o país tem para com ele.

Ricardo era um rebelde, um iconoclasta, não abdicava de intervir, rebelava-se contra a injustiça, denunciava-a, um homem probo (lá está um vocábulo raro no dicionário da nossa contemporaneidade!), um repórter genial, absolutamente genial. Cartier-Bresson, que fundou em 1947 a famosa agência Magnum, com Robert Capa e outros, falava no “instante decisivo”, como um dos fautores da História. As imagens do Ricardo são-no cabalmente. Tem fotografias que estão nos anais da História. Instantes brutais. Fotografias corajosas. Ter convivido com ele, a despeito do seu génio difícil, foi um dos privilégios da minha vida. Ouvir as histórias que estavam na origem daquelas imagens inolvidáveis. Por vezes, era colérico. Irascível. Abominava o que era mediano. Vi-o muitas vezes vituperar a mediocridade que grassava – e grassa ainda hoje! – na nossa pátria, desde o paupérrimo jornalismo que se praticava, ou se pratica, à ausência dele – dizia-me o Ricardo que o jornal “Notícias” se tinha transformado num jornal de anúncios classificados. Vociferava, zangado, contra o estado das coisas – o lamentável estado das coisas, digo eu. Muitas vezes, fui testemunha de conversas entre ele e o José Craveirinha, ali na Mafalala, na casa do Poeta – tantas vezes na companhia do inesquecível amigo Dr. Óscar Monteiro (o médico) -, algumas das quais, absolutamente hilariantes – então sobre os malefícios da idade nos homens, nem vos falo! Era um grande conversador. Um homem enfático. Um homem que sublinhava as coisas. Um homem vigoroso. Obstinado. Sempre insatisfeito com o que fazia, procurava superar-se. Sabia ser afectuoso. E era-o.

Recordo que o Ricardo Rangel tinha um grande prazer na vida, em viver a vida. Recordo-me do seu riso, da sua expressão, dos seus olhos orientais enquanto ria. Dos zigomas marcados no rosto. Tinha alegria e vivia com alegria e isso não contradita em nada com o homem, por vezes ríspido, que nos confrontava profissionalmente. Era doce no convívio. Não esqueço uma festa em casa dele, uma festa de anos, com bom jazz, vinho e a vista sobre o Índico, somado a isso as suas magníficas histórias. Era um belíssimo contador de histórias. Um repórter conta histórias e ele foi-o toda a vida. Deve ter-lhe custado horrores a última fase, quando teve amputada uma perna. Mas não ficou em casa. Continuava a dirigir o Centro de Fotografia que fundara, tendo a mulher, Beatrice, como braço direito. Aliás, quando o Mestre morreu, foi ela quem o substituiu na direcção daquele Centro – agora também afastada pela doença. Eu fui frequentador do Centro. Ali admirava o país, as suas metamorfoses, as suas idiossincrasias. Ali organizei alguns livros de fotografia. O Ricardo um dia ofereceu-me uma fotografia, da série que eu viria a editar, de uma mulher, cujo olhar melancólico atinge-me, com contundência, ainda hoje. Uma mulher de uma beleza incrível, de vestido e gabardina, com a mão esquerda na cintura, na Rua Araújo – hoje Bagamoio, rua que frequento amiúde, em horário diurno (sublinhe-se) pois nela se situa uma das melhores tascas da baixa, onde um orgulhoso ferroviário, como eu, pica o ponto ao almoço. Aquela imagem daquela mulher ainda hoje me dilacera e, quando percorro aquela rua melancólica, recordo-me daquele seu olhar tímido e penetrante, no entanto perturbador. Naquele olhar ressoava um velho blues. Naquele olhar ficou inscrito um gesto de amizade do Ricardo. Guardo a fotografia e a dedicatória.

Alguma da nossa “tradição” (à falta de melhor termo) jazzística devêmo-la a ele – disse-o e repito-o. Foi um activista do jazz, divulgou-o, organizou sessões de jazz ao vivo, comentou o estilo musical na rádio, num programa remoto com o John Marley, foi um comprador compulsivo de discos de jazz, viajou ao encontro dos seus mitos, esteve com Dizzy Gillespie, Miles Davis, Theleonious Monk, Ornette Colleman, entre outras legendas do jazz. Fotografou-os. Os lugares de culto de jazz nesta cidade guardam a sua presença: o Topázio, o Zambi, o Sanzala, o restaurante da Costa do Sol ou a Princesa, ou até mesmo o Espaço Arco Íris do pintor Noel Langa, na mítica Munhuana da minha infância, ou no Chez Rangel, na velha e hierática estação dos Caminhos de Ferro, na baixa, onde labuto. A sua presença, em todos os lugares, era inspiradora. Incondicional do Bebop, conhecia os mais diversos estilos de jazz. Como ninguém.

Memphis Slim (pianista, blues man americano – morreu em 1988), Chris McGregor (compositor e pianista) e Dudu Pukwana (saxofonista), ambos sul-africanos, desapareceram no mesmo ano (1990) ou Dollar Brand (hoje Abdulah Ibrahim, que encontrei aqui há tempos e com ele falei brevemente no aeroporto de Joanesburgo, sob o olhar espantado da minha filha que nos tiraria uma fotografia), quando visitaram Moçambique e aqui tocaram, cumpliciaram com Ricardo Rangel. Dollar Brand, aliás Abdullah Ibrahim, descobriu em casa do Ricardo Rangel um exemplar do seu primeiro disco, que ele próprio não possuía. Não o vi tocar, mas ouvia “Mannenberg” obsessivamente. Era o hino anti-apartheid e isso diz muito à minha geração. Só muitos anos depois, em Joanesburgo e na Cidade do Cabo, eu iria ver tocar o legendário pianista.

Estranhamente, ou por timidez, ou por algum complexo, não sei, no meu longo convívio com ele, falei pouco de jazz com o Ricardo. Dou-me conta hoje de que gostava de ter conversado com o Ricardo Rangel sobre o deus do trompete Miles Davis, ou sobre o pianista Count Basie, o trompetista Dizzy Gillespie, ou sobre o pianista Theleonious Monk e do seu genial “Hacksensack”. Ter-lhe-ia perguntado sobre Herbie Hancock, o que ele achava de “Maiden Voyage” ou “ Cantaloupe Island”. Vi-o tocar. Como vi Ron Carter tocar “So What”, em honra do velho Miles. Ambos foram companheiros de Davis. Como foi do jovem Marcus Miller: oiço-o tocar “Full Nelson”, “Tutu”, “Gorée” e, sobretudo, “Maputo”. Poderia ter perguntado sobre outro genial saxofonista – John Coltrane (sou indefectível de “Naima” ou “Blue Train”). Ou de Bill Evans, outro exímio pianista que tocou com Miles em Kind of Blue. Poderia ter ouvido com ele “Take Five”, de Paul Desmond, tocado pelo quarteto de David Brubeck, ou Dizzy Gillespie e Thelounious tocando “A Night in Tunisia”. Ou mesmo Miles, do “All Blues”, cujo som me espantou em pleno passeio na Greenwich Village, em Nova Iorque, certa vez. A minha memória de Nova Iorque é o trompete de Miles Davis. Que ele achava de Billie Holiday a cantar “You´re my Thrill”, ou Nina Simone em “I loves you Porgy”. Tê-lo-ia ouvido falar de “St. Louis Blues” na voz de Louis Armstrong. “Take the a Train” na gravação de Duke Ellington. Queria tê-lo ouvido falar das composições de Cole Porter ou de George Gershwin. Haveria muito para ouvir dele. Não o fiz por acanhamento. Diante de um vulto tão grande ficamos paralisados e não sabemos discernir. Nunca discuti ou falei de poesia com Craveirinha, ou com Knopfli, ou com Noémia. Falávamos das coisas banais da vida e eu ouvi-os com denodo. Não me permitia pôr-me em bico de pés e querer discutir literatura com eles. Foi assim também com o Ricardo. Como discutiria jazz com ele? Bastava ouvi-lo e agradecer essa benesse.

Um dia, contou o Ricardo Rangel ao falar do seu encontro com os magos do jazz, estivera num espectáculo, em Portugal, nos anos 70, onde o contrabaixista americano Charlie Haden dedicou a sua “Song for Che” aos combatentes pela liberdade em Angola, Moçambique e Guiné, o que originou a sua prisão no aeroporto de Lisboa no dia seguinte. Esse episódio é mítico e seria lembrado quando Haden morreu em 2014. Na época da minha conversa com o Ricardo Rangel eu ouvia “Nocturne” e não me atrevi a dissertar sobre aquele outro vulto do jazz que inspirava as minhas noites nos anos 90. Poderia ter falado da minha paixão pela bossa nova e por António Carlos Jobim. Ou do encontro de Jobim e Frank Sinatra. Eu ouvia Abbey Lincoln (regresso amiúde a “A Turtle´s Dream”), Dianne Reeves, Diana Krall, Dee Dee Bridgewater, entre tantas outras. Não lhe falei delas. Hoje eu falaria do americano Gregory Porter, do camaronês Richard Bona, da norueguesa Inger Marie, da brasileira Luciana Souza, do cubano Roberto Fonseca ou do americano Kenny Garrett. Ou da Lizz Wright ou da Norah Jones ou da Esperanza Spalding.

Enquanto faço esta breve evocação do meu bom amigo Ricardo Rangel – porque a vida permitiu-me o privilégio de ter entre amigos gente de boa cepa e eu sou grato a essa verdadeira prebenda – oiço um belíssimo CD, que me acompanha há séculos, que junta os talentos de Herbie Hancock, Michael Brecker e Roy Hardgrove – Directions in Music – Celebrating Miles Davis & John Coltrane. O alinhamento é fabuloso: “The Sorcerer” (Hancock), “The Poet” (Hargrove), “So What/Impressions” (Davis-Coltrane), “Misstery” (Hancock, Brecker, Hargrove), “Naima” (Coltrane), “Transition” (Coltrane), “My Ship” (Well-Gershwin), “D Trane” (Brecker).  Acho que o Ricardo ouve comigo, lá onde está, este disco, esta noite.

Velho Tembe é guarda duma loja na baixa da cidade. Segura um chamboco na mão esquerda, a direita usa-a para abrir a porta aos chefes e na cintura um par de algemas espreita. É um velho que se divide durante todo dia; dorme metade do sono em casa e a outra no serviço. Controla a massa de gente na loja, em pé, enquanto de tempo em tempo gerencia a sua banquinha de pastilhas, mentas e cigarros.

Ao meio-dia lava carros de chefes enquanto à distância os olhos vigiam a porta da loja. Rola os círculos das moedas que recebe para o interior das peúgas. Com seu balde na mão faz uma diagonal na estrada. Puxa uma cadeira e senta-se. Senta-se sempre que os chefes fecham as portas da loja. Estica o auricular para o ouvido e faz-se adepto duma partida de futebol. Murmura a cada falha e assiste eufórico ao jogo pelos olhos do locutor.

Termina o jogo. Começa uma partida de cartas com um colega seu. Riem-se enquanto baralham o sono e a noite nas cartas. O escuro torna-se gigante nas avenidas. Os dois matam a saudade das suas damas iniciando uma partida interminável de dama. Trocam cigarro em cada partida e espionam o sono de cada um.

O colega do velho Tembe cai de sono no peito do tabuleiro da dama e põe um ponto final à partida. Tembe dobra-se e obriga a camisola a cobrir os pés. O gorro com duas janelas para os olhos e uma porta para o nariz cobre-lhe o rosto inteiro. Adormece profundamente na cadeira. Um conjunto de cães que alarga a vagina duma cadela acordam-no constantemente. Lembra-se que os cães e ele têm a mesma função, logo arranca o seu motor de roncos e saliva dentro do seu gorro preto.

Os noivos das algemas chegam e amarram-no enquanto dorme. Espancam-no até a morte. Morre dentro do sono. Violam a loja e limpam todas prateleiras e voam na asa do seu Toyota.

Dia seguinte o velho Tembe é encontrado morto. Ensopado de saliva, sangue, sono e morte. É desamarrado da cadeira e o corpo enrolado num pano que servia de cortina na monstra da loja. O corpo do velho Tembe é atirado numa camioneta da loja e o motorista carrega para o lado do corpo, 5 quilogramas de arroz, 3 litros de óleo, duas barras de sabão e 9 quilogramas de sal.

– “Diga a família que é tudo que temos” – diz o gerente da loja.

 

 

Quando fui ao seu encontro para a aprazada entrevista de vida, que me propusera fazer no roteiro de os Habitantes da Memória, e que concluí em duas longas tardes, em sua casa em Maputo, ele tinha justamente o dobro da minha idade: 46 anos. Comunicador exímio, homem de escrita, de rádio e de televisão competentíssimo, cronista instigante e polemista mordaz, dramaturgo, actor e locutor, possuía uma vasta e poderosíssima cultura. Era, não tenho dúvida em afirmá-lo hoje, de longe, a maior figura no nosso espaço mediático. Dominava todos os meios em que actuava com uma proficiência notável. Também era dos poucos pensadores na nossa comunicação social. Em Agosto de 1990, quando o visitei, não tinha ainda editado o seu primeiro livro de poesia, de título Irmão do Universo. A despeito, era já um dos mais altos nomes da nossa lírica. Escrevera um dos mais belos textos da lírica moçambicana da década de 80: “Lamento”.

Leite de Vasconcelos: “Cantei-te serenatas em noites de cetim/ com timbilas e violinos/preparei-te um jantar de ushua e lagostim/com cebola e pepinos. // Falei segredos a búzios da Macaneta/ e mandei-tos pelo correio/ aluguei à semana o estro de um poeta/ e fiz um verso à curva do teu seio. // Colhi flores de madrugada nas Barreiras/ abri uma machamba em Matutuíne/ disse-te amor em trinta línguas estrangeiras/ passeei-te no bazar em Xipamanine. / Comprei um anel de pêlo de elefante/ um disco de sungura/ um sofá, uma cama e uma estante/ um fato azul e um garrafão de sura. // Levei-te às farras das noites de sábado. / À sombra das acácias/ contei-te lendas de um tempo passado. / Deixei de ter notícias/ e o fluir da tua ausência não se estanca. / Namorado, só, itinerante / busco-te nas ruas, encontro-te na Franca/ perdi-te em casa dum cooperante.”

Este é, seguramente, um dos mais belos poemas de amor que se escreveram, entre nós. Recordo-me ainda hoje da emoção, da intensa e incontida emoção, que senti quando o li, pela primeira vez, publicado na “Gazeta de Artes e Letras” da revista Tempo, em Outubro de 1985. Num texto, fatalmente pueril, que redigi sobre poesia moçambicana (“A Viagem da nossa poesia”), em Janeiro de 1987, referi-me a este poema e isso foi motivo para que o Leite de Vasconcelos me convidasse para uma conversa sobre literatura. Ele era Director-Geral da Rádio Moçambique, meu director por conseguinte, pois na altura eu debutava na profissão justamente na RM, onde entrara em 1983. Essa conversa foi exultante. Eu, um miúdo de 19 anos, à beira dos 20, estava ali perante uma grande figura do nosso jornalismo e da nossa literatura, da rádio e da televisão, que ele chegou a dirigir por dois anos. Tínhamos empatia. Quando me propus a entrevistá-lo, anos depois, tinha as seguintes linhas-mestras para o diálogo: a sua trajectória inicial, a sua participação no 25 de Abril, os primeiros anos de jornalismo pós-independência e a escrita literária.

Teodomiro Leite de Vasconcelos nascera a 4 de Agosto de 1944 em Arcos de Valdevez, em Portugal, e viera cedo para Moçambique. Crescera na Beira, numa família humilde, o que assumia sem pejo nenhum. Começou a ler muito cedo. Lembrava-se da influência profunda que uma obra de Roger Martin du Gard provocara em si: O Drama de João Barois. Ou O Pão da Mentira de Horace Mackoy. Acrescentava a estas leituras os americanos dos anos 50: Ernest Hemingway, Erskine Caldwell, John Steinbeck, entre outros. Só muito tarde, lera os portugueses e referia Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro. Mas lera de tudo: ficção científica, policiais, romances de todo o género, poesia. Praticava, em termos de escrita, vários géneros: poesia, teatro, contos.

Na Beira, aos 18 anos, fundara, com um grupo de amigos, a Associação dos Jovens de Moçambique, que logo seria interditada. Ainda encenaram uma peça de teatro, mas a seguir as autoridades dissolveram a associação, persuadindo-os a juntarem-se à Mocidade Portuguesa, o que eles recusaram. No entanto, a rádio tinha sobre ele um grande fascínio. Era o meio que chegava ao seu estrato social. Não vivia na cidade, mas sim no interior, ela chama-lhe mato. Entre 1964 e 1968, foi estudar ciências sociais a Portugal e, no regresso, ainda teve uma breve passagem pelo Banco Standard Totta. Uma experiência atroz, dizia. Não muito tempo depois, abriu um concurso para locutores na Rádio (tivera uma experiência no Aeroclube da Beira, com um programa de rádio, promovido pela tal associação, que duraria brevíssimos 4 meses), concorreu e foi admitido. Em finais de 1972, a sua voz estava banida em Moçambique e decide ir para Portugal. Colaborou no arranque do semanário “Expresso”, mas, mais do que isso, ele e o Manuel Tomás – que era sonorizador no Rádio Clube de Moçambique e resolvera também sair, com o Eugénio Corte Real, na mesma altura que o Leite -, com mais um angolano, que era profissional de rádio e ainda um funcionário do Instituto Português do Café, na Guiné-Bissau, compraram um espaço de antena na Rádio Renascença e fundaram o programa “Limite”. O programa – que tinha um escol importante de colaboradores, que o faziam pro-bono – arregimentou audiência e afirmou-se imediatamente. Tentavam ir até ao limite do que a censura permitia. Iam para o ar entre a meia-noite e as duas da manhã. O Movimento das Forças Armadas haveria de escolhê-lo para emitir a “senha” do golpe. Leite de Vasconcelos leu, antes de passar, a “Grândola, Vila Morena”, os versos da canção de Zeca Afonso. Ficavam assim, ele e o Manuel Tomás, dois jovens oriundos de Moçambique, ligados à história da Revolução de Abril. Entre Agosto de 74 e Abril de 75, permanece, sob sugestão da FRELIMO, em Portugal, a colaborar na delegação do Rádio Clube de Moçambique, em Lisboa.

Entre Maio e princípios de Junho de 1975, acompanha a viagem de preparação da Independência, empreendida pelo então primeiro-ministro do Governo de Transição – Joaquim Chissano. Tem o contacto com vilas e povoações, com população e com os dirigentes da FRELIMO. Já os contactara, em Lisboa e em Londres, mas este contacto em Moçambique foi marcante. Também seria marcante a cobertura da viagem triunfal do Rovuma ao Maputo, iniciada em Dar-es-Salaam por Samora Machel. Viveu empolgado essa fase. Machel seria, aliás, a figura que o marcaria para sempre. Sem o mitificar, referindo que poderia ter tido provavelmente atitudes discutíveis, via no seu “daltonismo” – não via cores na sociedade moçambicana, em termos raciais, sublinhe-se! -, na sua extrema inteligência e velocidade de raciocínio para encontrar e discernir sobre fenómenos e acontecimentos muito complexos, o eixo essencial das questões. Para Leite de Vasconcelos, Samora Machel vivia no vértice da História.

Cronista e polemista nos jornais, locutor de rádio, produtor e apresentador de televisão, tornar-se-á, nos anos 80, a mais insigne figura do nosso espaço mediático. Acompanhei, com entusiasmo, as polémicas em que interveio, entre elas, uma sobre a língua portuguesa, na qual esgrimiu argumentos contra Moura Vitória, que tinha, em relação à língua portuguesa, uma concepção bastante redutora, sendo que Leite de Vasconcelos via – e com razão – uma língua que haveria de se diferenciar pelo uso dos seus falantes em Moçambique. Mas houve várias outras polémicas, seria fastidioso contabilizá-las todas aqui.

Disse-me, em relação, à prática de jornalismo, na primeira República, algo que constituiu uma confissão dilacerante, mas sincera: a nossa informação tinha praticado – e ele assumia-o – actos de auto-censura. No entanto, asseverava: não tinha mentido deliberadamente, mas sim omitido. Omitira factos, acontecimentos e processos. Tinha sobrevalorizado o papel do Partido no poder, ou do próprio Estado. Isto é importante para perceber a trajectória dos intelectuais, intelectuais orgânicos na generalidade, em Moçambique. É preciso dizer que vivíamos num contexto de monolitismo político. Achei corajosa esta confissão do Leite de Vasconcelos e admirei-o ainda mais por isso. Por admiti-lo, num contexto de mudança que então se operava, e não proceder a uma metamorfose camaleónica, como se nada tivesse a ver com o passado. Não era pessimista, nem catastrofista, mas assumia que, em relação aos primeiros 15 anos da Independência, que era o tempo que nós estávamos a escrutinar, havia que discutir e tirar ilações dos erros que se haviam cometido. Tinha receio de uma tendência que se afirmava que estava a passar uma espécie de esponja sobre o passado recente. Falámos da tragédia da guerra, do país devastado, do drama social, de progressos na Educação e na Saúde, não obstante, da pobreza, da experiência do Leste, que estava a conhecer o ocaso, da literatura, dos livros que sonhava publicar, dos escritores que o haviam influenciado. A esta distância, queria ter a benesse da sua análise e da sua sensibilidade arguta, sobre o tempo presente. Creio que haveria de ser testemunha de uma brilhante análise.

Eu lera o original do seu Irmão do Universo (1994) e estava convencido de que este livro o colocaria na primeira linha da nossa lírica. Este e o ulterior – Resumos, Insumos e Dores Emergentes (1997), publicado postumamente, confirmaram-no em absoluto. Dele também constariam: Pela Boca morre o Peixe (Crónicas, 1999), As Mortes de Lucas Mateus (teatro, 2000). Foi realizado, em 2001, por Fernando Vendrell, um filme com base em um argumento seu: O lento gotejar da luz. Uma co-produção Portugal-Moçambique, na qual participam como actores moçambicanos, a jovem Alexandra Antunes e o político veterano e actor estreante Amaral Matos, de saudosa memória. , Em 2004, seria dado à estampa A Nona Pata da Aranha e outros Contos que revela um constista primoroso.

Tínhamos uma referência literária em comum: Rui Knopfli. Ele colaborara na revista Caliban. Apreciava a atitude poética de José Craveirinha, reconhecia António Gedeão e Jorge de Sena como tendo alguma influência na sua poesia. Sobretudo Fernando Pessoa. Outros poetas cuja influência não sabia aferir, mas que eram importantes para a sua formação poética: Camões ou Bocage. Era um declamador exímio, começara por fazê-lo na Associação Africana. Dizia poemas do José Craveirinha, da Noémia de Sousa, do Rui Nogar e do Rui Knopfli.

Eu entrara, em 1983, na Rádio – já o disse -, onde o conheci, para fazer teatro radiofónico, onde ele pontifica como uma das suas figuras exemplares: adaptando peças, escrevendo outras tantas, interpretando-as, produzindo-as outras vezes. Lembro-me da sua voz, dizendo poemas e contos na rádio, lembro-me da sua voz e da sua figura imensa na televisão, lembro-me sobretudo do seu alto sentido ético e estético na intervenção que fez no nosso espaço público naqueles anos primordiais a seguir à Independência. Lembro-me da sua cultura exuberante e da sua proficiência intelectual. Da sua arguta inteligência. Lembro-me das reuniões ou assembleias gerais da AEMO, das suas intervenções informadas e equilibradas, da sua experiência vasta, do seu bom senso, da sua estatura, da sua grande estatura como homem de letras e como cidadão moçambicano. Recordo-me do conversador fascinante que ele era. Gostava de o ouvir. Viveu muito pouco, aos 52 anos uma impenitente doença profligou-o, estava-se a 29 de Janeiro de 1997 – passaram vinte um anos. Há duas semanas, quando redigia esta breve nota, seria tolhido pela morte de Hugh Masekela. Tive de postergar a homenagem ao Leite de Vasconcelos. Aqui fica o meu reconhecimento àquele que era, indubitavelmente, o nosso maior publicista na primeira República e nos primórdios da ulterior. Hoje praticamente deslembrado.

Em razão da data do passamento físico do poeta Craveirinha, propus-me sair, pondo os pés na estrada, para saber a que ponto vai, em termos de cultura literária, a juventude estudantil do bairro de Benfica na urbe luandense, há quatrocentos e quarenta e dois anos baptizada com o nome de São Paulo da Assumpção de Loanda pelo capitão português Paulo Dias de Novais que, à frente de uma armada,  derrotou o resistente rei Ngola Kiluanji Kiá Samba,  embora a presença portuguesa na região datava já de há  cerca de um século, sendo mais visível e acentuada sobretudo no reino do congo, um pouco  mais a norte da ilha do cabo, onde primeiramente haviam atracado.

Como habitualmente, refaço a primeira esquina há  menos de um quilómetro do nosso pobre e humilde castelo. Para o alívio do pecador, logo encontro o quintal de uma instituição escolar de nível pré-universitário no ramo das ciências sociais e, considero que não podia ser  melhor  o palco para a avaliação dos conhecimentos litéro-culturais de uma franja da nossa juventude, supostamente apurada  para os desafios intelectuais dos tempos que se avizinham em África e no nosso mundo glocal. 

Identificada uma turma estudantil em momento de intervalo, me aprochego e, depois de muito bem identificado –por eles mesmo!-, à queima roupa interrogo os meus Wís:

-Vocês conhecem  Craveirinha?   

Silêncio.  Para meu espanto… silêncio total. Então decidi fazer a recarga.

-Quem já ouviu falar do moçambicano José Craveirinha? Os  vossos professores na escola, ou fora dela, nunca vos falaram da obra de José Craveirinha?

Por momentos reinou, entre nós, mais um profundo silêncio ensurdecedor quando o mais corajoso e iluminado jovem postou-se na dianteira de todos os outros e afirmou: -Eu já sim. Eu já ouvi falar do nome desse sujeito. Salvo o erro. Se não foi um músico antigamente parece-me que foi um grande futebolista da gloriosa selecção moçambicana no tempo do Eusébio.

 Aí o mundo calou fundo. E ao semblante do jovem concentraram-se  orgulhosos os olhares dos incrédulos colegas, como quem admira e manifesta regozijo por um amigo e coetâneo.

Estarrecido, sem saída e sem  saber o que dizer, logo cavei coragem e parti para o ataque como que palestrando numa conversa que de tão tocante e profunda provocou a “matação” da aula seguinte por parte de alguns, ávidos de saber. E tinha que ser básico. Não tinha como!…. tal como eles se expressam na gíria juvenil.      

Com certeza, na hora não foi assim tão fácil, e jamais será, falar daquele humilde Cidadão nascido, simplesmente, José João Craveirinha no longínquo ano de 1922 no sagrado espaço índico de Muíphiti.

Falar com jovens sobre uma lenda viva e imortal da dimensão de um percursor de “vaticínios infalíveis”,  do tamanho de José Craveirinha, implica e obriga-nos a falar não somente do poeta, mas principalmente do Cidadão, do inveterado polémico e do fino bem humorado provocador, do militante e das suas causas, do associativista, do desportista, do jornalista  do cronista, do folclorista local, do confrade, do companheiro e autor de MARIA, de um cometa,… aliás Poeta universal, que partindo da Mafalala internacionalizou a pátria moçambicana despertando-nos para o adocicado dAs Saborosas Tangerinas de Inhambane sem esquecer-se do azedume das Tâmaras… de Beirute tendo polvilhado por amigos e conhecidos e por distintos jornais, grande e quiçá, a maior  parte da sua poesia ainda por reunir e, (o que sei eu para dizer…), finalmente do grande  Senhor e camarada premiado, condecorado e medalhado internacionalmente.

Uma particularidade do cidadão do mundo que consideramos o mais telúrico  poeta moçambicano de sempre, reside no facto de que, enquanto levava a realidade cultural e, especificamente, a poesia moçambicana além fronteiras, Craveirinha escrevia e escrevia muito. Dedicava e, – já o dissemos!-, oferecia versos aos conhecidos e amigos que fazia mundo fora.  Na Itália, África do Sul, Rússia, Cuba, Suazilândia, Portugal e Alemanha dentre outras paragens, escreveu os poemas, reunidos,  editados e publicados  póst mortem em Maputo no ano de 2012 no  livro intitulado, Vila Borghesi e Outros Poemas de Viagem.

Luanda, Lucala e o seu caudaloso rio, «as belas águas de Kalandula», os cantares e os choros dos filhos de Malange (cidade que viu nascer o progenitor da Pantera Negra moçambicana), a «gente assassinada na Baixa de Kassange» em Janeiro de 1961, o «sagrado chão de Cuíto Cuanavale» enquanto marco histórico da África austral, as intensas e históricas batalhas nos «decabaçadoscéus de Cuando-Cubango» e o verde e sacrificado capinzal do Cuíto,  são motivos da avultada poesia que em Angola escreveu e  dedicou a íntimos amigos dentre os quais destaco os nacionalistas e escritores Luandino Vieira, António Jacinto, António Cardoso,  Pepetela, Fernando Costa Andrade, Aires de Almeida Santos  e também ao poeta e crítico literário David Mestre que sobre ele escreveu em 1996 no Suplemento  Vida & Cultura do Jornal de Angola: “…há três décadas que a poesia de José Craveirinha exerce sobre mim um fascínio sempre acrescentado… nenhum outro poeta africano lusófono empreendeu com tão alucinante rigor o mergulho em profundidade na alquimia do fenómeno poético em sua dimensão transcultural, das atónitas fundações do verbo à matriz de autenticidade que constitui a marca de água dos clássicos e dos que, antes de o serem, já eram”.

Entretanto, eis a questão: Luanda é das maiores e supostamente mais intelectualizadas, metrópoles litorâneas de África, tendo registado, a impressão e publicação do primeiro livro ao sul do deserto do Saara no longínquo ano de 1849. É a cidade capital da República de Angola, país africano que oficialmente se expressa em português e como tal, membro da comunidade de países de língua portuguesa  que no continente tem a cultura moçambicana como cultura de um país irmão mas, quando perguntamos, -e assistimos por via da comunicação social-, aos jovens estudantes até mesmo universitários, algo relacionado com motivos identitários e fraternais, em termos culturais, nada «que» resulta.

Para o caso referente ao domínio ou o simples conhecimento da vida e obra de um dos maiores vultos da palavra poética africana, da língua portuguesa e,  agraciado com o Prémio Camões em 1991, pensamos ser incrível e inadmissível que um «dito» quadro licenciado superiormente, professor de língua portuguesa, autoproclamado escritor e crítico literário faça só, e somente, uma vaga  ideia de um único poema de Craveirinha  incluído  há já alguns anos numa colectânea de Textos Africanos  de Expressão Portuguesa editada já no período pós independência e no final dos anos setenta, justamente com fins pedagógicos.

De José Craveirinha, «faço somente uma pequena ideia de um texto que falava de negros e de carvão», disse-nos o professor, circunstancialmente, nosso interlocutor.

É triste e  doloroso ouvir isto e, assim. Indubitavelmente, algo vai muitíssimo mal no nosso sistema e universo pedagógico e por isso mesmo é que não raras vezes temos afirmado e reafirmado que quanto a agentes, acções, propostas estéticas, projectos e estudos, em termos litéro-culturais , depois da geração angolana de 80 que para Moçambique corresponde à geração da Charrua ou dos «charrueiros», por aqui, pouco ou nada mais de realce aconteceu. Exceptuando, naturalmente, alguns casos pontuais, para que justiça seja feita.

Craveirinha, como todos os grandes poetas, é universal, incomparável, insubstituível e, como tal, imortal. Cabe-nos divulgar constante e permanentemente o seu legado artístico-literário para o constante e maior aperfeiçoamento da humanidade, material e espiritualmente, em estado caótico.

                           Luanda Fev./2018

 

Ano de 2003. A história da sua vida, titulada o Monstro Sagrado, que me havia sido confiada, estava quase pronta. Apareceram então dois jornalistas portugueses a propôr que essa missão me fosse retirada e lhes fosse confiada. Coluna foi breve, mas incisivo na resposta: “eu estive mais de duas décadas a jogar ao mais alto nível por Portugal e vocês nunca se aproximaram. Agora, que um compatriota meu decidiu avançar, é que vocês 'acordam'? Esqueçam”!

O ídolo, a estrela que em mim morava deste Monstro (con)Sagrado, cresceu. E a responsabilidade também. Fiquei com a honra e o privilégio de escrever a biografia de Mário Esteves Coluna, um nome que tem que ser pronunciado com respeito, porque o aprumo e a lealdade do dono, de coluna sempre direita, assim o impõem. No próximo dia 25 deste mês de Fevereiro, faz 4 anos que perdeu a vida. Tanto moçambicanos como portugueses, temos que recordar e venerar esta esta figura.

Ele é… a montanha sagrada!

25 de Abril de 1974. Acordos de Lusaka, Governo de Transição, Independência de Moçambique. É aqui que o passado e o presente de Mário Esteves Coluna se entrecruzam. Depois de (per)correr o planeta… a correr, depois de registar, com letras de ouro, a sua imagem de marca como “manda chuva”, na Europa e no Mundo, graças aos pés, mas sobretudo à cabeça que ditava a liderança por onde passava, finalmente, a não enjeitada oportunidade de regressar e servir a sua Pátria.

Numa entrevista em Portugal, o Monstro já havia revelado uma mágoa que o acompanhou por toda a vida: a de não ter podido vestir, como jogador, a camisola da Selecção Nacional de Moçambique Independente. Viria mais tarde a ter o privilégio de ser internacional pela terra que o fez nascer, mas como seleccionador. Porém, antes disso, uma conquista irrepetível: a de primeiro campeão nacional, pelo Textáfrica.

Em tempo de “debandada” em direcção à ex-metrópole, Coluna cruzou os céus no sentido contrário. Para trás ficava a lógica do conforto, a segurança que o seu nome lhe permitia, criado com suor e sacrifício, granjeado numa das mais belas actividades: o desporto. O bichinho do amor à pátria e às origens, obrigou-o a regressar, de forma a contribuir para que os meninos da sua terra tenham esperança num sol mais brilhante.

Um estilo em extinção

Tudo nele era solene. O andar, o falar e até o comemorar. Ritmo morno, fala suave e lenta, mas incisiva. No interior das quatro linhas, funcionava como um GPS, uma placa giratória por onde o jogo passava, para ser pensado quanto à alternância para os flancos e aproveitamento dos espaços vazios.

Actuando pelo Benfica ou pela Selecção de Portugal, como meio-campista, passou a fazer parte de uma galeria de estrelas muito restrita, cabendo nela apenas jogadores como Didi, Beckenbauer e Platini. Uma espécie em extinção. A sua importância para o desenvolvimento do desporto-rei, foi reconhecida pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol, um departamento da FIFA que incluiu o seu nome como um dos 100 melhores jogadores do Século XX!

Capitão e protector

Nos dias que correm, pela Europa e pelo Mundo, a grande maioria das equipas queixa-se da falta de jogadores/patrões… “à Coluna”. Ele era um falso-lento, com uma resistência a toda à prova, que dispunha de uma apurada intuição para se movimentar junto à área adversária, juntando a isso um forte remate à meia distância.

Porém, como capitão, era um líder protector, que não admitia que ninguém crescesse para um seu colega. Nessas alturas, usava uma frase que intimidava os adversários: “Se tocas mais no miúdo, sais daqui com uma perna a lamber a outra”.

Aconteceu até frente a Pelé, quando um dia o seu colega da selecção portuguesa Morais se sentiu intimidado ao marcar o rei. Coluna foi-lhe dizendo: “Continua a jogar durinho, porque lá por ele ser chamado de rei, cá dentro não tem qualquer estatuto especial”.

Líder carismático

O que é que tornou este Monstro Sagrado tão carismático? Os 126 golos em 525 jogos oficiais com a camisola do Benfica? O facto de ser o jogador com mais jogos realizados com a braçadeira de capitão, de 1963 a 1970?

Talvez um pouco de tudo, a partir da imagem de marca que trouxe do berço, que lhe conferia autoridade e liderança, tanto dentro como fora do campo. E, claro, a sua anormal resistência, pois quando a maioria dos colegas e adversários se encontrava “com a língua de fora”, ele impunha as suas regras.

Das poucas vezes em que “perdeu a cabeça”

Um episódio inédito. Coluna reconhece que perdeu a cabeça, e optou pela agressão, mesmo assim não sendo expulso. Mais uma vez, ao papel de grande capitão juntou o de justiceiro.

Tudo aconteceu na Roménia, num jogo difícil, em que Eusébio estava a “partir a loiça” sendo alvo de uma marcação dura por parte de um latagão que não lhe dava tréguas, batendo forte e feio. A certa altura, o romeno pisou a Pantera Negra, que caiu e uma bota saiu-lhe do pé. O romeno pegou na bota para atirá-la para lá da vedação. Eu estava perto e segurei-a. Travámos uma pequena luta pela posse da bota e eu consegui arrancá-la. Ele preparou um escarro e cuspiu-me no rosto. Confesso que foi uma das poucas vezes em que perdi completamente a cabeça. Bati-lhe repetidas vezes na testa, com a bota que tinha na mão, fazendo sangrar. O árbitro, um inglês, correu para o local, já preparado para me expulsar. Mostrei-lhe o meu rosto cheio de ranho, misturado com saliva. O juiz raciocinou rapidamente, viu que a justiça estava feita, pois ninguém com uma bota na mão resistiria à tentação de tirar desforço após uma baixeza daquelas. Retirou do bolso de trás um lenço, limpou-me a cara, e… mandou prosseguir o jogo sem me expulsar.

A centímetros da pide

Praga, 1966. Eliminatórias da selecção portuguesa, para aquilo que viria a ser uma grande epopeia lusa, com a conquista do terceiro posto no “Mundial”. Comunismo lá. Fascismo em Portugal. A desconfiança entre tudo e todos era total. “Por isso é que Salazar governou até á morte”. O Monstro esteve a milímetros de sentir na pele aquilo que já havia acontecido ao seu colega Santana e a Daniel Chipenda: a estada nas masmorras da PIDE. Uma circunstância feliz salvou-o:

Essa história da PIDE tem a ver com uma viagem à Checoslováquia. Jogo difícil, em que alinhámos muito tempo com menos um jogador e rendemos até aos limites. Mas antes, apareceram-nos no hotel alguns estudantes angolanos, pediram convites, pois a ideia era apoiarem a selecção portuguesa.

Coluna, como capitão, reuniu os ingressos que os colegas não precisavam e ofereceu-lhes. Nada mais do que isso. A vitória por 1-0, com golo de Eusébio foi memorável. E deu direito a festa, em pleno cenário comunista numa casa alheia, episódio inofensivo e fugaz, rapidamente esquecido.

Só a PIDE não estava de acordo. Algum acompanhante/infiltrado viu nisso um pactuar com os terroristas. Chegados à Lisboa, dias depois, o Monstro recebia uma convocatória para ir à PIDE. Algum engano? Não fazia a mínima ideia do que se tratava, mas a verdade é que os seus pés já não se deslocavam com a segurança com que o faziam na relva, o seu reino.

Num “terreno” desconhecido e hostil, de pergunta em pergunta, lá chegou a um gabinete guardado à porta por dois “caras-de-pau”, dirigindo um ar de poucos amigos ao recém-chegado, “borrifando-se” (talvez por desconhecimento), no seu estatuto.

Mandaram o Monstro entrar para o gabinete para as formalidades que o conduziriam à cela PIDESCA. O inspector que o atendeu era benfiquista e seu admirador. “Olha o Mário, meu grande capitão. O que o traz por cá?” Com a habitual calma mas com o coração aos pulos mostrou o impresso que o convocava. Finalmente, fez-se luz e safou-se.

O impressionante BI

Mário Esteves Coluna nasceu a 6 de Agosto de 1935, em Magude e faleceu em 25 de Fevereiro de 2014.

Começou a jogar a ponta de lança, no João Albasini e no Desportivo de Lourenço Marques. Na Europa, actuou no Benfica, de 1954 a 70; fechou a sua carreira no Olympique de Lyon, em 1971.

Nas 16 temporadas na equipa principal do Benfica, participou em 677 jogos, num total de 59.702 minutos, marcando 150 golos. Ainda hoje, é o futebolista que mais vezes capitaneou a equipa encarnada: 328 jogos. Foi 10 vezes campeão português (55, 57, 60, 61, 63, 64, 65, 67, 68, 69).

Venceu seis vezes a Taça de Portugal.

Foi bicampeão europeu pelo Benfica (61 e 62) e três vezes finalista vencido (63, 65, 68).

Actuou 60 vezes pela selecção portuguesa, tendo sido capitão em 21 jogos. O ponto mais alto foi o 3º lugar, no “Mundial” de Inglaterra, em 1966.

Realizou 60 jogos (com 11 golos) na Taça dos Campeões Europeus e dois na Taça UEFA.

Capitaneou a selecção da Europa frente ao Resto do Mundo.

Como treinador: Orientou as equipas Sport Lisboa e Huambo, Textáfrica do Chimoio, Ferroviário de Maputo, Maxaquene, Desportivo de Maputo e Ferroviário da Beira. Foi seleccionador nacional de Moçambique.

Distinções: Sete louvores da Federação Portuguesa de Futebol: Medalha de Ouro ao Mérito Desportivo, Medalha de Prata da Ordem do Infante D. Henrique (a mais alta condecoração portuguesa), pelo brilhante comportamento no Campeonato do Mundo de 1966. Louvor da Direcção-Geral dos Desportos, em atenção a toda a sua exemplar carreira desportiva, e Medalha Nachingweia.

 

 

 

Ainda que de forma tímida o continente africano está a conhecer algumas mudanças positivas ao nível político. As eleições que têm estado a ocorrer de forma frequente um pouco por todo o continente salvo alguns países, está a trazer à consciência dos políticos que precisam governar os seus países tendo em conta os interesses das nações e dos povos e não apenas dos que circundam o poder político económico.

As mudanças de paradigmas na governação dos países africanos devem ser encorajados e promovidos para que cheguem a mais países porque só assim será possível melhorar as condições de vida de milhares de africanos e combater a pobreza, a miséria e a exploração desenfreada e insustentável dos recursos abundantes no continente.

Os novos presidentes da Tanzania, Namíbia, Angola, Libéria, para além de Maurícias, Cabo Verde, Botswana e alguns da chamada África Branca, têm-se esforçado em mostrar que boa governação não é uma característica de alguns países ocidentais e orientais mas sim é algo atingível pela maioria dos países africanos.

Apesar de ainda haver um longo caminho para se alcançar a democracia plena, eleições livres e credíveis, pluralismo, liberdade de expressão e pensamento e combate cerrado a corrupção os governos precisam entender que são eleitos para dirigir os povos e não se beneficiarem dos recursos do Estado.

Nenhum governante africano deve ficar satisfeito, apanhar sono e lambuzar-se dos benefícios que o cargo oferece quando milhares de crianças do seu país morrem por doenças que podem ser evitadas e tratadas, morrem por falta de alimentos quando em muitos casos vivem num país com condições agro-ecológicas para produzir todo tipo de produtos alimentares.

Nenhum Chefe de Estado deve se achar como tal quando milhares de crianças e adultos morrem por consumir água imprópria quando o país é rico é águas quer à superfície como no subsolo simplesmente porque quem dirige o país prefere gastar milhares de dólares a comprar viaturas luxuosas, aeronaves para seu transporte pessoal e outras regalias a investir no tratamento de água e abrir furos que forneçam água potável às comunidades.

Nenhum Presidente da República deve se sentir quando crianças do seu país concluíam o ensino primário sem saber ler nem escrever. É como se o país tivesse deitado dinheiro fora. A educação é uma das melhores coisas que o governo pode oferecer ao seu povo, mas tem de ser de qualidade. Nenhum país é capaz de desenvolver com educação medíocre. Não é por acaso que a maior comunidade de estudantes estrangeiros nas melhores universidades do mundo é de chineses e a maior parte dos melhores professores aposentados das melhores universidades do mundo estão a dar aulas na China. Não é por acaso que os Estados Unidos de América recruta talentos em qualquer parte do mundo. Os países asiáticos que revolucionaram suas economias foi graças a aposta na educação de qualidade. Onde pretendem afinal chegar a maior parte dos países africanos com a educação que têm?

Os recursos naturais devem servir os povos e não às multinacionais e às elites políticas. Mas em África é ao contrário. Matar para permanecer no poder como faz Joseph Khabila, Jean Pierre Mbemba assim como recorrer a mudanças constitucionais, a fraude eleitoral e manipulação como muitos governantes fazem só atrasa o nosso continente. É um crime contra os povos africanos subjugados antes pelo colonialismo e agora pelos políticos gananciosos e que só olham para seus próprios interesses e deixam o povo a minguar à fome, por doenças evitáveis e pela ignorância apregoada pelos sistemas de ensino que no lugar de emancipar deturpam as mentes brilhantes dos seus jovens só para se perpetuar no poder.

 

Com a bacia cheia de laranjas desce à cidade, Zulmira. O umbigo que espreita debaixo da blusa curta anuncia uma vida que rola no ventre. As tetas desenham dois pontos de leite na blusa; devia amamentar àquela hora. Quando o sinal vermelho amarra a marcha dos carros, Zulmira levanta-se da esteira do passeio e procura abater a montanha de laranjas que tem no solo da sua bacia. No cume da montanha tem uma faca.

Quando regressa à casa, faz lume com lenha para encher o seu bule de ferro. O fumo faz-lhe nuvens nos olhos e lágrimas caem. Aproveita para chorar da sua pobreza na cozinha em paz. A dor é a sua escolta em todos movimentos. Ajeita o filho nas costas e improvisa-lhe o seio enquanto dá banho ao outro que vai à escola. Olha as horas e lembra-se que deve marcar bicha na padaria de pão. Corre para a padaria. Marca a bicha. Pelo caminho compra tomates para fazer uma salada mesmo sabendo que não tem óleo em casa.

Zulmira é médica de si própria. Cura-se da tristeza com as suas seringas de lágrimas. Limpa a fotografia do marido falecido que ainda encosta a parede de caniço da sala. Assusta um rato que lambe o arroz de ontem; arroz que será ressuscitado no milagre do fogo para ser jantar de hoje e amanhã. Senta-se na sala cimentada de areia, cose memórias amargas e mastiga a fome que lhe cresce na boca. Seus três filhos, com as luvas de sujidade nas mãos, comem no mesmo prato um arroz que tem no topo uma rodela de tomate.

Prepara chá para tomar, mas o açucareiro está de luto. Devolve a chávena, sem pega, com água quente para a cabeça do aparador. Pega sua bacia e descasca as laranjas para vender amanhã. Os miúdos guiados pelo ponto cardeal da fome chegam ao sono. Apenas um copo de água serviu-lhes como farol. Queima papel-higiénico para afastar os mosquitos e escuta os vizinhos jantando.

Os vizinhos com garfo e faca fazem uma banda sonora na fome de Zulmira. Sabe que os restos daquele jantar pela manhã será para o cão e para ela.

Num célebre, penetrante, inquietante e, indubitavelmente, polémico texto, que tanto estimulou (apesar de ligeiras discordâncias) a minha juventude literária, Eugénio Lisboa socorre-se de uma ingente definição de poesia, estabelecida pelo poeta mexicano Octavio Paz, num ensaio luminoso intitulado “Poesia e poema” que introduz o seu notável e incandescente livro O Arco e a Lira, para proceder ao inventário da poesia moçambicana. Tenho o livro do celebérrimo poeta mexicano sobre o tampo da mesa e os dois volumes da viperina Crónica dos Anos da Peste, publicadas em 1973 e 1975 por Lisboa. Lembrei-me destas referências bibliográficas quando relia a poesia de José Craveirinha e pensava no maniqueísmo patriótico ao qual ele foi exilado. Craveirinha tem poemas belíssimos e versos definitivos, muitos dos quais estão longe dos textos que são normalmente referidos quando citamos o seu jubiloso nome. Creio, inclusive, que o melhor Craveirinha reside aí, na sua poesia menos conhecida, com autênticos achados, privilégio dos eleitos. Mas queria chamar à liça o ensaio balizador do poeta mexicano. Começo por reler este texto, que é uma soberba lição de poesia. Creio que todos os aspirantes a poetas – e mesmo os poetas estabelecidos e/ou consagrados – deviam lê-lo e cogitar longa e detidamente sobre ele. Esta definição pungente de poesia permite-me explicitar o meu raciocínio sobre a poderosa obra poética de José Craveirinha.

Octavio Paz: “A poesia é conhecimento, salvação, abandono: Operação capaz de mudar o mundo, a actividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Oração ao vazio, diálogo com a ausência: alimentam-na o tédio, a angústia e o desespero. (…) Arte de falar por forma superior; linguagem primitiva. Obediência a regras; criação de outras. (…) Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo (…) Analogia: a poesia é um caracol onde ressoa a música do mundo. (…) Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos eleitos, palavra do solitário.”

Por circunstâncias que relevam da História, ao poeta José Craveirinha colou-se-lhe o epíteto de “voz do povo”. O que em si não constitui um dislate. Mas quem insiste na espécie de exercício taxinómico deixa obnubilado o seu verdadeiro génio. Quem o lê saberá que, sim, a sua voz se confunde com os anseios e as aspirações mais lídimas do povo moçambicano e que ele as soube interpretar e dar expressão. Mais do que isso, ele lutou por esses ideais, tendo sido preso por causa disso. O que pretendo hoje aqui afirmar é que Craveirinha, sobretudo, cabe também no segundo escol – “língua dos eleitos” -, e que, provavelmente, neste território, onde ele está por descobrir, reside a sua mais assombrosa inventiva poética.

Craveirinha é um grande poeta – toda a gente o diz. É a mais alta manifestação da poesia moçambicana. Creio não ser esse o pomo da discórdia. Adiro, sem reserva, a tal proclamação. As minhas reticências estão nos argumentos usados. A grande arte de Craveirinha está por descobrir. Os mais belos poemas de Craveirinha são aqueles que são menos lidos ou quase desconhecidos. Craveirinha é um poeta soberbo, sim, porque a sua arte fala de forma superior, como queria o poeta mexicano. Porque ele revela o mundo e cria um outro. A definição que acima citei é um amuleto importante para entrar no universo da poesia de José Craveirinha. Estou convencido de que um texto com citações de seus poemas menos exaltados daria um ensaio surpreendente. Vou ao longo desta breve homenagem socorrer-me de versos e de poemas menos marcados para iluminar esta minha conjectura. Começo com versos do poema “Primavera” do livro Karingana Ua Karingana.

José Craveirinha: “Estamos sentados. / E nefelibatas bebemos coca-cola/ nas públicas cadeiras da praça. // E/ sobre as envenenadas acácias/ andorinhas geometrizam o azul do céu/ e despercebidos passarinhos africanos/ contam nos verdes braços vegetais/ de um parque de cidade moçambicana/ onde jovens discutem as pernas de Brigitte Bardot/ e abúlicas mãos tamborilam/ no tampo da mesa fúteis dedos. // Mas um grupo de estivadores/ vem do cais vestindo/ serapilheiras/ e passa a três metros e meio/ das cómodas cadeiras da praça/ enquanto/ cocacolizados/ odes cantam nos ramos os bilo-bilana/ e na surdina das tímidas meias-palavras/ e subentendidos silêncios/ ansiosos todos esperamos/ indolentes as flores/ da nossa comum Primavera!”

Sublinho: “Estamos sentados. / E nefelibatas bebemos coca-cola/ nas públicas cadeiras da praça.” Aqui está a voz de um eleito, quem escreve e diz isto é um poeta sublime, é a voz da transcendência. Prossigo, em estratégia de citação de alguns versos, para dar boa nota do meu espanto. Poema “A minha geleira”: “Amarrada/ a tiras de trapos/ minha geleira a prestações/ é uma branca figura de retórica/ no centro da cozinha.” Isto é absolutamente extraordinário. Texto “Os privilegiados”: “Como único privilégio/ os poetas usufruem a própria morte/ para viverem ainda mais a sua pátria”. “Não sei se existe Deus. / Mas se Deus existe/ Ele está com toda a certeza/ a comer comigo esta farinha/ no mesmo prato”. Ou o “Poema do alfinete mágico”: “Com um inofensivo alfinete mágico/ nós os miseráveis sonhadores moçambicanos/ de cerrados maxilares invocamos os desejos/ e suspendemos os corações nas janelas/ donde a lua e o sol quando entram/ entram gradeados.” Notável este poema escrito com alfinete num papel higiénico. “O meu preço”: “Mas se é para me vender/ vendo-me mas vendo-me muito caro.// Ao preço incondicional/ de quanto me pode custar este poema.” “Lustro”: “Velha quizumba/ de olhos raiados de sangue/ serve-me os rins da angústia/ e a dentes de nojo/ carnívora rói-me a medula infracturável do sonho” (…) “E a vida/ a injúrias engolidas em seco/ tem o paladar da baba das hienas uivando/ enquanto no dia lúgubre de sol/ os jacarandás ao menos ainda choram flores/ mas de joelhos o medo/ puxa lustro à cidade”.  Só um grande poeta escreve isto. Estes excertos são de poemas do livro Cela 1. Acrescento-lhes este poema, intitulado “Metamorfose”.

José Craveirinha: “Nas noites/ minha mão escultural/ é um pensamento despido. // Em dois anos/ meus dedos metamorfoses/ de Sofia Loren e Cláudia Cardinale/ voluptuosamente só traíram/ a minha ex-querida Ava Gardner/ outro nome que não digo/ e minha esposa Maria.”

Reitero o sublinhado: “Nas noites/ minha mão escultural/ é um pensamento despido.” Notável. Esta imagem, e a poesia é o reino das imagens, é surpreendentemente bela. Atente-se, ainda na obra Cela 1, ao poema “Reflexões no dia dos meus anos”: “Não expirado o prazo da minha ausência/ no meu bairro da Munhuana/ no preciso dia do meu aniversário/ lá com certeza o dia amanheceu/ todo assoado de nuvens.” Craveirinha é uma voz assombrosamente solitária e solidária. Um poeta lírico, sobretudo. Um poeta indignado. Um poeta revoltado. Os seus poemas são de ausência e de solidão, poemas de um lutador “inclandestino”, poemas de um “prestidigitador emérito”. Do livro Xigubo são reconhecidos os textos recitados nos saraus como “Grito Negro”, “Poema do futuro cidadão”, “Hino à minha terra”, “Manifesto”. Talvez seja o livro onde mais se aproxima à definição de “voz do povo”. Este é um livro de afirmação. Tem poemas longuíssimos, que não caberiam aqui, mas não resisto ao belíssimo “Mulata Margarida”.

José Craveirinha: “Eu tenho uma lírica poesia/ nos cinquenta escudos do meu ordenado/ que me dão quinze minutos de sinceridade/ na cama da mulata que abortou/ e pagou à parteira/ com o relógio suíço do marinheiro inglês.// Mulata Margarida/ da carreira do machimbombo treze/ de cabelo desfrisado com ferro e brilhantina/ fio de ouro com medalha de um misericordioso/ Deus Nosso Senhor do patrão/ e tu Joaquim chofer do táxi castanho/ sabem que eu sou bom freguês/ três dias apenas depois do fim do mês. / E corpo moreno de mulata Margarida/ é vestido de náilon que senhor da cantina pagou/ é quinhenta de chá/ arroz e molho de amendoim/ de Zeca Macubana que herdou olhos azuis/ das românticas noites/ de jazz/ nos bares da Rua Araújo/ enquanto a cinta elástica suspende/ o ovário descaído. // E eu sei poesia/ quando levo comigo a pureza/ da mulata Margarida/ na sua décima quinta blenorragia.”

Rui Knopfli contava-me que, nos tempos em que ambos faziam a “ronda crepuscular do cio”, pela baixa da antiga Lourenço Marques, quando o “aligeirar das roupas nas raparigas” acordava neles o “mesmo latejar das virilhas” nos “arrastados e emolientes fins da tarde”, ele (Knopfli) terminava a jornada em casa a trabalhar nos poemas e nos livros que haveria de publicar, enquanto (supunha, ele) o Craveirinha se demorava ainda no “olhar sorna de crocodilo agachado no canavial”. Isto para explicitar a arava obra publicada então por Craveirinha. Vale a pena ler o poema “Disparates seus no Índico”, do Rui Knopfli, nas Mangas Verdes com Sal. A propósito, Craveirinha tem estes versos notabilíssimos: “Minha mais amada por mim do que as frívolas/ raparigas de provocantes fémures desnudos”, escreve no poema “Maria. Salmo inteiro” (livro Maria).

Poeta arrebatado e arrebatador, dos largos e enlevados versos. Aliás, o poeta ficaria célebre por este tipo de poemas, muito afeitos à declamação, com refrões que faziam parte do nosso imaginário. Poesia socialmente empenhada, como queria o Rui Nogar, radicada na “dolorosa experiência quotidiana”. Poesia de indignação, disse-o, poesia de protesto, sempre, poesia que nos interpela. “Hino à minha terra”, “Quando o José pensa na América”, “Manifesto”, “Ao meu belo Pai ex-emigrante”, “Sia-Vuma” ou “Maria. Salmo inteiro” fazem parte dessa poesia descrita naquela frase iluminada de Nogar. Para além disso, alguns dos seus versos ficaram no imaginário popular, principalmente aqueles que subsumiam de poemas declaradamente instrumentais da causa libertária. Creio estar perto da verdade se asseverar que José Craveirinha foi mais citado do que lido. “Eu sou carvão” do poema “Grito Negro”, “Vim de qualquer parte/ de uma Nação que ainda não existe” do “Poema do futuro cidadão” ou “Quero ser tambor” são exemplos paradigmáticos de versos, estrofes e mesmo poemas ditos, por muita gente que não leu e não conhece verdadeiramente o poeta. Urge que o leiam e que descubram o assombroso poeta que ele é.

Não gosto apenas dos aforismos. Há poemas de grande fôlego e que são igualmente notabilíssimos. Cito pouquíssimos exemplos: “Desde que o meu amigo Nelson Mandela foi morar em Robben Island”, dito muitas vezes e bem pelo Tomás Vieira Mário, nos Msahos do Jardim Tunduro, nos melancólicos anos 80, ou as celebérrimas “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, que o Gulamo Khan exprimia com uma inclemente autenticidade: “Serão palmas induvidosas todas as palmas/ que palmeiam os discursos dos chefes?/ Não são aleivosos certos panegíricos excessivos de vivas?/ Auscultemos atentos os gritos vociferados nos comícios./ E nas repletas “bichas”? São ou não são bizarros/ os sigilosos sussurros?”

Ou “Mundial de Futebol no México (em directo)”: “Será boato meus beiços a babarem os verdejantes relvados mexicanos/ enquanto o povo gasta os dentes em subjectivas bolas de farinha?/ Ou no México são reais as roliças nádegas de um Diego Maradona/ o presunto mais caro do mais recente futebolismo internacional?” (…) “Mas porquê esta fortuita indigestão de futebol de dólares/ saboreados nos olhos via satélite e nas enfermarias/ o drama das ampolas de penicilina que não temos?// Quem autorizou o hirsuto “stopper” da semântica em riste/ a agredir impunemente o triste indefeso Luís de Camões?”

Veja-se-lhe a mordacidade de ambos. A audácia da língua. A zombaria. Craveirinha foi o mestre da ironia. Sem complacência. Críptico, muitas vezes. Hermético, algumas. Soberano, sempre. Craveirinha foi um prodigioso criador de imagens. Em 1997, o poeta incumbiu-me da grata e irrecusável tarefa de lhe apresentar aquando do lançamento de Babalaze das Hienas. Livro de denúncia, livro de indignação, outro livro com versos estelares, livro contra a guerra: “Eméritos felídeos à solta/ cometem sumárias obstetrícias/ variando cesarianas/ à facada.” Este livro é de uma tremenda virulência, como foi violenta a guerra que serve como seu libelo. “Uma voz virilmente indignada”, chamou-a Eugénio Lisboa.

Eugénio Lisboa: “Há em Craveirinha – é mesmo esta uma sua característica nuclear – este gosto, este gozo sensual, esta posse, direi mesmo: esta alucinação, da palavra. Craveirinha morde a polpa das palavras, tacteia-as amorosamente, fá-las vibrar no poema, encoleriza-as… Craveirinha – por isso é poeta – faz amor com as palavras. “

José Craveirinha, leiam-no atentamente, é um grande cultor da língua, soberbo na arte poética, dono de um pungente discurso social, inclemente contra a dolorosa miséria do quotidiano, escritor do passado histórico ignóbil, revela a realidade duríssima dos espoliados do seu destino, o lusco-fusco da Rua Araújo, denuncia as metralhadoras de Sharpeville, ou as tâmaras azedas de Beirute, fala nostálgico da Vila Borghesi, ou cultiva uma longa, interminável e fissurante elegia à Maria.

Por último, queria dizer: vejo exacerbada, nas notas biográficas ou nas apresentações que se fazem, depois de 6 de Fevereiro de 2003 – o pretexto próximo desta minha canhestra evocação, agora que passam 15 anos sobre a sua morte -, sobretudo, a sua condição de herói mais do que a sua condição de poeta. Nunca percebi esta estratégia de afirmação. Na placa da sua rua, não se fala do poeta, alude-se o herói. Nas notas de contracapa das edições recentes, enuncia-se: “Os seus restos mortais repousam na cripta da Praça dos Heróis, em Maputo, Capital de Moçambique”. Para além do mau gosto desta formulação funéria, esta forma de o apresentar contribui para o anátema e para o desconhecimento.

Por mais de 15 anos, convivi de perto com José Craveirinha. Frequentei a sua casa da Mafalala. Ouvi muitos episódios da sua longa e inspiradora vida. Li poemas inéditos, falou-me de personagens históricas, falou-me das pessoas do seu quotidiano, muitas delas que lhe batiam à porta para contar os seus infortúnios, histórias que se transformaram em poemas muitas delas, viajei com ele, fomos a Lisboa, estivemos juntos em Lisboa quando eu lá vivia, fomos, com o Rui Nogar e o Rui Knopfli, a Sevilha, estivemos em Londres com a Noémia de Sousa, fui companheiro e fui, de certo modo, legatário da sua geração. Deixou-me conhecer os seus mitos privados, as suas assombrações, as suas idiossincrasias. A sua solidão habitada. Dele aprendi o exemplo, a probidade. Revejo-me, aliás, nesta geração e não tenho pejo em afirmá-lo.

Sou leitor e cultor de José Craveirinha – creio que todo o poeta que se preze em Moçambique deveria sê-lo -, contudo não estou convencido de que a sua obra, a sua grande obra, embora seja reeditada e seja revelada a inédita, tenha merecido suficiente atenção e o trânsito devidos pela sua qualidade, importância e relevância. Muitos são os que dizem enfaticamente da sua importância, mas sabem pouco ou nada dela, não a leram, não a estudaram. Por estes dias, ao relê-lo pensava nesta espécie de ironia que cobre como um manto espesso a sua obra: ser-se imensamente conhecido e, provavelmente, reconhecido, pela pátria, mas ser injustamente ignorado. Porque o vejo proclamado, mas pouco ou nada lido. Dir-me-ão: a pátria não lê ninguém. Pobre pátria, não lê nem os seus próprios heróis!

Muito haveria a dizer sobre José Craveirinha, muito por evocar, invocar, convocar ou mesmo celebrar. O José Craveirinha cumpriu nobilissimamente o seu destino de vate. Cumpre-nos agora a nós fazer o nosso papel de leitores e, sobretudo, de o colocar no devido lugar de co-fundador e o seu papel na formação e afirmação da literatura e cultura moçambicanas, ultrapassando esta bizarria de o deixar prisioneiro à condição de herói. Não seria caso único no mundo de poetas a merecerem a honra de panteão. Mas lá onde estes outros alcançam essa condição são lidos e as suas obras circulam entre os seus concidadãos. Ora, não ler um poeta, mesmo que colocado numa cripta, parece mais defenestrá-lo do que celebrá-lo. No poema “A Minha Complacência”, diz o poeta: “Podeis homicidar-me com vossos vitupérios. / Meu inato orgulho vai quase à timidez insociável./ O que mais amo não me obceca./ Sou um cobarde do servilismo”. Este poema extraordinário termina com um verso ainda mais notável. “Traição é saber escrever e não escrever nada.” Estavam avisados os obnóxios, as quizumbas que o rondavam. Termino, plagiando-o: traição é sabermos ler e não lemos José Craveirinha.

Todos dizemos que talento para o desporto-rei é o que não falta em Moçambique. Porém, em contra-ponto com o que se passa noutras partes do mundo, onde o Estado recolhe impostos chorudos às estrelas – Ronaldo e Messi que o digam – o nosso futebol é praticamente dependente de uma “teta”, chamada Estado-Papá, que drena através das Empresas públicas – LAM, CFM, HCB, ENH, entre outras – dinheiro para manter o Moçambola, anualmente com novos soluços, porque sem meios próprios.

Quer isto dizer que o nosso futebol está longe de ser um negócio rentável, razão pela qual a funcionalidade das SAD's não vai acontecer nos próximos tempos.

Autoestrada com um sentido

Imagino um empresário que necessita de dar visibilidade à sua marca, apontando o desporto-rei como área para publicitar os seus produtos. Que retornos?

Fala-se na Lei do Mecenato, mas uma vez activada, está envolvida numa teia burocrática que longe de estimular, desencoraja.

Em seguida, há a opção pela inserção de publicidade em recintos, que raramente enchem e em camisolas com pouca visibilidade pois os adeptos raramente as adquirem.

Publicidade em revistas, descontos em livrarias ou supermercados, não constam no “cardápio” de contrapartidas dos clubes, associações ou mesmo Federação e Liga.

O “desfrutar” do convívio nas instalações dos clubes, não é encorajador, pelo menos para quem busca um lugar de convívio tranquilo com amigos e familiares, assistindo e encorajando os mais novos à prática desportiva.

Daí que…

Colocar os cada vez mais raros dinheiros que uma empresa disponha, em projectos com remotas possibilidades de retorno, acaba tornando-se um acto de caridade e não uma acção de “marketing”. A auto-estrada está aberta num sentido, paga-se a portagem, mas não se vislumbra qualquer retorno.

Assim sendo, a cada dia que passa, o nosso principal “activo”, que deveria ser o atleta, vai ficando mais longe dos radares dos grandes clubes. Por outro lado, na opinião interna tida como abalizada, “o que está a dar”, é mesmo o Camp Nou, Dortmund ou Alvalade. E assim nos vamos distraindo, com a “manta” que resulta dos impostos dos cidadãos e que por ser curta, quando tapa a cabeça destapa os pés.

Realismo, para dar passos firmes no curto prazo, mas perspectivando o médio e o longo, é o caminho. Resolver, por exemplo, o Moçambola 2018 e depois…logo se verá, vai-nos manter no sufoco, protelando questões de fundo.

Recentemente, uma Comissão Multisectorial foi criada num encontro presidido pela nova ministra dos Desportos, Nhyelete Mondlane, para “propostar” saídas para o complicado problema que aflige todo o país nos dias que correm: a falta de dinheiro!

O que se pode esperar? Uma aspirina para as dores de cabeça desta época, mas que estará longe de curar, ou mesmo encurtar as distâncias, das intenções à prática, relativamente ao tão propalado “slogan” da massificação.

 

 

 

 

Um ensaio sobre as representações identitárias de Hugh Masekela1
A decade or two from now, African society will be the first in human history to have abandoned its native tongues in preference to those manipulated by colonial rule if we do not soon reinstitute our own languages back into our homes, schools and social interaction with each other”.
                                   Hugh Masekela
Introdução

As ideologias da negritude e da renascença africana que se construíram sob a memória da escravidão, do colonialismo e do apartheid, resultaram  na construção de um discurso nativista de uma África singular que imprimiu nos africanos uma representação de si mesmos como um povo uno, coeso e com tradições muito particulares. Embora se tenham enfraquecido com o surgimento e a consolidação de Estados nacionais, essas ideologias, como faz notar Mbembe (2001), parecem estar a ressurgir sob o impacto da globalização, recombinando-se, ganhando novos ímpetos e reinvocando a tradição e a ideia de uma africanidade essencial.

Se algumas categorias identitárias, como raça e ancestralidade comum, que outrora foram altamente produtivas, já não são eficazes para a fixação da pretendida africanidade, outras categorias ganham expressão e têm sido evocadas e utilizadas. As línguas, concebidas como depositárias do que é tipicamente africano, aparecem como recursos simbólicos privilegiados de identificação. É interessante notar que, associado à ideia de que existe a necessidade de maior valorização e preservação das línguas africanas, alegadamente em desaparecimento por força do “imperialismo” das línguas ocidentais, coloca-se o argumento de que se deve fazê-lo para preservar as identidades africanas sob a ameaça de erosão. Dois aspectos se confundem nesses discursos, nomeadamente a necessidade e a razão da valorização das línguas, e a necessidade de preservar identidades, vistas neste sentido como fixas, imutáveis e das quais a língua é apenas simples depositária e reflexo.  

Se a legitimidade do primeiro aspecto é reconhecível e defensável, a do segundo é bastante problemática e passível de discussão. Neste ensaio, baseando-me em Hall (1992) e Bucholtz e Hall (2002), reflicto em torno do projecto de resgate e preservação da identidade africana proposto pelo célebre músico e activista político africano Hugh Masekela. Interessa-me  discutir a razoabilidade e as possibilidades de tal projecto no tempo em que vivemos, caracterizado por mudanças, fracturas e deslocamentos (HALL, 1992), em que a fixidez cede à fluidez (BAUMAN, 2007). Defendo a tese de que a valorização e a preservação das línguas africanas deve justificar-se na medida em que elas constituem parte do riquíssimo repertório semiótico da humanidade e não quanto simples repositórios de identidades tradicionais que se supõem autênticas, imutáveis e a-históricas.
O texto de Stuart Hall “A identidade cultural na pós-modernidade”, cuja ideia central é a de que as identidades, que uma vez foram centradas, coerentes e inteiras, estão agora a ser deslocadas, fragmentadas, permite-me localizar e pensar as razões do ressurgimento de reivindicações identitárias na pós-modernidade e na efervescência da globalização. O texto de Bucholtz e Hall “Language and Identity, que aborda sobre as tácticas de intersubjectividade, isto é, os mecanismos de construção de identidades com recurso a variados recursos simbólicos, ajuda-me a compreender como é que língua é utilizada como recurso de identificação.

Hugh Masekela e o resgate da identidade africana
Hugh Rampolo Masekela, aclamado compositor, trompetista, cantor e activista político sul-africano, engajou-se nos últimos tempos em projectos de sensibilização pelo que chamava “o resgate da identidade primária” dos africanos, que, para si, “reside nas línguas africanas” que estão a desaparecer. Masekela entendia que os africanos, principalmente os jovens residentes nos centros urbanos, estão progressivamente a deixar de usar as suas línguas nativas a favor das “línguas coloniais”, de origem ocidental, e, assim, as culturas africanas vão igualmente desaparecendo.

Bra Hugh, como era carinhosamente tratado, é um veterano da música africana, que iniciou a sua carreira nos anos 60 do século passado e tornou-se famoso por escrever e interpretar as canções “Soweto Blues” e “Bring him back home”, dois hinos africanos contra o apartheid na África do Sul, aquela denunciando a atrocidade do regime no bairro de lata de Soweto reservado aos negros e a última um grito, qual exigência, para a soltura de Nelson Mandela, o emblemático presidiário 46664 da Roben Island. O artista tornou-se numa das figuras africanas mais influentes também pelo seu activismo social, através da Hugh Masekela Heritage Foundation, que se dedica a iniciativas de luta contra a fome e a preservação da memória africana.

A alegação do artista era de que as “as nossas línguas não são faladas pelos jovens”, muito influenciados pela cultura ocidental, resultando disso a perda da identidade e da cultura tipicamente africana.

“Africans, we are the only society in the world that imitate other cultures at the expense of our own. If we don’t stop, we are going to disappear; we are going to be extinct. In fact there are children and adults today that are unable to construct a mere sentence in their mother tongue. It is very important to revive the knowledge of all those things,”2
Contra esse movimento, sugeria o “resgate da cultura africana”, que deve ser objecto de ensino nas escolas, tema de performances artísticas e promoção mediática.
“Our history and heritage is the richest in the world and humanity and civilization started with us, so it’s so embarrassing for me to find us where we are today. So I am now obsessed with imparting it, it’s my duty. What I’m trying to do is restore pride in the heritage, in the ethnic identity, in the language.”3

Esse movimento fez eco na imprensa e tem merecido a atenção de diversos activistas culturais africanos que, reconhecendo legitimidade no projecto, se mobilizam de variadas formas em prol da valorização e preservação, entre outros aspectos, das línguas africanas.

A questão das identidades na pós-modernidade
A questão das identidades na pós-modernidade foi muito bem tratada por Stuart Hall no seu livro “A identidade cultural na pós-modernidade”. Para este teórico cultural e sociólogo jamaicano, as identidades modernas estão a entrar em colapso como consequência de um conjunto de mudanças de ordem estrutural que estão a transformar as sociedades. Para Hall, as tradições do pensamento marxista, a descoberta do inconsciente por Freud, o trabalho da linguística estrutural de Saussure, Foucault e a genealogia do sujeito moderno e o impacto do feminismo, afectaram as concepções de sujeito e de identidade. Com efeito, concepções essencialistas ou fixas de identidade foram ficando para trás, dando lugar a identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, formadas e transformadas continuamente.
“O sujeito assume identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente. Dentro de nós, há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direcções, de tal modo que as nossas identificações estão continuamente deslocadas.” (HALL, 1992, p. 13).

Esta forma de pensar sublinha o carácter histórico da identidade, ou seja, que ela não “está impressa nos nossos genes” e “não são coisas com as quais nascemos”, mas são formadas e transformadas no interior das representações. Hall (1992) mostra que, na actualidade, à medida em que as culturas – sistemas de representação identitária – se tornam mais expostas a influências externas, sob o impacto da globalização, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural. O mundo encolheu. As fronteiras diluíram-se. Os contactos intensificaram-se. Estamos interligados uns aos outros, através dos sistemas de comunicação, as viagens tornaram-se mais fáceis e rápidas, partilhamos imagens, etc. Vivemos na já anunciada aldeia global de McLuhan. O efeito de tudo isto, para o autor, é a desvinculação das identidades de tempos, lugares, histórias e tradições específicos.

Está colocação de Hall é particularmente interessante para o caso que abordamos aqui. É que a África, sobretudo o espaço urbano das grandes cidades como, por exemplo, Johannesburg, Abuja, Maputo, não está à margem destes processos, desconectada do resto do mundo. Hoje, o jovem de Johannesburg ou de Maputo e o de Nova York, em continentes diferentes e separados por um imenso oceano, estão mais conectados e partilham gostos musicais, estilos de vida, ideias e referências mais do que faz o mesmo jovem sul-africano ou moçambicano com o seu compatriota da província do Limpopo ou de Niassa, no mesmo continente ou país.

Portanto, a ideia de que a “identidade africana” deve ser preservada de ameaças de erosão parece-nos ignorar essa nova ordem e continua a fundar-se numa perspectiva essencialista e estática de identidade. Baseia-se na ideia de que as pessoas que constituem um grupo identitário são fundamentalmente similares umas às outras e fundamentalmente diferentes de membros de outros grupos e o que as constitui é inevitável, natural e fixo (Bucholtz e Hall, 2004). Supõe que a identidade pré-existe aos indivíduos, os quais apenas têm de se conformar a ela, não a trair e cuidar que não seja corrompida, conforme sugere um discurso como este:
“I’ve got to where am in life not because of something I brought to the world but through something I found – the wealth of African culture4”.

É difícil reconhecer a legitimidade de discursos semelhantes e a sua produção só se pode entender como algumas das reacções contraditórias ao impacto da globalização, como aquilo que Hall (1992, p.77) designa “o grito dos angustiados daqueles que estão convencidos/as de que a globaização ameaça solapar as identidades”. E não faltam gritos como estes nos discursos de Hugh Masekela:
“They [parents] will say: Once upon a time we were Africans.”5

“In 20 years from now, when people ask my grandchildren who they are, they’ll say: it is rumoured that we used to be Africans – long ago”6.

Entender as identidades como representações flexíveis, contextuais, como dispositivos discursivos (HALL, 1992, p. 62),  ao contrário de categorias fixas e imutáveis, é cada vez mais importante na actualidade,  em que, cada vez mais, se assiste à ampliação e intensificação da exposição e influências de culturas. Pensamos que quaisquer iniciativas ou lutas contra as tendências homogeneizadoras da globalização e contra as desigualdades geradas por essa nova ordem só podem ter capital mobilizador se tomarem em consideração que as identidades, como dizem Bucholtz e Hall (2004, p. 376), não são atributos individuais, mas situacionais, são produtos de acções sociais situadas, e, como tal, mudam, recombinam-se para corresponder a novas circunstâncias. Portanto, os indivíduos não são simples espectadores da acção da cultura sobre eles, mas agentes que reconfiguram estrategicamente as suas representações.

Língua como categoria identitária
Bucholtz e Hall (2004, p. 369), referem que, entre muitos recursos simbólicos disponíveis para a produção cultural da identidade, a língua é o mais flexível e penetrante.

Língua e identidade associam-se de forma muito estreita. Como diz Kramsch (1998, p. 3), a língua, por um lado, expressa uma realidade cultural, na medida em que as palavras que usamos referem-se a uma experiência comum; expressam factos, ideias ou eventos que são comunicáveis porque reportam a um estoque de conhecimentos sobre o mundo partilhado. Por outro lado, através da língua, membros de uma comunidade ou grupo social criam experiências e lhes atribuem significados.

No entanto, a compreensão das identidades como sendo social e historicamente situadas e, portanto, flexíveis, mutáveis, permite compreender que a língua não constitui uma “prisão” para o processo de identificação dos indivíduos. Língua e identidade são mutuamente constitutivas (Norton e Toohey, 2011) e os indivíduos têm o poder de agência. Eles podem engajar-se estrategicamente com uma ou outra língua que projecte a identidade que lhes é circunstancialmente conveniente. Isto vai contra a tendência de se pensar que entre a língua e a identidade se estabelece uma conexão natural e o indivíduo necessariamente pertence a um grupo porque usa a língua desse grupo.

A língua, como diz Kramsch (1998), é uma arena onde alianças e fidelidades políticas e culturais são disputadas. Os indivíduos podem, desejando uma determinada identificação, engajar-se com uma determinada língua e não com outras. Esses desejos não são dissociáveis da forma como a sociedade está estruturada e dos valores atribuídos a uma ou outra identidade e à língua associada. Como sublinham Norton e Toohey (2011, p. 3), questões identitárias estão imbricadas com relações de poder na sociedade.

Pensamos que, quando se pensa sobre questões de língua e identidade no contexto dos países africanos, multiculturais, multiétnicos e multilíngues, não se pode ignorar a questão das relações de poder envolvidas nos processos de construção identitária dos indivíduos. Esta questão é muito mais relevante quando se tem em conta que, nessas sociedades, as línguas oficiais, por conseguinte de maior prestígio, são as ditas ocidentais, sem vinculação com as tradições. É nestas línguas que os indivíduos são escolarizados; são estas línguas que permitem maior mobilidade social e estão vinculadas à nova ordem global. Com efeito, é compreensível que, tendencialmente, os indivíduos se engajem com a aprendizagem dessas línguas vistas comos recursos simbólicos que conferem capital social distinto e projectam as identidades desejadas. Portanto, a relação entre língua e identidade não é natural, mas construída, social e historicamente justificada.

A legítima causa de Masekela ou “essencialismo estratégico”?!
Os fortes e cada vez mais intensos e frequentes contactos provocados pela globalização e dos quais decorrem os deslocamentos e fragmentações referidos em Hall (1992) têm efeitos à escala global. O desenvolvimento das comunicações promovido pelas novas tecnologias, a facilidade de transportes e viagens, bem como a acessibilidade  de cadeias de televisão internacionais têm possibilitado uma maior circulação de pessoas, ideias, e expostos culturas umas às outras. A África não é uma excepção e é compreensível que surjam reacções aos efeitos desses contactos e das mudanças que originam. O apelo às identidades “tradicionais” surge, como referem Bucholtz e Hall (2004, p. 371), geralmente sob condições de contactos e de desestruturação, em que membros de grupos sentem que a sua representação de identidade cultural está ameaçada. Com efeito, tendem a rectificar distinções e a atribuir uma importância particular à manutenção ou reabilitação de algumas categorias, como as suas línguas (KRAMSCH, 1998).

“What I’m trying to do is restore pride in their heritage, in their ethnic identity, in their language and in their artists”7.
Pensamos que o projecto de Hugh Masekela constitui uma dessas reacções aos efeitos da nova situação global.

Essas reacções são contraditórias em si, uma vez que, ao mesmo tempo que se celebra e reivindica a integração nessa nova ordem, cria-se, contra os seus efeitos, resistências e “proteccionismos” variados. O que fazemos notar neste texto é a incoerência de discursos que procuram essencializar as identidades africanas, num tempo em que, por força sobretudo da globalização, os indivíduos estão expostos a variadas referências.

“Today, that’s all disappeared. People in the townships – particularly the youth – have completely lost that element. And with it, they’ve lost a huge part of both who they were and who they are. Kids have no idea of their history, of what their mothers and fathers and neighbours went through, or the role music played in binding communities together and helping people survive the years of oppression. They’re listening to other music, by other artists in genres that aren’t part of township culture, and sung in English.”8

O sentimento de perda experimentado por Masekela é efeito dessa nova situação global que expõe pessoas e culturas umas às outras. Mas é, também, reflexo de que as diferentes culturas não estão dispostas simetricamente nesta nova ordem. Há relações de poder em jogo. O espaço urbano referido pelo artista é uma grande arena onde essas relações de força se exercem, onde, como diz Kramsch (1998), alianças e fielidades políticas e culturais são disputados. As línguas e outros símbolos e categorias identificação cultural participam desse jogo, e os indivíduos, com a sua capacidade de agência, agem estrategicamente engajando-se com aqueles recursos e símbolos que lhes possibilitam as identidades a que aspiram. O discurso de restauração e preservação de línguas e identidades é redutor se pretender que os indivíduos se engajem com determinadas línguas e outros recursos simbólicos por alegada conexão natural com as suas identidades, estas mesmas concebidas como fixas, coesas, unitárias e estáveis. No caso das línguas, mais do que encerrar ou reflectir identidades, elas participam da sua construção, num processo contínuo e historicamente situado. Uma leitura correcta do momento histórico parece-nos mais produtiva que quaisquer essencialismos, mesmo que momentaneamente sejam apelativos.

 

É inevitável começar este tributo com uma alusão à minha infância e ao tempo em que, na remota cidade portuária de Nacala, eu ouvia compenetrado “Soweto Blues”, vezes sem conta, na bela voz de Miriam Makeba, por vezes melancólica, como naquele caso, sem imaginar, no entanto, que quem tinha escrito aquela letra e quem tinha composto aquela música, que tanto me arrebatava, era Hugh Masekela. Nesse tempo nem sequer ouvira falar de Masekela. De Makeba, sim, ouvira falar, e cultivava-a, sobretudo por causa de “Pata Pata” ou  “Malaika”. O mais famoso artista sul-africano na época, curiosamente, era Steve Kekana. Só muito mais tarde, é que soube que “Soweto Blues”, esta música de protesto, este libelo acusatório contra o regime segregacionista do Apartheid, que proibira Xhosa, Sotho e Zulu nas escolas, impondo o Afrikaans como meio de instrução, era do trompetista, compositor e cantor que eu viria a ouvir, obsessivamente, vinte anos depois. Foi através do disco Hope que eu me tornei um incurável admirador de Hugh Masekela. Vivíamos o tempo da esperança e Nelson Mandela tornava-se Presidente da África do Sul, o sonho da liberdade era partilhado, a luta dos sul-africanos era nossa luta, os heróis e os seus mártires eram nossos mártires. Masekela foi talvez, de todos os músicos sul-africanos, o mais solidário. Falou de Moçambique e dos moçambicanos em todos os espectáculos que fez e em que cantou “Stimela”, provavelmente a sua música mais emblemática, aquela que melhor lhe consigna a condição de activista, militante, lutador, a par de “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela). Outros músicos vinham a Moçambique e eram solidários: Dollar Brand, aliás Abdullah Ibrahim, tocara em Maputo “Mannenberg”, Miriam Makeba cantara para Samora Machel “A Luta Continua”, Letha Mbulu e Caiphus Semenya tocavam abundantemente na rádio. Não me esqueço de “Angelina”, de Semenya. Para os mais velhos, havia a reminiscência da voz e do canto de Dorothy Masuka. Mais tarde, viriam Brenda Fassie e a sua exuberância, PJ Powers haveria de cantar na Machava, Johnny Clegg haveria de arrebatar plateias, ou Sipho Mabuse com o seu “Jive Soweto”. Vi pessoalmente Masekela em Maputo, naqueles exultantes anos 90, ali na Associação Txova Xita Duma, numa jam session inesquecível. Ele cantara e tocara com vigor e de forma tão arrebatada.

Na vetusta TVE, predecessora da TVM, recordo-me de ver um espectáculo, hoje mítico, realizado em Harare, a 14 de Fevereiro de 1987, de apresentação de Graceland, de Paul Simon. Simon gravara, nos estertores do Apartheid, um belíssimo álbum com músicos sul-africanos. Miriam Makeba cantou “Soweto Blues”, a música que Masekela fizera para ela. Hugh Masekela cantou “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela) e “Stimela” com aquela sua força telúrica. Ray Phiri, que morreu o ano passado, estava na viola solo. Masekela impressionou-me ali. O seu punho cerrado, uma imagem que me lembrava uma fotografia famosa de Peter Magubane, um outro sul-africano icónico, a sua voz poderosa e o seu trompete singularíssimo. Ainda usava cabelo grande e tinha, como sempre teve, aqueles olhos impressivos, esbugalhados. Tinha 48 anos, com quase 30 anos de exílio, de combate nos palcos do mundo. Vê-lo a cantar “Stimela”, com aquela força da natureza, com aquela energia, fez dele um dos músicos sul-africanos que eu haveria de cultuar. Eu nunca vira algo assim. Era extraordinário, era libertador. Aquele espectáculo de Paul Simon foi um marco na minha vida. Aquele disco de Paul Simon foi um acontecimento para mim. Decerto, prenunciava um novo tempo e estava inscrito nele a esperança. Nós vivíamos na ânsia de ver Nelson Mandela liberto e Graceland, e a incursão de Simon pela música sul-africana e com os músicos sul-africanos parecia um sinal inequívoco de que algo iria acontecer. Isso só viria a suceder em 1990.

Hugh Masekela: “There is a train comes from Namibia and Malawi/ there is a train that comes from Zambia and Zimbabwe. / There is a train that comes from Angola and Mozambique. / From Lesotho, from Botswana, from Swaziland. / From all the hinterland of Southern and Central Africa. / This train carries young and old, African men/ Who are conscripted to come and work on contract/ in the golden mineral mines of Johannesburg/ And its surrounding metropolis, sixteen hours or more a day / For almost no pay. / Deep, deep, deep down in the belly of the earth”.

A letra e a música têm uma força e a interpretação de Hugh Masekela é inesquecível. Ele cantou esta música não sei quantas vezes e sempre com uma energia inesgotável. Cantou-a até ao fim. Era a música da sua causa maior: a injustiça. Para além de a cantar, era seu hábito fazer um discurso sobre os explorados, sobre os espoliados, sobre os oprimidos, sobre a liberdade, o valor da liberdade, sobre os mártires, sobre os que tinham morrido nas minas ou na luta. Para além daquele dia ali  no Txova, vi-o cantar e tocar outras tantas vezes, na Cidade do Cabo ou em Joanesburgo. Há cinco anos, no Kippies – que assim se chama em homenagem a Kippie Moeketsi -, com a sala completamente cheia a cantar e a dançar, Masekela fez uma extraordinária homenagem a Miriam Makeba, sua companheira de vida e de luta. Os sul-africanos amavam-no. Pretos, brancos, indianos, mulatos, eu sei lá, ali, naquele momento, acreditei na Nação arco-íris que Mandela inventara. Isto foi em Março de 2012. Em Abril de 2015, estava eu a almoçar com o meu saudoso amigo António Pinto de Abreu, em Joanesburgo, e vimos o Masekela a atravessar o pátio e tivemos o impulso de o ir cumprimentar. Masekela era um homem que recusava a condição de vedeta. Fácil no contacto. Fraterno.

Esta manhã, de 23 de Janeiro, chega a notícia do seu passamento. “Stimela” e a sua força, para além de outras músicas, que são uma fusão de vários ritmos, sobretudo da música dominante das townships da África do Sul, como mbhaqanga, marabi, jit e kwela, numa alquimia com o jazz, voltam à minha memória. Os obituários são unânimes: morreu o pai o jazz sul-africano. A afirmação quadra-se muito à ocasião e facilita na redação dos títulos. Não sendo um dislate, encerra uma imprecisão. Aquilo que se chama jazz sul-africano aqui, que é mais fusão de ritmos sul-africanos, sobretudo o kwela e o mbhaqanga, pode reclamar outras paternidades. Sobretudo de um músico que influenciou o próprio Hugh Masekela na juventude e que tocou com ele: Kippie Moeketsi (1925-1983). Para além deste saxofonista que era visto como o Charlie Parker sul-africano, cabem como pais do jazz sul-africano outros companheiros de Masekela: Abdullah Ibrahim (1934), Basil Coetzee (1944-1998), Jonas Gwangwa (1937), entre outros. No poema “À Paris”, de Rui Knopfli, do livro Mangas Verdes com Sal, de 1969, onde ele começa dizendo “O meu Paris é Johannesburg”, o Rui, que era um conhecedor e cultor de jazz, escreve a páginas tantas: “Depois do turkish coffee meto-me/ até ao Cul de Sac e fico-me/ a ouvir o sax maravilhado/ de Kippie Moeketsi. O jazz, sim, / é genuíno e tem um bite/ todo local.”

Os músicos sul-africanos ouviam com denodo os nomes legendários do jazz americano e tentavam imitá-los ou glosá-los. Na sequência do massacre de Sharpeville, que haveria de inviabilizar a digressão dos Jazz Epistles, onde tocava Masekela, de que fazia parte Dollar Brand (mais tarde Abdullah Ibrahim), tendo-se tornado impraticável fazer espectáculos, dado que o regime, temendo levantamentos populares, proibira ajuntamentos, o trompetista decidiu ir justamente para a América. Lá encontraria os seus demónios tutelares. José Craveirinha escreve “Cântico do Pássaro Azul em Sharpeville”, um notável poema publicado em Karingana ua Karingana: “Os homens magros como eu/ não pedem para nascer/ nem para cantar. / Mas nascem e cantam/ que a nossa voz é a voz incorruptível/ dos momentos de angústia sem voz”. “Mas homens somos / e com mesmíssimo encanto magnífico/ aqui estamos/ na vontade viril de viver o canto que sabemos”. Esta “vontade viril de viver o canto”, como diria Craveirinha, leva o jovem Hugh Masekela, aos 21 anos, aos Estados Unidos ao encontro de Dizzy Gillespie ou Duke Ellington. Seriam Dizzy e Armstrong (Louis), os deuses do trompete, instrumento que ele começara a tocar aos 14 anos, com quem conviveu nos circuitos do jazz americano, que o incentivariam a buscar o seu estilo com base nas influências africanas. Também se cruzou com outro deus do trompete: Miles Davis. Aquilo que ele inventou e de forma prodigiosa foi um som próprio, inconfundível, capaz de captar, nas várias fases da vida do seu país e povo, o que lhe era distintivo. Chamam-no jazz à pressa. Tem influência de jazz, sim, mas é outra coisa. Tem ali fusão de ritmos, desde o afrobeat ao kwela. O que influenciou alguns outros músicos africanos, como o nigeriano Fela Kuti. No livro autobiográfico, Still Grazing, Hugh Masekela explica a origem da influência do jazz. Bandas locais como Jazz Maniacs, Harlem Swingters, Merry Makers ou Merry Blackbirds tocavam músicas famosas americanas. Eles ouviam Louis Armstrong, Count Basie, Duke Ellington, Cab Calloway, entre outros. A sua avó Johanna, zelosa e temente a Deus, achava uma blasfémia pôr a tocar tal música em casa, pelo que o neto, cuja relutante paixão pela música se havia tornado numa obsessão, ouvia o que tocavam os gramofones dos tios e dos vizinhos. Ramapolo Hugh Masekela nasceu em Witbank, a 4 de Abril de 1939. Conviveu muito cedo com o drama dos mineiros que vinham de Moçambique e Angola, com promessas de uma vida maravilhosa, e que se viam defraudados, trabalhavam duramente por salários de miséria (almost no pay). Muitos morriam com problemas pulmonares, de tuberculose, ou de acidentes. As bebidas alcoólicas e a violência que se vivia no contexto em que cresciam marcaram-no para sempre. Ele falou durante toda vida destes mineiros explorados e espoliados, destes trabalhadores com contratos miseráveis, das mulheres que andavam com cargas à cabeça à berma dos comboios de carvão, falou desses explorados, lutou por eles, clamou por eles, lembrou-se toda a vida deles, onde quer que fosse. As causas que foram sempre suas e os ritmos que ouviu na infância, cruzados com a sua paixão irredimível pelo jazz, estão na origem de um som que ele inventou, transfigurando-se ele próprio, como deus do trompete, como tinham sido os seus mestres como Dizzy Gillespie.

“Uptownship”, “Grazing in the Grass”, “Lady”, “Languta”, “Marketplace”, “Ha Le Se Li Khanna”, “Mama”, para além dos citados “Soweto Blues”, “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela), ou “Stimela”, são registos insofismáveis do seu talento e do seu génio, da sua exuberância no palco, da sua poderosíssima voz. Para além de uma forte presença, o que avulta desta vida de 78 anos é a sua obstinada luta anti-apartheid, no seu fulgor arrebatado, no seu sopro inconfundível, na sua voz audível, nos ritmos que se mesclavam, entre jazz, afrobeat, as vozes e os cânticos da África do Sul, ou nos sonhos e na ânsia dos povos da África Austral, cuja voz ele emprestou no seu inconformismo até ao fim. Cantou a luta anti-apartheid, mas não deixou de intervir após o fim do regime. Foi homem de todas as causas. Denunciou a xenofobia quando os sinais ainda eram ténues. Foi um africano universal. Sempre combativo. É, sim, indubitavelmente, um dos fundadores do que se convencionou chamar jazz sul-africano, com Moeketsi, Ibrahim, Coetzee, Gwangwa, lugar onde avultam hoje nomes como Sibongile Khumalo, Lira, Simphiwe Dana, McCoy Mrubata, ou onde avultavam nomes como Sipho Gumede (1952-2004), Zim Ngqawana (1959-2011) ou Moses Molelekwa, que morreu em 2001, aos 27 anos. Dos grandes vultos tutelares, sobrevivem-lhe Jonas Gwangwa e Abdullah Ibrahim, sendo Gwangwa mais ao ritmo kwela e Ibrahim o mais purista de todos. Este ano, em Novembro, passam, curiosamente, 10 anos sobre a morte de Miriam Makeba, com quem Masekela esteve casado, entre 1964 e 66, e para quem ele escreveu e compôs “Soweto Blues” – facto curioso: Masekela nunca cantava “Soweto Blues” -, que eu ouvia, com indisfarçável arroubo, na minha remotíssima cidade de Nacala, nos finais dos anos 70, sem imaginar que se tratava de umas músicas exemplares e emblemáticas de Hugh Masekela.

 

“Choriro” como bem o diz Ungulani Ba Ka Khosa é “um retrato de um espaço identitário, de uma utopia que se fez verbo”. O enredo dessa narração que envolve a história e a imaginação num só campo ficcional é o Vale de Zambeze no período mercantil marcado pelo tráfico e exploração de marfim e de escravos.

Luís António Gregório, de origem portuguesa, conhecido como Nhabezi, doutor ou curandeiro em língua local, é o protagonista desse entrecho que parte de acontecimentos históricos para a consecução fantástica desse “Choriro”; é, também um recinto onde um tecido humano de culturas, raças, crenças, etnias e línguas fortalece-se, harmonicamente, sob a protecção intrêmula dos achincudas. Aliás, “Choriro” é o choro pela ausência de ordem. São os três dias de luto em que os súbditos instalavam a anarquia e tudo faziam sem nenhuma sujeição posterior a um julgamento. Este “Choriro” dura mais de três dias, porque começa, mesmo quando o curandeiro branco instala-se no Vale, adoece, morre, é enterrado e aguarda-se a sua transmutação anunciada por Nyazimbire (curandeiro do reino real).

Nhabezi instala-se no vale de Zambeze e africaniza-se progressivamente nele. Adopta práticas plurigámicas típicas da região e adopta em geral regras locais que não eram típicas para um homem branco como ele. A sua entrega às seitas e práticas locais diferem-no do seu amigo, padre e cronista, António Gonzaga. Nhabezi, que era um exímio caçador de elefantes, introduz o consumo de arroz no interior do alto Zambeze, uma das proezas que lhe marca após a sua morte, por todos, principalmente por Kamwa.

Nhabezi morre e não se sabe se ele vai conseguir a imortalidade, ou seja, transformar-se em mpondoro, um espírito protector das suas terras. Ou por ser branco seria negado por espíritos nativos e por essa via, transformar-se-ia em um negozi, um espírito revoltado, rejeitado e sofredor que vagueia as noites criando maldição. A tradição antiquíssima do Vale de Zambeze é recuperada e tratada, impecavelmente, por Ungulani. Da doença de Nhabezi até ao seu enterro que se realiza na dúvida permanente da sua transmutação, sua existência além da morte física.

Ungulani entra na história do Vale de Zambeze e faz uma desconstrução imaginária dos seus elementos dentro do seu tempo e encarrega-se de uma tarefa não fácil; a que torna ele um prosador exímio: a reconstrução ficcional. Esse exercício duplo pode ser encontrado quando enarra David Livingstone nas terras de Nhabezi e quando um dos acompanhantes do explorador inglês, Maluka apaixona-se por Luíza, a preciosa filha de Gregódio.

O que Ungulani faz em “Choriro” não é uma visita ao Vale de Zambeze (sec. XIX) para escrever um texto ficcional, mas ele traça através da imaginação um caminho que nos leva ao Vale e ao âmago que recria um Vale com costumes próprios: “os macacos adestrados para desvirginar mulheres” ou “o lançamento dos insubmissos aos crocodilos”. A história é um catálogo com grafias de acontecimentos presos por agulhas de datas no quadro da memória. E Ungulani o sabe muito bem, por isso a sua imaginação transcorre sobre acontecimentos diversos que se seguram em datas.

O estilo com que Ungulani tece a narrativa de Nhabezi não se veste de monotonia, pois em cada momento procura reinventá-lo. Essa reinvenção de estilo oscila entre um relato poético, como quando minucia Nzinga, uma das esposas de Nhebazi: “…era uma moca de mediana altura e traços alongados como uma gazela. De uma cintura delgada e ancas de fraca protuberância […], os olhos apresentavam o brilho fugidio das águas ao amanhecer”. Ora uma tendência de enumerar que condensa o muito em pouco [economia da frase]: “as folhas, adormecidas. As sombras, paradas. O sol, sorrindo. O rio, acenando. As águas, correndo. As margens, bocejando”.

“Choriro” faz um encadeamento de episódios históricos com um “know-how” intrínseco à prosadores que sabem ungir a realidade de imaginação e a história de ficção. A fragmentação das crónicas épicas do padre António Gonzaga e o enredo final sobre a incerteza do futuro na aringa de Nhabezi recordam o “último discurso de Ngungunhana”. A beleza dessa prosa não se prende em pequenas partes históricas como fazem outros romances históricos, mas sim possui uma beleza que transcorre em todas páginas como quando a tinta despeja-se sobre um livro.

 

O poder do dinheiro “assentou arraiais” no futebol, mandando em tudo e todos. Desde os “crónicos” campeões na Europa e no resto do Mundo, fruto dos seus activos comprados a peso de ouro, passando pela inovação vídeo-árbitro, que pretende trazer justiça desportiva aumentando porém os espaços da polémica, para venda de mais jornais e espaços radiofónicos e televisivos.
Este intróito vem a propósito da “proposta” (alguém tem dúvida de que vai ser aprovada?) da mudança das épocas futebolísticas no Continente Africano para ajustar interesses, que poderão estar desfasados dos nossos, tendo em conta hábitos clima e tradições.

Um mal que vem por bem?

O que é vai acontecer em Moçambique? A CAF impõe-nos novos “calções”, mais estreitos e diferentes da nossa realidade a que nos teremos que adaptar.
Concretamente:
Esta época terá que ser bem mais curta, para depois iniciarmos a temporada de transição, em que, pela primeira vez e contra os hábitos instalados, vai haver futebol “a doer” no Natal e Passagem de Ano.
O que muda?
Muita coisa, se tivermos em conta que os nossos clubes não são auto-suficientes, dependendo na sua maioria dos orçamentos das empresas que os suportam, cujos balancetes, desembolsos e fechos de contas acontecem a partir de Janeiro.
Poderá ser um mal a vir por bem se, atempadamente, a sociedade entender a necessidade de reajustes. O “calcanhar de aquiles” é que o país, da base ao topo, “fecha as portas” no período festivo, finais de Dezembro e a quase totalidade de Janeiro, mantendo-se em acção apenas os serviços mínimos.
Estaremos em presença da necessidade de um acertar do passo com outros futebóis. Caso isso aconteça, seguramente que será como que um mal a vir por bem, podendo os nossos representantes sonhar com voos mais altos.
De contrário…

 

Joaquina Siquice – lembram-se deste nome ínclito da Companhia Nacional de Canto e Dança?  A amnésia ou a displicência são, entre nós, práticas indissimuláveis. Para não falar da memória, que é um prontuário intransitável. Está sempre ao serviço do interesse estabelecido – ou do que se infere estar estabelecido – e não do interesse comum. É usual dizer-se, não raro, que não temos referências. Como não? Não as temos ou não queremos saber delas? Temos nomes e obras decisivas e importantes para aludir. Não as praticamos. Falo do campo da cultura, onde sou propenso a quezílias. Não me refiro a outros domínios, nos quais sou inábil e incompetente e dos quais não sei discernir. Concedo, no entanto, que a chamada agenda setting (uma teoria no âmbito da comunicação que estuda a configuração da agenda noticiosa) é hoje dominada pelo diferendo político e pela espectacularização da sociedade. A cultura foi elidida do espaço público mediático. 

No campo da dança há muitos nomes que são aludíveis, mas Joaquina Siquice permanece, indubitavelmente, como o mais estimulante e espantoso de todos quantos inscreveram, nos arautos desta disciplina singular, os seus nomes. Joaquina combinava uma sedutora simplicidade a uma exímia capacidade de ser verdadeira no palco. Martha Grahan, um mito indubitável da dança, disse uma vez: “Movement never lies” (O movimento nunca mente). Era isto Joaquina Siquice no palco. O esplendor da verdade. Ela tinha uma empatia extraordinária com a plateia e dançava como quem levita no palco, com uma estética apurada e com uma modéstia absolutamente irresistível. 

Foi vasto o repertório de danças originárias de Moçambique que Joaquina praticou: Nonge, Makwaela, Wadjaba, Spe, Sope, Tufo, Xigubo, entre outras tantas, na vastidão e diversidade da nossa cultura e nacionalidade. Tenho a lembrança de um bailado marcante: As Mãos. Concitou públicos entusiasmados, aqui no país e lá fora. No Brasil, alvoroçou plateias, que se levantavam das cadeiras e dançavam com os bailarinos moçambicanos. Depois, encenaram Ntsay. A dança do amor. Quando Joaquina dançava semba – como se dança na Beira, onde ela viveu aliás -, a dança do amor, com sua beleza e sensualidade, era verdadeiramente indescritível. Para além da dança, Joaquina praticou outra arte maior: o teatro. Subiu ao palco para fazer a peça Hlomulo no mítico grupo dos CFM e Karingana ua Karingana no célebre Txova Xita Duma: “A dança”, asseverava, “tem muito de teatro. Nós só utilizamos o corpo. No teatro há a expressão corporal e a voz. Essa é a diferença. Mas gostei de fazer teatro. Foi uma boa experiência”. Por falar de voz, acrescente-se-lhe o canto. Ela cantava. 

Fui repórter – não sei se ainda se usa este belo vocábulo – e coube-me um dia ir entrevistá-la. Intentávamos naquele tempo fazer jornalismo cultural. Recordo-me daquele dia, em que fui visitá-la a casa, com uma estranha nitidez. Não tenho uma memória prodigiosa, mas o choque que experimentei ao conhecer as condições inaceitáveis em que vivia a mais importante bailarina moçambicana de então – para mim a mais importante bailarina moçambicana de sempre – foi muito grande. Joaquina vivia numa dependência. Sinto pudor em redigir esta palavra. Como era possível? Eu estava indignado. Lembro-me da elegância e da nobreza – nobre era ela e não o espaço – com que, não obstante a tristeza, vivia ali. 

Redigi então esta prosa juvenil e apaixonada: ‘’À entrada, divisava-se uma ampla vivenda, o portão abria-se para um imenso quintal. Um cão vigiava-me enquanto ela me conduzia com aquele belo e melancólico sorriso. Ela não vivia na imensa e hierática casa, mas sim na sua dependência. Estivera naquele dia a fazer crochet e arrumou os seus artefactos. Em redor do espaço precário e minúsculo, jornais, revistas, fotografias, cartazes, sofás adornados, um fogão aceso. Tudo isto num compartimento onde a sala e a cozinha conviviam num espaço minúsculo, mas harmonioso. Um lugar, não obstante, tratado com esmero e beleza. Aquela bela bailarina vivia, apesar da sua condição social, com estética. Com ética. Com dignidade. Observei-a antes de iniciarmos a conversa, enquanto ela se movia naquele espaço exíguo. Ela, uma mulher bela e encantadora, com o olhar triste e profundo, sorria. Lá fora, as crianças brincavam alvoroçadas no final daquele dia.”  

Falámos mansamente naquele dia. Iniciámos a conversa pela infância. Eu queria cartografar o fascínio da dança na vida de Joaquina. Quando perguntei se a infância teria sido determinante para o futuro como bailarina, ela escudou-se naquela sua proverbial modéstia: “Não sei”, começou por dizer-me, sorrindo, com um belo sorriso desprendendo-se dos seus lábios. Mas assentiu de certo modo: “Sempre gostei de dançar, porém, nunca pensei que mais tarde seria a minha profissão”. Falámos dos pais. Da mãe tinha desde sempre o incondicional apoio. O pai tergiversara no início. Acabou como incondicional. Tinham orgulho da filha. Falámos do breve casamento e da passagem pela Beira, onde fundara um grupo de dança. Não falámos de Inhambane, de onde era oriunda, e de onde viera em 1978 para estudar com o intuito de lá regressar, o que não haveria de suceder. 

“Joaquina, como é que a sociedade olha para si?” –  quis saber. Não escondeu o desapontamento pelo facto de a cultura não ocupar o lugar e o prestígio devidos na nossa sociedade e vituperou, por assim dizer, e sem estardalhaço, os ignorantes e incultos que desprezavam o seu trabalho e ela própria. Mas sublinhou que havia aqueles que sabiam o valor da dança e que a respeitavam como tal. E a condição social do artista? “É muito delicado.” Com as mãos fez um gesto irrefutável: “É só ver as condições em que estou e não esquecer que sou a primeira bailarina de Moçambique. Mas ainda eu tenho sorte, tenho colegas que…” A frase cortou-se no gume do silêncio. Os olhos marejados. Um sorriso disfarçando o embaraço. E eu que não saberia o que replicar, sorri também, aquiescendo. “Compreendo que há sectores que precisam de mais apoio do que a cultura. Mas é preciso valorizar o nosso trabalho!” – afirmou. 

Passado um ano daquele encontro, em Agosto de 1990, fui entrevistar o Ministro da Cultura, o escritor Luís Bernardo Honwana, para um projecto intitulado Os Habitantes da Memória. Uma das questões que eu tinha para lhe pôr: a questão da situação social dos fazedores da cultura: “Falemos da situação social dos que fazem cultura. Fany Mpfumo, o símbolo da nossa música, teve o destino trágico de uma morte miserável; a primeira bailarina deste país – Joaquina Siquice – vive numa barraca; não se reconhecem os valores que nós temos, por exemplo, o poeta José Craveirinha. Como é que explica esta situação o Ministro da Cultura? Por que é que não são valorizados os artistas moçambicanos?”

Luís Bernardo Honwana deu-me uma longa, inteligente e prudente resposta. Estávamos no meio de uma conversa politicamente sensível. Um território movediço. Cito a última parte da sua resposta: “Mas, insisto, o valor social destes artistas não pode ser unicamente decretado pelas benesses que a sociedade cria, pelo seu conforto ou desafogo material. Talvez tenhamos de chamar aqui outras bitolas e, efectivamente, Moçambique valoriza os seus artistas, aí eu tenho a certeza e penso que alguma coisa se há-de ter feito para que, efectivamente, seja assim.”

A esta distância, penso que, sim, de facto, estamos muito longe de uma sociedade que se reveja nos seus artistas. Isso, por um lado. Por outro lado, não há escala nem estrutura industrial capaz de produzir retorno que crie sustentabilidade aos artistas. Aliado a isso, uma incapacidade de pensar e estruturar políticas públicas na área da cultura que possam mitigar este estágio e permitir o real desenvolvimento do campo cultural. A cultura não faz parte do pensamento estruturante do país – admitindo que este existe. Estou de acordo com os que dizem que não compete ao Estado distribuir benesses aos artistas. Não é isso que está em causa quando se fala da valorização da cultura e dos criadores. Compete, sim, ao Estado criar condições de possibilidade para que os criadores tenham uma existência que não seja a repetição sistemática ou a reprodução de uma condição social precária e desprestigiante, indigna e ignóbil. O Estado tem um papel do qual não se pode eximir. Parte do qual está na educação. Só um país educado pode querer amar os seus artistas, adquirindo as suas obras, fruindo da sua arte, reconhecendo-se na sua singularidade e projectando-se na sua inventiva. Ao Estado também se impõe um papel na defesa e promoção do património cultural, entre outras funções que lhe são indeclináveis. A sociedade civil também tem um papel importante a cumprir. Tal como o jornalismo tem as suas obrigações. Um jornalismo esclarecido – o jornalismo cultural, o jornalismo não capturado pelo imediatismo e a espectacularidade da política e da sociedade – são indispensáveis para a criação de uma massa crítica consumidora da cultura e da arte, essencial à sua existência e prosperidade. O campo da recensão e da crítica, o domínio de reflexão académica ou de outra natureza, essenciais para a contextualização e formação de um público educado, exigente e comprometido. 

Retorno à Joaquina. Falámos, depois, da indignidade a que estavam votados muitos dos reputados artistas moçambicanos. Indignados com o infortúnio de muitos deles, de quase todos. Depois, ambos, ficámos em silêncio. Observei-a naquele instante e divisei nos seus olhos, vermelhos, profundamente melancólicos, a beleza incrível da mulher que me recebia naquela tarde, uma exímia e alegre bailarina no palco, que se transfigurava verdadeiramente, mas ali, parecia acanhada, entristecida, abalada. A conversa estava praticamente vencida pelo desânimo. Disse-lhe eu então: “Os artistas, Joaquina, em todo o mundo, continuam a comer na cozinha do Rei”. Uma metáfora, evidentemente. E ela: “É isso!” E rimo-nos, penso eu, à distância destes larguíssimos anos, para não chorarmos no ombro um do outro. Repetiu-me ela: “É muito delicado falar sobre este assunto”. 

Um ano depois daquele encontro parti para estudar fora, esgotado com a falta de futuro – não obstante a esperança que Roma representava e que iria desaguar em 92 no acordo de paz – e expectante em viver outras experiências e aventuras intelectuais. Não soube mais dela. Anos mais tarde, teria notícias de que emigrara para a Alemanha, onde prosseguiu a arte de cantar. Tem um CD Karingana e há notícias que se encontram facilmente no Google sobre ela. Não a vejo seguramente há mais de duas décadas, mas recordo a sua elegância, a sua destreza, o seu hieratismo, a sua invulgar competência e a inventiva no palco. Recordo-me dela sempre bela e tímida no contacto pessoal, mas exuberante e fascinante quando representava e se transfigurava verdadeiramente nas personagens que interpretava. Disse-o e aqui repito: ela é a mais importante bailarina que este país alguma vez conheceu. Um nome esquecido, ignorado, tergiversado. Como tantos outros. Recordo-a aqui com emoção e faço-lhe este modesto reconhecimento. Nunca deixei de amar aquela exímia, esplendorosa e espantosa bailarina, que me encantou sem remissão possível ao longo de muitos dos anos em que a vi dançar – Joaquina Siquice. 

 

Nos dias em que vivemos e sobretudo nas modalidades olímpicas, ocupamos lugares medíocres e, nalguns casos, abaixo disso. Tal como na componente financeira, dificilmente nos livramos da classificação “lixo”.

Razões de fundo existem para este estado de coisas, sabendo que em tempos tivemos um manancial rico, em que estrelas brotavam e se impunham como que por geração espontânea. Nem sequer tínhamos, então, necessidade dos milhares de doutores em matéria de Educação Física e Desportos que o país formou, para hoje se perfilarem por detrás das secretárias, ou abraçarem outras actividades.

Madalas com saudade…

Choram os seus ídolos, recordando nomes que permanecem no seu imaginário, tais como Matateu, Eusébio e Coluna, no futebol; Arsénio Esculudes, no hóquei em patins; Belmiro Simango, no basquetebol; José Magalhães e Cândido Coelho, no atletismo; Mapepa, no pugilismo…

Um “naipe” a que se juntaram mais recentemente Lurdes Mutola, que não deveria ser excepção, mas a regra no atletismo, João Chirindza, Esperança Sambo, Gil Guiamba, Calton e muitos outros, que proporcionaram tardes de glória na Machava e no Pavilhão do Maxaquene.

Juventude atarantada

Os novos culpam os antecessores de viverem do passado e pouco fazerem pelo presente. Eles não vão aos recintos, fecham-se em casa cuidando dos netinhos, sob o pretexto de que já fizeram a sua parte.

E a pergunta, recorrente, é: o que está a falhar, ao ponto de só conseguirmos estar próximos das lideranças nos “rankings” mundiais, se eles nos forem apresentados de pernas para o ar?

Em tempo de grande convulsão, com secas e cheias de premeio e valores muitas vezes invertidos, as gerações têm que dar as mãos, não para viver do passado, mas utilizando os ídolos, em benefício do tempo presente, até porque a época do “amor à camisola”, já lá vai.

Se cada vez mais o desporto é uma ciência, em que tudo é mensurável, os números que as tabelas internacionais divulgam, não são para serem lidas apenas se nos forem favoráveis. A linguagem do realismo e a prevalecente no mundo actual, é a que se deve impor. Sem oportunismos.

A continuarmos assim, só a olharmos para o nosso umbigo, produzindo relatórios internos com balanços claramente em contra-mão com o lugar que vamos ocupando no Mundo, estamos apenas a enganar-nos uns aos outros.

 

O ardina puxava as calças jeans que gotejavam do caimento da cintura, como cera duma vela, pela mão direita. Na mão esquerda segurava uma pilha de jornais enrolados; segurava os jornais na posição que se aprende nas maternidades: a de amamentar. Depois de repor as calças colou no estendal da mão direita o jornal com uma capa quente; um jornal inundado por um rosto gordo de corrupção e com letras bem nutridas de tinta preta: MINISTRO CORRUPTO.

Avançou o ardina pela rua num passo que seguia os saltos do chinelo arrebentado. Não caminhava, fazia malabarismo pedestre. Não tinha chinelos, tinha borrachas gastas que lhe permitiam pisar o alcatrão pela metade dos pés. O sol que queimava, descontroladamente, as ruas e avenidas e o ardina desviava-o com um boné, sujo, com matrícula duma empresa de detergentes. Enquanto avança o homem dos jornais espreitava os carros que eram hipnotizados pelo vermelho do semáforo. Espreitava e de seguida exibia o jornal com o destaque quente.

Aquela criatura parecia uma montra ambulante de jornais, um manequim vestido de reportagens em movimento. Era um missionário suburbano em expedição. Caminhava no permeio da estrada e desenhava curvas e passos diagonais nas estradas que escasseavam carros. Enquanto caminhava jornais anexados na axila esquerda absorviam, como esponjas de letras, o suor que os pêlos do corpo expulsavam em gotas contínuas. Os bocejos que nasciam em forma de losango na boca do ardina segredavam o sono interrompido para chegar cedo no armazém dos jornais e ter os primeiros jornais.

A coluna do homem dobrava-se e o pescoço cuspia a cabeça a todas viaturas que que passavam com a velocidade segurada. Em outras viaturas, o vidro não se deixava baixar e só via o reflexo da sua cara gorda de sono e cansaço. Via a cicatriz, em forma de linha férrea da esteira onde dorme, serpenteando numa das suas bochechas. Via a sua barba, em extinção, procurando terreno fértil no seu rosto para povoar e reproduzir-se.

“Hoje a cena está manigue off” – tatuou essas palavras no silêncio que crescia, como uma trepadeira, dentro de si. Enquanto pensava, quero dizer, enquanto roía alguns restos de palavras com os dentes de preocupação um Toyota, embriagado de velocidade, carregou o corpo do ardina para o tecido do alcatrão. O ardina estatelou-se no alcatrão com a tampa da boca quebrada. O sangue pintou os dentes como se fossem unhas caiadas de verniz vermelho.

Os jornais voaram na estrada. Os destaques sofreram ataques dos rapazes que vivem na rua. As páginas de necrologia espreitaram dos molhos de jornais. Moedas míseras de dez meticais rolaram e as de um metical coxearam equilibrando seus corpos avantajados nas pontas. Os carros afilaram-se. Meteram-se num engarrafamento de buzinas.

O motorista do Toyota puxou o ardina pelos pés para dentro do seu carro. Enquanto puxava-o, as moedas gotejavam dos bolsos do ardina e o sangue desenhava uma linha fina na estrada. O semáforo não parava de piscar a luz vermelha. Era como se sangrasse pelo atropelamento do ardina.

 

Diz-se repetidamente que Moçambique não é, e nem quer ser uma ilha, num mundo em mutação e adaptação a novos paradigmas. Mas das intenções à prática, a distância é visível e até mensurável. É que, ao contrário da realidade e tendência crescente em todo o planeta, entre nós, o desporto e a cultura, nas intenções e no pulsar da vida do país, ocupam quase sempre os últimos parágrafos.

A prova disso está nos informes do PR, nos discursos ministeriais e até nos noticiários em que estes sectores só entram nos últimos parágrafos e, vezes sem conta, sem aprofundamento nem substância!

Dizia com grande dose de razão, o escritor Luís Bernardo Honwana, que antes dos grandes eventos políticos, tudo se inicia com a exibição da Cultura, e depois… entram em cena os assuntos sérios! O desporto vive paredes-meias com esta realidade de subalternização.

Dançar e correr…só de barriga cheia?

Diz-se que estas actividades só são exequíveis na plenitude, quando as pessoas estão de barriga cheia, com educação e gozando de saúde. Daí que, de forma simplista se apontem como prioridade absoluta, a alimentação, a saúde e a educação.

Porém, analisar o assunto apenas a partir destes parâmetros, é muito redutor, sobretudo devido à interdependência cada vez maior e mais actuante, nas sociedades modernas.

Importa aprofundar conceitos e olhar para exemplos como os de Cuba, com os mais altos padrões desportivos e culturais, em “competição” mas sem conflitos, com os outros sectores tidos como nevrálgicos. “Uma mão lava a outra, e as duas lavam a cara”!

No nosso caso, vejamos: como estaria a situação da saúde, se uma parte da verba destinada a medicamentos fosse para a prática regular do desporto nas escolas, forma segura, barata e eficaz de prevenir doenças, com enfoque para a obesidade e diabetes? E o aproveitamento escolar – está provado – seguramente que atingiria outros patamares, se os intervalos das aulas fossem alegremente preenchidos por movimentos que o desporto e a cultura proporcionam. Isso sem falar no “chega-pra-lá” às drogas e outros males. Muito desporto gera saúde, amizade e aumenta os níveis de produção.

Quanto aos benefícios financeiros directos para matar a fome, que o digam os países que regularmente organizam eventos de grande dimensão, quanto à entrada de divisas, através do turismo e transferência de talentos!

Não deixa de causar inveja a quem tanto sentiu, sente e pugna por um desporto internamente em claro retrocesso face aos “rankings” internacionais, em quantidade e qualidade, quando dos países desenvolvidos nos “bombardeiam” com estas duas áreas monopolizando atenções, prova de que são, verdadeiramente, “assuntos de Estado”!

 

Desci o degrau do asfalto para a areia, na fronteira entre o cimento e a madeira e zinco. Dali para adiante a luz era fraca. Só luar. Os postes de iluminação terminam onde o chão é asfaltado.

O fermento do álcool oscilava o chão como ondas do mar e eu cambaleava. Segurei o leme do corpo como um marinheiro experiente. Ancorei num muro próximo para me aliviar. Meus líquidos azedos e quentes escorreram pelas dobras do zinco reluzindo os feixes tímidos do luar. Parte do vinagre afogou uma colónia inteira de formigas, escorreu a fumegar a temperatura do corpo, juntou-se a um rio de águas domésticas e desapareceu na areia esponjosa.

De longe, com a mesma timidez do luar, chegavam os sons da animação nocturna. De súbito um vulto. Percebi primeiro a sombra. Era negro e enigmático como todos os vultos. Movia-se para o meio da ruela, por onde eu teria de passar. Um frio esquisito trepidou-me a espinha, as vísceras, a alma…

Era mulher. Percebi pela leveza da passada. A leveza que deus deu só as mulheres e aos felinos. Uma mulher?! Antes que me refizesse do espanto ela sorriu. Percebi, àquela distância, um arco da cor de marfim a acender no lugar onde supus ser o rosto do vulto. Desconfiei: será xipoco? É xipoco sorri?

Não fazia vento, como em qualquer noite suburbana que se preze, mas o silêncio remexia a areia em remoinhos. Eu ofegava. Parecia que o vento entrava e saía desordenadamente da minha respiração. Uma orquestra muito barulhenta batia tambores no meu peito. Rebusquei, com o desespero do susto, os bolsos. Procurava o meu par de óculos. Era urgente uma prótese para ver melhor o vulto. Percebi que já usava os óculos quando caíram para o areal onde despejara os líquidos. Recuperei-os. Limpei-os atabalhoadamente com a ponta da camisa. Encaixei-os, com as mãos trémulas por cima do nariz suado e olhei com força de querer ver melhor.

— Explique-se! — ordenei.

Sorriu. A alvura do Marfim incendiou de novo o escuro. Parada, de salto alto e pernas desafiadoramente afastadas, lembrava os lendários cowboys dos filmes da minha infância, prontos a para um duelo. Mas duelo comigo? Que tipo de duelo teria eu com um xipoco?

Com as mãos, e lentamente, afastou do corpo o pano negro (tudo à luz do escuro é negro) com que se cobria, como se ajeitasse uma gabardina à farwest. Para o meu espanto, e os feixes de luar não mentiam, a xipoco exibia agora todos os segredos dos deuses. Os planaltos e as planícies dos filmes de cowboy expostos ao luar e as sombras a descreverem os vales e desfiladeiros que não se viam mas adivinhava-se. Meu Deus, e eu que ainda não tivera tempo para recolher o material para dentro da braguilha. Mas agora não precisava, se era duelo que ela queria…

Fui subitamente tomado pelo feitiço que irracionaliza os homens diante da nudez feminina. O medo a atiçar vontades. Eh, eh, eh, ri-me. Com o membro bélico solto, cambaleei cowboyadamente para o meio da rua, posição de duelo. Em conivência com o luar ela luziu mais a dentadura, gingou a anca deixando o luz afagar. Eh eh eh, riso de bêbado é  tolo.

Dei um passo adiante. Depois outro e outro. Ela parada. Endireitei os óculos instintivamente. Arregalei as pálpebras. Não podia ser xipoco assim bonita. Xipoco não teria este cheiro à  produtos de cabeleireiro que todas as mulheres exalam. E não são assim físicos: toquei-lhe o seio. Sobressaltou-se, naquela timidez fingida com que seduzem os homens, e cobriu o corpo com a gabardine que de perto percebo ser uma capulana. Eh eh eh, riso de bêbado. Segurei-a. Escapou-se como um peixe escorregadio. Correu. Apanhei-a. Escapava. Andamos nisto, no meio da rua, como borboletas nocturnas aos saltos e risos. Eh eh eh… Hi hi hi…

Caímos. Ocorreu-me Drummond: "O chão é cama para o amor urgente". Ela cheirava à mulher. Cheiro de mulher misturado ao cheiro de terra. Terra molhada com águas domésticas e urina de há pouco. O luar afagava-lhe o rosto e acendia dois xipefos no olhar. Olhei-a nos olhos. Não sorriu. Desviou o olhar para uma sombra atrás de mim. Não fui a tempo de me virar. Senti uma pancada violenta. Vi uma luz intensa e escura. Senti mãos vasculhando-me os bolsos e a arrastarem-me para a berma da rua, perto do lixo, para desimpedir a via.

Do resto só me lembro dos focinhos frios dos cães me virem farejar, dos telemóveis curiosos a fotografarem, da televisão popular, da perícia policial e das moscas a perturbarem-me o descanso eterno.

 

Depois de ler “A descrição das sombras” de M.P. Bonde confirmei a frase do escritor espanhol Camilo José Cela: “a literatura não é uma charada: é uma atitude”. A poesia é mais que fazer da palavra um instrumento de leituras de sentimentos ingénuos.

A poesia de Bonde é um produto (in)finito dum poeta que sabe que um verso não condensa o sentido e que ser poeta é uma transformação constante e não um estado permanente. O que Bonde busca em cada verso não é a realização dum poeta, mas sim a de um verso no poeta.

Se o poeta russo Konstantino Balmont em seus hinos e versos catolizava o culto supremo ao sol; Bonde encrava uma liturgia à palavra perfeita. Escala o monte da palavra com suspensórios de insatisfação. Sabe que a palavra é o monte Psilorítis e a poesia é o Zeus.

“A descrição das sombras” é um testamento poético de um poeta intimista fantástico. O intimismo desse livro não é simples; como aquele que se encontra em poetas ligeiros que extrapolam a linguagem na sinfonia do “eu”. A radicalidade do intimismo desse poeta transpõe a linguagem [poética] e dispersa-se harmonicamente em cada página onde o “eu” mostra-se resultado de uma multiplicidade poética e estética.

Em prosa a forma de contar tem mais importância do que o que se conta. Essas “sombras” sugerem-nos que menear a palavra no sentido e no sentimento conta na poesia entrelaçada com a prosa [prosoema ou prosema no dizer de Patraquim].

Théophile Gautier, escritor francês, disse que a música era o mais custoso dos ruídos; e cá penso que a poesia talvez seja o mais afanoso esforço de deter o movimento da palavra. Bonde consegue, muito bem, realizar esse labor. “A descrição das sombras” é, também, um diário íntimo[tal como o de Henri-Frédéric Amiel] de um poeta que lê e escreve silêncios [Rimbaud], que sente as sombras que a sua presença cria nele mesmo: “Não posso roubar as sombras que se refastelam dentro de mim”.

“O poeta não é poeta se não volta ao espanto e à frescura fantástica de menino” [Papini]; Bonde vai à infância e cria sua vista de vê-la: descreve com o espanto de poeta o espanto de menino que sempre foi poeta: “Hoje na roda-viva dos balões coloridos construimos um sonho, uma jangada para os dias”.

Bonde pela sua liturgia e siderurgia na palavra sabe que: “Ah! A poesia. Nasce abrupta entre os milhares de palavras”. A palavra é o seio por onde goteja o leite da poesia. O gotejar harmonioso desse leite depende de como a carne da palavra é posicionada no berço do papel: “Uma pétala sangra o pólen, uma palavra cai na boca, restrinjo os silêncios no chuvisco”. A palavra que se trabalha transcende qualquer estultície poética e estética.

O escritor é cúmplice do tempo, uma besta de sofrimentos insuspeitáveis, um animal de resistência sem fim, disse Camilo Cela [Nobel de Literatura 1989] na sua obra-prima “A Colmeia”. M.P. Bonde é cúmplice do seu tempo e cada verso seu, cada proema seu constitui um ponteiro do grande relógio que é o seu hermetismo.

Em termoquímica [Henri Gess] diz-se que a quantidade de calor libertado durante uma reacção química depende apenas do estado inicial e do estado final. A poesia que é liberta por Bonde subordina-se ao estado inicial bruto da palavra e ao estado final da palavra quando é siderurgicamente trabalhada.

Ao Wamin

Axinene arivava

Os músicos cabo-verdianos, de funaná à morna ou de tabanca à quizomba, encontram sempre motivos para cantar o seu país com uma apetência rala em África e no mundo. Chega a parecer que os filhos daquela “terra-mar” são ensinados, logo na meninice, a louvar o seu espaço líquido e físico como se disso dependesse, primeiro, a felicidade individual, e, depois, social. Atentos ao fenómeno, poderíamos dizer que o facto de Cabo Verde ter tantos filhos no estrangeiro contribui para a emergência de uma saudade que, sendo tantas vezes manifesta musicalmente, parece contribuir para minimizar a dor causada pela distância. Mas isto não é de todo linear, afinal, cabo-verdianos a viver no arquipélago, igualmente, lembram-se de musicar, com afecto, o sentimento que nutrem pelo seu lugar identitário. Além de que ter muitos emigrantes não constitui única razão para um país ser tão celebrado. Ainda assim, é uma condição preciosa, tanto que nos poucos músicos que nós temos para lá do Índico a saudade, tão dominante nas letras dos nossos irmãos crioulos, aparece com algum destaque. Vejamos, por exemplo, os casos de Deodato Siquir, Cremildo Caifaz, Samito, Albino Mbié e Ivan Mazuze.

Seguindo a ordem dos artistas apresentados acima, no álbum Balanço, Deodato Siquir tem uma música intitulada “A kaya”, o mesmo que em casa, traduzido do rhonga para português. Nesse tema, temos uma voz de enunciação que pede a alguém implícito, que até pode ser quem escuta, para mandar cumprimentos às pessoas do seu lar (pais, filhos, irmãos, avôs e etc). É um lar enorme, que se enleva para ideia de país quando, a certa altura, temos na voz musical a extensão dos cumprimentos para vizinhos e para o povo inteiro. Portanto, estando-se fora, a saudade é motivo suficiente para ser cantada numa composição típica de quem espera sempre voltar aos seus lugares, que, deduzimos nós, mesmo humildes, batem dez a zero aquela Suécia na qual o músico mora, do ponto de vista simbólico. 

À imagem do Balanço, em Ciconia ciconia, de Cremildo Caifaz, guitarrista que respira ares alemães, Moçambique é cantado. Não diríamos no sentido de uma lembrança taciturna causada pela saudade, como acontece bem com Siquir, aqui, essa celebração do país é mesmo em termos da representatividade, manifesta num orgulho ao país a que se pertence. Por isso, entre o inglês e o rhonga, Caifaz diz aos quatro ventos que é filho de Moçambique, espaço territorial e cultural de que é adepto. A pretensão não poderia ser outra, no álbum Ciconia ciconia o guitarrista almeja colocar a sua terra de origem na boca do mundo, relacionando o seu talento à pátria amada que o gerou, numa espécie de causa e efeito, como se tudo o que se é fosse consequência dessa mesma relação.

No norte da América, há também um filho do país: Samito, um talento absoluto a viver no Canadá. No single “Tiku la yina”, o sujeito de enunciação configurado pelo músico, falando da sua terra, sublinha que espera um dia voltar. Logo se entende que a mensagem vem do estrangeiro e resulta, igualmente, da saudade de casa, por aí ter o que não se encontra em nenhum outro lugar. “Tiku la yina” significa nosso país e, se calhar, não teria como a composição existir se essa experiência no estrangeiro fosse algo por acontecer.

Ainda nas Américas, ali ao lado de Canadá, temos Albino Mbié, no país do Tio Sam. O autor do álbum Mozambican dance vive nos Estados Unidos lá vão bons anos. Deve ser por isso que se escreve na lista dos que, sentido saudade do seu país, canta-o como sabe, numa suavidade só dele. Assim, Mbié reservou “Mbilo & Kaya”. Nesse som, o músico é claro: “Meu coração sente saudade de casa”.

Se, por um lado, os músicos a viverem fora de Moçambique são dominados pela nostalgia, vontade de regressar sem terem que partir, por outro, esse sentimento dúbio concorre e bem para os artistas derramarem as suas lágrimas nas músicas, como forma de se autoconsolar, suavizar o coração, estar perto da sua gente – ainda que forma fictícia –, e, o mais importante, transformar a saudade em arte. Este também é o cenário que caracteriza Ivan Mazuze, a viver na Noruega, no álbum “Ndzuti”, no qual encontramos a música “Mosambik”. Sem palavras necessárias, o saxofone e outros instrumentos parecem configurar imagens infantis, feitas de brincadeiras ao estilo “hamatue tué”. Percepções apenas. A verdade é que estes cinco músicos juntos contribuem para não enxergarmos apenas problemas no nosso país. Bem dito, fazem de Moçambique um lar bom de se estar. Talvez, para se atingir esse nível de entendimento é mesmo preciso estar-se fora, alheio a tudo o que pode corromper a imaginação e o sonho. Os músicos são guardiões desse sonho.   

 

 

 

 

 

Voltei a ouvir o disco Atravessando Rios de José Mucavele. Sinto o mesmo sobressalto e o mesmo espanto do miúdo de 18 anos quando, em 1985, surgiu este belíssimo disco e tocava na Rádio Moçambique. Tenho 50 anos e o mesmo assombro daquele miúdo que fui e que continuo a ser, por certo. Estes acordes, esta melodia, por vezes pungente, estes solos de saxofone, estas congas, estes timbales, estas guitarras, estas letras exultadas e exultantes, enganosamente datadas, esta belíssima voz, poderosa e talvez melancólica, arrebatadora, levam-me implacavelmente àqueles anos – os anos 80. José Mucavele é um dos meus cantores e compositores imprescritíveis. Há sete anos que não ouvia, assim, este disco. Com diligência. Recordo ainda hoje o dia em que entrei, em Lisboa, numa vetusta loja da Valentim de Carvalho, hoje desaparecida, e comprei este CD. Foi um dia jubiloso, um dos meus dias felizes, naquele tempo em que eu expendia os meus anos na capital portuguesa e tinha pouco dinheiro para aceder a livros ou discos. Este é, por conseguinte, um dos meus discos electivos. Guardo-o ciosamente. Não só pelo significado afectivo que tem, mas sobretudo pela densidade ontológica que transporta. Estas músicas fazem parte da banda sonora não só da minha vida. Como moçambicano, posso afirmá-lo: este disco ilustra o meu orgulho de pertencer a esta Pátria. Não sei explicar isto, mas é ouvindo este e outros cantores, que dizem aquilo que me pareceria inexprimível, que cantam a dor infinita deste povo, que traduzem na magia das suas letras e canções o ser moçambicano, que eu melhor realizo o ser moçambicano. Aqui há tempos cheguei a afirmar que, mais do que a escrita, era no canto e noutras artes performativas que era possível capturar aquilo que se pretende que seja ser-se moçambicano. Tenho ouvido os nossos cantores dos anos 80 e 90 e creio não estar longe da verdade.

Os anos 80 têm para mim o que há de mais trágico e dramático nas nossas vidas e o que há de mais belo e puro e surpreendente. Falo de mim. Estou dividido entre estes dois sentimentos aparentemente contraditórios. Naqueles brutais anos, a Independência era o nosso orgulho supremo. Vivêmo-la com emoção incontida. Mucavele interpretou, como poucos o fizeram, esse sentimento na sua música “Nkhululeko”, composta justamente em 1975, o ano em que nos tornámos livres. Esse sentimento de um homem livre. Esse júbilo pelo qual eu havia de içar, à porta de casa, ali no Bairro Indígena, uma bandeira que desenhara nas folhas centrais do meu caderno, e pregar num caniço. Esse sentimento que vejo por vezes postergado, derruído, nestes dias, por estes dias de desespero, estes dias obsidiantes, esse sentimento era para nós um sentimento irrevogável e inegociável. Cresci, por conseguinte, adepto da bandeira e do sentimento de liberdade. Cresci com esse sentimento único de ser um homem livre. Por isso, mais do que tudo, eu amo a liberdade. Tenho dificuldade em aceitar tudo o que seja contrário à liberdade. Sou um implacável amante da liberdade.

Oiço este Atravessando Rios e viajo pelas estradas livres do meu país. “Xibomba xa Romos”. A Romos era a metáfora da possibilidade deste país. A Romos era o sonho possível e o sonho improvável. A derrota da Romos foi também a derrota desse sonho. Da possibilidade de o alcançar. O machibombo da Romos de Mucavele ia para Manhiça, ia para Xai-Xai, ia para Quissico, ia para Inhambane. Ia por este país afora. Outras extensões da companhia, no centro e norte do país, atravessavam Moçambique. Quando a estrada se transfigurou num cenário do apocalipse e os autocarros da Romos começaram a arder, também ardeu esse espantoso sonho que tínhamos de percorrer esse país. José Mucavele cartografa esse sonho em 1979, quando o nosso sonho não tinha sido ainda dilacerado. Seria, na década ulterior, que iríamos viver ou defrontar as impossibilidades de percorrer este país, que iríamos defrontar a aporia desse sonho. Também, ali, naquela metáfora, soçobra, por assim dizer, o devir moçambicano. Oiço-o com melancolia por esse país que teríamos sido, por esse sonho que sonhávamos – passe a redundância. Oiço-o e não me contenho. Explico o significado destas músicas à minha filha. Falo-lhe daquele tempo onde o júbilo e a depressão se cruzam. Parece um paradoxo. Mas quem atentar ao melhor da nossa música, naquela época, é isso que encontra.

 “Atravessando Rios” (1978), título homónimo deste disco, é um dos seus temas mais belos. É pungente. Eu diria que este tema dialoga com “Xihomboloki” (1975). Falam da mesma ausência – da mãe. Traduzem essa dor e essa busca. “Xihomboloki” significa melancólico. O saxofone e os acordes de viola transmitem isso. Essa ideia disfórica da realidade. O que está nos antípodas do tema que se segue a este – “Nkulululeko”. A expressão da euforia. Do júbilo. O hino da nossa alegria. O rio, as estrelas, a noite, a harmonia, o amor em “Nyelete” (1983), em oposição à fome, à guerra, ao infuturo (termo pretensiosamente meu), em “Ndlala” (fome), de 1984, constituem um bom contraste e um bom diagnóstico daquela década de 80. Belíssimos e trágicos anos 80 – disse-o eu algures. Ano em que permanecíamos firmes na praça para ouvir o Presidente; anos em que madrugávamos para nos revezarmos com pedras nas bichas do pão e da carne do Botswana, do carapau de Angola; anos do repolho, cozido e recozido; anos indescritíveis. Anos de fome. O tema da fome percorre a nossa música. Para nós, no secundário, anos do queijo do Tio Reagan, cujas sandes, disputadíssimas, comíamos ao intervalo das aulas, ou da maçã do vizinho Botha, depois do Acordo de Nkomati. Anos únicos. Quando falo daqueles anos aos meus filhos, eles desconfiam de que seja o prodígio da minha criação literária.

Acontece que estes acordes, acontece que estes sons, acontece que estas letras, acontece que esta voz, poderosamente melancólica, que se atém àqueles anos, fala de um tempo que foi nosso. Um tempo único e exemplar. Porque, no meio da exiguidade, no meio da fome e do grito de fome, como ele o faz, no meio da mais abjecta miséria material, ainda havia algum humanismo, ainda éramos capazes de partilhar o que tínhamos e não tínhamos tanto como isso – fosse sal, fosse açúcar, ou uma côdea de pão duro. Os vizinhos conheciam-se e falavam-se. Eram solidários. Não tínhamos chegado a este egoísmo, a este grau exacerbado onde os que têm tudo flanam pelas ruas ou nas redes sociais os seus pertencentes, muitas vezes ilegítimos, tantas vezes gongóricos, outras tantas infelizes. Tempos em que criámos uma elite mais preocupada consigo do que com o bem comum. Onde os que não têm nada estão destinados ou condenados ao infortúnio e à infâmia. Naquele tempo todos nós ainda tínhamos esperança de haver um futuro, de vivermos um futuro que a Independência nos havia prometido, havia entre nós um desígnio, parece que tudo isso foi vencido. Espero, no entanto, que não tenha sido uma derrota.

Este disco é de um tempo anterior a este sentimento de perda e a esta angústia do desespero e, provavelmente, de resignação. Este disco é anterior a este momento deprimente. Há aqui uma felicidade e um júbilo. Retorno a este sentimento enquanto oiço, outra vez, como se fosse a primeira vez, “Nkhululeko”. Este regozijo. Este disco, todo ele, é belo. Belíssimo, quero eu dizer. Todo este disco é a expressão de um momento criativo espantoso. Quis o destino e quis a fortuna que José Mucavele não se ativesse a este momento auspicioso da sua criação. E que compusesse muito mais obras. Eu sou admirador indefectível de uma canção belíssima e também melancólica, posterior a este disco, creio eu, que se chama “Balada para as minhas filhas”. É uma obra-prima. Quando oiço esta balada, empolgo-me até às lágrimas. Tal é a sua beleza. Outro dia, traduzi-a para a minha filha, se é que é possível traduzir o que há de mais belo na invenção e na arte. Se eu fosse compositor gostava de ter feito “Balada para as minhas filhas”. É a quinta-essência da sua invenção e um dos momentos altos da música moçambicana. Voz e violão. Nesta música vê-se o grande poeta José Mucavele, vê-se o grande esteta, o grande cultor da sua língua e magistral inventor de  metáforas. O que Atravessando Rios denunciara, ou aquelas composições que lhe são anteriores, também, haviam prenunciado – anunciado. Aqui está o poeta do amor, do futuro, da bondade, da liberdade. Creio serem estes os grandes valores da música de José Mucavele, o homem que canta o amor e a liberdade, o homem que sonha a bondade – sublinho a bondade, tão deserdada de nós hoje – , entre os outros, entre todos. O futuro. É um hino ao futuro esta balada, apelo aos valores, aos grandes valores – muitos deles defenestrados no presente -, ao conhecimento como forma de liberdade, à bondade entre os homens, à esperança. Esta canção carrega dentro de si metáforas fortes de uma dimensão social, ética e estética profundíssimas e engrandecedoras, uma bela canção de amor às filhas, finalmente. Eu queria saber cantar isto para a Mayisha Imara. Oiço de novo José Mucavele, esta noite. Oiço-o – como o ouvia aos 18 anos – com veemência sublinhada, com encanto desarmado e com uma candura desprevenida.

Neste momento trabalha-se no sentido de materializar a oferta pública de acções estando-se em contacto com a HCB no sentido de se ter um plano de comunicação eficaz, que permita que todos os moçambicanos sejam avisados com tempo sobre a informação relevante do processo.

É o prestigiado Notícias que, da Terra da Boa Gente, traz aquela caixa de informação privilegiada de uma personalidade de prestígio, o Dr. Salimo Valá, Presidente da Bolsa de Valores de Moçambique.

O mesmo Notícias que no dia 6 de Dezembro de 2017, boas semanas antes, na primeira página, anunciava: “Iniciado processo para Venda de acções da HCB”.

Pelos vistos, para além do anúncio da privatização de 7.5% de acções da HCB pouco mais se sabe porque o que deve ser sabido depende de um plano de comunicação eficaz, ainda em cogitação, que permita que todos os moçambicanos sejam avisados com tempo sobre a informação relevante do processo e que, apesar de tudo, estão entre os muitos interessados em adquirir acções de HCB.

O  plano  de  “comunicação  eficaz”  tem   que  existir;  é  uma  voz autorizada que o diz.

O plano de “comunicação eficaz” deve informar o valor da Hidroeléctrica de Cahora Bassa, SA que não pode ser, por razões óbvias, o da compra ao Estado Português, nem o exibido pela sua Contabilidade.

O plano de “comunicação eficaz” tem que apresentar o estudo feito por uma empresa reputada, de idoneidade e competência técnica interna e internacionalmente reconhecidas.

Talvez não a Kroll pela sua lentidão!

O plano de “comunicação eficaz” tem de apresentar o valor actual e o valor previsível em cada década do próximo meio século.

O plano de “comunicação eficaz” tem que demonstrar porquê os novos accionistas têm vantagens de comprar as acções.

O plano de comunicação eficaz” tem que demonstrar porquê o Estado precisa de fazer esta oferta pública de

acções.

Do que se sabe, ou se pode inferir, é que o Estado precisa de investir com urgência na HCB fornecedora de energia a várias distribuidoras nacionais, incluindo à pública endividada e pátria Electricidade de Moçambique, EP.

Também irrefutavelmente se sabe que o Estado ou o Governo só sabe que quer vender 7.5% de acções da HCB.

Porque ainda não existe um plano de “comunicação eficaz” que permita saber quanto vale a HCB, hoje e nos amanhãs próximos e longínquos, ninguém sabe ainda de que 7.5% de quanto se está a falar, muito menos quanto se vai arrecadar e porquê, apesar de parecer saber-se o para quê.

Talvez  se  vá  descobrir  que  os 7.5%  venham  a  ser  considerados insuficientes para o montante que se pretende arrecadar; para isso basta uma qualquer engenharia que avalie a HCB como uma Hidroeléctrica de Rovuè, em Chicamba (Manica) e haveria necessidade de abertura de mais 7.5%.

Porque  ainda não existe um plano de “comunicação eficaz” há muitas respostas que devem ser dadas a perguntas que não podem ser consideradas inexpressivas, como são as que faço!

Como se  sabe  que há  muito interesse  em  adquirir  acções  de  HCB quando tudo indica que não haver ainda um plano de comunicação eficaz, que permita que todos os moçambicanos sejam avisados com tempo sobre a informação relevante do processo?

A oferta pública de acções é apenas para os moçambicanos?

Sendo uma operação bolsista de oferta de acções como garantir a vivaz nacionalidade moçambicana do accionista? Não teremos accionistas portadores de bilhete e passaporte adquiridos ad hoc?

Estas novas juntam-se   às anteriores de igual má qualidade que, em insistência, repito:

(a) em que Assembleia Geral foi essa decisão tomada? Quais os fundamentos? Porquê esta solução e não outras? Como foi preparada a operação bolsista antes de plano de “comunicação eficaz”? Como se garante que os que detentores de informação privilegiada não sejam admitidos?

Não teria sido mais interessante para o Povo Moçambicano, os moçambicanos (não uns moçambicanos, que não são todo o Povo, quiçá o Clero ou uma nova Nobreza) que o Estado tivesse procurado  dinheiro, através de crédito ou de dividendos da HCB para comprar as acções ainda privadas, ao invés da sua destatalização ou, em direitas contas, como não gradualmente nacionalizar as poucas acções nas mãos de privados, sejam elas de Moçambicanos ou de estrangeiros?

Não  são  dúvidas  académicas  porque  a  estas  tenho  obrigação  de procurar e ter respostas convincentes.

São dúvidas de medo do futuro dos nossos futuros porque os Libertadores da Pátria preservaram este valioso bem, da sua artilharia e minas reforçadas, para poder oferecê-la ao Povo Moçambicano, unido do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico.

Do que se trata é da venda de um dos principais activos financeiros e históricos de Moçambique, de tirar-se completamente do ar uma das peças basilares da soberania, da unidade nacional e do equilíbrio do jogo político regional.

Capitalizar com dinheiro novo a HCB por meio da abertura de capital é uma possibilidade.

Acontece que a HCB, precisando de dinheiro novo tem todo o investidor sério a correr para fazê-lo, com poucos condicionalismos e sem exigir o Aval do Estado, embora o contrário, neste momento, só possa parecer estranho.

Para tornar a HCB mais saudável no longo prazo, para continuar grande, não é precisa uma faxina profunda, bastando estar protegido por um pacto de regime das cobiças, quer internas quer estrangeiras.

Se esta é uma recomendação das missionários de Bretton Woods, por favor, que haja decência para dizer a eles, repetindo S. Bento, vade retro satana.

Este balão de ensaio da pluriprivatização serve apenas para lembrar que há dois lados opostos dentro de Moçambique, com desejos muito diferentes sobre o que o nosso Moçambique se deve tornar.

Quando  se  anunciava  o  muito  interesse  em  adquirir  acções  da Hidroeléctrica de Cahora Bassa, prometia-se que a venda não iria afectar a produção da empresa.

Tomara! Trata-se de uma verdade de La Palice!

Não deixará, porém, de afectar Moçambique e os moçambicanos e o que eles bem presam…

A política do capitalismo popular, do jeito que é conduzida, é uma mistura de populismo e política, com alguns agrados e a criação da sensação de que se quer redistribuir a riqueza pelo Povo.

Se não se aceita que seja uma falácia, por favor, que sejam apresentadas provas de que não há saídas mais baratas, inteligentes, menos susceptíveis a desvios, menos penalizantes…

Esta é a questão que se põe para o futuro de todos os moçambicanos e não apenas de um minúsculo grupo que, para o mal dos nossos pecados, se alcandora com legitimidade para ter direito a esta redistribuição da riqueza, sem obedecer a qualquer são princípio de justiça social.

Considero que as chamadas dívidas ocultas (que não me caia o Carmo e Trindade ou a Sé e os Paços!) que correspondeu a um processo de o País adquirir artes de pesca e equipamento militar e de segurança para as nossas riquezas naturais, apesar do secretismo envolvido, ocorreu em termos menos conspirativos do que este anúncio de venda pública e aparentemente democrático.

Antes do próximo lustro veremos as razões.

Não estou ao serviço dos outros, nem de ninguém em particular, apenas servir-me da minha consciência cidadã, para servir o único Patrão do meu Presidente – o Povo.

Tenho esperança que vale a pena servi-lo, mais não seja porque as nossas almas não são pequenas e não querem ser derrotadas.

A HCB devia ser tendencialmente 100% estatal, mantendo-se como SA, por uma lógica de uma adequação às melhores práticas de governança do mercado.

Pensar-se em recriar uma HCB empresa propriedade da HCB, 100% estatal e nacional e uma outra HCB gestora da HCB, eventualmente disponível ao vampirismo?

Porquê  os  investidores  privados  moçambicanos  tendo enxergado  a capacidade de investimentos, rentabilidade e viabilidade do sector eléctrico no País preferem HCB e não a Mphanda Nkuwa, Massingir, Mapai, Pequenos Libombos  ou Moamba-Major, disponíveis em ppp’s?

O Estado, o maior interessado no fornecimento de energia mais barata e para todos, para atingir os OdM, estará já fulminado?

Não veria com maus olhos uma estação de televisão, uma transportadora aérea nacional, um distribuidora de electricidade não totalmente do Estado, especialmente quando nos dizem, ano após ano, que teremos que os financiar com os nossos impostos.

Não  defendo  que  se  nacionalize  por  nacionalizar  a  HCB,  advogo, apenas, que não se tenha medo de discutir essa alternativa ao lado de todas as outras, muito menos representar um tabu questionar a meteórica e inexplicada partilha de acções, num tempo célebre por acabar com as vacas sagradas.

Últimas perguntas, hoje:     

(1) Quantos mais 7.5% serão vendidos,

(2) com que periodicidade,

(3) até que limite de capital, e

(4) quem decide (a HCB, o Governo ou o Estado)?

Se nada de ilegal há, algo de ilegítimo e antiético passeia-se…

Ka Tembe, Janeiro de 2018

 

 

 

No telemóvel ainda choviam cordialidades pela passagem do ano. A cabeça pesava-me como se estivesse cheia de babalaza de todos os destilados. Por isso não me levantei logo da cama. Mas não ia demorar ali deitado porque não gosto de estar sozinho, sem vozes de pessoas ou outros ruídos a entreterem-me os ouvidos. Sozinho, há espaço para o silêncio. Fujo do silêncio para, no meio de outros barulhos, poder fingir que não ouço a incontornável voz da minha consciência. 

A minha consciência fala baixo. Com voz serena e vibrante. Como se discursasse sem microfone do meio de um átrio sagrado. E fala pouco, mas assertiva, como um padre experiente, capaz de resumir uma missa inteira em duas ou três palavras.

Ainda de olhos fechados, no lento processo do despertar, já ouvia a respiração intensa da minha consciência. Abri os olhos por instinto, mesmo sabendo que não a veria. Nunca ninguém viu a própria consciência, apesar de ouvirmo-la sempre. 

Olhei para o tecto. O tecto olhava para mim. A cabeça pesava. Pesava muito. Ia voltar a fechar os olhos para aproveitar o resto de sono, por alguns minutos. Mas um ruído interrompeu-me. Era o som seco de uma tosse. Era a minha consciência a tossir, chamando-me atenção. Antes que ela começasse a dizer coisas,  levantei-me da cama.

Eu estava mole, com o cansaço do ano inteiro que recai sobre nós por estas alturas, e com este peso enorme na cabeça. Quando me levantei parecia que os meus miolos se tinham transformado, durante a noite, em chumbo. Sentei-me na borda da cama. Não bocejei. Não espreguicei. Estava sem forças até para a higiene matinal. Sem forças para o café da manhã, para os jornais que me acompanham os cafés. Malditos jornais, pensei. Não os quero ler. Nem um! Nem um pôs a minha foto na capa como figura do ano. Mesmo depois dos lobbies que fiz. Se eu fosse figura do ano num desses jornais, não me escapavam uma dessas nomeações sazonais. Juro. Não me escapavam.

Olhei para o espelho. Eu estava com mau aspecto. O espelho devolvia-me a imagem como se a rejeitasse. Como se não quisesse responsabilidades sobre as iniquidades do mundo. Levei a mão à  testa,  instintivamente, avaliando a temperaruta do corpo. Não estava febril. Mas a cabeça pesava como chumbo e doía.

— Precisas ir ao médico — falei em tom amigo, ao outro eu do outro lado do reflexo. 

— Médico? Mas não estás doente… — intrometeu-se a voz da minha consciência. Percebi que estava ali muito próximo, embora não a visse no espelho.

— Mas pesa-me cabeça, e dói-me muito. Nem é ressaca porque não bebi. Deve ser malária — respondi-lhe a olhar para o meu reflexo, como se olhasse para quem me falava, habituado a diálogos com contacto visual.

— Olha bem para ti .

Olhei para o espelho

— Não para o espelho. Para dentro de ti.

Eu não sabia como é que alguém podia olhar para dentro de si. Mas fiquei calado a olhar para o espelho. 

— Vês? — perguntou-me.

Eu não via nada para além da minha imagem refletida no espelho.

— Se queres ser político…

— Mas eu sou político.

— Não. Ser político é mais do que isso. Olha bem para ti.

Silêncio. No reflexo a minha barriga aparecia gorda de comissões. E estava suja. As minhas mãos também apareciam sujas, muito sujas.

— É o sujo da corrupção — disse a voz.

Apercebi-me que o espelho estava rachado. A rachadura percorria o espelho de tal modo que parecia barra de uma grade. E o meu reflexo estava atrás  das grades. Assustei-me.

— Vês? — a voz falou como se pousasse a mão no meu ombro — esse peso na tua cabeça não é  malária. Não é  babalaza. É peso de consciência.

No canto do espelho, a rachadura terminava em muitas outras, e fragmentava a minha imagem. Eu que tudo fizera para ser a figura deste ano nos jornais e conseguir uma nomeação, estava a sentir-me desfigurado pelo espelho e pela consciência. Estava a sentir-me a Desfigura do Ano.

 

Desde miúdo que guardo a sensação de que cada ano, mesmo no seu término, nos trata como se tivéssemos a irrelevância de uma mascote pronta a ser esquecida. Não vejo o que haja a comemorar. Além disso, nem todas as cicatrizes são tão espectaculares que mereçam o relato do que as produziu. 

Ganhei na última década o hábito de vir passar os derradeiros dias do ano numa lagoa, sem televisão, um lugar quase sem rede telefónica, com uma net gotejante, que exaspera quem dela necessite, e onde os fogos-de-artifício têm a fulgurância dos fósforos molhados no bolso de um esquimó. Chamo a este lugar, em homenagem à minha mulher, Santa Teresita.

Bem me tentam os amigos para que com eles festeje em lugares de estardalhaço e dissipação; acabo sempre por desviar-me para esta modorra. Eles não sabem porquê, mas vou-vos contar.

Meia-noite e dez sob o alpendre. As miúdas festejam cada “fulminante” que se recorta nos céus. Eu, nas costas delas, sentado à mesa, beberico a Ermelinda e espero uma visita. Todos os anos tenho uma visita.

Tossem nas minhas costas, diligentemente encho de vinho a caneca que mantinha vazia ao meu lado e só depois olho por sobre o ombro.

É Napoleão. Diz-me, Espero que não te importes, estava entediado em Santa Helena. Não, estás à vontade, esperava por ti. Convido-o a sentar-se

Lembra-me como celebrámos o fim de ano em Moscovo. Na véspera caçámos o veado que agora nos era servido, e eu ao seu lado, com um martelo de ouro partia nozes, enquanto a pequena orquestra atacava uma polca. Um conde russo, que apostou no cavalo errado e espera futuras prebendas do imperador francês, introduzia-nos nas delícias da vodka artesanal e trouxe-nos duas irresistíveis gémeas ucranianas, com rasgados olhos fulvos, que partilharemos. São onze e trinta, faltam trinta minutos para o réveillon e Napoleão insiste em oferecer-me o comando da cidade de S. Petersburgo. Agradeci-lhe mas intuo que me quer desviar do meu béguin por Josefina (esperto como um alho, ele já entendeu) e rejeitei-lhe a oferta, contrapondo: “Tão a norte até o meu sangue tropeça no seu passo, se me queres ocupar preferia que me oferecesses Amsterdam, até porque estou comprometido com uma neta de Rembrandt”. Ele não me diz que não, replica apenas, enchendo-me o copo com mais uma dose de rum, “Deixa que o duende da bebida seja bom conselheiro!”. Passámos a noite em transe a recordar algumas noitadas em Viena de Áustria ou a discorrer sobre a cosmologia nas tatuagens dos quioquos.

É disto que os meus amigos se foram esquecendo, aturdidos pela festa, urbana e desmemoriada. Na passagem, entre os anos, podemos ter uma visita. Nem vos conto os meus réveillons com Baudelaire, Stravinsky, Pasolini e em Cuba, com Lezama Lima. Com Lezama, vi à mesa (provei-o) o menu do banquete do Satíricon, que vos descrevo, deliciado: ovos de pavão, um papa-figos muito gordo untado de gema com pimenta, vinho com mel, grão-de-bico cornudo, uma vulva de porca estéril, empadas de javali, tâmaras frescas e secas, uvas, salsichas e chouriços, um bezerro cozido, uma franga gorda, à guisa de tordo, e ovos de pata encapuchados; um porco coroado de morcela e, em redor, sangue coalhado e miúdos de ave muito bem preparados; acelga e pão integral; lombo de urso; queixo fresco preparado com vinho abafado; um caracol por pessoa; empadas de tordo recheadas de passas e nozes; marmelos eriçados de espinhos. Não foi nada mau. À vulva de porca estéril tive de desfrutá-la às escondidas para que a minha mulher não notasse.

Há três anos conversei com Picasso, que nessa noite me levou a Paris. Os sinos acetinavam o ribombar dos fogos. Já tínhamos aviado três garrafas de Bordéus, e ele mete na mesa uma bagaceira caseira. Todos os outros convivas estavam na varanda. Só nós dois quedávamos à mesa, e ele comentava, a voz já levemente pastosa, “… muita gente julga que não vendi de imediato as Demoiselles d’Avignon por apego à arte, tolos, eu sabia que os meus quadros iriam valer ouro nos leilões de arte, escuta o que te digo, daqui a setenta anos, só os quadros do Da Vinci se equipararão no valor que será alcançado pelos meus quadros nos leilões…”. “E isso, para ti, é importante?”, pergunto-lhe intrigado. “Bom, prefiro a água de uma fonte na montanha à que sai das torneiras de ouro, em Versailles, mas só o dinheiro nos pode dar a ilusão de que o nosso tempo não se gasta…E vais ver que um dia os árabes, com os petrodólares hão-de fazer museus onde quererão pôr a Renascença e as Vénus nuas a sair das águas, eles que sempre proibiram a representação do rosto e do corpo humano… Acho que o mundo enlouquecerá sem dignidade…”.

Tomei aquela por uma conversa de ébrio, até que hoje, dia 1 de Janeiro de 2018, li no Público de 31 que o quadro de Da Vinci, Salvator Mundi, um dos símbolos da arte cristã, foi rematado num leilão por trezentos e oitenta e dois milhões de dólares, tendo sido a quantia expedida pelo Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi, a capital dos Emiratos Árabes Unidos, onde abrilhantará as paredes da sucursal do Louvre.

E leio que, ao lado, os demais países árabes descobriram os museus e assaltam como gafanhotos de patas de amianto e cabeça em aricalco o mercado da arte. Não sei como a arte ocidental, a preferida por tais compradores – pelos vistos -, se compadecerá com os dogmas religiosos muçulmanos, mas é uma curiosidade a seguir com atenção. Esperemos que, como aventava Picasso, isto não seja mais um sinal do mundo estar literalmente chanfrado mas antes um indício de abertura.

Temo agora que as conversas com os meus visitantes não sejam inocentes mas proféticas e ter quebrado alguma corrente mágica quando não aceitei governar S. Petersburgo. Embora toda a noite Napoleão, afinal o criador do Louvre, tenha revelado uma grande capacidade de perdão. 

 

 

 

 

 

 

Antes de entrar nos meus entas era uma obsessão recolher pedacinhos de tudo quanto visse quando fosse algures pelo mundo.

Já tive miniaturas da Torre de Piza, Basílica de S. Pedro, Coliseu de Roma, Estátua da Liberdade, Cristo Redentor do Rio, Ponte 25 de Abril, Basílica de Yamoussoukro, Santuários de Nossa Senhora de Fátima e de Lourdes, Petra, Taj Mahal, etc.

Os meus filhos foram se divertindo com essas minhas recordações e muitos são destroços irreconhecíveis de um grande maremoto; hoje deleito- me com porcelanas da Vista Alegre com Pinturas da Sé Catedral de Nossa Senhora da Conceição, da emblemática Estação dos Caminhos de Ferro e dos vetustos Paços do Município de Maputo.

São os meus pedacinhos de recordações de sítios jamais  sonhados pelos meus pais e que são património impenhorável e imprescritível dessas Nações.

O Governo da República de Moçambique,  recentemente, anunciou a decisão de delimitar algumas regalias próprias dos tempos faustos.

O Estado, entre milhentas de outras formas, podia ter optado em financiar-se junto da banca nacional, emitir Obrigações de Tesouro, Títulos do Tesouro, ou emitir um empréstimo forçado.

Não enveredou por essa via e optou por uma das mais elementares regras de gestão das contas públicas, em particular da despesa, a mais cara e emblemática na Escola do sistema Bretton Woods: combater o despesismo.

Trata-se de uma medida pertinente que só pode demonstrar sentido de Estado e perfil grandíloquo de quem a tomou e de quem bem controlará a sua aplicação.

Felizmente, não optou por vender alguns edifícios públicos, algumas estradas (bem precisando de investimento), o Roll Royce, os museus que só ostentam antiguidades históricas, cujos pedacitos muitos bem gostariam ter entre os seus pertences.

Imagine-se só quão estupefacta estaria, lá no fundo, a minha avó se assistisse que a estrada que abriu no Xibalo, a propósito de financiar mais investimentos para alargá-la (afinal tinha sido concebida senão para o “randrova” do Administrador da Circunscrição do Concelho do Ximbutso), estava a ser privatizada e vendida aos bocaditos…

De  certeza,  a  velha  da  minha  querida  avó  iria  esquecer-se  de  ser desdentada e, no uso da democracia etérea, pediria uma reunião com Mondlane, Samora e outros ilustres para mandar o aviso de que se deve saber que privatizar o que custou o sacrifício do seu sangue consubstancia uma inconcebível privatização.Para erigir um Panteão Nacional, bem necessário para honrar esses nossos mártires e heróis  tínhamos de vender alguns pedacinhos de quê?

Quem  detém  os  pedaços  de  HCB,  através  de  acções,  é  dono  ou doninho (se isso serve de consolação) da HCB e é isso que se diz ser ignóbil.

Mesmo  partindo  da  hipótese,  absurdamente  académica,  de  que  a Hidroeléctrica de Cahora Bassa é apenas a empresa gestora e não a proprietária da Barragem, não seria desejável que as accõeszinhas (os tais pedaços de HCB) fossem vendáveis.

O Governo colonial Português, melhor, o Governo fascista e salazarista da metrópole, nos anos sessenta do século passado, capitalizou o Plano de Desenvolvimento do Vale do Zambeze, através de Obrigações e para financiar a  construção  da  barragem  o Consórcio  ZAMCO  –  Zambeze  Consórcio Hidroeléctrico, Lda, acredito, que não abriu o capital para novos quotistas.

Na verdade, o que pensava é que a Albufeira de Cahora Bassa e a própria Barragem de Cahora Bassa que a forma não deviam ser privatizadas.

Se em algum momento da trajectória da nossa história político- financeira foi necessário abrir mãos ao capital privado (diga-se com muita clarividência),  é  tempo  de  nacionalizar  (no  sentido  mais  erudito  e  jus-

económico do termo) esse capital com a justa indemnização, que se impõem, nos termos da Constituição, provado ter sido por causa de (i) necessidade, (ii) utilidade ou (iii) interesse públicos.

Alias, é essa Constituição, a que eu apenas devo respeito e não a sua defesa, que impõe ao Estado o dever de promover o conhecimento, a inventariação e a valorização dos recursos naturais e determinar as condições do seu uso e aproveitamento, com salvaguarda dos interesses nacionais.

Os interesses nacionais sublinhados  não se resumem aos interesses de grupo ou grupo de interesses, mesmo que eles sejam muitos e colectivos.

Os interesses nacionais cuja salvaguarda é pela Constituição exigida ao Estado é mais do que qualquer interesse de moçambicanos, devendo ser os da NAÇÃO, esse ente passado, presente e futuro que nos deve animar, acima das nossas vontades.

A Hidroeléctrica de Cahora Bassa, como um bem público que não acata o princípio de exclusão, é de consumo passivo e, como tal, é indivisível, inexcluível e irrival1.Para o pagamento da compra da HCB ao Estado Português, na primeira década deste século, recorreu-se a um empréstimo comercial.

Nesse empréstimo, Moçambique nunca foi inadimplente, tendo reembolsado o crédito nos prazos.

No investimento que se pretende, o Tesouro podia, desta vez bem, ser avalista da Hidroeléctrica de Cahora Bassa, se qualquer Banco entendesse ser mais real esta garantia do que o valor do próprio empreendimento que a HCB representa ou mesmo o penhor da receita que ela gera.

Se o que se pretende é promover os moçambicanos, todos teríamos imenso prazer em participar num empréstimo público obrigacionista, organizado pela Bolsa de Valores de Moçambique.

Em  Bolsa,  será  muito  difícil  fazer  a  desconsideração  das  pessoas colectivas e, por via disso, pode-se vir a ter novos donos, bem piores do que o Estado Português, agora mais nosso amigo e que jamais ninguém aceitará que seja fascista.

Estas acções de privatizar e de tornar a HCB menos do Povo Moçambicano e de apenas de muitos moçambicanos, até prova em contrário, não pode ser a mais acertada, como não pode ser qualquer tentativa de privatizar a riqueza nacional.

Acertado é o uso da Bolsa de Valores para o financiamento destas iniciativas pois oferece-se aos moçambicanos outra alternativa de uso da poupança diversa da dos depósitos bancários.

Doutra forma, é um mecanismo de ter valores no bolso dos poucos que serão sempre menos do que os 30 milhões que seremos em breve.

Das anteriores perguntas, das várias possíveis, ainda sobram estas: em que Assembleia Geral foi essa decisão tomada? Quais os fundamentos? Porquê esta solução e não outras? Como se garante que os detentores da informação privilegiada não sejam admitidos na Bolsa?

Nas  perguntas  respondidas  mantém-se  a  convicção  de  que esta operação bolsista não é boa nem para o promissor futuro da HCB, tampouco para o Povo Moçambicano que não quer ver a sua independência a ser vendida a retalho.

 

1 WATY, Teodoro Andrade, Direito Financeiro e Finanças Públicas, WEditora, 2011, pp 16-21.

 

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